23 minute read
CAP 4: QUANDO O PODER É POTENCIALIZADO PELOS DESAFIOS
4
QUANDO O PODER É POTENCIALIZADO PELOS DESAFIOS.
Advertisement
Por Sumie Iwasa.
Eu, Sumie Iwasa, paulista, nasci em 23 de dezembro de 1945 em Guaiçara, na época distrito de Lins, e por circunstâncias do pós-guerra fui registrada em Rancharia. Sou filha de imigrantes japoneses. Minha mãe chegou ao Brasil em 1918 e meu pai, em 1932. Meu pai era um empresário poeta. Ou seja, um sonhador, que idealizava as suas empresas e não conseguia mantê-las dentro de uma trilha de prosperidade. Tive uma infância e uma juventude bastante atribuladas e uma vida permeada por altos e baixos. Muitas mudanças, doença grave quando criança, dificuldades enormes na infância e na juventude. A falta de dinheiro permeou várias fases. O ambiente familiar e os outros que me acolheram eram bastante intelectuais, ricos em orientação para a matemática. Líamos muito. Eu me vi lendo e escrevendo em torno dos cinco ou seis anos em duas línguas, o japonês e o português. Somos nove irmãos: cinco mulheres, quatro homens. Eu sou a quarta filha desses pais imigrantes. Acredito que, o que meus pais não conseguiram em sucesso material, eles obtiveram na felicidade de terem nove filhos extremamente capazes, bons sobreviventes, com muitas habilidades técnicas e intelectuais.
Quando vim para São Paulo, havia o objetivo de trabalhar no pequeno escritório da empresa de uns tios, com quem passei a morar também. Sou muito grata a eles, de quem, inclusive recebi todo apoio quando ingressei no curso médico. Como eu poderia fazer um curso de
seis anos sem trabalho? Graças a meus tios, pude cursar tranquilamente a medicina sem me preocupar com a sobrevivência. Aprendi a trabalhar muito cedo. Desde os treze anos, quando cursava o ginasial na década de 1950, eu procurei ser produtiva e ganhar alguma coisa para a nossa sobrevivência. Trabalho não era problema. Problema em São Paulo era decidir o que eu poderia fazer como adulta e a ideia não era muito amadurecida em minha cabeça de adolescente. Nós éramos cobrados: na visão familiar, todo jovem a partir dos quinze anos teria que assumir a responsabilidade por sua vida. Isso era patente. Assim, difícil era assumir o que fazer e não a responsabilidade daquilo que fazia. Fiquei um bocado perdida em busca do que fazer e, aos 20 anos, fui uma paraquedista no vestibular. Na época, usava-se a expressão paraquedismo para quem jogava a esmo e acertava um alvo. Parece-me que o meu ingresso na Escola Paulista de Medicina foi nessa base. Medicina não foi uma profissão escolhida. Quando digo que foi por acaso, às vezes soa ofensivo a quem ouve, mas a verdade é que, quando eu estava na época de escolher alguma coisa na vida, um único vestibular me surgiu. Algumas amigas se inscreviam para o curso médico e eu me inscrevi também, fiz o vestibular e fui aprovada. Em 1967, sem a menor noção do que seria medicina, entrei na Escola Paulista de Medicina, atualmente uma escola federal. Então, tive dificuldade de me adaptar ao curso médico. Desde o ingresso na faculdade, passei a fazer cursos extracurriculares voltados para outras áreas, novas ainda no Brasil. Uma delas era a informática. Fiz curso de algoritmo, participei da seleção de empresas privadas e fiz cursos de programação para grandes computadores. Fui aprovada, fiquei entre 30 estagiários de uma seleção brutal de muitos estudantes de engenharia. Evidentemente, fui convidada a me retirar ao descobrirem que eu cursava Medicina. A exigência para aquele curso era de integralidade, ou seja, eu teria que estar em dois lugares ao mesmo tempo. Eu já estava indo para o terceiro ano do curso médico e fui obrigada a permanecer na escola. Sou filha de imigrantes japoneses, como disse, e ouvi na infância alguns relatos em que havia supervalorização dos rapazes e razoável invalidação das meninas. Ou seja, os rapazes nasciam para fazer grandes
