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Enfisema subcutâneo durante exodontia de terceiro molar: relato de três casos
RAFAEL SARAIVA TORRES1 | ARIANY CRISTINA FREITAS RIBEIRO1 | HANNAH MARCELLE PAULAIN CARVALHO1 | SAULO LÔBO CHATEAUBRIAND DO NASCIMENTO1 | GUSTAVO CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE1 | VALBER BARBOSA MARTINS1 | MARCELO VINICIUS OLIVEIRA1 | JOEL MOTTA JUNIOR1 | PAULO MATHEUS HONDA TAVARES1
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RESUMO
Introdução: O enfisema subcutâneo é um acidente raro que acontece durante tratamentos odontológicos, no qual ocorre a passagem forçada de ar e/ou outros gases para o interior dos tecidos moles. Pode ter diversas causas; porém, as mais comuns decorrem do ar liberado durante o uso de turbinas de alta rotação ou seringas tríplices. Geralmente, o tratamento é sintomático, apresentando remissão espontânea ao longo do tempo. Porém, podem apresentar complicações, que evoluem para condições graves e colocam a vida do paciente em risco, sendo necessário um acompanhamento rigoroso até a sua completa regressão. Descrição: São relatados três casos clínicos de pacientes que desenvolveram enfisema subcutâneo durante o uso de turbina de alta rotação em procedimentos de extração de terceiro molar. Todos foram diagnosticados imediatamente durante as cirurgias, com quadros de aumento de volume facial e crepitação à palpação. Resultados: Os tratamentos realizados, que incluíram o uso de medicações anti-inflamatória e antibiótica associadas, ocorreram de forma satisfatória. Conclusão: Após um período de acompanhamento, observou-se completa remissão dos quadros, sem o surgimento de complicações. O correto planejamento cirúrgico é fundamental para evitar esse tipo de complicação.
Palavras-chave: Enfisema. Cirurgia bucal. Acidentes.
1 Universidade do Estado do Amazonas, Programa de Residência em Cirurgia e Traumatologia
Bucomaxilofacial (Manaus/AM, Brasil). Como citar este artigo: Torres RS, Ribeiro ACF, Carvalho HMP, Nascimento SLC, Albuquerque GC, Martins VB, Oliveira MV, Motta Junior J, Tavares PMH. Subcutaneous emphysema during surgical extraction of third molars: three case reports. J Braz Coll Oral Maxillofac Surg. 2020 Jan-Apr;6(1):36-41. DOI: https://doi.org/10.14436/2358-2782.6.1.036-041.oar
Enviado em: 08/04/2019 - Revisado e aceito: 09/08/2019
» Os autores declaram não ter interesses associativos, comerciais, de propriedade ou financeiros, que representem conflito de interesse, nos produtos e companhias descritos nesse artigo.
» O(s) paciente(s) que aparece(m) no presente artigo autorizou(aram) previamente a publicação de suas fotografias faciais e intrabucais, e/ou radiografias.
Endereço para correspondência: Rafael Saraiva Torres E-mail: saraivatorres@gmail.com
INTRODUÇÃO
A exodontia dos terceiros molares é o procedimento mais realizado no consultório odontológico, no que se diz respeito à Cirurgia e Traumatologia Bucomaxilofacial, e mesmo o cirurgião apresentando habilidades e experiência, esse procedimento é passível de complicações1. Entre as mais frequentes, o inchaço, dor, sangramento, infecção e lesão do nervo alveolar ou lingual são citados. Porém, complicações mais raras, como enfisema subcutâneo, são passíveis de acontecer2 .
O enfisema subcutâneo é um acidente em que ocorre a passagem forçada de ar e/ou outros gases para o interior dos tecidos moles, abaixo da camada dérmica ou mucosas. A introdução acidental de ar da turbina de alta rotação costuma ser a causa mais comum; porém, diversos fatores, tais como o ar da seringa tríplice, trauma facial, espirros fortes ou vômitos pós-operatórios, podem resultar no enfisema subcutâneo3. Apesar da causa mais comum ser o uso de uma turbina de ar para remoção de osso, o enfisema também pode ocorrer durante terapia endodôntica, tratamento periodontal, tratamento restaurador, após trauma ou como complicação de cirurgia ortognática4 .
