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A INFLUÊNCIA DE GRANDES PROJETOS DESENVOLVIMENTISTAS NA DINÂMICA URBANA DE SANTARÉM COMO AMEAÇA AO BEM VIVER DE SEUS POVOS

A INFLUÊNCIA DE GRANDES PROJETOS DESENVOLVIMENTISTAS NA DINÂMICA URBANA DE SANTARÉM COMO AMEAÇA AO BEM VIVER DE SEUS POVOS

Sara da Costa Pereira 1

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INTRODUÇÃO

O conceito de urbano, na sociedade capitalista, está ligado à noção de modernidade, de consumo. Já a área rural é erroneamente vista como o lugar do tradicional, do atrasado. Logo, o objetivo de migrar do campo para a cidade é propagado como condição para sair do “atraso” e alcançar o “progresso”. Essa falsa ideia é amplamente difundida pelos empresários do agronegócio que chegam às comunidades dispostos a comprar as terras de pequenos agricultores, a fim de transformá-las em vastos monocultivos de soja. Esse cenário tem se acentuado na última década no oeste paraense, sobretudo na região metropolitana de Santarém, com a expansão da soja e os projetos de infraestrutura logística para o escoamento de grãos. Nesse contexto, o presente artigo tem como objetivo geral analisar como a reconfiguração urbana de Santarém é influenciada pela chegada dos grandes projetos desenvolvimentistas. Para atingir tal propósito, tem-se como objetivos específicos: i) identificar o falacioso discurso desenvolvimentista no tocante às melhorias das condições de vida na cidade; ii) discutir o bem viver com uma alternativa ao discurso desenvolvimentista. O presente artigo valeu-se de pesquisa bibliográfica, buscando investigar o objeto de estudo em referências literárias consolidadas, acrescida das observações empíricas da autora a partir de suas experiências de militância no movimento social.

1 Graduada em Letras e Direito; Educadora da Fase Amazônia Sp78novo@gmail.com http://lattes.cnpq.br/5934097708702766.

DISCUSSÕES

Santarém tem uma população de 294.774 mil habitantes, segundo dados do IBGE (censo 2010), dos quais 215.947 vivem na zona urbana, constituída por 48 bairros, conforme dispõe a Lei Municipal nº 18.051/ 2006 (Plano Diretor). Entretanto, novas ocupações irregulares são notadas e, embora ainda não se tenham dados censitários atualizados, é visível o crescimento populacional na cidade. Conforme Oliveira (2008), nas últimas décadas a expansão do espaço urbano se adensou, incentivada pela intensa migração das áreas rurais para a cidade, estimulada fortemente pela introdução da cultura da soja na região. Esta cultura promoveu grandes transformações, empresários mato-grossenses provocaram desagregação na agricultura familiar ao incorporarem grandes áreas agrícolas, forçando a vinda de migrantes das áreas rurais para a cidade. A produção de grãos integra um portfólio de políticas que não dinamizam o desenvolvimento local, a exemplo da exportação de minérios e energia, e obras de infraestrutura, com transporte multimodal (hidrovia, ferrovia, rodovia, portos). Essa dinâmica vem reconfigurando a paisagem da região, atingindo a vida de inúmeras comunidades e povos tradicionais da floresta e dos rios em nome, dessa vez, da integração do Brasil à globalização (AGUIAR, 2017). Historicamente, esses grandes projetos econômicos, que apresentam o discurso do “desenvolvimento” como seu principal atrativo, têm se configurado como uma reedição do velho modelo desenvolvimentista que tenta impor à região amazônica a permanência de sua condição colonial. Os empregos gerados são parcos e se dão, sobretudo, no momento inicial dos empreendimentos. Depois, os postos de trabalho são reduzidos e aos operários locais restam aqueles com baixa remuneração. Além da frustração com a falaciosa promessa de geração de emprego e renda, a Amazônia herda também danos ambientais irreversíveis, expropriação de territórios de comunidades indígenas,

