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CAP 1: CONTO: A SEDUÇÃO Á CONTA-GOTAS
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CONTO: A SEDUÇÃO A CONTA-GOTAS.
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Por Alice Chaves.
Rio de Janeiro, 1976. Eu vi tudo acontecer...
Estava lá ao lado dela o tempo todo, desde seu primeiro dia, que por sinal era o meu primeiro dia também. Sim, considero isso um sinal, pois nossas vidas se cruzaram desde então. Éramos jovens, como sonhos na cabeça e o mundo a ser ganho. O verão deste ano foi intenso, ainda não se alardeava a “tal” da poluição ambiental, mas estudiosos já se reuniam para dizer como seria o clima nos anos 2000. Naquele tempo pensávamos que em 2000 os carros voassem e sairíamos de casas embalados em plásticos-bolha pela falta de oxigênio... ah, a inocência dos anos 70. Para a maioria das garotas, cursinho e cineminha de domingo, para nós, enfermeiras, os livros e pacientes. Mas também gostávamos de assistir Estúpido Cupido e dos bailinhos... Afinal éramos jovens! Meu nome é Alice Chaves. Sou a enfermeira responsável pela enfermaria de Neurocirurgia do Hospital Martim Lutero e vou lhes contar como a menina Gioconda virou a Professora Doutora Gioconda Alves, chefe do mesmo departamento. Não, nem sempre ela foi assim. Você sabe como se cozinha um sapo? Se você o puser na água quente, ele pulará. Mas se colocá-lo em água fria e for cozinhando pouco a pouco, ele morre. As melhores mudanças são dessa forma, sem que você perceba e quando você abrir os olhos, já estará cozida. Dentro de um hospital, um dia vale por muitos.
Uma situação de estresse é capaz de unir duas pessoas que nunca se viram como se fossem amigas íntimas.
É a proximidade com a morte que te faz repensar em todas as etapas que não são necessárias para se começar uma amizade. Assim penso eu até hoje. Em um ambiente hostil como é de um grande hospital com “portas abertas” (ou seja, com emergência) você precisa fazer alianças para sobreviver. No plantão e no pós plantão. Era nosso primeiro dia de trabalho, como falei. Era meu primeiro emprego como Enfermeira-chefe (ainda se chamava assim) e eu estava simplesmente em pânico! Fui atendente de enfermagem, agora estava no outro lado. Eu me dava bem com grupos, iria ter que conquistar a minha equipe, me esforçar e ser uma boa enfermeira. Estava pegando o plantão no posto, bem cedo quando a vi sentada nas cadeiras dos familiares, próximo ao corredor. Era uma moça bonita, deveria ter entre 25-27 anos. Morena, cabelos bem presos em um coque com uma fita que a Nadia Comaneci usava - naquele ano, todas nós queríamos ser como a estrela do Jogos Olímpicos de Montreal. Estava toda de branco, com uma maletinha preta ao lado. Sozinha. Visivelmente em pânico também. Gostei dela de imediato. Seja pela situação ser igual a minha, seja porque tivemos empatia. Sei lá. Não importa. Soube depois, por ela mesma, como havia parado na equipe de Neurocirurgia. Obviamente não tinha sido escolhida de pronto. A equipe já estava composta por outros residentes homens (claro). Infelizmente, um deles, o Carlos, foi passar o final de semana com a família em Santos e pegou meningite na epidemia que estava por lá naquele ano. Foi uma morte trágica e precoce, como o é em todos que não se espera. Porém para Gioconda, foi seu passaporte direto para a equipe. Era necessário ocupar o cargo logo e todas as outras opções (leia-se outros residentes homens) já não estavam disponíveis. Sobrou ela. Claro que aceitara! Não era esse o plano? Recebeu o telegrama no dia anterior e aqui estava ela, em coragem e medo ao mesmo tempo. Enquanto eu trabalhava, Gioconda esperava. Uma, duas...três horas! Até que foi chamada para o centro cirúrgico. A Dona Emília,
