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GIRASSOL MUSICAL

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A HISTÓRIA DE HELENA, O GIRASSOL MUSICAL.

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(Helena por Helena)

Helena Damasceno, para mim somente Lena, terminando o curso de psicologia, é voluntária em um projeto chamado Girassol Musical e leva música aos finais de semana para pacientes e profissionais nos hospitais. Sua postura amorosa chama a atenção, ou pelo menos chamou a minha. Em um lugar onde estamos todos cansados pela carga de trabalho, embrutecidos pela nossa própria incapacidade de lidar com a dor e a morte, vem ela e seu grupo aliviarem nossos corações. Eu quis saber o que estava por trás dessa felicidade. O que leva uma pessoa sair de casa aos domingos para cantar para os outros e foi então que a conheci mais profundamente.

Por que o voluntariado?

Sempre pensei que podia, de alguma forma, fazer da minha ação algo mais suave para os outros. Desde criança, penso onde eu poderia ser útil, onde caberia minha ação em prol dos demais. O exercício de voluntariado me pareceu o mais acertado. Óbvio que percebi isso ao longo dos anos, ainda adolescente mal me cabiam o umbigo. Portanto, foi somente com a maturidade que pensei que tal exercício poderia me trazer o contentamento da utilidade maior. Eu me inquietava com as dores do mundo, com o sofrimento alheio, a miséria, a desigualdade social, a discriminação, o racismo, tudo que desnivela as pessoas de alguma forma, eu não conseguia estar em paz vendo que pessoas iguais a mim, exatamente iguais a mim, tinham fome, sede, solidão, eram descartadas pela sua cor ou por serem menos abastadas, sempre me indignei com essas situações. Fui crescendo e o incômodo não passava, só aumentava. Eu comecei a me perguntar fortemente: o que eu poderia fazer para aliviar-lhes o peso, mesmo que momentaneamente? Como eu poderia

minimizar a dor e o sofrimento daqueles que sofriam mais que eu? Sim, claro, eu sabia que sofria, haviam consideráveis fagulhas e rusgas na minha vida. Mas, talvez por ter sentido na pele a dor, o descaso e o medo eu me sentisse tão intimamente ligada a ajudar outras pessoas. Foi quando uma amiga me falou do trabalho que ela fazia junto ao hospital. Fui conhecer e me apaixonei pelas pessoas, por suas vidas, sua coragem, sua garra... foi ali, dentro daquelas paredes brancas do hospital, que comecei a conhecer o valor da vida, foi quando eu comecei a crescer. Nenhum trabalho pago, assalariado, por assim dizer, equivale à satisfação de ajudar o próximo. No meu primeiro plantão eu vi um homem morrer, nunca tinha visto nada igual. Acompanhei o sopro de vida se esvaindo de seus olhos... me compadeci profundamente. Entendi quão rara e especial é a oportunidade da vida apesar de todas as dificuldades. E meu papel estava claro, bem definido: dali por diante, eu me poria à serviço da vida, onde quer que fosse, onde eu estivesse.

O que você sente como voluntária?

Gratidão é uma palavra que, embora repetidamente entoada em minha vida de voluntariado, só a compreendi em sua essência e grandeza com o tempo. Tempo de serviço, de trabalho e dedicação, mas acima de tudo, tempo de vida. Amadureci muito, cresci vendo pessoas partirem fisicamente de mim, percebi o valor e a raridade da existência humana, a tamanha perda de tempo a que nos destinamos quando valoramos insignificâncias e ilusões, quando não percebemos que estamos todos no mesmo barco e que, um que se vai são dois braços a menos na lida humana. Quando eu compreendi isso pude sentir um sentimento de gratidão imenso. Ser voluntária, portanto, me possibilita seguir acreditando na humanidade multiplicando valores em que acredito: na força do grupo, na fé na vida.

O que muda na tua vida profissional com o voluntariado?

