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Desolamento e Formas de Subjetivação na Atualidade Joel Birman
from Liturgia, Arte e Urbanidade. Memórias de um seminário
by Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB)
DESOLAMENTO E FORMAS DE SUBJETIVAÇÃO NA ATUALIDADE*
Joel Birman
O que a psicanálise tem a ver com o urbano, com a liturgia e com a arte? Eu fiquei me perguntando sobre isso desde que o convite para participar deste seminário me foi colocado. A partir daí, defini uma direção para a exploração destas fronteiras, isto é, uma certa estratégia teórica e política, que pressupõe, contudo, algumas considerações preliminares sobre a problemática da subjetividade. Portanto, antes de tentar definir esta direção e esboçar alguns tópicos sobre isso, pretendo localizar um pouco melhor a questão da subjetividade.
Parece-me que a subjetividade é a problemática que a psicanálise pode trazer efetivamente, de maneira substantiva, para um diálogo com as ciências sociais, o urbanismo e a teoria da comunicação. Assim, quando se faz referência à subjetividade, pensa-se comumente em interioridade. Além disso, quando se fala em interioridade, pensa-se imediatamente esta em oposição à exterioridade. Digamos, no entanto, que essa é uma visão pré-psicanalítica, já que a subjetividade tal como é pensada pela psicanálise supõe uma dialética permanente entre o interno e o externo, isto é, o dentro e o fora. Com efeito, foi essa formulação que Freud enunciou num texto célebre sobre a psicologia das massas, no qual afirmou que não existiria qualquer separação entre psicologia individual e psicologia coletiva.1 Portanto, é esse tipo de subjetividade que pretendemos sustentar e defender aqui, isto é, um tipo de subjetividade construída segundo determinados códigos, nos quais as dimensões de exterioridade estão aí marcadas, tal como a língua e o imaginário coletivo, que é também, aliás, fundado na linguagem. Tudo isso constitui, enfim, a memória coletiva, que funda a subjetividade no seu sentido estrito.
Sublinhado isso, torna-se imediatamente evidente que a cidade não é apenas um espaço geográfico, mas antes de mais nada, um espaço simbólico que define uma tipologia imaginária. Eu estava vindo para cá hoje e o motorista do táxi não
* Este texto é a transcrição, corrigida pelo autor, da intervenção oral realizada no painel “Tecitura Urbana: a realidade urbana e as imagens da cidade”. 1 Freud, S. “Psichologie des foules et analyse du moi” (1921). Freud, S. Essais de psychanalyse. Paris, Payot, 1981.
sabia exatamente para onde eu vinha, mas quando nos aproximamos do alto do morro, ele me disse assim: ”poxa, estamos nos aproximando do céu!”. Ele não sabia que estava me levando para o espaço de uma discussão religiosa, mas, enfim, ele metaforizava a topografia da cidade com um código um tanto quanto religioso. Entretanto, mesmo para nós, intelectuais e teólogos, marcados que somos todos pelas tradições metafísica e platônica, a discussão de idéias tem sempre algo de etéreo e religioso, implicando numa imersão no sagrado. De forma que para nós e para o chofer de táxi, de diferentes maneiras, é claro, estamos todos agora no céu.