coisas e as meninas... pouco se esperava delas. Eu me lembro que pessoas apontavam para meus irmãos e diziam a meus pais: “Poxa, seus filhos são todos muito inteligentes”. Apontaram para mim uma vez e disseram: “Poxa, pena que ela nasceu menina”. Hoje eu me conscientizo de que fui fazer Ortopedia somente para desafiar os homens e competir com eles. Na época da formatura, eu já havia desenvolvido um espírito de competição muito grande apenas para me rebelar. Fui anarquista à minha maneira, porque eu pouco falava, mas participava de debates polêmicos à toa. Eu sempre tinha muitos argumentos e até hoje tenho colegas que não gostam de discutir qualquer assunto comigo. Fiz Ortopedia não só para competir com os rapazes, eu queria mostrar a limitação deles. Trabalhei o dobro, mas não para provar que eles tinham que me aceitar (eu não me importava com a aceitação das pessoas e sim com aquilo que eu fazia). Então fui atrás de desafios e enfrentei razoável sabotagem no meu aprendizado cirúrgico. Não há dúvida de que, à medida que fui conseguindo mais tarde contratos para atendimento de traumas nos hospitais, aprendi muito com a vida, aprendi a lidar com todas as situações. Tanto que até hoje eu ainda vejo desafio como uma diversão. Então não me importava em fazer plantão de 24, 36 ou 48 horas. Importava o que eu conseguiria produzir nesse período. Havia razoável sexismo na época. Nós erámos 120 alunos e apenas sete garotas. Havia ainda um outro componente: nós éramos 23 nipodescendentes, dos quais seis mulheres nipodescendentes, um número razoável. Nós éramos benquistos, mas somente benquistos. Na Escola Paulista de Medicina, ser ciruortopedista no início da década de 1970 foi complicado. Houve situações, embora poucas, em que eu chamava o paciente para a sala, ele se sentava à minha frente e perguntava “Onde está o médico? ”. Eu não aparentava idade. Não houve nenhuma situação em que o paciente saísse da sala ofendido. Mas ficava constrangido por ter sido examinado por uma mulher em condições de trauma ou mesmo de dor crônica. Em 1972, eu me graduei na vigésima-terceira turma da Escola Paulista de Medicina, hoje uma escola federal, já com a opção para fazer Ortopedia e Traumatologia. Durante o curso médico, aprendi
o entusiasmo do trabalho e, quando comecei a assumir plantões do quarto ao sexto ano, o desempenho da profissão tornou-se secundário. O importante era trabalhar, lutar pela sobrevivência e assumir uma vida independente. Na década de 1960 e início da de 1970, estávamos tendo uma série de mudanças sociais, com novos movimentos na arte, na música ou do tipo feminismo, havia as drogas, tropicália, etc. A sociedade toda estava em revolução. Foi muito divertido, ao passo que foi complexo escolher uma especialidade. Por acaso, eu ouvira dizer que Ortopedia era uma atividade eminentemente masculina e de fato não havia nenhuma mulher atuando nessa disciplina. Cogitações havia de que mulher não podia fazer Ortopedia. Como eu não tinha uma causa para lutar e como autoridade era algo com que eu tinha dificuldade de lidar, fui ao chefe da disciplina na época, o Dr. Marino Lazzareschi, para perguntar a ele se era verdade que mulheres não podiam cursar Ortopedia. E a resposta foi simples: “Não existe nenhuma regra que impeça as meninas de fazerem Ortopedia”. Olhei para ele e perguntei: “Então, eu posso?”. E ele respondeu: “Teoricamente sim”. Assim, eu me candidatei e fui aceita. Naturalmente isso provocou um movimento de resistências, protestos e conselhos, quando a própria escola não aprovava uma menina, o que era o meu caso. Havia muito sexismo também, como já observei. Essa oposição reforçou minha vontade de me rebelar. Não foi pela Ortopedia, foi pela rebeldia. Como sempre eu gostei de fazer as coisas do meu modo, adentrei a Ortopedia, que terminei em 1975. Devo ser a primeira ortopedista titulada na prova em concurso nacional para o título de especialista. Rapidamente eu me reuni com quatro sócios e abrimos uma clínica ortopédica, a Ortomédica, e começamos a prestar serviços de Traumatologia em diversos hospitais em São Paulo. Foi uma época extremamente agitada, louca, indo madrugadas adentro de um hospital para outro, para atender traumatismo agudo. Com uma equipe atendendo trauma em diversos hospitais em São Paulo, fomos levando a clínica com dificuldades imensas, de muitos altos e baixos, durante quase vinte anos. Em 1990/1991, desfizemos a sociedade e passei a chefiar, no mesmo local, uma clínica médica envolvendo
