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Os Jovens da Cidade Regina Novaes
from Liturgia, Arte e Urbanidade. Memórias de um seminário
by Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB)
OS JOVENS DA CIDADE
Regina Novaes
A proposta desta contribuição é trazer um pouco do olhar antropológico para a questão urbana. Para tal, escolhi como pano de entrada a juventude, já que esta é a geração que está vivendo mais profundamente a textura urbana. Na verdade, está vivendo esse mundo mais urbano do que rural, local e globalizado ao mesmo tempo. Há algumas perguntas que são geralmente feitas sobre os jovens e que compõem o escopo daquilo que é chamado de “o olhar antropológico frente à juventude de hoje”.
A primeira questão está baseada na comparação entre a geração que nasceu por volta dos anos 50 e que fez o ano de 1968 (maio de 1968) , por meio do movimento contestatório, e a geração de hoje. As perguntas feitas no Brasil, basicamente, são: que papel desempenham os jovens na sociedade atual? Que jovens são esses, filhos das pessoas entre 40 e 50 anos que compuseram a geração do divórcio, da mulher no mercado de trabalho; a geração que contestou? Como é que aparece a atual geração de jovens com as características que têm? Por que o seu comportamento e atitudes não guardam relação com o comportamento e atitudes da geração dos seus pais? A primeira resposta pensa a geração dos pais como contestadora e a geração dos filhos como individualista e conservadora. Esta resposta encontra-se difundida em vários meios de comunicação e faz parte de um certo senso-comum. A esta primeira resposta interpõe-se uma questão: o que se está comparando? Ao serem estabelecidos os termos da comparação, percebe-se que o que nós comparamos é uma minoria do passado com uma maioria do presente. É importante atinar para o fato de que as cobranças à geração presente são feitas a partir de um grupo significativo, importante e formador de opinião na atualidade, mas que, estatisticamente falando, é apenas uma parte, uma parcela muito pequena da geração anterior.
Sou professora universitária e em uma aula falava sobre a minha geração quando uma aluna me disse: “Mas a minha mãe nasceu no mesmo ano que você e não conta nada do que você está contando”. Aí fica claro que a gente compara coisas que não são comparáveis. Neste sentido, o olhar da antropologia ajuda a pensar como é que se comparam coisas comparáveis, grandezas comparáveis, e como se relativizam aquelas que, de tão repetidas, tornam-se verdades nos meios de comunicação, como é o caso de gerações. Esse é o primeiro ponto.
A segunda questão reside na idéia de que os conflitos de geração estão resolvidos porque a geração dos pais atuais evita confrontos em termos de valores. Então, há uma liberdade extensa concedida aos jovens e há também uma cultura urbana, bastante disseminada nos meios de comunicação, que afirma que “é preferível conversar do que reprimir”. Esta frase, no caso do Brasil, será encontrada desde o Programa do Ratinho, que é bastante popular e usa uma linguagem muito simples e sensacionalista, até o caderno Mais, da Folha de S.Paulo. Essa comparação é para dizer que todos esses meios de comunicação, de maneira mais ou menos sofisticada, generalizaram esta idéia: “É preferível conversar do que reprimir”. Até mesmo quem faz o discurso da repressão a repete. No entanto, é interessante perceber que a idéia do diálogo está presente, mas ela agrega outros valores. Falar sobre sexo, usos e costumes, liberdade de escolha religiosa, por exemplo, é possível e comum, mas onde é que ficam as tensões? Eu localizo as tensões na questão do uso das drogas. Existe aí um ponto importante para se pensar a respeito dessa geração e do urbano.
Outra questão de grande importância, da qual emergem os conflitos de geração, é a inserção do jovem no mercado de trabalho. Esses dois pólos – droga e mercado de trabalho – é que vão produzir outros conflitos de geração que têm a ver com o urbano contemporâneo. Os jovens têm uma forte relação com o tempo presente, principalmente hoje, quando o futuro se apresenta cada vez mais incerto para eles e para elas. Isso provoca tensão nos pais. É como se os conflitos aparecessem porque a geração dos pais está olhando para os jovens e pensando em carreiras, em escolhas, e não está percebendo que é preciso aprender com a experiência dessa geração, isto é, com escolhas mais provisórias e reversíveis. Aqui se estabelece o ponto de conflito: a geração dos pais é formada para a questão da escolha. Considera-se que os filhos têm uma sorte danada de poder escolher, mas precisam escolher da maneira como os pais e mães escolheram. Esta é uma questão importante a ser pontuada.
