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Ministério confirma que etapas de

Vacinar ou não vacinar

Mapa suspende calendário do Pnefa por causa da Covid-19, mas Estados continuam almejando novo status sanitário, apesar da falta de consenso.

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Novo calendário para retirada da vacinação nos blocos II, III e IV será definido no primeiro semestre de 2021.

renato villela,

renato.villela@revistadbo.com.br

Oprocesso de retirada gradativa da vacinação contra a febre aftosa no Brasil continua gerando discussões acaloradas e incertezas, principalmente em tempos de Covid-19. Diante das dificuldades vividas pelos Estados brasileiros, que têm direcionado esforços e recursos para o combate à pandemia, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) “achou prudente” suspender a retirada da vacina antiaftosa nos blocos II, III e IV (veja mapa na página ao lado), marcada para maio de 2021. A medida foi anunciada no começo deste mês de junho, após reuniões virtuais realizadas por representantes do Mapa com as equipes gestoras dos três blocos, para avaliar o impacto da pandemia sobre o plano de ações necessárias à retirada da vacinação. Concluiu-se que não haveria prazo suficiente para cumprir o calendário.

Pesou nessa decisão um fenômeno já assinalado por DBO emreportagens anteriores: o “empilhamento” dos blocos. Todos passaram a ter maio de 2021 como data para a última campanha de vacinação, devido a atrasos sucessivos no cronograma original. Segundo anunciou o Mapa, novos prazos para retirada da vacina serão discutidos com os gestores dos blocos somente no segundo semestre do próximo ano, deixando em suspenso muitas das ações previstas no Plano Estratégico 2017-2026 do Programa Nacional de Erradicação e Prevenção da Febre Aftosa (Pnefa).

O adiamento foi comemorado por pecuaristas contrários à retirada da vacinação, seja por não acharem necessária essa medida (e até temerária), seja por medo de que a doença seja reintroduzida no País. Outro grupo continua defendendo a mudança de status sanitário para livre de aftosa sem vacinação, considerado uma espécie de passaporte para entrada da carne brasileira em países que pagam melhor pelo produto. Divergências à parte, a extensão do prazo dá oportunidade aos Estados para aperfeiçoar seus serviços de defesa sanitária e, ao setor produtivo, para debater o tema, visando assumir posições mais alinhadas.

Quem avança

Para o Bloco I (Rondônia, Acre, algumas áreas do Mato Grosso e Amazonas) e também para o Rio Grande do Sul, que vacinaram seus rebanhos contra a doença pela última vez em maio, nada muda. O Mapa informou que essas “zonas de transição de status” deverão finalizar as ações já previstas, incluindo estudos epidemiológicos, até agosto deste ano, com o objetivo de buscar o reconhecimento internacional de áreas livres de aftosa sem vacinação em maio de 2021.

O Brasil tem prazo até setembro para enviar um relatório à Organização Mundial de Saúde Animal (OIE) apresentando o pleito do Rio Grande do Sul, Paraná e Estados do bloco I para análise e votação, o que deverá ocorrer na reunião anual do órgão, em maio de 2021. Antes, porém, o Mapa deverá fazer o reconhecimento interno dessas áreas como zonas livres de aftosa sem vacinação. A partir daí, novas regras de trânsito animal entrarão em vigor, de acordo com as instruções normativas da Secretaria de Defesa Agropecuária (DAS/Mapa). Animais vacinados contra a doença não poderão ingressar em áreas reconhecidas como livres sem vacinação.