múltiplas especialidades. Foi uma grande experiência conviver com outras especialidades debaixo do mesmo teto. Foi uma troca intensa, mas com o Plano Real eu tive que mudar a estratégia, porque financeiramente ficou inviável continuar como policlínica. Voltei à acupuntura e à ortopedia. Existe um outro viés nessa atividade de acupuntura. Meu grupo começou a se interessar por acupuntura ainda na década de 70 culminando no primeiro Congresso Médico Brasileiro de Medicina Chinesa e Acupuntura. Participei da organização desse congresso. Também entrei de cabeça para tentar fazer com que o Conselho Federal de Medicina (CFM) aprovasse a acupuntura como uma especialidade médica, o que ele fez em 1995. Não digo que abandonei definitivamente a prática da Ortopedia. Eu só pendurei o bisturi, parei de operar por volta de 2004 ou 2005. Fui reduzindo a prática cirúrgica aos poucos e me concentrei no desenvolvimento de técnicas não cirúrgicas para solucionar o problema do paciente.
Em 1974, dois anos depois de formada, conheci uma pessoa muito especial: Anna Rosenhaus Nabergoi. Eu acredito que ela me salvou. Na época, ela me orientou, foi a minha professora, a minha mestra sobre o comportamento humano. Ela chamava o assunto de psicossociologia aplicada. Permaneci com ela até 1985.
Aprendi a conviver, a aceitar a limitação alheia e a minha, a me relacionar, a conversar. Aprendi a me comunicar.
Com a Anna, eu criei um novo roteiro profissional e passei a atender outras pessoas com dificuldades similares, dentro do plano de comunicação interpessoal. Foi extremamente útil no meu relacionamento com os pacientes. Isto me torna hoje uma pessoa razoavelmente apta a atender (não a entender) qualquer pessoa com qualquer patologia, uma vez que as dificuldades do paciente nem sempre ele as consegue colocar. A comunicação útil, que é o nome que eu dou hoje a esse tipo de abordagem, veio nascendo aos poucos a ponto de, após alguns contatos
ou algum retorno, boa parte dos pacientes consegue manifestar todas as suas dificuldades em todos os planos. Até onde é possível, eu consigo fazer com que as pessoas entendam que boa parte dos sintomas que apresentam no agravamento de uma doença pode ter origem emocional. A abordagem acaba sendo clínico-emocional. Atualmente presido e cuido do andamento da Fundação ACL para preservar a técnica que Anna Nabergoi nos legou e estou, no momento, finalizando a conciliação dessa técnica com a prática médica. Nesses trinta anos, evoluímos um bocado e hoje a Fundação ACL trabalha de forma profissional. Nós temos um Conselho Curador, do qual sou presidente vitalícia e temos uma Diretoria Executiva, cujo presidente é Takashi Jojima. É bastante enxuta a estrutura de funcionários, que cuidam de preencher e dar o suporte para a nossa ampla gama de realizações. Sobre o atendimento filantrópico, eu gostaria de voltar no tempo para contar aqui um pouco mais. Acho que ele começou quando eu tinha por volta de catorze anos. Gostava de ser professora e nos interiores onde morei, quando eu via um garoto com dificuldades de aprendizado, lá estava eu predisposta a ajudar. Isso porque eu também tive dificuldades de aprendizado. Na adolescência tive dificuldades em relação a falta de disciplina para o estudo, resultado de uma amnésia que tive aos dez anos de idade. Aos poucos, superei tudo isso. Provavelmente eu fui uma criança agitada: eu tinha múltiplos interesses simultâneos e sempre me desinteressei do assunto escolar. Então, o que comecei a fazer não era exatamente dar aulas. Como eu entendia a dificuldade do aluno, aprendi a fazer com que ele superasse essa dificuldade. É algo difícil de entender: ao mesmo tempo que eu recebia reprovação no curso científico (atual ensino médio), eu fazia meninos do curso colegial (atual ensino fundamental) tirarem notas finais máximas para poderem passar de ano. O desafio era mais importante para mim do que a nota em uma prova, por isso eu tenho a impressão de que em toda a minha vida acadêmica eu fiquei ajudando pessoas: vizinhos, amigos, conhecidos, parentes, etc. Quando tive meu primeiro carro, ele virou quase uma mini ambulância, buscando e levando pacientes, inclusive a ambulatórios desconhecidos.
