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CAP 3: MEU JALECO É ROSA, E DAÍ?

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MEU JALECO É ROSA, E DAÍ?

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Este foi sem dúvida o maior desafio ao escrever essa parte do livro. Tinha observado algumas situações machistas dentro da minha profissão, até porque a saúde faz parte de um sistema culturalmente machista. Mas eu tinha que compartilhar algumas impressões, ouvir outras mulheres médicas e outras mulheres enfermeiras que acho são um alvo muito frequente desse infortúnio. Não pretendo construir uma tese sobre machismo ou feminismo. Nem esgotar um assunto tão amplo e delicado. Apenas me dou o direito de registrar minhas percepções ao longo da minha trajetória profissional sobre o comportamento machista e o feminino quando partilham um mesmo espaço no ambiente da saúde, Tentei juntar duas visões, a da memória e a atual, e não sei se tive êxito. Além de impressões, busquei algum referencial teórico que enriquecesse a reflexão, sem o objetivo de transformar essa abordagem em escrita técnica. O meu objetivo é apenas de nos fazer pensar e deixar espaço para que cada uma profissional de saúde administre melhor situações do cotidiano que envolve o machismo no ambiente da saúde.

A primeira pergunta que sempre me vem à cabeça quando vejo um profissional de saúde e uma profissional de saúde nos corredores do hospital é: “Por que além de termos que provar que somos boas profissionais, temos que ficar bonitas e magras, enquanto os homens não parecem se preocupar nenhum pouco com esse aspecto? ”. Buscando respostas, me deparei um dia na sala do consultório de uma psicóloga psicanalista para uma pequena palestra. Camila Guimarães de Paula Pessoa me recebeu uma tarde, após atender uma jovem paciente. Ela toda feminina, vestido floral e sandálias, sem maquiagem. Sem

afetação. Seu espaço de atendimento um misto de biblioteca e brinquedoteca com uma imensa casa de bonecas atrás de si. Ela parecia que morava na casa. Não deixo de notar que uma mulher pode ser feminina sim e passar total profissionalismo, sem exageros em nenhum dos lados. Essa foi a primeira lição que recebi naquele encontro, e apesar de adorar conversar, as coisas não faladas para mim são as mais importantes. Após falar o porquê de procura-la, ela me explicou alguns pontos que eu não sabia sobre a temática em questão. – Lucianna, o problema não é o físico. O problema é estar voltado somente para isso, o que hoje vemos é somente essa a preocupação da nossa sociedade. E continua. Existem duas lógicas, a lógica do feminino é essa, a estética, o belo, o jovem. Nós, naturalmente vamos nos preocupar com o cabelo, o rosto, com o que vestimos. Isso é natural, então é natural sim que se cobre, por parte das próprias mulheres, essa dita beleza. Esse comportamento você não vai esperar de um homem heterossexual. Ele não tem essa lógica – argumenta Camila Guimarães Paula. Camila3 continua “O homem vai se importar mais com coisas que ele possa possuir como carros, o quanto ele tem na carteira ou jogos, do que se arrumar impecavelmente todos os dias para ir trabalhar”. Lembro de um colega meu que é cirurgião e se orgulha da barriga de chope cultivada ao longo dos anos “Isso aqui é o calo sexual”, quem nunca ouviu falar dessa expressão? Claro que atualmente ainda temos os metrossexuais, homens que também se preocupam muito com a aparência, mas no ambiente de saúde essa ainda não é uma realidade comum. Começo a entender o que ela fala. O que ela chama de lógica no jargão psicológico é o que eu chamaria de “energia”, ou seja, o masculino e o feminino tem energias totalmente distintas. Acho que isso é lógico, a maioria de nós “sente” instintivamente quem é predominantemente masculino e quem é predominantemente feminino. No livro que ela gentilmente me emprestou “Feminino Masculino no imaginário de diferentes épocas” organizado por Eloá Jacobina e Maria Helena Kühner da editora Bertrand Brasil, 1998, acho um mundo de capítulos traçando esse paralelismo. O livro traz desde a parte mítica, com

