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claudio willer
from Intempestiva n.02
São Paulo, 1940, é poeta, ensaísta e tradutor, ligado ao surrealismo e geração Beat. Publicações recentes: Dias ácidos, noites lisérgicas, relatos (Córrego, 2019), A verdadeira história do século 20, poesia (Córrego, 2016; Apenas livros — cadernos surrealistas, 2014), Os rebeldes: Geração Beat e anarquismo místico, ensaio (L&PM, 2014), Manifestos, 1964-2010, (Azougue, 2013), Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia, ensaio (Civilização Brasileira, 2010); Geração Beat, ensaio (L&PM, 2009), Estranhas experiências, poesia (Lamparina, 20004). Traduziu Lautréamont, Allen Ginsberg, Jack Kerouac e Antonin Artaud. Doutor em Letras na USP, onde fez pós-doutorado. Mais em http://claudiowiller.wordpress.com/about.
diário inacabado
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1
Às vezes nem fui eu o fotógrafo daquele mundo que se abria em praias ao pôr do sol, oceanos à contraluz, natureza de braços abertos (eu vi todos os rostos do mar) (o que me dizia o perfil de árvores diante da água?) a verdadeira fotografia — sempre — obra do acaso quando o belo é terrível e estas imagens atraem por sua tristeza os registros do que foi — do que fomos? — nunca mais poderei olhá-las sem um nó na garganta ou, se for falar, com a voz embargada são notas da solidão, isso sim o tempo — poderia ser em 1930 no país parado no tempo (o tempo sempre é outro, sempre é um outro) sempre é assim e meu vínculo é com a palavra — só
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elegias de outono: contrastes o áspero poema digital impresso
associações proibidas uma epopeia, um assoalho compor as sombras do acaso eu tenho o delírio por mestre mas dizer isto não é fácil (não é nada fácil)
3
nas frias tardes sem rumo de abril são grandes as chances de topar com minha glauca indiferença A VIDA VALE UM POEMA o mês de junho também é sombrio (aqui) mas como eu gostaria de saber dizer isso em grego
4
elegíaco, desmembrado o fantasma de Vicente Huidobro passa pela esquina — com a qual sempre sonho — passa com as mãos nos bolsos — reclama do frio e vai repetindo: bergantim / volantim / palaquim... mas eu conheço poucos deuses gregos
anamorfoses — galáxias
Prefácio de Roberto Piva para o livro Anotações para um Apocalipse, de Cláudio Willer. Edição Massao Ohno, 1964.
Toda poesia oficial brasileira, todo este acervo pernicioso-fútil de neoparnasianos, concretistas, marxistas de salão, rilkeanos-lacrimonosos, representa um desejo insaciável de autoridade, de impotência mística, de resignação artificial & patológica diante de uma Sociedade patriarcal & opressora. A rigidez biológica causada pela mania moralizadora consiste em que os seres humanos adotem uma atitude hostil contra o que está vivo dentro deles mesmos. A formação do caráter na pauta autoritária, diz Wilhelm Reich, tem como ponto central não o amor parental, mas sim a família autoritária. Seu instrumento principal é a supressão da sexualidade na criança & no adolescente. No panorama miserável da nossa sociedade puritana & convencional surge a figura de Claudio Willer como um protesto contundente contra todo o estável, fixo, obrigatório. Sua mensagem é a mesma de Blake: o caminho do excesso leva ao palácio da Sabedoria. Isto comprova a sua fidelidade à missão freudiana do artista como o Grande Desinibidor. Para Willer, como para Breton: La poésie se fait dans un lit comme l’amour.
Blake, Nietzsche, Desnos, Freud, Michaux, Bosch, Butluel, Chirico, Lovecraft, Rimbaud, Ginsberg, Artaud surgem como os doze Anjos ou Apóstolos da Desordem presidindo a elaboração do Apocalipse pessoal de Willer. Na sua visão angélica à Swedenborg, São Paulo, New York, México, Recife aparecem em tapeçarias de Mari Juana Estrelada existindo realmente em um novo Céu de nostálgica Liberdade, numa nova dimensão giratória & como Boehme vendo símbolos no prato de estanho projetado fora da mente num espasmo de alegria.
