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Dança e Liturgia Rita Serpa
from Liturgia, Arte e Urbanidade. Memórias de um seminário
by Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB)
DANÇA E LITURGIA
Rita Serpa
Gaudí, filósofo francês que escreveu sobre dança, diz que “se pudéssemos dizer todas a coisas, não precisaríamos dançar”. A dança é uma linguagem do corpo. E a linguagem do corpo é a mais verdadeira que existe. O nosso corpo não mente, ao contrário das palavras. Quantas vezes a gente diz uma coisa e o corpo diz outra? Nós passamos por esta experiência várias vezes por dia.
Quero começar esta exposição falando sobre o olhar. Nós perdemos um pouco a capacidade de contemplar. Corremos tanto e o tempo é tão reduzido, que o nosso olhar é um pouco o olhar do video game. A capacidade de contemplação pode estar ligada à nossa capacidade de sonhar, de ter uma utopia. E quando eu falo de utopia, incluo a presença do nosso corpo. Nós, homens e mulheres que temos, por sinal e por grandiosidade, que pregar o evangelho, sofremos muitas vezes em nosso corpo o que é ser cristão.
Eu sou coreógrafa e bailarina e sou fascinada pelo movimento, todo movimento de tudo aquilo que tem vida e presença de Deus, pai e mãe. Na verdade, todo o universo dança. É muito comum que nós, seres humanos, ao nos sentirmos donos e senhores de tudo, da natureza, de tudo que existe, desaprendamos a dançar. Trabalho com dança há muitos anos e freqüentemente ouço as pessoas dizendo que têm o “corpo duro” e que “não sabem dançar”. Nestas situações gosto de lembrar que uma criança que nem sabe andar, se ouve uma música, dança. E se nós pararmos para comungar com o movimento da natureza, veremos que a natureza dança: as árvores, os rios, o vento. Nós, seres humanos, vivemos cheios de problemas na coluna, com dores e tensões. Se compararmos a respiração de um animal dormindo e a nossa respiração, poderemos verificar que a nossa qualidade respiratória é significativamente inferior.
No meu trabalho coreográfico busco construir uma nova arquitetura; a arquitetura das favelas. Não sou arquiteta, mas entendo um pouquinho dessa arquitetura que é a morada dos pobres; o lugar onde se amontoam homens, mulheres, crianças, cachorros, gatos, pipas, bolas, passarinhos, desemprego, fome, doenças, falta de escolas. Essa “arquitetura” é a substância do meu trabalho. E todos os dias eu agradeço muito a Deus por ter como presente a amizade dos pobres e dos animais, porque me parece que nós vivemos num mundo onde metade da humanidade morre de tédio e outra metade, de fome. Pensa–se tanta coisa nova mas não se
pensa naquilo que, a meu ver, seria a solução para um dos maiores problemas: a supressão da fome. A fome que mata centenas de irmãos nossos todos os dias. A falta de moradia e a falta de um programa decente de saúde também matam.
Ontem, na nossa oficina, comentávamos que nós, seres humanos, somos a única espécie que deixa os filhos morrerem pelas ruas. Passamos pelos velhos e pelas crianças correndo, com hora marcada. Os animais não fazem isso, os animais morrem por suas crias. Nós, apesar de sermos cristãos, não morremos por nossos filhos.
É dentro desse recorte da realidade que nasce a minha dança. Eu nunca gosto de dizer a “minha dança” porque esta dança que está em mim é fruto do convívio de centenas de pessoas, e eu muito mais aprendo do que ensino, porque o corpo é infinitamente maravilhoso. Nós nos dizemos templo do Espírito Santo e às vezes tratamos nosso corpo pior do que um pano de chão. Nós não temos tempo, e o tempo passou a ser um tirano que já nos acorda com pressa, correndo. Comemos mal, dormimos mal, sentamos mal e depois queremos elevar este corpo a Deus, leves, felizes, suaves, aliás, como deveria ser.
Costumo dizer que nunca tenho resposta para nada, porque é tão difícil colocar na cabeça do ser humano, sobretudo dos adultos, que eles são belos; às vezes preciso de uma britadeira para abrir a cabeça e dizer: “Olha, você é capaz de criar, você é capaz de ser leve”. Me parece que nós precisamos ir para diante de um espelho e ver se, de fato, nos reconhecemos. Precisamos verificar se a imagem que temos de nós mesmos corresponde à imagem que se vê no espelho, porque a linguagem do nosso corpo é muito bitolada por nós. As pessoas pensam que os bailarinos têm uma ótima relação com o corpo, porque são bailarinos. Isto não é verdade. Eu acho que, à medida que abrimos a brecha para nos experimentarmos crianças outra vez, é que a gente se relaciona melhor com o corpo.