3 Psicóloga psicanalista Camila Guimarães de Paula Pessoa.

a criação dos seres andróginos por Zeus, seres que tinham duas cabeças em um mesmo corpo, com 4 braços e 4 pernas e ambos os sexos que se completam. Estes seres que de tão fortes, foram separados a espada pelo seu criador e erram pelo mundo procurando sua metade que os completa. Será que somos esses seres que somente após “recuperar” esse balanço das partes se torna pleno? Penso sobre isso e traduzo para o meu dia a dia. Para se ter um equilíbrio, há que se ter uma proporção dos três hormônios, estradiol e progesterona (hormônios ditos femininos) e testosterona (o dito masculino). Se você é mulher (XX falando da genética), sua proporção de estradiol e progesterona será maior, ao contrário do homem (XY), no qual a testosterona será maior. Nunca vi alguém sem queixas quando somente um lado desses hormônios está presente. Pode ser que tenha, mas como médica, acho difícil. Então o mito dos seres Andrógenos me atrai. O livro passa por outros comentários, e um outro que muito me chamou atenção, foi o do Psicanalista Roberto Bittencourt Martins, ele relata que, certa vez, em um dos seus grupos, duas mulheres vieram com duas questões que aparentemente não tinham a ver uma com a outra, mas que depois de falado, o grupo havia se dado a resposta com a troca de experiências, e é por isso que eu gosto tanto de grupo.

Case 1: Sarah (vamos chamar aqui com esse nome) era a provedora da casa e todos os dias saia para trabalhar e deixava o bebê do casal com Samuel, seu esposo que fazia de bom grado as funções do lar. Um certo tempo, ela começou a se perguntar que espécie de esposo era Samuel que nem conseguir o sustento ele conseguia e mais, que espécie de mulher ela era se nem conseguir ficar com o filho ela conseguia. Pronto! Adeus paz entre os três. O que antes estava organizado para eles, agora nascia a pulga da discórdia. Case 2: A segunda mulher, que batizarei de Maria era mais velha, divorciada e estava no seu segundo casamento com Jorge, igualmente mais velho e já

aposentado. Maria não queria se aposentar, por mais que já tivesse idade para tal, gostava do seu trabalho. Jorge, por ficar em casa, assumia pequenas tarefas domésticas. Com o tempo, Maria começou a se irritar com Jorge e lhe dirigia palavras agressivas, duvidando de sua competência tanto nas tarefas, quanto como “macho”.

Ambas as mulheres perceberam que estavam “presas” a padrões antigos de funções ditas dos homens e das mulheres especificamente e se cobravam por isso. E os relacionamentos que estavam tão bem, começaram a sofrer. Os casos se desenrolam no livro4, mas quero trazer aqui para a nossa reflexão conjunta como profissionais os seguintes pontos:

1. O pensamento de machismo não partiu deles e sim delas, e; 2. Ambos, homens e mulheres ainda estamos presos a padrões antigos de função.

Sem desejar culpar ninguém, será que estamos lidando bem com isso dentro das nossas casas e trabalhos? Será? Será que estamos falando uma coisa e querendo outra? Nesse sentido, realmente o interlocutor ficará perdido. A pergunta que não quer calar é:

Onde você está como profissional, dentro dessa sociedade que mudou rápido em tão pouco tempo?

Tenho mais dois exemplos bem vivos sobre essas duas questões, o machismo e o feminino dentro do Sistema de Saúde. Ambos são reais e me ensinam muito até hoje. Conheci Dra. Maísa Colares há cerca de dois anos quando entrei no Hospital Geral de Fortaleza (HGF). Dra. Maísa é a chefe da enfermaria de Clínica Médica e lutou muito para a introdução das vagas no hospital. A Clínica Médica é a base de todas as especialidades clínicas e uma vez o profissional falho nesse raciocínio de base, adeus exercer

4 Livro “Feminino Masculino no imaginário de diferentes épocas” organizado por Eloá Jacobina e Maria Helena Kühner da editora Bertrand Brasil, 1998.

