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Três Pontos de Partida: Um Diálogo Introdutório – Holney Antonio Mendes e Lusmarina Campos Garcia
from Liturgia, Arte e Urbanidade. Memórias de um seminário
by Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB)
TRÊS PONTOS DE PARTIDA: UM DIÁLOGO INTRODUTÓRIO
Holney Antonio Mendes e Lusmarina Campos Garcia
Poderia a arte abrir as portas dos templos, fazer com que os serviços eclesiais incorporem o comum e o imundo, as partes abomináveis da carne, levando-nos ao encontro do sagrado na sua plenitude? Levanta-te, mata e come. Ao que Deus purificou não consideres comum. Como, se a arte dos templos caducou?! Igrejas ocupam construções que outrora eram para cinemas (a arte do século) e fábricas, como hipótese da crise (hipo/crisia) da modernidade e concomitantemente da Teologia, da arquitetura, do urbanismo e do trabalho como categoria para as ciências sociais. Não obstante a dança, o teatro, o poema, a fotografia e o cinema continuam excluídos do espaço/tempo sagrado destes templos.
Espaço, Holney, Espaço!
Apertados elevadores circundados por estruturas verticais-concretas; amplos salões de festas/conferências para os melhores dotados ou em formação; ruas de passagem, becos, viadutos, casas de papelão, praças vibrantes, Pedra da Gávea, lagos (Michigan, para quem está em Chicago; Leman, em Genebra!), corpos (espaço inevitável de emoções, percepções, sentidos, vontades); tudo misturado, confluído, convivente numa proximidade que intimida, numa distância que assusta, numa disparidade que qualifica.
Espaços urbanos e espaço litúrgico. In-formam-se; são inter-agentes?
O espaço litúrgico não é simplesmente uma extensão. É um lugar culturalmente construído e psiquicamente investido; lugar in-formado pela tradição e memória coletiva dos cristãos e pela história do grupo que celebra. É espaço vivido. Não
Este texto foi o diálogo introdutório que deu abertura ao Seminário de Liturgia, Arte e Urbanidade. Nele, Holney e Lusmarina deram um “pontapé inicial” em alguns eixos que perpassaram o evento.
O texto em estilo redondo é de Holney e em itálico é de Lusmarina.
Holney Antonio Mendes é pintor, teólogo, sociólogo e educador. É pastor licenciado da Igreja Metodista do Brasil. Atualmente é aluno de doutorado na Universidade de São Paulo (USP).
Lusmarina Campos Garcia estudou Teologia e Direito. É pastora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) mas está cedida para a Igreja Evangélica Luterana de Genebra – congregação de fala inglesa. Trabalha na área de Liturgia e Arte como escritora, publicadora, conferencista, assessora.
apenas em sua positividade ou concretude, mas em sua subjetividade; com todas as parcialidades, inteirezas e liberdades pertinentes à experiência de comunicar e ser comunicado. O espaço litúrgico não pode ser indiferente aos outros, mas precisa ter caráter e identidade próprios. Não precisa ser o templo; pode ser a rua, a esquina, a praça, o estádio. Pode ser o espaço interno do pensamento, do sentimento; silêncio que se desloca até as profundidades da pessoa a fim de capacitá-la ao mergulho na experiência de tocar o sagrado. Mas esse espaço – positivo ou subjetivo – precisa ter qualidade específica potencialmente capaz de inaugurar uma dimensão diferenciada e um desejo celebrativo no meio do cotidiano das pessoas. E na convivência com o espaço urbano há que aprender a interinfluência e a confluência.
Eu concordo, Lus, mas há que se considerar que, em se tratando de espaço urbano, existem cidades e cidades. Existem cidades nas cidades. Em algumas dá gosto caminhar. Em outras, só com muito esforço e disposição. Enquanto uma é toda arquitetura, outras são tão-somente aglomerados de construções sem linguagem, sem comunicação. Algumas trazem o que outras não: liberdade e aventura, anonimato e solidão. Como o espaço litúrgico e a própria liturgia se relacionam com todo este universo? Os judeus têm no espaço doméstico lugar indispensável para o sagrado, enquanto o cristianismo tentou o que o mercado de modo eficiente conseguiu: organizar o espaço urbano para a circulação do capital e daqueles que dão vida a esta circulação; pois como diz o ditado: tempo é dinheiro. Este ritual urbano, sua liturgia, definitivamente não pode ser a dos templos. Será? Mas as cidades não são somente profanas. Do mesmo modo a Igreja não está isenta do erro e da culpa. Ao templo levamos as cidades conosco. E como nos diz o profeta: o centro delas, as praças, ocupadas por meninos e meninas que brincam, idosos e idosas que julgam e ensinam, será habitado por Deus. Nós fazemos parte das cidades. Debaixo da ponte o sofredor de rua escreve: Deus está aqui. O artista toca no templo e nos bares da vida. Não como o sacerdote, ele vive de sua arte, e não somente da fé. As cidades dos homens na cidade de Deus, e a cidade de Deus nas cidades dos homens e mulheres. Neste complexo de complexos que é a cidade, tudo que é sólido se desmancha no ar, inclusive os dogmas. O que fica são experiências vividas a compartilhar. Uns que as tiveram mais intensamente e outros quantitativamente. Difícil especificar... As perguntas são mais inteligentes que as respostas. Tudo é um ensaio...
