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CAP 6: A HISTÓRIA DA MÉDICA BAILARINA

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A HISTÓRIA DA MÉDICA BAILARINA.

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Por Elisa Dias.

Sempre me achei uma criança normal, uma jovem normal, sem ambições, poderia até dizer. Passava horas olhando pela janela, praticando aquele jogo de encontrar formas nas nuvens, viajando no meu próprio mundo. Era tão viajante que dançava pela sala com músicas que só tocavam na minha cabeça. Era a filha do meio. Um irmão mais velho, o companheiro onde eu tinha conversas sérias e uma irmã caçula que adorava esportes competitivos. Eu odiava! Eu precisava jogar com ela vôlei, basquete e queimada, mas odiava aquele negócio de bola, me machucava, por dentro e por fora. Daí ficava sozinha, me divertia sozinha também, não tinha tempo ruim. E dançava... Minha mãe vendo isso, aos seis anos me levou a uma escola de ballet clássico onde nunca mais parei. Via sentido quando estava dançando aquelas músicas clássicas... Chopin, Listz... Aquele era meu mundo! Daquele dia em diante decidi ser bailarina, o que pareceu adequado para os meus pais, pelo meu temperamento. Veio minha adolescência e não passei por nada daquelas crises, estava ocupada em estudar pela manhã e às tardes ia para o ballet. Com 15 anos já começava a me profissionalizar, estava totalmente encontrada e já era ajudante da professora com as bailarinas pequenas. Já dançava em festivais, fui para oficinas fora do meu estado. Modéstia à parte eu dançava bem, apesar de não ser magra total. Tinha músculos e os seios eram até mais desenvolvidos que algumas da mesma idade que eu. Mesmo assim, sempre saia na frente no espetáculo. A professora dizia que eu sabia saltar e mais ainda, que eu sabia pousar do salto com leveza. Isso para mim era o mais importante pois uma bailarina tem que ter graça e ser leve. Em resumo eu estava bem feliz com a minha escolha. Mas eu me esqueci que só tinha 16 anos e era muito cedo para dizer o que eu ia fazer para sempre na vida.

Um dia, nem sei quando ele chegou, as coisas começaram a ficar sem graça. Eu gostava do ballet, claro, mas um desconforto começou a tomar conta de mim. E de repente, tudo que eu tinha certeza, não era mais assim. Acho que todo mundo chega nesse dia, não é? Que a gente sabe que tem que mudar, mas não sabe por onde ou o que mudar. Então é mais fácil não sentir. Mas como não sentir? Continuava indo para as aulas, mas eu tinha mudado. Um dia, fui com meu namorado e irmão para uma competição chata de judô. Eu ia só para acompanhar mesmo. Esse dia me marcou pois vi uma médica, bem novinha, deveria ser estudante atendendo as crianças que se empolgavam demais na luta. Ela se parecia fisicamente comigo. Minha cabeça voou!!!! Foi o segundo estalo mais significativo da minha vida! O primeiro estalo tinha sido muitos anos antes, mas agora o segundo veio com tanta força que eu não podia negar. Era isso. Eu ia fazer vestibular para medicina, se eu passaria, isso era outra coisa. Como disse, sempre me achei normal. Era uma boa aluna e se não fosse essa crise na adolescência, minha vida seguiria sem anormalidades, acho. Comecei a estudar e tentava levar o ballet em paralelo. No segundo semestre precisei parar, não dancei no festival. Chorei muito pois foi como se tivessem arrancado uma parte de mim, mas eu também queria ser médica. Era momentâneo, sempre pensava assim. Vou voltar logo, logo. Minha mãe achava que eu iria esquecer da dança. Minha professora ficou feliz por mim, mas triste porque sabia que podia perder uma boa aluna. Na minha cabeça as coisas iriam continuar como foram. Faculdade e ballet. Claro que não seria mais só bailarina, mas sempre enfrentei as mudanças como coisas que não podemos esconder. Se era para ser as duas, as duas tinham que conviver em harmonia. Não foi bem como pensei. Quando passou o vestibular, voltei para o ballet. Estava 10k acima do meu peso, foi duro ver os olhares para cima de mim, mas pouco a pouco consegui eliminar o peso excedente. No início tive dificuldade de conciliar os dois. Tinha aulas na faculdade à tarde alguns dias. Mas não desisti. Sempre pensava positivo, para frente. A dança profissional estava definitivamente fora, mas eu estava descobrindo um outro mundo. Parecia que eu não iria ter outro sonho. Dois já estavam bons demais para mim.

Foi tudo ao contrário. Na faculdade no quarto ano, entre uma aula e outra, conheci o Gustavo. Na verdade, já nos conhecíamos porque todo mundo se conhece, ele estava já no sexto, e eu no quarto ano. Começamos a namorar e em dois anos já pensávamos em nos casar. Quando ele se formou, trabalhou para que fizéssemos a residência juntos, o que aconteceu. Passamos os dois na nossa cidade e em outro estado. Fiquei muito feliz, mas aí vinha o dilema, para onde ir? Como eu disse, sempre fui calma, acho que até demais. Conversei com o Gustavo, que nesse tempo já sabia da minha paixão pelo ballet, que um dia eu tinha aberto mão da carreira de bailarina pela medicina, mas que agora, se eu optasse por sair da nossa cidade, isso significaria me afastar do ballet. Sou conservadora. Sei que não poderia dançar em outro lugar... Me conheço. Não, eu não iria abrir mão disso, que me desculpasse. Tive muita sorte porque ele entendeu. Entendeu que eu o amo, mas que tem uma parte de mim que precisa viver isso. Não sou de brigar e sou na minha como disse, mas eu não iria abrir mão do meu primeiro sonho, isso não! Assim fui fazer residência de pediatria, casei com Gustavo e continuei dançando. Não me pergunte como... fui fazendo. Acho que tenho um segredo. Não perdia tempo me cobrando e dizendo que eu podia sempre fazer melhor isso ou aquilo. Fui fazendo, sempre tentando dar o meu melhor. Se não saísse bem, paciência. Também não sou das melhores donas de casa. Aliás, sou das piores... Mas ele não reclama, então... Passado mais um tempo, meu quarto sonho veio e é o momento que estou vivendo agora, esperando a Maria Eduarda. Estou entrando no meu quarto mês de gravidez e até então conseguindo fazer tudo que eu fazia antes. Trabalhando, dançando e cuidando da minha vida com meu marido. Sei que vou ter que dar novamente um segundo tempo no ballet, mas isso até as bailarinas profissionais fazem quando tem seus filhos. Então estou levando a vida normal. A vida da gente realmente está em constante mudança. Só temos que aceitar ou invés de brigar. E ir levando.

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