uma especialidade de forma segura, seja qual for ela. É preciso ser um bom clínico para pensar em todas as probabilidades de doença que um paciente possa ter e depois, com observação e maestria, excluir uma a uma e deixar a mais provável. O trabalho de um bom clínico é de um Sherlock Holmes. Fazer uma boa anamnese, examinar, voltar, refazer a anamnese, re-examinar e fazer esse trabalho de novo, e de novo e de novo. Até sabermos o que o paciente tem. Dra. Maísa sabe tudo sobre clínica médica e é uma mulher bonita. Apesar de todo o estresse que uma chefia traz, ela está sempre com os cabelos escovados, óculos combinando com seu rosto e maquiagem. Uma combinação de voz forte e atitude ativa para “comandar” os médicos homens que a assessora. E não sinto o menor traço de machismo da parte de ambos. Nem de feminismo por parte dela. Simplesmente ela está ali fazendo o que deve ser feito e os colegas colaboram, mas quem responde pela residência é ela. Aprendo muito com sua postura, forte e ao mesmo tempo democrática e os colegas homens que me desculpem, mas penso que nós, quando bem resolvidas dos nossos complexos (o que não é nada fácil, quero deixar claro), pensamos muito mais no todo, com uma postura menos egocêntrica. Felizmente nem todos os homens são iguais e dentro do que eu falei, existem mulheres que arruínam trabalhos de décadas. Aqui a máxima é verdadeira “sempre há exceções”. Infelizmente o outro exemplo me entristece até hoje. Irei chamar aqui de Dra. Gilda e mudarei a clínica de origem. Ainda era estudante de medicina quando a vi passar correndo mal-humorada nos corredores do Hospital Beneficente Portuguesa sem dar um “bom dia”. Apenas uma troca fugaz de olhares e um leve manear de cabeça que passava despercebido como cumprimento. Perguntei para o médico plantonista por que ela era assim, arredia. No que ele me contou a história dela. Gilda assim que terminou a faculdade foi para São Paulo. Queria fazer cirurgia, mas foi impedida por algo de sua história. Entrou então em Endoscopia sendo a primeira mulher naquela equipe badalada do Dr. Fulano de tal. Gilda era então uma “beldade”, magra e bem-feita de corpo, logo foi vítima de machismo pelo tal Dr. Fulano, que teve que a

engolir uma vez que era exímia profissional. Vitima também do machismo dos colegas que se viam como inferior e logo diante de uma mulher! Gilda precisou se brutalizar e se deformar para que não parecesse mulher. Ela precisou sobreviver nesse meio agressivo. Não deve ter sido fácil. Lembro, pelos traços que ela deve ter sido mesmo muito bonita (aqui estou eu presa na lógica feminina que Camila me explicou). Uma pele bonita, olhos pequenos e expressivos, cabelos claros. Naquela época, após sair de São Paulo, ela ainda carregava a guerreira que precisou se tornar para ser aceita naquele meio hostil machista. Precisou se masculinizar para “furar esse cerco”. Penso nas milhares de Gildas que precisam se masculinizar ou virar “mulher-objeto” para serem aceitas nos círculos ditos masculinos. Eu mesma adquiri um forte trejeito que acho masculino ao entrar na minha residência de UTI onde 99% dos meus chefes eram homens. Ainda hoje trago traços na voz, bem agressiva, resquícios daquele tempo. Buscando as palavras na internet “machismo no ambiente de saúde” ou “machismo na profissão de saúde” me deparo com o trabalho da Dra. Carmem Lúcia Luiz, enfermeira e sanitarista e conselheira do Ministério da Saúde que luta pelos direitos da mulher dentro do nosso cenário. Em agosto de 1998, houve a segunda Conferência Nacional de Saúde das Mulheres com o tema “Saúde das mulheres: Desafios para a integralidade com equidade”. Porque o SUS realmente não aborda a saúde da mulher como um todo. Impressionante que nós, profissionais de saúde que não estamos nas Unidades Básicas não sabemos disso e ouso dizer que muitas que estão igualmente desconhecem. Trocamos e-mails que resultou em um telefonema no qual fui atendida com a maior boa vontade. Calmamente me explicou que só damos importância para mulher nas políticas de saúde quando ela está grávida. “E caso ela não queira ter filhos? Há alguma coisa voltada para ela?”. Paro e penso. Pergunto para Dra. Carmem sobre o que ela acha de eu escrever sobre o machismo dentro dos hospitais, o que ela gosta de pronto. “Ah, esse assunto dá pano para manga, claro que existe. Mas você não vai ter a resposta que ‘existe’, porque a mulher se cala. Por que temos medo. Machismo é uma violência e nós ainda não aprendemos a falar sobre isso.” 5

5 Dra. Carmem Lúcia Luiz, enfermeira e sanitarista e conselheira do Ministério da Saúde que luta pelos direitos da mulher dentro do cenário da saúde.

Concordo com ela. Quando perguntei para algumas colegas, tanto médicas (como não médicas) a maioria disse que não sente o machismo. Camila, a psicóloga, acha que eu perguntei muito diretamente. Pode ser que sim, eu sou bem direta o que em algumas circunstâncias pode não dar certo... “Luciana, ela me diz, é preciso estar bem resolvida em alguns pontos para dizer abertamente que sofro isso ou aquilo no meu trabalho. Pergunte indiretamente que você poderá ter a resposta que você quer”. Deixo aqui então a excelente abordagem de Camila:

Qual é a dificuldade que você passa no seu trabalho por ser mulher?