É! E aqui no Seminário de Liturgia, Arte e Urbanidade, queremos ensaiar juntos. Tanto as assessoras e assessores quanto os participantes e as participantes deste seminário portam sabedorias e competências respeitáveis, finas, e têm diante de si a oportunidade e o desafio de participar do processo de construção de uma linguagem litúrgica situada na cidade.
Traçando um paralelo com as constantes construções da cidade, eu diria que a linguagem litúrgica não está pronta. Há coisa pronta e até definitiva. Mas há muito que construir e reformar. A linguagem litúrgica é a busca da expressão do que só pode ser parcialmente expresso. É o esforço de dar forma ao que é só parcialmente delineável. Partindo do princípio de que culto/missa ou celebração
é o encontro de Deus com a comunidade e vice-versa, a comunidade só pode pronunciar palavra e expressão da parte que lhe cabe neste encontro. Assim, a liturgia põe a linguagem em estado de emergência.
Gostei da emergência! E “estado de emergência” sempre requer criatividade. Quando você fala em construção conjunta, eu penso em criação/criatividade. E penso que enquanto a liberdade de criar passa a ser princípio de uma arte, de um modo de ver a arte, pelo menos, a liberdade litúrgica pode ser malquista pela ecclesia. Ela prefere as ladainhas, litanias intermináveis ou falar em línguas, estranhas, mas com o vocabulário pobre de sempre. Pois vê o sagrado como se estivesse ali, parado, com pernas sem andar e com olhos sem ver... Sem nenhum sentido, eternamente inquestionável.
Pra mim, a questão não se põe sobre as litanias e ladainhas como tal, porque este processo ritualístico de repetir pode criar segurança e noção de familiaridade numa experiência de estranheza contínua, que caracteriza a experiência urbana. Mas se coloca sobre o fato de se o rito neste formato aproxima-se a realidade, reporta-se ao cotidiano, está cravado nas referências e valores de quem o experimenta, consegue transitar da concretude para o subjetivo, da pessoa para o divino. A questão se põe sobre o fato de se as litanias e ladainhas conseguem desencadear uma possibilidade imaginativa, ou seja, lançar as pessoas que celebram a um de produzir imagens. Imagem, coisa tão própria e abundante na cidade; “liberdade que o espírito toma. Mas acontece que as imagens não aceitam idéias tranqüilas nem sobretudo imagens definitivas. Incessantemente a imaginação imagina e se enriquece com novas imagens (Gaston Bachelard)”. E é essa riqueza do ser imaginante/imaginado que vive na cidade, que a liturgia feita na cidade deve cultivar.
Um exemplo em termos de linguagem: quando se fala do Reino de Deus ainda se pensa no semeador. Quando se fala da fé, vislumbra-se o grão de mostarda. É preciso pensar imagens que advenham do nosso próprio meio, local, experiência. Os fios condutores de energia elétrica, por exemplo, poderiam remeter-nos ao Espírito Santo?
Penso não haver via melhor para desencadear esses processos de produzir imagens que a arte e a beleza.
A experiência o sagrado, seja através do cinema, da dança, das relações pessoais ou de um culto, missa, o que for, é experiência com o belo. Beleza que não dá para definir por conceitos, aos quais devemos nossa forma de ver o mundo e compreender a vida, mas que nos emociona (ex/motor), nos move do comum, do medíocre e vulgar ao sublime, ao encontro de uma graça ateleológica, sem finalidade partidária e salvífica, desinteressada, que nos leva até mesmo a reconhecer o belo no feio quando incorporado pela arte. Enquanto na experiência estética não podemos dar nome às coisas, e o faz somente aquele indivíduo que toma o conceito e não a sensibilidade como princípio da vivência estética, na liturgia o nome é necessário, como era necessário a Moisés dizer ao povo o nome daquele que o enviava. Seria possível uma liturgia desinteressada? Há um conto oriental que poderia, de certo modo, nos guiar. Como Wang-Fô foi salvo. Wang-Fô, um mestre da arte de viver e de pintar abandonou sua casa e fechou atrás de si a porta do passado. Juntamente com ele o seu jovem discípulo, Ling, que para seguir errante
a nova vida de artista vendeu sucessivamente seus escravos, jades e os peixes de sua fonte a fim de comprar tintas ocidentais. Wang-Fô ensinou não somente seu discípulo a misturar cores, ver o universal no singular e vice-versa, mas também ensinou o princípio do desinteresse, que é a sabedoria dos que vivem e estão para além das paixões. A narrativa vai descrevendo as experiências de ambos, até que são detidos por um tirano imperador. Ao defender seu mestre, Ling é morto. O imperador possuía várias obras do pintor. Antes que o matasse, ameaçou destruir toda a coleção se Wang-Fô não terminasse uma obra que estava inacabada.