É aí que a geração dos pais pergunta: será que esta juventude pode propor algo novo ou se apaixonar por alguma causa, já que tudo é tão incerto e provisório? Estará ela condenada a não ter utopias e sonhos, uma vez que o desemprego é tão presente e os jovens gastam mais tempo preocupando-se em preparar-se para o incerto mercado de trabalho do que, por exemplo, com o sistema educacional? Volta-se então à comparação e à afirmação de que eles são conservadores. A geração dos pais solicita que a juventude atual tenha os sonhos e as utopias que a sua juventude teve, sem considerar que a utopia e a forma de pensar o futuro, que marcaram a geração passada, não marcam os adultos de hoje. Os adultos, atualmente, pensam de maneira diferente; pensam a política como aqui e agora. Mas, quando falam para os jovens, dizem que estes é que não têm utopias. Esta imediaticidade, no entanto, perpassa a sociedade de modo geral; não é só uma questão da juventude.
As pessoas que questionam a política totalizadora afirmam igualmente que o jovem de hoje não tem um sonho, uma utopia. Na verdade, há uma descrença na possibilidade de mudanças radicais que mudou o caráter dos movimentos sociais contemporâneos. Hoje vale o aqui e o agora. Sentimentos de indignação pessoal
fazem com que as pessoas se engajem em ações cujos resultados possam ser de alguma forma palpáveis, a curto prazo. E muitas vezes sem nenhuma vinculação com a política partidária. Uma parcela dos jovens de hoje participa dessas ações, assim como uma parcela de jovens participou no passado. Este engajamento não é desprezível. Hoje, por exemplo, o contingente de alistamento eleitoral no Brasil é imenso, mesmo não-obrigatório. Os jovens estão votando.
Nos partidos políticos existem alas jovens. Os partidos políticos são minoritários e os jovens são minoritários no partido político, mas existe essa possibilidade. Assim como os jovens que se engajam em movimentos de solidariedade, em movimentos de defesa do meio ambiente, no movimento negro, em movimentos culturais, em mobilizações pela ética e pela política. Essas evidências empíricas não devem ser abandonadas por serem minoritárias; elas devem ser pensadas como alternativas para a presente geração. Os grupos culturais, particularmente os musicais, merecem atenção. Falar em cidade hoje e falar nos conflitos da cidade deve passar por um ouvir o que se está produzindo em termos de música, no caso do Brasil. Há diversos grupos musicais, mas eu gostaria de citar um exemplo: os Racionais. Trata-se de um grupo paulista bastante radical e freqüentemente raivoso, que trabalha muito a Bíblia. Seu último CD foi produzido por uma produtora independente e vendeu mil cópias; as músicas têm muitos salmos bíblicos, com versículos citados. Não vão à TV Globo e fazem questão de não ir; promovem um pouco de merchandising de negação da mídia. A Bíblia e seus valores são usados como linguagem universal e de resistência ou, como eles dizem, “para trazer certos valores”. São contra as drogas e suas músicas falam da vida da cidade, da discriminação racial, da violência policial, do desejo de novos espaços para a juventude e, ao mesmo tempo, dos seus “inimigos”, que são a mídia, o sistema, os poderosos e os responsáveis pela desesperança.
No caso dos Racionais, é interessante perceber que às vezes eles são muito radicais e falam muito mal dos mauricinhos e patricinhas. Estes dois nomes referem-se aos jovens de classe média, consumistas, que vão aos shoppings. Mas os mauricinhos e as patricinhas compram as músicas dos Racionais e as ouvem. Por que ouvem? Por que compram o CD dos Racionais? Minha hipótese é a de que há uma coisa que junta, no urbano, esses jovens. Essa coisa é o medo. A questão do medo, hoje, aproxima os jovens das grandes cidades, paralisa todas as diferenças de classe, cor, estilo de vida e situação social. As diferenças entre as diversas “juventudes” não estão anuladas, mas são minoradas, e mais: paralisadas.