Um produtor de Rondônia, por exemplo, poderá vender seus animais para áreas que vacinam do Mato Grosso, mas o inverso não será permitido, a menos que o lote seja destinado ao frigorífico. “A permissão de ingresso para bovinos de abate foi uma das adequações que fizemos no Plano Estratégico”, afirma Geraldo Moraes, diretor do Departamento de Saúde Animal (DSA/ Mapa). Segundo ele, a nova legislação está em fase final de elaboração, após passar por consulta pública no começo do ano. Vale lembrar que Paraná e Rio Grande do Sul, mesmo sendo reconhecidos pelo Mapa como livres de aftosa sem vacinação, ainda não poderão vender animais para Santa

Catarina, porque não ainda possuem o reconhecimento internacional da OIE, que só os catarinenses têm,

“Blocão” pode ser desmontado

O Plano Estratégico do Pnefa, lançado em 2017, passou por muitas mudanças em seus três anos de existência, começando pela definição dos blocos (cinco ao todo), com suas respectivas datas para suspender a vacinação. Logo o Paraná se desgarrou do bloco V, onde foi incluído junto com SC (com status à parte), MS, MT e RS, que, pelo cronograma, seriam os últimos a parar de vacinar. O Estado, sentindo-se preparado, pediu ao Mapa para avançar sozinho (fez a última campanha em maio de 2019) em busca do tão sonhado status de livre de aftosa sem vacinação. Teve seu pleito aceito e foi rapidamente seguido pelo Rio Grande do Sul, que realizou a última campanha de imunização em maio de 2020. Com isso, os remanescentes do bloco V (MS e MT) foram realojados no bloco IV, que quase dobrou de tamanho (veja mapa na página ao lado).

Para complicar ainda mais, o bloco I, que deveria retirar a vacina em 2019, passou para 2020, e o bloco II, que sairia em 2020, foi para 2021. Formou-se, assim, um grande “blocão” (todo o Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste) com data para suspensão da vacinação antiaftosa no segundo semestre do ano que vem. Tarefa hercúlea, com poucas chances de se concretizar. Por isso, não foi surpresa o Mapa ter optado por revisar novamente o calendário, o que certamente implicará no reescalonamento das datas de retirada da vacina e na desmontagem do “blocão”. Como será essa nova configuração? O bloco IV, por exemplo, é muito grande e heterogêneo, incluindo nove Estados: MT, MS, SP, GO, TO, MG, BA, SE, RJ e DF. Será fragmentado? Será possível fazê-los parar de vacinar contra a aftosa todos juntos?

Questionado por DBO, Geraldo Moraes disse que essas questões ainda não foram discutidas, mas a possibilidade não está descartada. Segundo ele, a formação de novos blocos ou eventuais demandas de Estados para suspender a vacinação individualmente serão estudadas caso a caso, para se avaliar a instalação de barreiras sanitárias nas divisas, além da interdependência quanto ao fluxo ou comércio de animais e produtos entre os Estados. “Se visualizarmos outras possibilidades de avanço, diferentes das que estão propostas hoje, não vejo porque não utilizá-las”, disse Moraes à DBO. Essa possibilidade de “voo individual” ganha força quando se compara a condição de cada Estado para cumprimento das exigências do Pnefa.

Vigilância tecnificada

O Mato Grosso do Sul, Estado já com bom nível preparatório para retirada da vacina, também foi atingido pela crise causada pela pandemia e enfrenta dificuldades, como todos os outros Estados, para contratar funcionários. Por isso, buscou na tecnologia alternativas para atingir as metas do Pnefa, mesmo com equipes enxutas. Nos últimos meses, a Agência de Defe

Composição dos Blocos Plano Estratégico do Pnefa para 2017-2026

RO, AC, parte do AM** e do MT** RR, AP, PA e AM

MA, PI, CE, RN, PB, PE e AL. SE, BA, TO, MT, MS, GO,

DF, SP, MG, RJ e ES PR, SC e RS

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** Parte do Amazonas incluído no bloco I: municípios de Apuí, Boca do Acre, Canutama, Eirunepé, Envira, Guajará, Humaitá, Itamarati, Ipixuna, Lábrea, Manicoré, Novo Aripuaná, Pauini e parte do município de Tapauá na divisa com Humaitá.