O divertido para mim era fazer as coisas, ou seja, eu não tinha exatamente amor pela Medicina.
A prática médica sempre foi muito divertida. Isso não me torna uma melhor médica, não. Me vejo mais como uma franco-atiradora, que acerta um diagnóstico por acaso e não por conhecimento acumulado, vivências ou experiências anteriores.
Uma grande mudança em minha vida se deu a partir do momento em que conheci o Dr. Yoshiaki Omura e a sua técnica Bi-Digital O-Ring Test (BDORT). Foi algo extremamente extravagante inicialmente e o meu interesse por acupuntura quase desapareceu. Fiquei fascinada com a nova técnica, me aprofundei nela, fui a muitos seminários em Nova York e Tóquio. Trouxe novos elementos aqui para o Brasil, começamos a organizar pequenos cursos e a criar uma base para a prática do BDORT. O BDORT me interessou inicialmente por me parecer uma solução para a dor crônica. Afinal, eu tinha um uma clínica ortopédica, cuja maioria de pacientes estava envelhecendo comigo, e eram todos portadores de dor crônica. Foi uma surpresa quando vi com que simplicidade o professor Yoshiaki Omura conseguiu solucionar cada estágio, cada etapa da doença crônica. À medida que ele identificava os agentes, ele ia buscando soluções. Após essa introdução à dor, eu fui adentrando para doenças de difícil solução, entre elas o câncer, as doenças degenerativas e de todas as naturezas. Foi em 1995 que tomei conhecimento do trabalho do professor Omura. Meu marido, Takashi Jojima, escreveu uma carta a ele e nos surpreendeu que o professor Omura, em resposta, nos enviou um convite para participarmos de um seminário em Nova York, em maio do mesmo ano. Ficamos três dias assistindo seminários, aturdidos com a extravagância de tudo o que nós vimos. Aquilo era fascinante. E passei a me dedicar e entender como tudo aquilo funcionava. Ainda no mesmo ano, convidamos o professor Omura para o Congresso Médico Brasileiro de Medicina Chinesa e Acupuntura, no Brasil, e ele aceitou e veio. Foi
quando começamos a divulgação. Em 1997, criamos o primeiro curso de BDORT na medida em que Takashi Jojima e eu iniciamos a tradução, do japonês para o português, do livro do professor Omura. Concluímos a tradução e publicamos o livro em 2000. É um livro de difícil compreensão, mesmo porque o professor Omura não só é médico, mas também cursou Engenharia e se dedicou à Física Aplicada. O currículo dele é tão grande, que é difícil descrever na realidade qual a sua verdadeira especialidade. Aliás, nem podemos dizer que ele seja um especialista, porque ele é um inventor, um pesquisador. Ele se aplicou muito na pesquisa do mecanismo de ação da acupuntura e o BDORT é resultado dessas pesquisas. É genialmente simples. Pessoalmente, o considero um método propedêutico, uma maneira diferente do convencional de investigação clínica. É algo novo tanto para a Medicina Ocidental como para a Medicina Oriental, a tradicional chinesa e outras práticas médicas desenvolvidas na Ásia. A surpreendente simplicidade do BDORT nos possibilita fazer inúmeras coisas, e talvez a mais importante seja a seleção de medicamentos: fazer com que as substâncias quimicamente ativas cheguem ao local doente e tornem o processo terapêutico eficiente. No início dessa prática, talvez por sermos muito jovens, eu via o BDORT como uma ferramenta propedêutica que nos faria errar menos. Obviamente não é só isso. Ele abre novas perspectivas. Desperta a nossa curiosidade e criatividade e nos conduz a um universo médico novo. E é instigante, porque a gente passa a perceber outras numerosas possibilidades que podem ser desenvolvidas dentro de um processo. Eu me introduzi nessa técnica ao perceber nela a possibilidade de humanizar melhor a medicina.