quilombolas, de pescadores e agroextrativistas, contaminação por agrotóxicos, que vão desembocar no inchamento das periferias das cidades, explosão da especulação imobiliária e o crescimento da demanda por políticas públicas urbanas provocadas pelo vertiginoso adensamento populacional. Diante desses fracassados ciclos desenvolvimentistas, uma instigante questão se apresenta: esse desenvolvimento serve a quem? Em contraposição à ideia desenvolvimentista, Acosta (2016) propõe o debate sobre o bem viver, apontando a construção de novas realidades políticas, econômicas e sociais a partir de uma ruptura radical com as noções de “progresso” e “desenvolvimento”, que são pautadas pela acumulação de bens e capital, pelo crescimento infinito e pela exploração inclemente dos recursos naturais. Corroborando tal assertiva, o Equador, em seu “Plan Nacional Para El Buen Vivir” citado por Alcântara e Sampaio (2017, p4) conceitua Bem Viver como

[...] um compromisso com a mudança [...] que permite a aplicação de um novo paradigma econômico, cujo final não se concentra no material, na acumulação mecanicista e interminável de bens, mas em vez disso promove uma estratégia econômica inclusiva, sustentável e democrática. [...] ‘Bem Viver’ também se baseia nas demandas por igualdade e justiça social, e no reconhecimento, avaliação e do diálogo dos povos e suas culturas, formas de conhecimento e modos de vida.

Santarém fica exatamente em frente ao encontro das águas esverdeadas do rio Tapajós com as barrentas do rio Amazonas, que correm paralelas numa harmoniosa convivência. Tal harmonia, porém, não se repete na relação de chegada dos grandes projetos com a histórica dinâmica da cidade. Exemplo disso é a construção do

porto graneleiro da multinacional Cargill cuja edificação extinguiu a praia da Vera Paz, antes muito frequentada pela população por ficar localizada bem no centro da cidade. Além de privar a comunidade do acesso à praia (que foi aterrada para dar lugar ao porto) e ao rio como fonte de lazer e contemplamento, o porto da Cargill também expulsou comerciantes que tinham barracas no local, pescadores que ali aportavam suas canoas, além de sepultar um sítio arqueológico que continha registros de mais de 10 mil anos de ocupação humana (GOMES; GOUVÊA, 2013). Mais recentemente, o lago do Maicá, em cujas margens situam-se um quilombo urbano chamado Pérola do Maicá, está ameaçado pela pretensa construção de terminais portuários para o escoamento de soja. A região do Maicá é um berçário de peixes de onde sai boa parte da produção pesqueira artesanal que abastece os mercados da cidade. Além das ameaças territoriais, a construção de portos no Maicá também põe em risco a segurança alimentar da população e prejudica a geração de renda. Ademais, para alcançar seus objetivos, o agronegócio estabelece barganhas eleitorais com políticos locais, numa espécie de permuta de interesses. Em dezembro de 2018, a Câmara de Vereadores e o Prefeito Municipal de Santarém mudaram o texto do Projeto de lei de revisão do Plano Diretor (Lei nº 18.051/2006) para atender as exigências de empresários da soja. Na conferência final do processo de revisão da lei, a população aprovou a proposta que mantinha a região do Lago do Maicá para pesca artesanal, atividade turística de base comunitária e embarque e desembarque de pequeno porte para comunidades ribeirinhas, derrotando a proposta do agronegócio que reivindicava a área para construção de portos graneleiros. Contudo, os vereadores, no apagar das luzes da última sessão legislativa de 2018, substituíram o texto favorecendo a proposta dos sojicultores que perdeu na votação popular. Mesmo com todo o protesto da população, o prefeito