** Parte do Mato Grosso incluído no bloco I: municípios de Rondolândia e parte de Comodoro, parte de Juína, parte de Colniza e parte de Aripuanã.

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sa Sanitária Animal e Vegetal do Estado (Iagro) criou uma central de informações dentro da sede do órgão, em Campo Grande, MS, para auxiliar os profissionais que trabalham a campo. “Os veterinários têm um roteiro de propriedades para visitar, com todas as informações georreferenciadas. Ao finalizar seu trabalho, ele registra os dados que coletou em um tablet e os envia diretamente para nosso sistema. É uma maneira de otimizar processos, em tempos de carência de pessoal”, informa Daniel Ingold, diretor-presidente da Iagro.

O órgão também está criando um aplicativo para cadastrar caminhoneiros e caminhões que fazem o transporte de gado. A ideia é rastreá-los da origem ao destino. “Os caminhoneiros já saem com um roteiro pré-determinado. Vão até a propriedade, carregam os animais e quando chegam ao frigorífico, entram novamente no aplicativo e dão baixa”, explica Ingold. Outra ação que está já em curso é um modelo de “fiscalização por quadrantes”. Ao dividir o Estado em quadrantes, a ideia é identificar e classificar as áreas de acordo com o risco sanitário (alto/baixo), direcionando os esforços de acordo com a necessidade apontada. Áreas de risco alto recebem vigilância mais ativa. “É uma forma de trabalhar com a inteligência”, diz Ingold.

Em 2017, o Mapa implementou o Programa de Avaliação da Qualidade e Aperfeiçoamento dos Serviços Veterinários Oficiais, o Quali-SV, um sistema que prevê o monitoramento dos serviços veterinários estaduais por meio de dados técnicos (indicadores), além e avaliações presenciais, por meio de auditorias e supervisões. É por meio dos relatórios do Quali-SV (não divulgados pela pasta) que os Estados ficam sabendo como estão seus serviços de defesa e se estão aptos a avançar. O Mato Grosso foi relativamente bem nessas avaliações, com recomendação de melhorias. “Es-

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Barreira sanitária do Indea, em Arapuanã, na região noroeste do Mato Grosso

tamos solucionando algumas pendências e adotando as medidas corretivas que foram apontadas pelo Ministério da Agricultura”, diz João Marcelo Brandini Néspoli, coordenador de Defesa Sanitária Animal do Indea – Instituto de Defesa Agropecuária do Estado do Mato Grosso. Dentre as demandas do órgão, está a melhor estruturação do serviço de defesa com a contratação de pessoal e aporte de recursos de custeio para fortalecer ações. Motivo de preocupação por parte dos produtores brasileiros, a fronteira com a Bolívia conta com um serviço de vigilância “muito bem estabelecido”, de acordo com Néspoli. “Temos sete barreiras sanitárias na fronteira. Nossos veterinários visitam com frequência as propriedades nessa região e acompanham, inclusive, o embarque de animais”, diz. O país vizinho prevê a retirada da vacinação contra a febre aftosa até o final deste ano.

Vigilância passiva

O coordenador do Indea faz questão de ressaltar a importância da classe produtiva no plano de retirada da vacinação. “Para alcançar um status sanitário de países de primeiro mundo, precisamos dos produtores”, diz. Nessa nova etapa, caberá ao produtor desempenhar o que se chama de “vigilância passiva”, ou seja, a notificação do órgão de defesa sanitária estadual sobre eventuais casos suspeitos. “Se houver um foco de aftosa, quanto mais cedo o descobrirmos mais rapidamente implementaremos um plano de contingência. Por isso o produtor é fundamental. Hoje ele participa do programa vacinando. Amanhã participará fazendo a vigilância”, diz. Segundo Néspoli, as principais entidades representativas do Estado, como a Associação dos Criadores de Mato Grosso (Acrimat), apoiam a iniciativa.