Como médicos, não queremos errar e passamos a vida justificando os nossos atos.
O BDORT chega a um certo ponto não digo de precisão, mas nos ajuda muito a ampliar o nosso raciocínio. Ou seja, ao se abordar uma doença complexa, pode-se perceber o que talvez os colegas ou a própria ciência médica atual ainda não perceba. Isso sem usarmos muitas
ferramentas. E o fascinante é que o BDORT nos ensina coisas novas no cotidiano. A diversidade, a individualidade fica muito patente. O diagnóstico aparentemente é um só, mas a manifestação da doença é tão diversa que praticamente se pode mensurar o quanto é diferente de um indivíduo para outro.
O médico está muito mais apto a fazer diagnóstico em doença e menos preparado para perceber todas as circunstâncias que levam o indivíduo à doença.
Hoje, a Medicina ensina o trabalho coletivo pela multidisciplinaridade. Eu fico focalizando para os meus colegas que é possível talvez um único médico trabalhar tudo o que é necessário, apesar das múltiplas disfunções que o paciente possa ter. Isso é bastante ambicioso? Percebo que não é bem assim. Em qualquer época do passado, um médico tinha que dar conta de um paciente com múltiplas disfunções. O século XX foi maravilhoso no sentido do avanço da tecnologia. Mas parece que nós descaracterizamos o profissional médico à medida que ele foi se especializando. Eu vislumbro um novo horizonte onde uma boa medicina seria esta da personalização da forma de comunicação médica com o indivíduo paciente, trabalhando no sentido do desenvolvimento máximo das potencialidades positivas desse paciente. Isso seria possivelmente a chave para a solução dos problemas físicos que ele possa ter desenvolvido.
Se ninguém faz e você também está insegura, pense um pouco como faria e faça. Como saberemos se vai dar certo se não fizermos?
Este foi sempre um dos meus lemas: experimente, faça. Foi somando experiências que eu cheguei até aqui. Eu fiz tantas coisas simultaneamente que hoje eu me classifico como tarefeira. Eu faço qualquer coisa para a qual eu tenha decidido me dedicar. E como tenho múltiplos interesses,
acabei quase sem tempo para fazer as coisas. Foi uma vida atribulada de médica com consultório, com atividade cirúrgica intensa (operava várias vezes por semana, de três a cinco cirurgias), acumulando a direção de uma associação médica de acupuntura, ajudando a administrá-la, e as aulas na Fundação ACL, além de ajudar sua administração. Obviamente eram três casas que eu precisava manter em ordem e buscar recursos para mantê-las vivas. E ainda tem a minha vida pessoal: casamento, filhas, administração doméstica. Então, 24 horas no dia nunca foram suficientes para mim em boa fase de minha vida. Aprendi a delegar. Aprendi a conhecer as pessoas e isso tudo foi fruto de um bom trabalho pelo qual sou eternamente grata a Anna Rosenhaus Nabergoi. Aprendi a buscar qualidades humanas e não os talentos que as pessoas possam ter. E hoje eu me sinto profundamente gratificada por perceber que eu errei pouco. O talento humano não é tão importante para alguém chegar aonde quer, desde que se tenha o norte bem definido. Parece-me que qualidade humana se sobrepõe a talento. Talento, isto é, aptidões, nós podemos ajudar o indivíduo a desenvolver. Foi assim que a clínica praticamente começou a andar sozinha, como é, graças a funcionários dedicados que a Fundação até hoje trabalha perfeitamente. Sobre a minha forma de atuar, hoje percebo que passei ao longo da vida sem nenhum método. Propósitos eu tinha, sempre tinha um norte, sempre me nortearam os meus valores e o propósito de criar algo que só eu poderia fazer. Não que eu quisesse fazer isso ou aquilo a princípio. Nunca sei o que eu quero, eu só percebo quando eu descubro. É como quando saio para fazer compras e nem sei o que eu quero comprar. Então, frequentemente volto para casa sem fazer compra alguma, porque nada me interessou. Ou saio com um propósito de compra e volto com muitas coisas. Eu sou um bocado acumuladora, nesse sentido, porque às vezes eu compro por impulso e não sei o que fazer com o que comprei. Da mesma forma como às vezes anoto pessoas e depois levo um bocado de tempo para saber como conduzir o relacionamento. Às vezes, levo anos até que a pessoa amadurece e segue rumo próprio. Isso acontece com