Porém, o que é importante hoje aqui, nessa exposição, é evocar que a articulação entre a subjetividade e a estrutura da cidade começou a partir dos anos 30, nos Estados Unidos, nos estudos de sociologia urbana, pela denominada Escola de Chicago. Os sociólogos desta escola enfatizaram a existência de uma topologia simbólica da cidade, de forma a construir uma cartografia imaginária dessa. Assim, existiam os centros ditos dinâmicos e produtivos, marcados pela ascensão social de determinados grupos sociais que se contrapunham aos espaços periféricos e pobres, de forma que a cidade era perfeitamente classificada, cartografada, melhor dizendo, de maneira que a subjetividade mantinha uma relação de estrita dependência com o lugar onde residia naquele centro urbano. Portanto, partindo da periferia e indo para o centro da cidade existia uma multiplicidade de construções subjetivas. Tudo isso caracterizou um capítulo importante das ditas patologias sociais. No qual as doenças mentais e as diversas formas de criminalidade eram cartograficamente distribuídas nesses diferentes espaços urbanos.2 Retomou-se desta maneira uma importante perspectiva da pesquisa sociológica iniciada no final do século XIX.3
O segundo passo fundamental, teórico e metodológico, nessa direção, foi o estudo do antropólogo Claude Levy-Strauss, procurando caracterizar um dos efeitos cruciais da moderna estrutura urbana, marcada pela complexidade. Assim, esta estrutura seria a condição de possibilidade para a produção de um determinado tipo de perturbação psíquica, bastante importante no Ocidente, nos últimos 200 anos. Referia-se então à esquizofrenia que, como se sabe, se caracteriza justamente pela fragmentação e pela falta de unidade psíquica da subjetividade, isto é, pela impossibilidade do sujeito se constituir como unidade.4
Parece-me que esta formulação é bastante importante, pois nos coloca de imediato face àquilo que caracteriza especificamente a modernidade, na ênfase atribuída à esquizofrenia como sendo a doença mental por excelência, o defeito subjetivo mais violento na sociedade moderna e contemporânea. É deste limiar crítico que podemos realizar agora alguns contrapontos, histórico e antropológico, para delinear concretamente o estatuto presente da subjetividade.
A questão colocada, pois, para a vida urbana, é a da fragmentação, sendo essa precisamente o que vai caracterizar o surgimento da cidade na modernidade, bastante distante, então, da utopia de uma anterior comunidade unificada, construída no mundo medieval, quando surgiram as primeiras cidades. Assim, o que
2 Bastide, R. Sociologie des maladies mentales. Paris, Flammarion, 1965. 3 Durkheim, E. Le suicide. Paris, PUF, 1967. 4 Bastide, R. Sociologie des maladies mentales. Op. cit.
vai caracterizar a modernidade, na qual a cidade vai ser a materialização maior em termos instrumentais, isto é, em termos de organização simbólica e material da vida social, é a perda da unificação e de uma certa mediação universalista do mundo, digamos assim, que o mundo medieval mantinha ainda, já que era sustentado pelo discurso religioso e, que, no entanto, foi substituído pelo discurso político no século XIX, passando então o social a ser ordenado pelo Estado. Portanto, digamos que aquilo que possibilitava ainda a organização para a subjetividade, já fragmentada na aurora do século XIX, apesar da grande variedade existente de grupos sociais, era a centralidade política oferecida pelo Estado. Existia, enfim, através deste o projeto de uma pólis, apesar da diversidade presente no social, que se organizava concretamente em torno do Estado enquanto tal (Hegel e Marx).
A pólis na modernidade é marcada por um projeto político, com uma dimensão universalista. Em contrapartida, o mundo pós-moderno se caracteriza pela perda desse discurso universalista, mediado que era pela política como utopia. Eu diria então que aquilo que diferencia a forma da vida urbana da pólis moderna e da pólis pós-moderna é o fato de que na primeira nós ainda tínhamos um discurso sobre o político, de caráter utópico, capaz de possibilitar um ideal comunitário para a sociedade. Propunha-se, assim, uma certa comunhão na sociedade, que tinha um caráter laico, e uma política marcada por um certo messianismo, no melhor sentido desta palavra. Enfim, digamos que aquilo que diferencia a cidade moderna da pós-moderna é a quebra dessa crença, na qual o político nos oferecia ainda a possibilidade de unificação, enquanto projeto de restauração comunitária.