O corpo da gente não pode estar dissociado dos nossos sonhos e eu me pergunto sempre o que nós, cristãos e cristãs, fazemos para que o sonho, a possibilidade da utopia, renasça, porque na verdade o evangelho é uma utopia que a gente constrói no dia-a-dia. O evangelho não é fechado, não está pronto, é uma construção do dia-a-dia. E não adianta ne garmos o corpo, porque ele vai junto. Todos os grandes bailarinos e coreógrafos sempre compuseram suas coreografias a partir da realidade em que viveram. Sim, alimentados pelo passado e pela utopia do futuro. E nós vivemos hoje uma grande miséria; não só a miséria da fome, das doenças, como também a miséria dos sonhos. Cada vez se sonha mais com coisas, objetos, carros. Cada vez se sonha menos com a plenitude da busca de um corpo feliz. Este é o motivo, me parece, que torna cada vez mais difícil dançar. Dançar é uma coisa muito simples. A dança litúrgica ou a dança nas celebrações é muito antiga. Atualmente nós a estamos resgatando. Por que eu digo que dançar é uma coisa muito simples? Porque é uma linguagem que não precisa de palavras; nós nos tornamos escravos das palavras. Dançar é tão simples quanto brincar. E é na oportunidade que nos oferecemos de brincar, que a dança torna-se um canal fácil e natural para a nossa expressão. O problema dos adultos é que eles não têm tempo para brincar.
A dança tem sua origem religiosa. Se dissociarmos a dança de sua origem, ela deixa de ser dança. Quanto mais espiritualidade temos, melhor dançamos.
Quanto mais espiritualidade temos, mais oportunidade damos à nossa alma de ser dançante.
Como ser coreógrafo e coreógrafa neste mundo, neste momento? É preciso ter o olhar voltado para algum lugar, e para todos os lugares. É preciso não perder a visão do cristianismo; a cidade nova, da qual falávamos hoje em nossa celebração. Nós temos que construir essa cidade nova, onde o pão de cada dia não seja um tormento, mas um direito e um prazer. Onde viver não seja uma aflição, mas a plenitude divina. Onde as mulheres não tenham que sofrer, se dilacerar, para criar seus filhos. E onde as famílias possam ter um mínimo de condições de vida, de moradia. Enquanto isso não acontecer, enquanto esta cidade nova não surgir, eu acho que o papel da arte é denunciar. Na minha caminhada, sobretudo na Baixada Fluminense, eu tenho conseguido descobrir que a arte que não caminha com a ajuda da humanidade e em prol dela não é uma arte por inteiro.
Volto ao olhar e à contemplação: se formos olhar a realidade assim como ela é, fica muito difícil apostarmos em um sonho. No caso da dança, acho que ela se coloca cada vez mais em lugares “profanos”, por assim dizer, pois tem saído das grandes escolas e das grandes academias para ocupar outros espaços. Isto não ocorre porque as pessoas que podem freqüentar as “grandes academias” estão saindo para outros espaços. É que os outros espaços e as pessoas que a eles pertencem estão construindo uma nova dança. E é uma dança de qualidade. Marx dizia que é um crime levar ao povo uma arte inferior ao perfeito, e eu concordo. Na Baixada Fluminense nós temos condições mínimas de fazer dança, mas nós fazemos a dança clássica e a dança contemporânea, apesar do chão de cimento. Quando as crianças, adolescentes e jovens da Baixada sobem num palco para dançar, eles vão dançar como qualquer outro bailarino. Nós tiramos das nossas possibilidades o máximo. E quando achamos que não temos mais forças, respiramos fundo e ressurgimos da força, porque é exatamente neste momento que parece que não dá mais, que a gente se descobre capaz de seguir adiante. É como Jesus, que não se entregou ao desânimo. Nós, que levamos a beleza e a utopia do evangelho, não podemos estar desanimados.
É difícil falar sobre dança, cidade, miséria; eu prefiro dançar. Mas, finalizando, gostaria de afirmar que a simplicidade da dança e a busca pelo sonho, a comunhão com a natureza e, conseqüentemente, com o nosso corpo, uma boa relação respiratória – a respiração é o eixo da dança – e a disposição de virarmos crianças que se metem por aí afora no meio da natureza e dos animais, são elementos indispensáveis para quem busca expressar-se de corpo inteiro e para quem se oferece como canal da expressão da beleza e do amor contidos nos evangelhos. Tenho certeza que, assim, saberemos dançar.
CLAUDIO PASTRO
é pintor, escultor, arquiteto membro do Departamento de Arquitetura e Liturgia da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Igreja Católica Romana. É membro de diversas entidades internacionais na área de Arte e Liturgia e autor de 20 obras literárias nessa mesma área. O autor refere-se ao fato de o Seminário de Liturgia, Arte e Urbanidade ter sido realizado na Casa de Retiros Pe. Anchieta, instituição católica, e organizado por teólogos e teólogas protestantes. (Nota da editora).
A beleza, neste contexto específico, está referida à Arte em sua inter-relação com os dois outros eixos temáticos do Seminário: Liturgia e Urbanidade. (Nota da editora)