Sinto que me tornei uma pessoa mais paciente, consigo compreender o ponto de vista do outro, mesmo que não concorde com ele. Não é fácil, é um exercício cotidiano de alteridade. Mas, sempre penso que se meu exercício de voluntariado se dá com o que sou, preciso aplicar, ser

quem sou no mundo, nos demais espaços de sociabilidade. Se consigo compreender, acolher, ser amorosa, empática no hospital, porque não estender isso às paredes além do hospital? Seria, então, fácil e cômodo exercitar a paciência e a colaboração, a alteridade e a empatia num lugar que está preparado para me receber assim. Senti que era preciso ir além das paredes do hospital, desafiar e superar o mofo que há em mim. Eu me desassossego sempre que posso, não me apraz a companhia da superficialidade, me inquieto e prefiro isso à acomodação “confortável” da zona de conforto. Então, é preciso ter coerência, quem eu sou no hospital eu sou em todos os lugares. No meu ambiente de trabalho procuro ter o mesmo olhar para o outro, a mesma prática, a mesma lógica. Obviamente, é um exercício.

A natureza não dá saltos, tampouco a natureza humana!

Portanto, sinto que sem o voluntariado não seria possível estender essa coerência, esse meu olhar para onde quer que eu fosse, inclui-se aí, meu trabalho.

O que significa “não trabalhar por dinheiro”?

Eu adoro, risos. É algo que me traz uma sensação de entrega total, de prazer e delícia, sem obrigações, sem pesos. Algumas vezes já trabalhei porque precisava do dinheiro, não porque gostava do lugar, das pessoas, ou do trabalho. No voluntariado isso não acontece. Estou lá por que quero, livre arbítrio, escolha pessoal, ninguém me disse para fazê-lo, a vida me deu uma oportunidade e eu decidi segui-la. Trabalho sim, porque entendo a ação voluntária enquanto exercício de labor, daí, portanto, acredito na responsabilidade dessa escolha de forma séria e comprometida. Dessa forma, o voluntariado pede seriedade, responsabilidade, entrega, organização e zelo, ao passo que nos solicita isso, devolve-nos um sentimento de gratidão e refazimento, de maturescência e auto amor.

Ah, se as empresas compreendessem a força da liberdade e da expressão criativa, da força do afeto e da alegria que

o voluntariado permite... o mercado, talvez, não comportasse medo!

O que as pessoas te falam quando vocês chegam (ou saem)?

O Girassol Musical é um projeto da Associação de Voluntários do Hospital São José (Fortaleza/CE), iniciado em 7 de março 2014, que leva música para as enfermarias do HSJ - Hospital São José de Doenças Infecciosas, a cada quinze dias nas manhãs de domingo. O intuito deste trabalho é o de minimizar os efeitos estressantes de uma internação hospitalar, levando esperança e inspirações de coragem e fé, independentemente de qualquer religião. No início as pessoas achavam estranho, um grupo entrando cantando alto, meio que invadindo as enfermarias, chegamos a ouvir inclusive que atrapalhávamos o repouso dos pacientes. Fomos uma vez expulsos da emergência, mesmo entoando canções de arrefecimento emocional. Preciso dizer que nosso trabalho no hospital segue uma organização e planejamento devidamente estruturados, não cantamos à toa. Realizamos ensaios e estudos que envolvem musicoterapia, psicologia e medicina vibracional na escolha e execução do repertório. Mais do que canto, o Girassol Musical é um compromisso de afeto e alteridade, de solidariedade ativa com o exercício do bem, dos direitos humanos e da equidade psicossocial. Hoje as coisas estão diferentes. Pudera, lá se vão quase quatro anos de trabalho ético e afetivo, comprometido com a delicadeza e o afeto, tanto dos pacientes e acompanhantes quanto do quadro de profissionais que lá atuam. Sim, porque compreendemos que a dinâmica do hospital é sempre corrida e dura, é precisa levar afeto e leveza, cuidar de quem cuida também está no nosso métier. Hoje somos saudados com sorrisos, enfermeiros que antes tinham cara fechada, hoje cantam conosco, médicas, assistentes sociais misturam-se a maqueiros, acompanhantes e pacientes, todos em uníssono em prol do bem-estar e por uma cultura de afeto e paz. Somos constantemente abraçados, inclusive quando não estamos lá. Recebemos recados de elogios e agradecimentos pelos momentos vividos nos corredores e enfermarias. Isso não tem dinheiro que pague... só gratidão daqui para lá!

