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Maestro João Carlos Martins - Um homem Apaixonado
MAESTRO JOÃO CARLOS MARTINS - UM HOMEM APAIXONADO
Por Fernando de Freitas
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Estamos diante de um homem apaixonado. Pela música e pela vida. Em seus olhos e suas famosas mãos vemos todo amor do maestro e pianista João Carlos Martins. É fácil começar a conversa, ele é didático, mas nunca professoral, trata com carinho as palavras e o entrevistador. Se devemos chamar de música clássica ou erudita? “Pode chamar de clássica!”, ainda que exista uma distinção de conceitos, ele adequa o discurso ao seu público e emenda: “na minha opinião, só existe música boa”.
E, realmente, para ele só existe um tipo de música. Àquela música que não lhe prende a atenção e que, em meses será esquecida, ele não dá atenção. Um homem que dedica sua vida a construir não precisa dedicar um momento de seu talento para algo que não seja sua generosidade.
Não é de se ignorar que um músico que se dedica a gravar toda a obra de Bach seja um homem profundamente religioso. Ele se diz conservador, mas, assim como a distinção entre música clássica ou erudita, não se interessa por esse rótulo. Embora em nenhum momento sua religiosidade seja tema da conversa, ela permeia a sinceridade dos atos de Martins: amor, generosidade e, claro, dedicação.
Martins é, em certa perspectiva, o Jobim que permaneceu no conservatório. Cada qual expressando uma faceta do legado de Villa-Lobos, ora paralelamente, ora se entrecruzando. A relação de ambos com o piano, as idas e vindas de Nova York, o amor pelo Brasil e o reconhecimento no país e no exterior. É impossível não reconhecer as semelhanças.
E Tom é uma de suas paixões. Declaradas. Gravadas em fonograma. O maestro apresenta, junto com a Orquestra Jovem Bachiana, em um álbum assim chamado, Paixões, composições de Bach, Mozart, Schumann, Villa-Lobos, Tom Jobim, Vinicius de Morais e Baden-Powell, encerrando com o Hino Nacional Brasileiro. A capa traz uma imagem de Martins de camiseta, ao piano, provavelmente apresentando ali a faceta intimista de João Carlos, sem deixar de lado toda sua ética de trabalho.
Não se espante o leitor ao encontrar Vinicius em meio ao nome dos compositores: sua contribuição à música vai além das letras, o poeta (e diplomata) era dotado de talento para métrica e ritmo perfeitos, que atraía os grandiosos parceiros que teve. Tinha, ainda, a admiração de João Cabral de Mello Neto, para muitos seu oposto, na verdade outro lado da mesma moeda, com quem trocava poemas e estilos (Retrato à sua maneira e Resposta à Vinicius de Moraes).
De alguma maneira, ao gravar música popular em conjunto com música clássica, em especial nesta conversa ao piano com Tom Jobim, que acontece apenas por meio da execução de suas melodias, Martins navega os mares em que Vinicius e João Cabral lançaram suas naus enquanto poetas e estabelece com Tom uma relação de contraposição e admiração semelhante. Assim como os escritores, todos os compositores de Paixões fluem entre as correntezas do popular e do erudito.
Se de Mozart podemos citar facilmente A Flauta Mágica, de Bach é possível encontrar a cômica Cantata do Café (BWV 211) encomendada pelo dono de uma cafeteria de Leipzig. Schumann mesmo escreveu temas para
serem tocados por crianças (Op. 68) e assim por diante. Os limites entre o erudito e o popular eram permeáveis para os grandes compositores, da mesma forma que Jobim e Baden-Powell, ao lado de Vinicius, beberam dos clássicos para construir a música popular brasileira, cantar Orfeu e o morro. Saber e perceber isso é poder olhar para João Carlos Martins e suas paixões.
UM BRASILEIRO
Entre seus amores, destacam-se o Brasil e seu povo. O Hino Nacional executado na abertura dos Jogos Paralímpicos é a concretização de um trabalho para quem a notoriedade tem a função de construir projetos em favor do seu povo. No sentido literal de prestigiar, ou seja, de emprestar seu prestígio, Martins se envolve com promoção da cultura, e no seu caso, da música clássica, não apenas para seu nicho, mas para atingir e encantar o máximo de pessoas que puder.