Há três espécies de medo claramente delineados nas grandes cidades do Brasil que aplainam as diferenças e juntam os jovens: o medo do tráfico de drogas, o medo da polícia e o medo do futuro. Há um certo departamento de legalidades, convivência de legalidades na cidade. O fato de ser jovem, numa cidade como o Rio de Janeiro, traz certa desconfiança, principalmente porque as pessoas estabelecem uma relação quase direta entre juventude e drogas. E ser jovem, negro, morador de favela, muito mais. Ao sair de noite para o lazer, a pessoa jovem sente medo da polícia e da bala perdida; da violência física, para além da simbólica. Quando os Racionais falam de Capão Redondo, que é periferia de São Paulo, com alto índice de mortalidade e assassinato, o jovem de classe média ouve e se identifica, por seu
lugar de juventude. O medo do futuro está relacionado à questão do desemprego. A dificuldade de inserção no mercado de trabalho cria a insegurança que junta os jovens em determinado momento. A juventude tem uma coisa de que o presente tem que valer. É uma maneira de enfrentar a instabilidade e a insegurança que o futuro representa.
Os elementos acima mencionados são importantes para que se pense a política hoje e para que se entenda a presente geração de jovens no seu contexto; para que se perceba que esta juventude está vivendo os seus enfrentamentos e desafios de outra maneira.
Mais uma questão a ser colocada é a da tolerância. A tolerância faz parte da coisa urbana. Por quê? Porque a cidade junta as diferenças. A cidade permite que alguém saia da zona norte e vá para uma festa da zona sul e vice-versa. As diferenças são juntadas. É aí que a tolerância se coloca como um valor. E a textura urbana em sua complexidade é, na verdade, propícia para que a tolerância, como valor, se dissemine. Levanta-se, então, a pergunta: quais os limites entre a tolerância e a indiferença? Esta é uma das coisas importantes a serem discutidas. Pensar que o número de informações que perpassam a juventude de hoje é, por um lado, produtor de tolerâncias e por outro, de indiferenças, cria uma outra necessidade: perceber quais são os sinais que mostram a junção da tolerância à responsabilidade social. Como perceber o outro? Como atentar para o sofrimento do outro sem fazer da tolerância uma questão de indiferença? A última questão a ser considerada é a religião. Algumas pesquisas recentes mostram que religião está em alta entre os jovens. Crer, crer, crer. Crer é ter fé. Este é um dado que não pode ser comparado com as outras gerações porque não se fez uma pesquisa da mesma forma. Mas várias pesquisas, em vários lugares, estão revelando que se fala mais em religião nesta geração de jovens do que se falava em gerações anteriores. No Brasil, o catolicismo sempre foi a religião oficial e dominante; ser católico é natural. Então, quase que falar em religião era fazer identidade social.
Houve grandes mudanças nos últimos anos. As igrejas evangélicas cresceram muito no Brasil, assim como as religiões afro-brasileiras. No entanto, chamo a atenção para um ponto muito comum: o aparecimento do religioso sem religião. Essa idéia de combinar uma fé e uma síntese pessoal. Isso tem a ver com a textura urbana, com a globalização, com o oriente no ocidente, o ocidente no oriente, o número de informações e símbolos religiosos que estão sendo colocados no mundo hoje. É importante, em termos de debate, pensar que as religiões tradicionais também foram encontros interculturais; ou seja, as grandes religiões universais não nasceram sem cultura nem puras. Novas sínteses vão ser colocadas em termos de futuro e elas não são, necessariamente, menos puras e menos coerentes internamente do que as que se colocaram historicamente. O cristianismo, por exemplo, é um produto sincrético; é um encontro de culturas também. Por isso, não há motivo para assustar-se com esse momento que faz outros encontros de cultura e outras religiosidades se apresentarem.
LAAN MENDES DE BARROS
é doutor em Comunicação e professor na pós-graduação da Fundação Casper Líbero, São Paulo. É compositor de música sacra brasileira.