“Eu sempre convivi com o machismo, mas nunca iria parar uma bela carreira por causa disso”. Essa foi a mensagem direta que a minha amiga, Dra. Setsuko Watanabe me deixou. Além de ser minha amiga, sou fã da Set (como todos os amigos a chamam) pela sua história de vida. Pelo nome vocês já percebem que é de origem japonesa. Ela tem 81 anos, psiquiatra e uma das introdutoras da Hipnose e Programação Neurolinguística (PNL) no Brasil. Sempre foi visionária. Ao completar 70 fez Acupuntura e trabalha com isso além de outras práticas. Set entrou para faculdade nos anos 70 e me relata que eram mais de cem homens para 4 mulheres. Quando entrou já era casada, e os colegas queriam por força transar com ela na cara dura. Sem cerimônias. “Uma coisa horrorosa, credo!!. Quando era aula de anatomia que a gente ia dissecar os cadáveres, eles ficavam encoxando a gente. Daí eu que estava com o bisturi, não contava conversa, picava mesmo eles. Quando iam ver, já estavam sangrando e eu pedia desculpas e dizia que não sabia o que tinha acontecido. Dizia para eles tomarem cuidado e não chegarem muito perto para não acontecer de novo. Daí não acontecia”. - E se eles chegassem de novo, Set, o que tu farias? - Ah eu furava de novo! Ela me respondeu. Eu quis saber o que acontecia com as colegas dela, as outras solteiras: - Ah querida (com seu sotaque do sul do Brasil) elas namoravam os outros colegas da classe. Agora não sei se por gostar ou por querer proteção. Realmente não sei”. E deixa eu pensar o que eu quiser.

Set passou por uma situação como Gilda, porém Gilda conseguiu entrar onde queria, Set achou melhor não mexer com isso. Na época ela queria cirurgia plástica e sabemos que para fazer isso, temos que passar por cirurgia geral. “Naquelas alturas (início dos anos 70) quem chefiava era um médico de uns 70 e poucos anos que berrava aos sete ventos que nenhuma mulher entraria na disciplina dele, pois ele já sabia que eu queria entrar. Os meus amigos diziam para eu desistir, mas eu queria fazer cirurgia plástica, já era mãe de três crianças e eu queria criá-las. Fui até aos advogados, mas seria tanta exposição para minha família que eu desisti.” Apesar de tudo, não houve empecilhos para sua carreira porque Setsuko tem sucesso no que ela fizer. E ela acrescenta: - Olha, preciso te contar um fato. Nos anos 80, estava trabalhando em um ambulatório público e foi o tempo que começamos a ter intervenções políticas dentro da saúde. Pessoas sem qualificação iriam chefiar uma equipe de profissionais e estávamos constantemente sendo alvo de arbitrariedades. Um certo dia, uma mulher adentra o consultório e me manda sair sem explicações. Nem consegui terminar a consulta e o paciente foi prejudicado. Apesar de tudo que passei, essa foi uma das atitudes mais machistas que tenho na memória. - E feito por uma mulher, completo eu. - Sim feito por uma mulher. Os homens têm pinto e força muscular devido à testosterona e usam isso como arma para se sentirem superiores as mulheres e também em situações que garantam sua masculinidade para si e para sociedade. Mas os maiores atos de machismo a qual fui vítima foram feitos por mulheres. Realmente, uma excelente reflexão para nós. E ela continua: - Passei por muita coisa, mas em nenhum momento jogaria fora meus planos por conta de coisas que para mim, não tinham relevância. Tracei um futuro e não iria parar. Todos vamos nos deparar com coisas desagradáveis. Isso pode me parar ou não, fazer com o que eu desista ou não, isso vai depender da minha força do pensamento, do que eu quero mais que tudo. É isso que importa. Paro e penso sobre tudo isso. Sobre as considerações que o passado nos traz, nos conceitos psicanalistas e culturais que temos e entendo

que tudo parte de um entendimento de quem somos, de quem respeitamos. Ainda temos muitas questões em aberto, deixo aqui mais essa, mas o que se fecha na minha cabeça é que tenho que respeitar a minha história e o que eu construí e que não posso deixar ninguém passar por cima. Ninguém. Vivemos em uma cultura machista, e o ambiente de saúde não está imune, bem que gostaria que ele estivesse, como infectologista que sou, mas não é bem assim. Deixo para todas nós, profissionais de saúde, o desafio de perceber e não ceder ao machismo no nosso ambiente de trabalho. Deixemos o nosso feminino ser poesia e saúde.

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