Com isso, podemos nos encontrar aqui, diretamente, com aquilo que caracteriza agudamente a crise da subjetividade contemporânea, ou melhor dizendo, das formas de subjetivação5 no mundo pós-moderno, que é a fragilização da noção de identidade. Assim, aquilo que caracteriza em grande parte as perturbações subjetivas hoje, isto é, as formas de subjetivação que as pessoas apresentam na atualidade em termos de sofrimento psíquico e de impossibilidade de viver, são perturbações da ordem da identidade. Com efeito, os indivíduos não sabem mais quem são, para onde vão ou de onde viveram. Vale dizer, existe hoje uma marcada perda de referências, onde o discurso unificador, que prevalecia até os anos 60 e 70, oferecia ainda um certo norteamento para a constituição da subjetividade. Em decorrência disso se incrementa a produção de mal-estar e de patologias sociais. Então, digamos, a maneira pela qual o sofrimento subjetivo se apresenta no contexto da vida urbana, revela a perda da figura do narrador a que W. Benjamin6 se referia, isto é, de um discurso unificador e simbólico, que tomou na modernidade a forma do discurso político.
Com esta perda crucial no mundo pós-moderno, regulado que é pelo neoliberalismo e pela globalização, fomos lançados no desmapeamento político e na fragilização ostensiva dos operadores identitários. Parece-me que esse é um ponto importante a ser aqui sublinhado, já que na atualidade se construiu uma e vidente dominância do modelo econômico sobre o político. Tudo isso se desdobra numa importante crise
5 Foucault, M. Volonté de savoir. Paris, Gallimard, 1976. 6 Benjamin, W. “O narrador”. In: Benjamin, W. Obras escolhidas. Volume I. São Paulo, Brasiliense, 1986.
da própria idéia de autoridade. Essa, então, se encontra mediador e gerador da autoridade. Com isso, a suposta ética da tolerância beira de fato a indiferença, sendo provocada pela falta de mediação propriamente dita no campo social.
Tudo isso vai gerar tanto a indiferença, por um lado, como o excesso de diferença, pelo outro. Quanto a isso, quero me referir ao neo-nazismo, que retorna ostensivamente em todo o mundo, hoje. Portanto, indiferença e diferença, ambas excessivas, duas formas paradigmáticas, no meu entender, em que se expressam, seja na juventude, seja nos grupos que não são mais jovens, a perda da perspectiva simbólica dos emblemas e das identidades. Mais do que isso ainda, me parece, indo agora para um outro nível do real, onde se enuncia também a crise de identidade, provocada por essa fragmentação excessiva e pela dominância do modelo econômico sobre a mediação política, é o fato de que cresce assustadoramente em todas as grandes cidades, no Brasil e no exterior, a presença de crimes como incesto e pedofilia. Isso porque a referida crise de identidade desorganiza também a ordem familiar, na qual falta exatamente, agora no nível micro-social, a instância de mediação a que já me referi antes.
Assim, uma das características fundamentais da cidade pós-moderna é que ela é permeada por uma enorme violência produzida pela própria autoridade e que esta desorganiza a própria estrutura familiar, produzindo então pedofilia e crimes incestuosos, numa extensão inédita. Com isso, a autoridade se torna ilegítima, evidentemente. Ontem mesmo, nos jornais do Rio de Janeiro, havia uma notícia da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, de que existem diariamente no Brasil cem relatos de violência contra crianças, provocadas por pais, que vão desde a violência física até a violência sexual. Portanto existe uma evidente quebra da noção de autoridade, provocada pela dominância do modelo econômico sobre o social, no qual o registro político é completamente desorganizado. Recordemos ainda que há dois anos um país como a Bélgica teve uma crise política seríssima, provocada exatamente por uma organização criminosa pedofílica, gerida por determinados políticos. Enfim, não se trata apenas de um problema brasileiro, mas de algo bem mais amplo da sociedade atual, na qual as mediações políticas e simbólicas se fragilizam.