funcionários, pacientes, algumas amizades. Porque parece que tudo para mim se resume num laboratório de pesquisa. Eu aprendo muito com isso. Levar uma vida sem método significa que sou uma péssima dona de casa, à vista de todo mundo. Tenho um universo extremamente balançado, mas tenho razoável noção de onde estão as coisas que me interessam. Para mim, elas estão bem organizadas. Na parte superficial, as coisas vão ficando onde eu deixo por muito tempo, anos até. Felizmente estou rodeada de bons colaboradores. Eu nunca digo a um colaborador o que ele deve fazer, eu deixo que ele descubra o que pode fazer. Talvez seja essa a chave do meu “sucesso pessoal”, porque assim é a minha vida. Continua sem grandes problemas, evidentemente isso pode resultar em alguns vícios comportamentais, e quando eu os percebo eu trabalho um bocado para corrigi-los. O ser humano talvez seja de fato o meu maior foco. Então, transformar a vida profissional num laboratório de investigação, de treino de como os relacionamentos podem ser conduzidos, talvez tenha sido a minha maior motivação. Isso ocorre inclusive com os pacientes, na medida em que a investigação da vida do paciente é o que me leva a conduzir melhor talvez o meu processo terapêutico. Busco modificar a conduta do paciente. Isso é resultado da Técnica ACL. Do ponto de vista técnico, eu não me considero uma médica bem formada. Talvez até esteja um pouco abaixo da média – operei muito, mas não me considero uma boa cirurgiã. Não tive, porém, insucessos cirúrgicos. Mesmo do ponto de vista clínico, eu acumulo “sucessos”, porque eu incentivo o paciente a buscar o resultado – portanto, o trabalho não é meu. Parabenizo o paciente pelo bom resultado que ele me informa. Porque essa é a verdade que eu percebo:
Nossa missão médica é incentivar o paciente a buscar a solução terapêutica.
Eu não me sinto na obrigação de tratar uma doença e sim incentivar o paciente a entender o motivo de sua doença e lutar contra ela,
modificando o seu estado de ânimo. Explico aquilo que for possível dentro das limitações de terminologia e da parte técnica. Essa é a única ferramenta para ele combater uma doença que está dentro dele. Ou seja, a doença é do próprio paciente. Eu devolvo o problema ao paciente e o incentivo a lutar para modificar o próprio estado fisiológico. É uma maneira diferente de abordar o processo terapêutico, mas é o que sempre funcionou. A expressão medicina integrativa sempre me interessou, sempre me fascinou. Ainda hoje estou tentando definir o sentido da medicina integrativa. Não se trata apenas de corrigir a manifestação somática, o corpo em disfunção de um paciente. Trata-se de levar o indivíduo a assumir a própria vida. Transformar a própria fisiologia, o próprio corpo, que é o único instrumento de viver que ele tem, e torná-lo funcional até o fim de sua vida. Com qualidade! Realmente, eu me preocupo com qualidade, e qualidade para mim é um resultado laboratorial. Qualidade é como o indivíduo se sente. Futuro? Futuro é o dia que ainda não veio. A rigor, eu não tenho planos para o futuro, a não ser aquilo que aparece no meu horizonte. Eu tenho alguns apegos, sim, acredito que sou uma acumuladora, como já falei. Então, eu vejo o peso que tenho atrás e vejo o desafio à frente, aí eu pondero e avanço se perceber que existe possibilidade. Eu sempre tento fazer para ver o que acontece. Ou seja, não rejeito desafio. Mas não é qualquer desafio que eu abraço. Eu acho que gosto de gente. Porque o ser humano é um animal com tantas peculiaridades que eu ainda não aprendi a perceber totalmente. Então, o que dirá o futuro? Não sei. Enquanto viver, eu vou continuar nesse marasmo às vezes quixotesco, às vezes infantil. Não raro, eu me pego curtindo situações muito peculiares e depois eu fico rindo e me perguntando por que aquele assunto foi tão divertido.