Clinicamente, apresenta-se com um aumento de volume repentino na região afetada, desconforto, dor local e crepitação à palpação5. O grau de difusão de ar dentro dos tecidos é variável, podendo permanecer próximo ao local da penetração e resultar em inchaço local e crepitação. Difusão adicional de ar ao longo dos planos fasciais é possível, causando inflação dos espaços fasciais. Em casos extremos, relata-se a passagem de ar do espaço mastigatório para os espaços parafaringeal e retrofaringeal, penetrando no mediastino. Se o ar tiver microrganismos, sérias infecções podem ocorrer4. A crepitação é um achado patognomônico e distingue enfisema das demais possibilidades diagnósticas3,6. Exames de imagens, como radiografias convencionais, ultrassonografia e, especialmente, a tomografia computadorizada, contribuem significativamente na complementação diagnóstica3 .
O tratamento do enfisema subcutâneo geralmente é apenas sintomático, enquanto se aguarda sua remissão espontânea3. Porém, a antibioticoterapia está indicada para prevenir o desenvolvimento de infecções, como a fasceíte necrosante, assim como deve ser realizado um rigoroso acompanhamento das funções cardiorrespiratórias, especialmente se o ar atingir espaços fasciais das regiões cervical e torácica, pois alguns casos podem evoluir para condições graves que ameaçam a vida4,7 .
RELATO DE CASO Caso 1
Paciente do sexo feminino, 19 anos de idade, compareceu ao serviço com finalidade de extração dos terceiros molares. Paciente não relatava alterações sistêmicas ou alergias. Foi realizado planejamento para extração de todos os terceiros molares, em um único tempo cirúrgico, em ambiente ambulatorial.
No pré-operatório, uma hora antes da cirurgia, foram prescritos duas cápsulas de amoxicilina 500 mg e dois comprimidos de dexametasona 4 mg. A exodontia dos elementos #18, #48 e #28 ocorreu de forma simples e sem complicações.
Seguiu-se à exodontia do elemento #38. A técnica cirúrgica empregada envolveu a confecção de um retalho mucoperiosteal vestibular por meio de incisão sobre o rebordo e relaxante na mesial do segundo molar. Durante a osteotomia vestibular e distal ao terceiro molar inferior, com turbina de alta rotação e abundante irrigação, a paciente relatou dor e desconforto em região de periórbita esquerda. Foi observado, então, um aumento de volume acentuado na hemiface esquerda, envolvendo parte das regiões periorbitária e zigomática (Fig. 1A). Nesse momento, para evitar possível introdução adicional de ar pela turbina da caneta de alta rotação, a exodontia do elemento #38 foi suspensa. As regiões afetadas apresentavam-se com aspectos normais; porém, havia crepitação à palpação, sendo diagnosticado enfisema subcutâneo. A paciente não relatou qualquer desconforto respiratório.
Foi solicitada uma tomografia computadorizada imediata, que evidenciou dissecção dos espaços periorbitários envolvendo pálpebras, região temporal e espaço bucal (Fig. 1B).
Foram prescritos antibioticoterapia (Amoxicilina, 500 mg de 8/8 h, por 7 dias), medicação anti-inflamatória (Dexametasona, 4mg, de 8/8 h, por 3 dias) e controle de analgesia (Dipirona 1 g, de 6/6 h, por 2 dias), além de orientações quanto aos cuidados pós-operatórios relacionados à exodontia.
O primeiro retorno ambulatorial ocorreu após dois dias. A paciente apresentou processo de regressão do aumento volumétrico na região periorbital, poucas queixas álgicas e ausência de sinais e sintomas de infecção. Após 15 dias, apresentou total redução do quadro de enfisema (Fig. 1C).
A
B
C
Figura 1: A) Aspecto extrabucal imediatamente após o quadro de enfisema diagnosticado. B) Tomografia de face mostrando ar presente entre os tecidos faciais, evidenciando quadro de enfisema. C) Pós-operatório de 15 dias mostrando resolução completa do caso.
