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CAP 9: O CUIDADO COM O AUTOCUIDADO
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O CUIDADO COM O AUTOCUIDADO.
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Todos os dias que me levanto da cama, agradeço por estar do lado de cá da mesa. No início da profissão, mais jovens e com forças, poucos são os que pensam nas doenças ou na morte. Eu não pensava. Como minha constituição sempre foi boa, nunca pensava mesmo. Se pensava era algo distante e que não iria acontecer tão cedo. Lembro de algumas colegas de residência com coisas bem pontuais e nada limitantes, como artrite e enxaqueca, mas não convivi com amigos que tivessem doenças terminais. Sei que o mundo de hoje, com sua quantidade enorme de lixo tóxico nos faz adoecer mais que há cem anos atrás por exemplo. O solo já esgotado não é mais o mesmo e estamos envoltos em um sem número de plásticos. Fora que para a biologia, após os 40 anos já estamos pagando pedágio. Então nunca a prevenção fora tão importante quanto agora. Não vou obedecer a biologia, quero viver o que tiver para viver, mas bem, e morrer reconhecendo todo mundo. Estamos mergulhados no estresse e fadiga, mas com 20 anos temos que cumprir uma carga de plantões desumanas e o corpo dá conta, por conta da idade, mas e após os 30? Após os 50? Muitas coisas melhoram com a idade, o modo de ver a vida por exemplo. Damos os mesmos diagnósticos, mas de formas diferentes. Entendo hoje uma mulher na peri-menopausa ou menopausa mais do que há 10 anos atrás. Sou mais perspicaz quando um homem me diz que precisa de uma ajuda com a “memória”. Tudo isso porque sinto muitas coisas que eles sentem e me trato e por isso mesmo consigo trata-los. Mas, mesmo assim, negligenciamos nossa saúde. Sempre achamos que tem muita gente precisando de nós, o que quase sempre é verdade, mas tratar do outro, ser bom profissional não exclui o autocuidado. E não é somente cuidar do corpo, da alimentação. É cuidar da alma também, do espírito. Ou temos medo.
Medo do inevitável, de saber que vamos morrer. Pode parecer absurdo, mas muitos médicos evitam esse tema. O que antes era normal até uns anos atrás, com a melhora da tecnologia, aumento da sobrevida, a morte virou tabu. Conheço algumas pessoas assim. Acho que todo mundo conhece gente assim. Profissionais de saúde que não fazem check up. Sei que vemos muito sofrimento antes da hora H. Mas não se cuidar não ajuda em nada. Tem aquela turma que disfarça o medo com arrogância, são os profissionais que discutem tudo, de otorrinolaringologia à medicina quântica. Sabem tudo na teoria, mas não fazem nada diferente para mudar. Estamos em tempos de se fazerem pequenas mudanças sim, para grandes resultados. Hoje sabemos muito mais sobre alergias alimentares e intolerâncias que no passado. O jeito de fazer uma reposição hormonal, para a mulher que pode, também é mais segura. O conceito de estresse saiu do campo filosófico para o físico e logo podemos modular o cortisol. Hoje já se sabe que a atividade física não só contribui para melhora do corpo, como melhora da plasticidade cerebral! Em fim, vamos usar esse avanço da medicina a nosso favor. Penso que devemos nos fazer uma pergunta bem séria: Por que não me cuido? Nosso inconsciente nos boicota. Podem aparecer várias respostas que precisam ser examinadas com cuidado. Não me cuido pois estou extremamente cansada para pensar nisso, por exemplo. É só físico ou tem algo a mais por trás disso? Em uma dessas tardes, estava eu no consultório quando ela chegou. Uma moça jovem, de uns 30 e poucos anos, loira, alta e magra. Bem vestida. Estendi a mão como sempre faço. Sua mão era fria e mole, um aperto sem vitalidade alguma. Não olhava nos olhos. Seria timidez? - Tudo bem? Eu sou a Doutora Lucianna, você é de primeira vez né? Sempre começo algo assim para quebrar o gelo. Sempre há uma ansiedade inicial. - Sim... Ela responde tímida, curvada na cadeira. - Seu nome?
- Priscilla Castro (nome fictício). - Certo. E como você chegou até aqui? Como posso te ajudar? - Doutora, vim aqui porque me sinto extremamente cansada. Tem dias que me levanto da cama chorando para trabalhar. Sou enfermeira do hospital tal. Gosto do meu trabalho, de ajudar as pessoas. Mas sinto que não estou bem. Nesses dias vou trabalhar obrigada, pois penso muito no meu bebê de dois anos. Na maioria do tempo estou com sono, esgotada e mal-humorada. Nem eu me aguento mais. Admiro realmente as enfermeiras, elas levam muitos serviços nas costas, não me admira que estivesse com Exaustão Adrenal. - Fale mais sobre seu sono- eu pedi. - Não consigo dormir direito à noite. AS 19h20min estou capotando, mas se não dormir essa hora não durmo mais. As 23h me deito e acordo sempre quase de hora em hora. Durante o dia me arrasto de sono. - Como anda sua libido? - Péssima! Nota 5. Não tenho mais vergonha de dizer que tenho relações de tempos em tempos. Meu marido é compreensivo, mas acho que meu casamento vai acabar. Quero melhorar, essa não sou eu! Conversei bastante com a Priscilla, sobre seus sintomas, sobre o bebê dela, sobre a vida. Falei sobre o estresse como nossa resposta a situações. Não são elas que nos fazem isso, somos nós que sentimos e às vezes essa resposta nos maltrata, o que chamamos de doença. O corpo não fala. Ele grita. Ela estava sentindo isso há algum tempo já, mas não sabia como procurar ajuda e a quem procurar. A maioria menospreza esses sintomas. Havia um assunto inacabado que também a impedia de se tratar, de se cuidar na verdade. A mãe havia morrido de câncer de mama e ela se sentia culpada até hoje, pois era a única filha da saúde e na cabeça dela, não pôde fazer nada. Tinha medo de ter câncer também. Ou seja, um emaranhado de sentimentos a estava impedindo de viver, de ficar bem com o filho e o marido. Culpa, autosabotagem, tristeza. Nessas horas, o fato de sermos ou não da saúde não ajuda em nada. É o nosso inconsciente agindo. Mas não pude deixar de refletir.