Embora o Mapa afirme que a retirada da vacina está atrelada à concordância do setor produtivo, não há consenso. “Temos uma divisão clara em nosso Estado. Muitos produtores têm receio de parar de vacinar”, afirma Jamir Júnior Macedo, diretor de Defesa e Inspeção Animal da Adepará – Agência de Defesa Agropecuária do Estado do Pará. Ciente de que o avanço so

mente se dará se o setor “abraçar a causa”, Macedo diz que, além de promover fóruns educativos, a Adepará tem procurado até mesmo auxílio da Assembleia Legislativa do Estado, no sentido de explicar as ações e a importância da medida, buscando apoio para a conscientização dos produtores.

Num debate sobre o tema na RedeDBO, grupo de WhatsApp que reúne produtores de todo o País, a maior parte das opiniões foi contrária à medida. “Será que nossa carne ficará mais valorizada? O risco é grande para um benefício ainda incerto”, opinou Eduardo Penteado Cardoso, da Fazenda Mundo Novo, em Uberaba, MG. “Muitos países não abrem o mercado para o Brasil por conta da vacina. Alegam que, pelo fato de vacinarmos, ainda temos rescaldo da doença por aqui”, contrapôs Teia Fava, da Fazenda Estrela do Sul, em General Carneiro, MT.

Luciano de Oliveira, administrador da Fazenda Porto Alegre, em Mundo Novo, GO, não crê que a medida beneficie o produtor. “A arroba não vai subir se pararmos de vacinar. E ainda ficaremos totalmente desprotegidos”, diz. Geraldo Moraes, do Mapa, afirma compreender esse receio: “Respeito a preocupação do produtor, mas ele tem condições de acompanhar de perto a situação do seu Estado. A retirada da vacina não é uma imposição, mas um processo que está sendo construído junto com a classe produtiva”.

Fundo indenizatório

Outro tema que traz insegurança para os produtores é a indenização em caso de abate sanitário, que deve ser feita por meio de recursos oriundos de fundos, preferencialmente privados, como recomenda a OIE. Goiás é o Estado melhor colocado nesse quesito. “O Fundepec é um grande parceiro e nos auxilia bastante”, afirma Antônio do Amaral Leal, gerente de Sanidade Animal da Agrodefesa – Agência Goiana de Defesa Animal. Composto por oito entidades representativas de classe, o Fundepec-Goiás tem um saldo de R$ 210 milhões. “Esse montante é destinado exclusivamente para casos de indenização. Além disso, repassamos 10% do que o fundo arrecada anualmente para ações da Agrodefesa”, afirma Uacir Bernardes, diretor-executivo do Fundepec-Goiás.

O Mato Grosso também conta com um fundo privado, no total de R$ 114 milhões. Mato Grosso do Sul, por sua vez, tem um fundo público, o Refasa (Reserva Financeira para as Ações de Defesa Sanitária Animal) e está montando outro, privado. O Estado do Pará dispõe de um fundo indenizatório também privado, mas com pouco mais de R$ 1 milhão. “Está aquém do nosso rebanho”, afirma Jamir Macedo, da Adepará. A agência conta com um aporte da Federação da Agricultura do Estado e estuda novos meios de arrecadação de recursos. A Defesa Agropecuária de São Paulo foi procurada para falar sobre as ações visando retirada da vacinação contra a aftosa, mas não atendeu ao pedido de entrevista. n

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Professor titular de Clínica de Ruminantes da FMVZ-USP ortolani@usp.br

A doença conhecida como D.I. causa eliminação de fezes em jato.

Disenteria de inverno: outro mal do coronavírus

Hipócrates foi um extraordinário sábio grego, que viveu entre os anos 460 a 377 antes de Cristo, e é considerado o pai da Medicina. Ele foi o primeiro a relacionar as doenças com os sintomas clínicos e a desmistificar que as enfermidades não eram um “capricho ou maldição dos deuses”, mas sim oriundas de causas naturais. Deu nome a uma quantidade enorme de sintomas, dentre eles a diarreia, disenteria, cólica e daí por diante. O termo diarreia em grego significa “fluir ou deslizar”, para um bom entendedor meia palavra basta. Em seguida, Hipócrates criou o vocábulo disenteria (do grego: dis = dificuldade ou perturbação; enteron = intestinal) descrevendo severa diarreia com presença de catarro e sangue.