PARA RELAXAR: O QUE APRENDI SENDO PACIENTE.
O final de semana já estava todo arranjado. Sábado, almoço com as meninas, domingo cinema com o Fernando e nos dois dias, escrever.
Veio a sexta-feira e mudou tudo. Ao meio-dia o olho começou a coçar e ficar vermelho e três horas depois, estava eu na cadeira do Oftalmo, ouvi o que já sabia “conjuntivite... sete a dez dias...”E a mais temida “A pressão ocular está alta”. Descanso...colírio...compressas...mais descanso... À noite, na hora que todo mundo acorda para fazer xixi, me levantei dando ordens ao meu cérebro “Não olhe no espelho, não olhe no espelho”, mas uma vez findo o que tinha ido fazer, uma voz imperiosa falou “Olhe agora!” Não vou esquecer daquela imagem tão cedo! Eu estava a cara do Sloth do filme Os Goonies ou era uma máscara de Madame Tussauds derretida, onde o olho direito escorria pela bochecha. Compressa, compressa, compressa! “Calma”, pensei. Agora seria uma boa hora para provar se as palavras que eu digo para os pacientes fazem sentido. A primeira: “Paciência”- Que é a arte de ter paz enquanto o que queremos vem. Pode demorar. Muitas vezes não chega mas mesmo assim temos que ter paz. A segunda: “O corpo tem sua força curativa”. Essa é mais fácil. Eu confio no meu corpo e confio mais ainda em quem o criou. Nós, profissionais, apenas ajudamos, mas a máquina faz o maior trabalho. A terceira é a minha preferida: “Vai dar certo”. Essa é como um mantra para tudo. Acredito que sempre se dê certo em algum momento, de alguma forma. Buscando no meu cérebro, encontrei a resposta no início da minha formação. Esperança. Esse fio que sustenta o peso de mil feras, esse sentimento que nunca poderemos tirar de ninguém e que sempre deverá ser cultivado. Fiquei feliz em constatar que eu não era um papagaio de jaleco, repetindo frases sem saber o
seu significado. Ainda mais com pessoas em seus momentos difíceis. Por fim, tudo passou. Estou de olhos abertos, ainda sem maquiagem, o que não me importo. Mentira, me importo sim, um pouquinho. Não quero fazer com esse texto nenhuma apologia à doença, mas entendi que algumas vezes ela aparece para termos um novo olhar sobre o que nos ronda. Comigo foi assim.
Poema
Eu tenho pena
Eu disse, um dia, que não tinha pena. Não... Na verdade, disse que estava melhorando.
Hoje, trabalho em um local onde tenho pena. Não trabalho por piedade, mas por gostar das pessoas. Gostar?
Pena é se colocar no local do outro, porém isso te imobiliza, e não é isso que eu faço. Eu ajo, eu atuo, eu ajudo.
Falta tudo. Falta seringa, falta gaze, falta fralda. Falta xylocaína, falta sonda vesical, falta antibiótico.
Falta vergonha na cara, falta o grito, falta a raiva.
E tenho pena. Dos pobres diabos que morrerão ali, jogados nas macas jogadas no chão.
E tenho ódio. Do representante que mente descaradamente em nossas caras.
Da pena, nasce a vontade de estudar mais, mas e o hoje?
Hoje trabalho em um local que gosto. Gosto? Mas me tolhe e me entristece,
que pena...
Subindo no Salto
SIGNIFICADO DA EXPRESSÃO:
SUBIR NO SALTO é se elevar, chegar para arrasar, superar-se. É estar posicionada para supera-
ção e crescimento.
A sensação de solucionar situações complicadas no dia a dia sem dúvida é gratificante, entretanto, solucioná-las de salto alto...
Não tem preço! - Ynnael Ben Azzar