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mário loff
from Intempestiva n.02
Poeta cabo-verdiano, diretor de teatro, estudou História e Património. Atualmente partilha história contemporânea de Cabo Verde no Ex. Campo de Concentração de Tarrafal. Tem dezenas de participações em antologias nacionais e internacionais de contos e poesias. Pratica voluntariado cultural na escola secundária da sua cidade e tem recebido convites para falar da sua escrita e poemas fora do país.
invenção da seca
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Chamávamos uns aos outros de ilha e as vezes de cabo-verdiano. Pela pedra bruta, arroto ou magma sem estação marcada. Fomos estigmatizados pelas mãos de um Cristo de fogo apesar de esse vício de estar sentado nessas coisas de esperança ou sonhos devastados até que se salva.
No nascer dos antigos dias nos mentiram que éramos tal cor verde. Ainda me lembro que fabricávamos chuvas fora da estação, tecidos no meio da pedra com linhas gigantes, uns verdes, outras secas que traduzem pátrias cascudas, fingíamos ser o criador do firmamento. Tentamos trazer só o sorriso, e saiu tudo em língua da esperança.
Éramos ilhas inseparáveis, contra esquecimento. Já há muitos dias velhos, já há anos esquecidos tornámo-nos tão assimétricos ainda que peguemos as nossas mãos. Sou terra sem berço, nação de catenas e terços tesos. Aleitamos a terra verde no espírito e mãos no céu, esquecemos a língua de traduzir, tudo em cabo-verdiano as cores verdes.
O homem de foice tem cortado as trincheiras que impediam a caída das lágrimas de agosto eles que souberam aprender as linguagens que esquecemos de aprender. Eles de boina furada que trabalham com gosto.
A única tradução que fizemos de jeito nesta invenção foi perseguir a neve dos outros. Mordíamos os risos da neve e aprendemos o valor das lágrimas das azáguas. Ao vertermos escuridões em chuvas.
o peso de amor
tenho dês sentimentos no bolso e uma prata em sua volta tenho dês sentimentos a brigar o peso do amor. tenho febre na ponta dos dedos que há muito não foi até o fundo dos bolsos. tenho dês sentimos e uma prata que anda a perder valor diariamente. tenho nove sentimentos mortos pela saudade, de resto tudo perdeu o seu valor no escuro e na luta, quando a prata desistiu da luz. tenho dês sentimos e uns dedos com cheiros fortes da saudade. os dias foram prisão em dois lados, mal acabou a saudade acordou o coração.
acertos ao amanhecer
E se limpássemos todos os caralhos. Embutidos nos homens, sobretudo nas bocas e em estado reumático e diarreias fletidas e se a eliminação tiver o poder para mandar todos os caralhos tomarem no ku-n-gu-fu?
Caralhos que estragam as frases devem ser repatriados do convívio das frases com acentos. Diálogos acordados. E se limpássemos todos eles que têm sido usados para acordar o quotidiano? E no lugar de bom dia, passássemos a dizer — Olá caralho — E aí caralhos, seremos um país oficialmente de caralhos logo ao amanhecer.
combinações
Todas as luzes entram em combinação na sua presença, miram-lhe a máquina e lentes, calculam a sua imagem para além de um clic.
O resto da cidade tem dado chilique na presença da sua imagem. Esses iPhones jamais passarão fome.
Você o alimenta. Basta o seu riso menino. Que os prédios mudos jamais passarão a chamar-te em silêncio enquanto dorme a cidade na sua foto.
abotoei-me
Eu nunca cheguei a perder por completo, abotoei-me: ininterruptamente em ínfimos do fechamento. O meu amigo poeta, amante de minutas e do setentrional nunca cheguei a carregar toda a culpa da ave que voa barbaramente! Na minha condição, lia canção de poeta louco e piolhos de Kafka, sou citadino clandestino. Só sou completo no Tarrafal!
Passa por mim, a alma gasta, a arma morta. Passam por mim planaltos de pernas ocas, distâncias e diálogos dos sacerdotes e santos boticários! Cada vez mais se acerta o acordo ao ritmo de padre — o nosso. e um terço ao término das tristes vozes da praça. Se sou completo sou do tal.
Ainda que na Pasárgada de mata-galo, nenhum silêncio filosofou mais do que o próprio galo. Nunca cheguei a ser completo, embora seja um pedreiro louco com o vento preso nos olhos. Basta ver, provoco. Ler que invoco. Andar que revejo tudo. Se sou de Tarrafal sou completo.
Tenho de ressalvar a monarquia do poeta, são galos soltos, princípios de transes e barafundas, e um poeta em salto alto que ri de si mesmo.
As achadas passam por mim, e dentro de mim mesmo compreendo o crime e castigo, lestadas e bofetadas do vento meio morto na rocha e uma língua em desaforo. Se sou completo sou de Tarrafal. Se sou completo sou o tal.
recado
Em cada rugir das tempestades ouvem-se recados vindos do universo em cada desentendimento dos homens havia uma briga boba, e desviar de assuntos que não são assuntos tem havido até os próprios rugidos nas veias dos homens e a terra que chora as raivas dos homens o sorriso dos homens e por fim tudo o que há na mão dos homens e eles não fazem nada a não ser juras.
Por isso, por este momento dispenso o sonho. Eu só juro aqui perante vós que tenho só isso. Medo do que vem de outro lado.