Quando eu era garoto, evitava-se dizer que alguém tinha diarreia (um quadro mais comum), afirmando-se erroneamente que o “caboclo” tinha disenteria, como se fosse um problema mais brando e socialmente mais aceitável. Estranho hábito na época que nosso dinheiro ainda era o cruzeiro. A “disenteria de inverno” (D.I.) é uma doença esporádica, mais comum em vacas leiteiras, causada pelo coronavírus e já descrita no Brasil e pelo mundo afora. Existem poucos relatos na literatura em gado de corte confinado. Recentemente, detectei um baita surto de disenteria em um confinamento paulista. Provavelmente, muitos outros têm passado batido nas terras tupiniquins. Vai saber?

A doença é chamada de D.I. porque a maioria dos surtos surge nos meses mais frios, inclusive no Brasil, mas, na Coréia do Sul detectaram essa doença bovina tanto no verão como no inverno. Os pesquisadores constataram que o coronavírus do verão era mais evoluído e resistente do que o do inverno. Poucos esperavam que a COVID 19 pudesse matar tantas pessoas em locais onde quase não se usa blusa. Manaus que o diga! Quem sabe essa nova COVID 19 não adquiriu superpoderes como os encontrados no coronavírus do verão coreano? Um dia emergirá a resposta. Essa disenteria surge do nada, quando tudo está cor de anil no céu do Brasil. No confinamento paulista, ocorreu por dois anos consecutivos. Em ambos os casos, os surtos surgiram após dois dias de chuva, que antecediam dias gelados (1º ano, nos meses de abril e julho; 2º ano, agosto). O gado Nelore foi o mais atingido; os meiosangue Angus pareciam tirar de letra.

Rápida propagação

A estória ocorrida no primeiro ano do surto foi incrível. Até então, nunca tinha sido descrito isso nesse confinamento, com mais de 10 anos de funcionamento. O problema surgiu em meia dúzia de animais, que completavam cerca de 35 dias de cocho. Em poucos dias, a doença se alastrou para uns 50 bois do mesmo piquete. Uma semana depois, propagou-se da mesma forma em um piquete 300 m longe dali. Em torno de um mês o gado de outros quatro piquetes também se contaminou. Depois da ventania, surgiu uma calmaria e sumiram os casos. Mas, apareceu uma nova onda de frio em julho e acima de 800 animais manifestaram o problema. Quando tudo parecia perdido, de repente, a epidemia desapareceu em 20 dias... evaporou. Por incrível que pareça nenhum animal morreu.

No ano seguinte, fui chamado quando a disenteria já tinha aparecido em uns 300 animais com o mesmo quadro, mas, dessa vez, 2% já haviam morrido.Tudo começou com a eliminação, por dois dias, de fezes bem amolecidas. Em seguida, surgiu a disenteria, por até oito dias, caracterizada por fezes eliminadas em jato, escuras, malcheirosas e em alguns casos com presença de sangue vivo. Notei que os animais enfermos ficavam arrepiados e “borocochos” no fundo do piquete, quase não comiam. Uns 15% tinham um tipo de coriza. A perda de peso chegou, em alguns casos, a atingir o patamar de 60 kg, no decorrer de 10 dias da doença.

Os recuperados demoravam um mês ou mais, que os sadios, para atingirem o peso de abate. Um enorme prejuízo! Outra coisa que notei foi que o cocho e o bebedouro eram bem baixos e alguns bois doentes aí defecavam, contaminando rapidamente outros sadios do lote. Era fogo alto no mato seco! Segundo os estudiosos, o coronavírus entra no organismo pela boca e começa a provocar os primeiros sintomas em dois a oito dias. Suspeitei que a contaminação em lotes de piquetes distantes poderia ocorrer pelo próprio vagão que distribuía a alimentação, já que este tocava as bordas do cocho, que poderia estar contaminado.

