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CAP 1: TERAPIA DE MINUTO: TÁ VALENDO

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TERAPIA DE MINUTO: TÁ VALENDO!

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Ao terminar a minha primeira residência médica em UTI, senti que necessitava de uma complementação. Fiquei na dúvida entre Infectologia e Psiquiatria e acabei optando pela primeira, contudo sem esquecer a segunda. Após um ano de estudo, passei no SUS. Eu estava crente que iria para o Emílio Ribas, hospital mais cobiçado de Infecto em São Paulo, pois sobravam vagas de infecto todos os anos e no meu ano não seria diferente, pensava. Infelizmente, naquele dito ano, choveram inscrições de residentes para infectologia, superlotando as vagas no SUS! Realmente não sei o que aconteceu, por que depois daquele ano, a oferta e procura voltou a dita “normalidade”. No dia da escolha para o hospital quem passou bem, poderia escolher para onde ia, escolheram o Emilio Ribas e logo, logo, acabaram-se as vagas. Os que sobraram (dentre eles eu) poderíamos escolher entre ir para outro hospital (que no meu caso não tinha pensando em plano B) ou voltar para fila, que poderia ser chamado no próximo ano ou mais tarde, caso alguém desistisse do Emilio Ribas. Era uma loteria. Eu já sabia o que fazer. Entre esperar somente mais um ano para entrar no hospital - sonho de qualquer egresso de Infectologia e entrar em outro hospital, já tinha decidido. Quando chegou a minha vez e chamaram meu nome na lista, em questão de segundos, segundos mesmo, pensei “mais um ano” e naquela época eu não era boa de esperar, então me ouvi falando o nome de um hospital que tinha como única referência uma amiga que trabalhava lá: “Hospital Santa Marcelina”. O que???? Não me perguntem o que aconteceu. Até hoje não sei. Só sei que foi uma das melhores escolhas da minha vida. Isso prova que

nem sempre as melhores escolhas têm a ver com raciocínio. Muitas têm a ver com intuição e nessa hora, foi o que falou mais alto. A enfermaria de infecto ficava no 5º andar e como não tinha muitos prédios ao redor no início dos anos 2000, a vista era limpa. E linda. Casas, casinhas, casarões e matas. Além de nós, passavam residentes da clínica médica e alguns da residência multidisciplinar como psicologia, terapia ocupacional, fisioterapia e fonoaudiologia. E a cada mês a enfermaria recebia nova leva de alunos dispostos a aprender como se trata pacientes com AIDS e Tuberculose, dentre outras doenças. Rapidamente se aproximava o final do ano, nós residentes do primeiro ano em questão de dias iriamos passar para o segundo ano e com isso, a responsabilidade de orientar os residentes recém-chegados. Assim era o sistema. Além do cansaço, tínhamos a incerteza que falava ao nosso ouvido “como conseguiremos orientar pessoas quase iguais a nós, ou pelo menos com as mesmas dúvidas?”, “como saberemos se nossa resposta será a certa?” e a mais cruel, “será que seria capaz de além de orientar um residente do primeiro ano, tratar meu próprio paciente?” Na verdade, nós não percebíamos o nosso progresso. A residência médica tem esse nome por que realmente quase residimos no hospital. Vemos pacientes a toda hora e somente paramos para comer e dormir (e ah...ir ao banheiro), e somos supervisionados por médicos mais experientes, mas a responsabilidade pelo desenrolar do paciente é nossa totalmente. Nós vamos atrás dos exames, nós andamos pelos corredores atrás dos medicamentos, falamos com a família angustiada, orientamos na alta... enfim! Mas o curioso, é que ocupados demais em ficarmos vivos, não víamos que pouco a pouco, nos transformávamos em médicos. Minha mãe dizia que a cada mudança de nível de estudo, recebíamos um anjo que nos guiaria naquela função. Eu rezava e acreditava piamente nisso, mas estava angustiada.