O Maestro conduz seu projeto por meio do diálogo. Quando se apresenta comandando a Orquestra Bachiana, o programa principal costuma ser rigorosamente clássico, apresentando os grandes compositores ao público. Ao final, ele inclui o popular – muitas vezes, mais reconhecível – para consagrar a relação que ele propôs no início do concerto.
“A Orquestra [Bachiana Filarmônica SESI-SP] em si, em concertos no interior democratizou de tal forma a música clássica, que alcançou 16 milhões de pessoas ao vivo. Se ela atingiu 16 milhões de pessoas ao vivo, é porque ela atraiu aquele público que, de repente, tinha receio de ir ao Theatro Municipal ou a uma Sala São Paulo, pensando ´lá tem de ir de gravata, lá não tem de ir de gravata?´.
O importante é você manter a tradição e conseguir implantar a inovação. Quando você faz isso, vai manter aquele público de Carneggie Hall e Lincoln Center do mesmo jeito que vai atrair o público da periferia. [...] é a única forma de realizar o sonho
de Villa-Lobos, que dizia ‘não é um público inculto que vai julgar as artes, são as artes que mostram a cultura de um povo.
O que acontece, a Fundação Bachiana, em seus concertos, mostra geralmente os quatro maiores compositores da história: Bach, Mozart, Beethoven e Brahms e, no final, abre para aquilo que aquelas pessoas já tinham ouvido. Então, se eu acabei o concerto e de bis eu faço Trem das Onze, essa todo mundo canta. O resto aquele público, provavelmente, ouviu pela primeira vez – ou não, muitas pessoas estão lá porque gostam de música clássica – mas no momento que elas começam a entender música clássica, o público vai aumentando. E isso se faz quando você transmite emoção do primeiro ao último acorde de um concerto.”
Nesses diálogos entre o que é erudito e popular, Martins vai acumulando parcerias e amizades, transitando entre gêneros e artistas, indistintamente: “para mim só existe música boa”. Ele reconhece nestes artistas a dedicação que ele espera de quem se dedica à música, nos comentários sobre esses parceiros sempre destaca os anos de estudo, seus ouvidos e afinação. Ninguém mais se surpreende ao vê-lo um dia com Frejat, outro com Chitãozinho & Xororó, hoje com Edu Falaschi, amanhã com Sandy.
CENA DE CINEMA
De conversa em conversa, ele encontra quem também entendeu como fazer essas relações que propõe, o cinema. É a música que emociona e apavora, que provoca o riso e o choro. Chaplin, poucos sabem, era o compositor de suas trilhas. Estão na sua lista de suas composições canções como Smile e o tema de Limelight. Já Quincy Jones produziu dezenas de trilhas sonoras depois de ter estudado composição musical e teoria com Nadia Boulanger e Olivier Messiaen. O que dizer, então, dos clássicos produzidos por Nino Rota e Ennio Morricone - quem consegue não se arrepiar com o tema
de O Poderoso Chefão ou não chorar ao ouvir a música de Cinema Paradiso? A orquestra já estava no cinema mudo, foi reapresentada por Walt Disney em Fantasia e onipresente em cada filme, através de canções originais ou adaptadas. O cinema é uma sala de concerto por excelência, sem gravata.
Foi assim que nasceu o espetáculo João Carlos Martins e o Cinema in Concert. Uniu a tecnologia da videocenografia aos grandes clássicos do cinema sob a batuta do maestro. A produção conta com 50 músicos, da Bachiana Filarmônica SESI-SP e da banda Flautin. Várias das canções ganham o reforço das vozes espetaculares do tenor Jean William e da soprano Anna Beatriz Gomes, com objetivo amplificar a emoção da plateia.
É com prazer que ele fala de cada espetáculo, de ter dividido o palco com lendas do jazz como Dave Bruebeck e Ray Charles – que trata com a mesma naturalidade com que comenta sobre o sertanejo Daniel, o cineasta Fernando Meireles ou o fotógrafo Sebastião Salgado.
Provocado por um de seus muitos amigos, decidiu se inscrever no Instagram para publicar seu arquivo de décadas de filmagens e, cerca de um ano depois, contabiliza 73 mil seguidores. Ao contar isso, Martins retira um telefone de flip do bolso, rindo: “mas é claro que para isso eu preciso de ajuda”, com a expressão que só um homem apaixonado pela vida pode ter.