O que você faz para voltar a se sentir bem no trabalho?

É preciso estar atento às próprias colunas, digamos assim. Lazer – Espiritualidade – Cuidados em Saúde Mental/ Psicológica. Ou seja, sempre que posso converso com Deus. Além disso, faço acompanhamento psicológico sistemático – para mim algo indispensável – e também faço evangelho semanal, além de ler bastante, compor e tocar violão. A música, a literatura e a arte para mim não é apenas um hobby ou uma ferramenta de atuação na prática de voluntariado, ou de lazer; mas uma possibilidade de expressão e contentamento psicossócio espiritual. Então, eu me sustento na autopoiese que a música, a espiritualidade e psicologia me possibilitam. Isso vale para meu trabalho remunerado, para minha prática de voluntariado no hospital, para minhas relações enfim.

Funciona como que um entrelaçamento: eu me alimento e me inspiro do que alimento e inspiro!

O Hospital muitas vezes se parece com uma Torre de Babel. Tem horas que ninguém se entende. Ninguém se ouve. Ou ouve errado, ou mesmo falamos coisas que não queremos. Isso falando sobre os profissionais e no centro dessa confusão estão os que necessitam de ajuda, o doente. Tem horas que dá vontade de desistir e sair, como eu mencionei na história anterior, e voltar no outro dia e recomeçar até o copo encher mais uma vez e fechar o ciclo. É o cachorro correndo atrás do rabo.

Somos muito parecidos, se você está sentindo um desconforto, sua colega provavelmente estará. O problema é que muitas vezes temos vergonha de expor os sentimentos. Pensamos que é fraqueza e na faculdade não nos ensinaram o que fazer com isso. Só te preparam para agir, pensar, curar, cuidar...dos outros! Mas... e o nosso bem estar? Por anos pensei “’Será que é feio me sentir mal fazendo o que me preparei para fazer?”, e assim me calei por anos. O mais fácil é “vai passar”. Só que não. Uma angústia mal resolvida sai por algum lugar...

FIQUE DESCALÇA E ESCUTE-SE!

A terapia de grupo ou alguma terapia em grupo tem o poder de nos dizer “Ufa, não estou sozinha nisso ai.” Você pode começar trocando ideias com alguma colega que você confie, o pensamento é ter alguém que te entenda e não julgue... e que você possa fazer isso também. Existem várias formas de se ajudar dentro de um setor em saúde. Pense em algo que una as pessoas. Pode ser comida. Você pode instituir um dia por mês para comemorar os aniversariantes daquele mês, caso seja permitido e viável. Pode ser uma oração em conjunto após a passagem de plantão. Uma oração sincera sempre renova nossos ânimos, transforma nossa energia. O que vale mesmo é contar com alguém. Não espere por “chefias” para instituir algo, você pode fazer! Tenha uma ideia, se junte a alguém, comece devagar. A saúde mental é sua.

Quando o grupo Girassol vinha cantar, nós parávamos por minutos, quando digo nós, somos todos, médicas, enfermeiras, técnicas de enfermagem, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais e PACIENTES - para cantarmos juntos nem que fosse uma música. Nesse momento éramos somente seres humanos tentando fazer o seu melhor no mundo. Eu sentia uma paz muito grande e um novo fôlego para continuar, além de conhecer pessoas belíssimas como a Helena e seu grupo.

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