Um terceiro ponto importante da organização subjetiva no mundo pós-moderno é aquilo que eu denomino de posição subjetiva de desolamento. Assim, diante exatamente dessa falta de mediação e da impotência que isso provoca nas pessoas, diante da falta de uma perspectiva de futuro – que é aquilo que organiza qualquer possibilidade desejante – os sujeitos não podem mais contar com nenhuma instância de proteção, que teria ainda alguma possibilidade de estabelecer um diálogo estruturante com o mundo. Pode-se afirmar, pois, que o aquilo que caracteriza a cena pós-moderna, pela falta dessa instância de mediação, não é uma posição de desamparo, mas uma posição subjetiva de franco desolamento.
Vive-se hoje num evidente estado de desolamento subjetivo, razão pela qual algumas formas de sofrimento psíquico se destacam como sendo a grande Prima Dona do mal-estar na atualidade: as depressões, efeito das falhas de construção identitária, exatamente pela falta das formas simbólicas de mediação; o assustador aumento do consumo de drogas, que é uma maneira das pessoas lidarem com
o seu desolamento, tentando euforizar o seu presente de alguma maneira para não sucumbir ao sofrimento depressivo; a multiplicação de transtornos psicossomáticos. 7 Assim, diante do seu desolamento, da insuportabilidade das pessoas de poderem lidar com seu próprio sofrimento e com sua própria solidão, isoladas diante de um mundo que não lhes oferece qualquer possibilidade de futuro – numa ordem social caracterizada como sociedade de risco8 – as pessoas tendem a lidar com esse desolamento por uma brutal submissão ao outro, considerado supostamente por elas como poderoso. Este outro é considerado, pelas pessoas que se submetem, como supostamente tendo meios de lhes dar a proteção que lhes falta para sustentar sua energia vital. Com isso, elas estabelecem uma evidente relação sado-masoquista, que é, eu diria, a forma fundamental de subjetivação do mundo da atualidade, no qual se incrementa de forma eloqüente a moral da servidão.
Portanto, se nós vivemos hoje num mundo permeado por certos valores, isso é a consequência direta das mediações simbólicas que fracassaram, fragilizando as pessoas de tal forma que essas passam a viver fazendo pactos de submissão masoquista, onde elas pedem de maneira servil que alguém muito poderosa possa protegê-las do seu desolamento. Parece-me que, para as diferentes questões que abordei aqui, que vão da fragmentação piscótica à diferentes formas de perturbações psíquicas – se consubstanciando pela experiência do desolamento e pela crise identitária, como depressão, drogadicção, pedofilia, experiências incestuosas e formas de submissão sado-masoquistas, que permeiam a totalidade do tecido de relações inter-humanas, no espaço social nos exige urgentemente a criação de instâncias de mediação, que devem se inscrever no nível regional e global, como formas de comunidade, sejam elas de ordem religiosa, étnica e política.
Parece-me que uma das formas fundamentais que nós podemos nos contrapor hoje à sociedade de risco, é a de relativizar esse risco. Para isso necessário é construir instâncias de mediação, que funcionem como condição de possibilidade para a construção de subjetividades. É preciso então que os sujeitos tenham alguns pontos possíveis de referência simbólica, para não caírem no abismo da miséria psíquica e do desolamento
7 Birman, J. Mal-estar na atualidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001, 3a edição. 8 Beck, U. “A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva”. In: Giddens, A., Beck, U., Lasch, S. Modernização Reflexiva. Rio de Janeiro, UNESP, 1995.
FLAVIO FERREIRA
é pós-graduado pela Universidade de Harvard, Boston, EUA, e é professor na graduação e pósgraduação da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É autor de diversos projetos de grande escala no campo da Arquitetura e Urbanismo, dentre os quais estão: o Projeto Urbanístico Rio-Cidade Taquara e o Projeto Urbanístico de Restauração do Conjunto Histórico Ver-o-Peso, Belém, Pará, Brasil. Foi Secretário de Urbanismo da cidade do Rio de Janeiro no período de 1986-89.