A presença de fezes líquidas e com sangue ocorre porque o vírus ataca tanto a camada superficial, responsável pela absorção de nutrientes e água, quanto a intermediária do intestino grosso (cólon), onde existem vasos sanguíneos, que sangram pra valer. Como o intestino fica danificado em sua capa protetora, invés de absorver, perde muitos fluidos corpóreos tornando as fezes líquidas, volumosas e eliminadas em forma de jato. A morte pode ocorrer por desidratação intensa somada à marcante anemia. Quando o vírus deixa de atacar o intestino, os estragos neste tecido têm de ser reparados, fazendo com que o animal não ganhe peso adequadamente no decorrer de uns oito a 10 dias apóso sumiço dos sintomas.

Barro na caixa d’água

A coriza ocorre porque o coronavírus pode provocar uma inflamação temporária na narina, e em alguns casos graves chegando até os pulmões. Porém, neste surto examinei os pulmões de muitos bovinos com coriza que, por sorte, estavam aparentemente normais. Fiz um pente fino na propriedade. Os depósitos de ração e a ração estavam bem. Porém, a água não! Ela era captada em um grande lago, mas, por um problema na bomba, subia barrenta para uma enorme caixa d’água (50 m de diâmetro e 4 m de altura). Aí a água “descansava” e era tratada com floculante e solução desinfetante de cloro. Todavia, encontrei, no fundo dessa caixa d’água, uns 40 cm de lama.

A água era tratada com 10 ppm de cloro livre e deveria chegar no bebedouro com 1 ppm, mais do que suficiente para matar os vírus que aí se alojassem. A lama depoisitada no fundo da caixa, contudo, “sequestrava” o cloro, fazendo com que o bebedouro tivesse menos de 0,2 ppm do produto. Assim não dava! Examinei com lupa muitos bois doentes à procura de sintomas gerados por outros vírus que pudessem complicar a doença. Não achei nenhuma evidência. No laboratório de virologia, detectou-se a presença de coronavírus nas fezes e na chorumeira que recebia o estrume oriundo dos piquetes contaminados, confirmando minha suspeita clínica.

Antes de ir embora fiz uma reunião no próprio curral com o dono, gerentes, consultores de empresas, nutricionistas e o mais importante: uns 10 peões

que faziam o trato e o acompanhamento da saúde dos bois. Me voltei para esses valorosos colaboradores e disse: “Vocês serão os responsáveis por resolver o problema! Ao invés de correr a boiada para inspeção uma vez por dia, vão fazer isso três vezes. Assim que encontrarem um único boi obrando mole ou com disenteria, vão tirá-lo imediatamente do lote e levá-lo para um piquete a 2 km daqui”.

Só faltou eu falar: “coloquem esse boi em ‘isolamento social’, longe da boiada sadia”. Mandei também desinfetar os comedouros e bebedouros e deixar os piquetes contaminados em descanso, manejo não tão comum em nossos confinamentos. E não é que funcionou! Casos novos da doença sumiram dentro de uma semana e a paz voltou a reinar no rebanho, embora o estrago já tivesse ocorrido. Como o vírus chegou à propriedade? Sobre isso, ciência tem mais suposições do que certezas, mas acredita-se que tenha sido por meio da entrada de animais já contaminados, ou por meio de pessoas que tiveram contato com eles. Vacina existe, mas parece não proteger o gado. Funciona muito mais o rápido isolamento e “caldo de galinha”! n

Imagem do coronavirus que causa disenteria de inverno em bovinos

Fezes escuras, mal cheirosas, com presença de sangue vivo, são um dos sintomas de disinteria causada por coronavirus.

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