Nós, cuidadoras, estamos doentes! Precisamos de socorro, essa que é a verdade.
Foi um longo trabalho. Orientação médica, terapia e mais hobbies. Foi o que ela fez. Após três meses ela voltou. Estava com uma cara melhor! Me contou que tinha gostado da suplementação que passei e que se sentia melhor da fadiga e da desesperança. Estava fazendo terapia e dança do ventre. Além disso, procurou fazer mais coisas que gostava e que estavam esquecidas. E uma coisa foi levando a outra. Penso que a vida seja assim, uma coisa atrai outra, boa ou ruim. E assim construímos ao nosso redor uma rede de proteção de nos dê, ou tire, nosso ânimo. Ela começou a reconstruir sua rede. Perguntei sobre o trabalho, como estava no hospital. - Nada por lá mudou, doutora. Mas eu estou bem melhor, bem melhor nas reações. Estou conseguindo me entender melhor na terapia. Minhas limitações. Meus medos. Quanto à minha mãe ainda me culpo, sou a única filha e da saúde. E ainda acho que fiz muito pouco por ela. - Acho que todas nós, mulheres trabalhadoras de saúde pensamos isso um pouco, sabe? Não podemos simplesmente esquecer que somos médicas ou enfermeiras ou fisioterapeutas e sermos somente filhas ou mães em questão de saúde da família? Mas não... somos mulheres! E rimos juntas. Nessa visita verbalizei o que pensei na primeira visita dela, que nós, mulheres, estamos doentes. E se nós não nos cuidarmos, ninguém vai fazer. Ela me deu uma grande lição com seu exemplo. Aliás, aprendi muito nesses dez anos de consultório, fazendo o que sei fazer, ouvindo gente e sendo gente.
PARA RELAXAR: PRIMEIRO O TRABALHO E DEPOIS... À DESFORAA.
Um médico holandês trabalha em média 6h por dia, depois ele pode usar o resto do tempo como ele quiser.
Um médico americano pode trabalhar as 24h do dia se ele quiser, mas necessariamente no outro, ele tira folga daquele serviço e pode jogar seu basquete ou aprender um idioma. Já o canadense tem um certo número de famílias para visitar em 6 meses. Caso ele faça tudo em 1 mês, têm os outros 5 para tirar férias. Mas ele não o faz. Distribuição entre lazer e trabalho é uma tônica em todo mundo, me parece. Como naquelas piadas de nacionalidade, agora seria a vez de entrar o brasileiro com toda sua graça e malemolência e depois todos daríamos um risinho amarelo no final. Mas não sei, se é esse o caso, pois o que o médico brasileiro quer mesmo é se aposentar. Não, não fiz nenhuma pesquisa formal, são comentários e ações que percebo que me levaram a constatar isso. Ah! Não estou falando de qualquer trabalho e nem conversei com nenhum médico de 80 anos. Nossa jornada é sim cansativa física, mental e moralmente. Mas não preciso me aposentar para fazer o que quero. De verdade, eu não saberia o que fazer com tanto tempo livre. Me entregaria aos vícios...? Comer, dormir e assistir séries? Não precisei me aposentar para começar a escrever. É um projeto embrionário que ganha forças à medida que decido pegar na caneta e no caderno, ou sentar no computador. Não precisei me aposentar para começar a conhecer os países que desejei quando era criança. É uma decisão tomada a cada descanso anual. Penso tudo isso talvez porque troquei há muitos a palavra trabalho pela palavra carreira. Carreira normal, não essas de atrizes. Essa palavra me faz
lembrar que sou importante no meu pequeno núcleo social hoje e quando chegar a minha hora, entregarei meu anel de bamba e não olharei para trás. Acho. A aposentadoria me assusta. Assim como só trabalhar demais também. Bom, vou caminhando, tentando equilibrar esse cabo de guerra e ao mesmo tempo, sem pensar demais nisso. Simplesmente vivendo.
Poema
Idade da Loba
E de repente tudo que eu achava legal, interessante e importante, perdeu toda a graça. O que eu jurava que faria a vida toda, com as mãos nas costas, não é mais assim.
Acordei e o mundo está o mesmo? Sim, porém tudo de cabeça para baixo.
O mais difícil é fingir que está tudo sob controle, quando dentro de mim tenho um cogumelo atômico explodindo e eu tendo que sorrir, como na música.
Nessas situações, como uma mãe bondosa de mim mesma, eu apenas digo “calma, vai passar, segure a onda, aguente mais um pouco...
... E já me imagino em uma praia bravia em um dia nublado, com ondas puxando minhas pernas com força “calma, vai passar, segure a onda, agente mais um pouco”.
E mais um dia se vai.
Isso já dura um tempo e nesse meio,
coisas continuam acontecendo. Boas e as que transformamos em boas. Mas muito mais boas, sem dúvidas.
Um dia passará por completo, mas antes, aprendi que sou humana, sou mulher, com suas dores e sabores.
Aprendi que sempre posso refletir e mudar, quando o resultado der errado. E a dizer NÃO. E a dizer SIM. Enquanto isso, continuo com as pernas firmes, dentro da água que puxa.