enfermeira-chefe do centro cirúrgico depois comentou que ela fora massacrada! Pobre Gioconda... uma gatinha na cova dos leões. Não me admira se ela não voltasse depois. Mas ela voltou. E voltou e voltou e voltava sempre. Os meses se passaram e já estávamos próximas. Ela comentava: - Alice, são tantas pinças e tantos instrumentos...Fora que cada cirurgião quer as coisas ao seu jeito! Como vou decorar? - Calma, eu dizia sempre, você vai dobrar o chefe. Dr. Arthur Porto gosta de pessoas inteligentes e comprometidas, você é os dois, calma garota! E dia pós dia, eu via uma garota determinada a ajudar seu paciente, porém a cada cirurgia, ela voltava mais cabisbaixa. Ela tinha brios apesar da timidez, mas eles estavam dispostos a fazer com que ela desistisse... Tudo muito mudo, aquela guerra fria que sabemos muito bem. Torcia para ela não desistir. Fora que não conhecia nenhuma mulher na equipe do Doutor Artur. Apesar de todos os esforços dela, ele sempre tinha alguma observação negativa. Era lenta demais ou rápida demais. Apesar de tudo isso, conquistava a confiança dos pacientes. Se não podia contar com sua equipe de médicos, poderia contar com a gratidão dos pacientes e com nosso apoio. Um dia, em plena cirurgia, Dr. Artur, o mais exigente, não estava conseguindo acessar uma artéria. Até hoje ninguém entendeu, pois ele fazia essa mesma técnica diariamente. Para Gioconda, penso que foi um daqueles dias que nossa estrela brilha e o Universo diz “a bola está contigo”, sabe? Pois bem. As mãozinhas finas de Gioconda resolveram o problema. Acessou, clampeou, cortou e anastomosou. Claro, tudo com supervisão pois era residente, mas entrou em “campo”. E marcou um gol! O primeiro de muitos. Ao sair da cirurgia ela estava radiante! Parecia ter renascido. Dr. Artur e sua equipe estavam lhe dando os parabéns! Agora ele a via, e mais, enxergou coisas que os outros não enxergavam. Mal sabia eu que naquele dia, mas minha amiga Gioconda tinha morrido e nascia a Doutora Gioconda. Esqueci de mencionar o mais importante.
Dr. Artur Porto era o mais brilhante e o mais arrogante neurocirurgião do Hospital Martim Lutero. Para ele, o paciente era uma doença que ele, Artur, podia consertar. Após “remendar” artérias e retirar tumores, o paciente já não era problema seu. Sem conversas, por favor. Dizem as más línguas que ele brincava de “Deus”... não duvido. Vai saber o que se passa na mente das pessoas? E Gioconda que era tão humana... de repente, se viu no “Olimpo” junto a Zeus e outros deuses, se banqueteando. Pouco a pouco foi seduzida pelo poder. Virou a “queridinha”. Agora ela não instrumentava mais, ela era a primeira auxiliar. Foi sorvendo o gostinho do poder a conta-gotas. Como cozinhar um sapo. Não almoçávamos mais, agora ela tinha seus almoços com os chefes. Não passava mais a visita como antes nos pacientes e estava sempre apressada. Até seu jeito de andar mudou. Não é assim com os patinhos que imitam os papais-patos? Constantemente, ouvíamos a conversa dela com seu chefe, ele dizendo: - Gioconda, nossa especialidade senão a mais importante, esta dentre as mais, pois mexemos com o órgão mais nobre do ser humano, o “cérebro”, e se pavoneavam entre si... Se cresciam os risos entre eles, para os pacientes ela só tinha risadinhas debochadas e ares de desprezo e impaciência. Já estávamos distantes demais para voltar a amizade, porém respeito e coleguismo ainda havia. Um certo dia, daqueles que você jura que será igual a tantos outros, na passagem dos casos com toda equipe médica e de enfermagem, fui questionada como estava a ferida operatória da “101-B”. - Sim, da Dona Maria de Lourdes? questionei. - Sim Alice, essa mesma, ela me respondeu ríspida. - Está bem, Gioconda. Curativo sem secreções. Gioconda respirou fundo. Confesso que não entendi de pronto, mas altamente irritada soltou essa: - Doutora Gioconda, Alice.
Trocamos olhares. Naquele momento o mundo parou para nós duas. Não há problemas em chamarmos médicos de doutores. Não é essa a questão. Nós duas sabíamos o que isso significava. Era uma despedida. Ela havia feito sua escolha. Nada de amizades no ambiente de trabalho. Hierarquia. Poder. Ela havia sido seduzida. - Sim doutora (com ênfase na voz), curativo limpo. Os anos passaram. Continuamos a trabalhar ainda nos mesmos lugares, eu e ela. Progredimos na profissão. Levo a enfermagem com orgulho e dificuldade, fiz minha parte. Um dia, prestes a me aposentar (que penso não estar longe), tomarei coragem e a olharei nos olhos novamente como naquele dia, e farei a seguinte pergunta: - Doutora Gioconda, valeu a pena ter se casado com o poder?
Valeu a pena ter casado com o poder?
Gioconda foi vítima do que muitos de nós são, deixou-se seduzir.