“Um crânio amargo, velejando com a inconstância do sarcasmo em meio a emboscadas de insetos, um crânio azul e sulcado, à janela nos momentos de espera, um crânio negro e fixo, separado das mãos que o amparam por tubos flexíveis...” assim neste poema de Willer eu me vejo muitas vezes costurado por ausências & com a Beleza sentada em meus joelhos invocando Rimbaud num pequeno adolescente da Eternidade, profecia sem Morte como consequência, relembrando minha amizade com Willer de relatividade Egípcia através de longos anos de conquistas & comuns leituras de Apollinaire, Racker, Novalis, Jarry & passeios em seu automóvel de imaginação branca pela Estação da Lapa, transitório sagrado, falando sem parar de experiências metapsicológicas Strindberg com luvas de garoa verde, em bares da Lapa & Brás onde il pericoloso Dante costumava aparecer. É desta Clarividência que seus poemas emergem como numa fecundação obscena, encantadoramente larvar & noturna, ecoando a bossa terrível de Michaux: Les coages aiment l’obscurité.
Poemas do livro Anotações para um apocalipse
1
A Fera voltará com seu rosto de tranças de prata, nua sobre o mundo. A Fera voltará, metálica na convulsão das tempestades, musgosa como a noite dos vasos sanguíneos, fria como o pânico das areias menstruadas e a cegueira fixa contra um relógio antigo. Um sonho assírio, eis nossa dimensão. Um crânio amargo, velejando com a inconstância do sarcasmo em meio a emboscadas de insetos, um crânio azul e sulcado, à janela nos momentos de espera, um crânio negro e fixo, separado das mãos que o amparam por tubos e esmagando os brônquios da memória — assim se solidificarão as vertigens jogadas sobre a lama divina. O incesto é uma tempestade de luas gelatinosas e a mais bela aspiração dos membros dissociados. Em cada órbita uma avalanche de sinos férteis e de arcanjos terrificados pela sombra. O incesto é o sonho de uma matriz convulsiva e o mais profundo anseio das cigarras. Vaginas de cimento armado e urnas sangrentas, impassíveis contra um céu de veludo, guardiãs de oceanos impossíveis. Milhões de lâminas servem de ponte para os desejos obscuros — a mais afilada trará a nossa Verdade.
2
As margens do caminho desfaziam-se em filigranas semelhantes a certas glândulas de mamíferos inferiores, ou aos caules de vegetais cujas raízes se sustentam nas formações cristalinas dos pântanos da Rússia Central. Um calor envolvente desprendia-se do asfalto, de mistura ao odor de maçãs conservadas durante setenta anos em potes de barro, em um clima desértico, ou de fungos que se alimentam do cloro desprendido pelo impacto das hélices sobre as folhas de plátano. O pedregulho, entreabrindo-se, exibia outro subsolo: anátemas ainda não proferidos, nadadeiras de tubarões empalhados, um espelho côncavo, e variedades de tubos cristalinos. Conservada em sal, a alma gelatinosa das mansões belle époque desfazia-se lentamente em colares de pérola negra. Folhas em forma de brasão cobriam as várias tentativas submersas, indicando o roteiro para um ossuário improvável ou para castelos de feixes de dinamite erigidos ao amanhecer.
3
As noites semimortas da minha adolescência, massacradas pela canalha, vieram pendurar-se nos meus ombros, arrastando-se, véu inútil, pelos complicados desníveis do Tempo Presente. Os seios de meia-lua, lacerados, dinamitados, agora farpas de gelo acumulando-se em grossas camadas sobre os sofás, tapeçarias, lustres do meu quarto. Em compensação, todos os gatos esguios da selva suburbana vieram acasalar-se à minha cabeceira, velando meu sono com seus lamentos de fagote e harpa.