Caso 2
Paciente do sexo feminino, 26 anos de idade, compareceu ao serviço com indicação para extração dos elementos #28 e #38. Ela não relatava alterações sistêmicas. Foi planejada a extração dos referidos elementos dentários. Primeiramente, foi realizada a exodontia do #28, sem intercorrências. Durante a extração do #38, após uso de alta rotação na osteotomia, a paciente relatou alteração da acuidade visual, além de desconforto e edema em região infraorbitária esquerda. Ao exame clínico imediato, observou-se distensão dos tecidos periorbitários e região média da face esquerda com crepitação à palpação, além de coloração mais avermelhada da região (Fig. 2A). Foi finalizada a exodontia e solicitada tomografia computadorizada imediata, na qual observou-se imagem hipodensa difusa nos espaços periorbitários, envolvendo pálpebras superior e inferior, regiões temporal, bucal, submandibular e região sublingual com extensão cervical, confirmando o diagnóstico de enfisema (Fig. 2B).
Foram adotados os mesmos protocolos de tratamento medicamentoso, além dos cuidados e orientações do caso 1. A paciente evoluiu bem e, após 15 dias de acompanhamento, não foi observado nenhum sinal clínico do quadro de enfisema (Fig. 2C).
A
B
C
Figura 2: A) Aspecto extrabucal após o quadro de enfisema instalado. B) Tomografia de face mostrando ar presente entre os tecidos faciais, característico de enfisema. C) Pós-operatório de 15 dias mostrando resolução completa do caso.
Caso 3
Paciente do sexo feminino, 28 anos de idade, compareceu ao serviço indicada pelo seu ortodontista para a extração dos terceiros molares devido a episódios recorrentes de pericoronarite. Na anamnese, não relatou qualquer comorbidade que impossibilitasse a realização das exodontias.
Durante a osteotomia vestibular e distal ao terceiro molar inferior, com turbina de alta rotação e abundante irrigação, a paciente relatou dor e desconforto em região de periórbita direita. Foi observado, então, um aumento de volume acentuado na hemiface esquerda, envolvendo parte das regiões periorbitária, temporal e zigomática, associado com crepitação à palpação, sendo diagnosticado enfisema subcutâneo (Fig. 3A). A paciente não relatou qualquer desconforto respiratório.
Devido ao quadro psicológico da paciente em decorrência do enfisema, a cirurgia foi suspensa e, então, foi solicitada uma tomografia computadorizada. O exame de imagem evidenciou dissecção dos espaços periorbitários, envolvendo as pálpebras, regiões bucal, submandibular, temporal e sublingual, com extensão cervical, confirmando o diagnóstico de enfisema subcutâneo (Fig. 3B).
Foi prescrito o mesmo protocolo medicamentoso dos casos 1 e 2, além dos mesmos cuidados e orientações. A paciente teve um acompanhamento pós-operatório rigoroso e, após sete dias, apresentou significativa redução do edema periorbitário. Após quinze dias, não apresentava qualquer sintoma referente ao quadro de enfisema (Fig. 3C).
DISCUSSÃO
O enfisema subcutâneo é um acidente raro, decorrente de complicações durante procedimentos odontológicos, no qual ocorre a passagem de ar forçada para o interior dos tecidos moles3. Pode ocorrer devido ao uso rotineiro de instrumentos de ar em alta pressão e, também, ao uso de seringa tríplice durante os tratamentos odontológicos4 .
Os procedimentos odontológicos mais relacionados ao surgimento do enfisema subcutâneo são as exodontias de terceiros molares inclusos ou impactados, quando se faz uso de um instrumento de alta rotação para realizar osteotomias e odontossecções. Nesses procedimentos, as lacerações indevidas no periósteo, que podem ocorrer por falta de delicadeza e precisão no seu descolamento, também favorecem a penetração do ar. Nos três casos aqui relatados, o enfisema subcutâneo decorreu devido à exodontia de terceiro molar inferior, nos quais foram confeccionados retalhos com descolamento mucoperiosteal total seguido de osteotomia, que possivelmente contribuíram para o surgimento do quadro3,9 .