sancionou a lei de revisão do Plano Diretor, atendendo o lobby dos empresários do agronegócio. Essa sorrateira trama do agronegócio e políticos locais, que derrubou uma legítima conquista popular no processo de revisão do Plano Diretor de Santarém, evidenciou que a luta pelo direito à cidade na Amazônia perpassa pela disputa entre o modelo desenvolvimentista - que captura e se apropria dos bens comuns (lagos, rios, igarapés, floresta, etc) para a expansão de grandes negócios (monocultivos de soja, portos, hidrovias, ferrovias, hidrelétricas e mineração) promovendo a financeirização das cidades e a favelização das áreas periurbanas - e as populações locais (pescadores, agroextrativistas, indígenas, quilombolas, ribeirinhas) que defendem a preservação dos comuns como elementos constitutivos do seu bem viver nas cidades. A dinâmica natural da cidade está sendo transformada para atender aos interesses do grande capital em detrimento de todo o potencial da biodiversidade amazônica para garantir o bem viver de seus povos. Como tem se repetido historicamente, as consequências dos projetos do grande capital se revertem em danos difíceis de serem mitigados, tampouco compensados, como o aumento da violência, do racismo e da degradação ambiental e na apropriação privada de extensas áreas verdes e margens de rios por condomínios fechados, aumentando os processos de gentrificação, empobrecimento e desigualdades socioterritoriais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Essa urbanização excludente e segregadora imposta pelo modelo desenvolvimentista não prospera. É preciso pensar e construir uma nova urbanização que avance para além da dicotomia urbano- -rural, que conceba a cidade a partir de suas complementariedades e reciprocidades com o mundo camponês. Um modelo que rompa com a lógica colonialista que trata a Amazônia como almoxarifado

do Brasil e do mundo e passe a conceber os recursos hídricos, a floresta e toda a biodiversidade como comuns que devem ser protegidos e manejados de modo equilibrado. A fim de que a riqueza produzida seja distribuída de maneira a satisfazer as necessidades de toda a população e não apenas de um pequeno grupo de abastados. Uma perspectiva de cidade amazônica que acolha a diversidade de seus povos: indígenas, quilombolas, pescadores, agricultoras e agroextrativistas, propondo políticas públicas que respeitem suas especificidades organizativas, produtivas, culturais e de gênero. Que as relações de produção e consumo de alimentos sejam generosamente reconstruídas entre agricultores familiares agroecológicos e consumidores urbanos. Que o diálogo de saberes (popular e científico) seja uma prática metodológica adotada pelas instituições de ensino no seu fazer acadêmico. Que a política urbana incorpore o rio, os lagos, os igarapés e a floresta como elementos essenciais para garantir a qualidade de vida na cidade, deixando de considerá-los como obstáculos à urbanização. Que o bem viver não seja entendido numa perspectiva utópica, mas como alternativa real de justiça econômica e ecológica inspirada nos saberes ancestrais e vínculos comunitários que secularmente garantem o equilíbrio ambiental no planeta.

PALAVRAS-CHAVE: Projetos desenvolvimentistas; agronegócio; urbanização; Santarém (Pa); Bem viver;

REFERÊNCIAS

ACOSTA, Alberto. O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Autonomia Literária. 2016

ALCANTARA, Liliane Cristine Schlemer. SAMPAIO, Carlos Alberto Cioce.

Bem viver como paradigma de desenvolvimento: utopia ou alternativa pos-

sível? Revista Desenvolvimento e Meio Ambiente. Paraná. Vol. 40, abril 2017.

AGUIAR, Diana. A geopolítica de infraestrutura da China na América do Sul: um estudo a partir do caso do Tapajós na Amazônia Brasileira. Rio de Janeiro, 2017.

GOMES. Denise Maria Cavalcante. GOUVÊA, José Gouvêa Luiz. Contextos

domésticos no sítio arqueológico do Porto, Santarém, Brasil, identificados

com o auxílio da geofísica por meio do método GPR. Rio de Janeiro, 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/bgoeldi/v8n3/10.pdf. Acesso em: 29. Abr. 2018.

OLIVEIRA, Janete Marília Gentil Coimbra de. Expansão urbana e periferização de Santarém-Pa, Brasil: Questões para o Planejamento Urbano. 2008. In X Coloquio Internacional de Geocrítica. Disponível em: < http://www. ub.edu/geocrit/-xcol/268.htm>. Acesso em: 22 out. 2014.

Plano Diretor Participativo do Município de Santarém – Lei nº 18.051/2006. Disponível https://sapl.santarem.pa.leg.br/media/sapl/public/normajuridica/2006/43/43_texto_integral.pdf. Acesso em: 04 nov. 2018

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