O mestre obedeceu. Seus pincéis concluíram-na: uma marina, inundando o palácio. Um bote entrou no salão imperial, conduzido por Ling, e aos poucos desapareceu com ambos para sempre sobre o mar de jade azul que o mestre acabara de pintar.
Poder imaginar – possibilidade que a linguagem celebrativa precisa implementar se quer estabelecer conexão com a cidade. Nas grandes metrópoles, a capacidade imaginativa das pessoas é elemento indispensável. A fim de suportar o cansaço e desconforto produzido por um engarrafamento, por exemplo, as pessoas precisam ter mais do que paciência. Precisam ter a capacidade de se conduzir para lugares, momentos e pessoas que as livrem da angústia do tempo perdido, do pânico do atraso, da imobilidade sem propósito. Esta experiência de deslocar-se internamente para o encontro de referências que restauram a alegria, que dão prazer, deve ser resgatada pela liturgia feita em contexto urbano.
Se os conceitos são necessários como é a racionalidade, eles são provisórios e indetermináveis, e se o são atualmente para a Física quanto mais serão para a experiência do bom gosto. Mas nenhum conceito é totalmente feliz quando tenta definir o belo, quando tenta dar nome ao sagrado.
“Não há nada menos apropriado para tocar numa obra de arte do que palavras de crítica, que sempre resultam em mal-entendidos mais ou menos felizes. As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis, quanto se nos pretendiam fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou. Menos suscetível de expressão do que qualquer outra coisa são as obras de arte... As obras de arte são de uma infinita solidão; nada as pode alcançar tão pouco quanto a crítica. Só o amor as pode compreender e manter e mostrar-se justo com elas”.
Ao contemplar a beleza divina Adélia Prado (poeta brasileira) escreveu: “Deus é poesia. Todos os conceitos são discutíveis, como o é também o belo. Mas sem disputas, é claro”.
Holney, sei que vou fazer exatamente o contrário do que você está dizendo, mas quero arriscar um pensamento e um conceito. Belo é aquilo que me impacta e me faz suspirar; me tira o fôlego, me deixa sem palavras. Aquilo que me concentra e me envolve de maneira irresistível. É como se o universo inteiro fosse reunido naquele ponto, naquele momento. Belo é aquilo do qual o meu olhar ficou prisioneiro. Eu olho e não consigo deixar de olhar. É o que me faz sorrir por dentro.
É belo o seu conceito de belo! Mas para além do conceito está o amor. Só o amor intersubjetivo é que pode compreender o belo e Deus, e conjugá-los. O amor que
ama através da poesia, e que ama coisas. Amando a possibilidade das liturgias, a possibilidade das artes e a possibilidade de encontros nas cidades da cidade. A possibilidade das artes nas liturgias e cidades, a possibilidade das liturgias incorporarem o que aos pobres mortais é comum e abominável, a possibilidade de nas praças das cidades as meninas e meninos brincarem, os idosos e idosas assentados com seu cajado à mão compartilharem suas histórias, Deus ali habitar. Mas isto é possível quando o mundo é movido pelo interesse? Será que os filósofos, os que amam, não seus conceitos, mas a sabedoria que não sabem; será que os artistas, não somente os que constroem objetos belos, mas principalmente aqueles que vivem abertos às possibilidades da vida, à indeterminação e ao novo; será que os santos, não os que se excluem da possibilidade do sagrado nas cidades, mas que são santos nelas e para elas, os que valorizam o comum e o imundo, os tipos abominados pela hipocrisia social, será que destes profetas abafados pela indústria cultural secular e evangélica, consumista e medíocre, que não chama o cidadão por seu nome, mas o considera apenas consumidor, não a partir de sua individualidade, mas a partir de um gosto médio especulado; será que poderemos aprender não repetindo o vazio, como fazem sacerdotes, pastores e fiéis em seus rituais de morrer, mas aprender de cor/ação?
JOHN COWART DAWSEY
é professor no curso de antropologia da Universidade de São Paulo (USP).