Além disso, a proximidade dos terceiros molares inferiores e o espaço facial submandibular pode levar à disseminação do enfisema para regiões mais profundas, como o espaço faríngeo lateral e o retrofaríngeo, com possível extensão para o mediastino3. Se o ar tiver microrganismos, pode surgir um quadro infeccioso, até colocando em risco a vida do paciente4. Outros autores relatam a
A
B
C
Figura 3: A) Aspecto extrabucal imediatamente após o quadro de enfisema diagnosticado, evidenciando aumento de volume facial no lado esquerdo. B) Tomografia de face mostrando ar presente entre os tecidos faciais, evidenciando quadro de enfisema. C) Pós-operatório de 15 dias mostrando resolução completa do caso.
ocorrência dessa complicação em procedimentos de tratamento endodônticos, tratamento periodontal, tratamento restaurador, após traumas e como complicações de cirurgias ortognáticas3,4,9. Dos casos relatados, todos apresentaram como causa a injeção de ar por turbina de alta rotação durante a osteotomia.
O diagnóstico é realizado através dos exames clínico e de imagem associados. A sintomatologia mais comum relacionada ao surgimento do enfisema inclui aumento de volume difuso, crepitação, ausência de firmeza à palpação, além de desconforto ou dor local1,3,4,8. Nos casos clínicos aqui relatados, todas as pacientes apresentaram aumento de volume acentuado nas regiões afetadas, crepitação à palpação, desconforto e algia. Além disso, no caso 2, houve também alteração da acuidade visual.
Nos exames de imagem, a tomografia computadorizada tem se tornado padrão referencial para estudo e diagnóstico, pois avalia a extensão das regiões afetadas e os espaços fasciais envolvidos, com elevada precisão. Em todos os casos, foram solicitados exames de tomografia computadorizada imediata após a instalação do quadro de enfisema, nos quais foi possível a visualização de todas as áreas afetadas. Os espaços periorbitários, temporal e bucal foram afetados em todos os casos. Nos casos 2 e 3, houve extensão para os espaços submandibulares, sublinguais e cervicais3,9 .
O tratamento do enfisema subcutâneo é paliativo e inclui acompanhamento e medicações anti-inflamatória e antibiótica associadas. Geralmente, os quadros apresentam remissão espontânea entre 7 e 10 dias1,3. A medicação antibiótica é realizada de forma profilática, devido ao ar comprimido dentro dos tecidos conter microrganismos que podem desenvolver quadros infecciosos, como a fasceíte necrosante e a mediastinite3. Todas as pacientes foram acompanhadas em ambiente ambulatorial. O protocolo terapêutico realizado em todos os casos foi medicações anti-inflamatória, antibiótica e analgésica associadas e, após 15 dias de acompanhamento, todos apresentaram total remissão dos sinais e sintomas associados ao enfisema subcutâneo, sem desenvolver qualquer tipo de complicação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora o enfisema subcutâneo necessite de acompanhamento clínico diário, sua regressão geralmente ocorre sem complicações. Apesar de infrequente, o enfisema subcutâneo após procedimentos odontológicos deve ser sempre diagnosticado rapidamente, pois esse pode oferecer risco de morte ao paciente. Essa condição, por si só, é relativamente inócua, regredindo espontaneamente. Para prevenir essa complicação, o profissional deve evitar retalhos muito extensos, manipular os tecidos com delicadeza, evitando lacerações indevidas no periósteo.
ABSTRACT Subcutaneous emphysema during surgical extraction of third molars: three case reports
Introduction: Subcutaneous emphysema is a rare accident that occurs during dental treatments in which forced passage of air and/or other gases into the soft tissues occurs. It can have several causes, but the most common occur from the air released during the use of high-speed turbines or triple syringes. Usually treatment is symptomatic, presenting spontaneous remission over time. However, they may present complications that progress to severe conditions that put the patient’s life at risk, and a rigorous follow-up is necessary until its complete regression. Description: Three clinical cases of female patients, who developed subcutaneous emphysema during the use of high-speed turbine in third molar extraction procedures, are reported. All were diagnosed immediately during the surgeries, with symptoms of facial volume increase and crepitation on palpation. Results: The treatments performed were satisfactory, which included the use of associated anti-inflammatory and antibiotic medications.
Conclusion: After a follow-up period, complete remission of the symptoms was observed without the appearance of complications. The correct surgical planning is fundamental to avoid this type of complication. Keywords: Emphysema. Oral surgical procedures. Preprosthetic. Accidents.
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