Aquele mês de dezembro de 2002 nada ia bem. Parecia que nada andava, ninguém melhorava, quando íamos dar uma alta o paciente piorava sua situação... um mês confuso. Na era pré computador, após a visita às enfermarias, nos reuníamos em torno de uma mesa grande e “canetávamos” (anotávamos) nos prontuários dos pacientes como ele estava naquele dia, passávamos os exames, descrevíamos RXs, etc... Não sei como começou, deve ter sido por mim, pois sempre fui de reclamar bastante e me “abrir” com os colegas sobre as nossas necessidades como seres humanos. Sentada naquela grande mesa, olhando para a vista através da janela (até hoje entro em transe com paisagens), me sentia incapaz de ir adiante. Me sentia vazia e parece que tudo o que fazia era sem sentido. Simplesmente me levantei e disse: “Vou embora”. E fui.

Mas não fui embora para sempre! Foi um leve surto... cheguei cedo no dia seguinte, sentei-me novamente na tal mesa e olhei novamente para a tal vista. Não sabia por que tinha voltado... não sabia por que estava ali... estava sozinha na enfermaria, era um momento somente meu. Minha amiga da clínica também chegou cedo e sentou ali, ao meu lado, sem dizer palavra, olhávamos a mesma paisagem (ela comendo um chocolate já que era viciada). Sem ninguém combinar nada, um a um foram chegando e olhando para fora do hospital através da janela, em um espaço onde estávamos seguros. Passado alguns minutos, alguém começou a desabafar como estava “pesado ser residente”, outro falou sobre “nada que fazia dava certo ou pelo menos era isso que parecia” e outra disse algo como “quero voltar para minha casa “(muitos não eram de São Paulo). Ninguém viu isso como ato de fraqueza, nenhum julgou ao outro.

A insegurança de um, era a insegurança de todos!

A residente da psicologia (bendita seja!) começou um grupo ali mesmo, sem combinação de nada. Era uma situação de emergência, estávamos em frangalhos. Jogados a nossa própria sorte ou pelo menos, assim nos víamos. Ela fez devolutivas fantásticas e depois de uns minutos,

saímos da nossa “roda” bem melhores, encorajados para atender quem precisava de nós. Combinamos de todos os dias chegar uns minutos mais cedo para fazer nossa “Terapia de residentes - breve pré-atendimento” em nossa sala. Falávamos de tudo e de nada em específico. Um sonho, uma piada, uma frustração e é claro, o esporte preferido dos estudantes, falar mal do chefe imediato! Não era preciso dizer “vamos lá, reaja!” ou “que bobagem você é médico”... o suficiente foi a atitude daquela residente que nos acolheu tão bem. Me sentia leve ao conversar com todos e ao receber suas frases interpretativas. Onde quer que ela esteja, torço para que esteja bem e com saúde. No meu aniversário ela me deu um cartão onde, dentre outras coisas, dizia “cuide bem de você para cuidar do próximo”, uma coisa simples que na época não captei a profundidade. O final do ano chegou e estávamos sim preparados para orientar nossos “calouros”, muito se deveu ao nosso grupo. Fizemos até uma camisa comemorativa juntos! No último dia fomos trabalhar com ela, infelizmente não a tenho mais. Esse grupo me ajudou em um momento bem difícil. Não sei dizer se sem ele eu poderia ter desistido ou não da Infecto. Mas com certeza, estaria tomando medicamento para depressão. E, apesar disso, estaria mais triste. Sou grata até hoje por esse grupo sem combinação nenhuma, sem contrato algum e que todos cumpriram as regras de bem-estar com uma espécie de senha secreta. Acho que por isso, por essa experiência boa, sempre gostei de grupos. Sempre tem alguém que vai responder a sua dúvida. Sempre tem alguém pior, ou melhor que você. Alguns anos depois me deparo com outra experiência de grupo, porém diferente da ideia de se reunir para falar, a proposta era cantar...

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