PIERRE CLOSTERMANN
O Grande
Circo
Memรณrias de um piloto de caรงa das Forรงas da Franรงa Livre na RAF
c&R
EDITORIA L
PIERRE CLOSTERMANN
O Grande
Circo
Memórias de um piloto de caça das Forças da França Livre na RAF
São Paulo 2013 1ª edição
O Grande Circo - Memórias de um piloto de caça das Forças da França Livre na RAF Copyright © 2008 by Flammarion - ISBN: 978-20-81216-79-2 Todos os direitos reservados Título original Le Grand Cirque - Mémoires d’un pilote de chasse FFL dans la RAF Capa Ilustração de Mauro J. Godoy Moreira Criação de Victor César Reys Bilbao Supervisão geral & revisão técnica Claudio Lucchesi Cavalca Tradução Mario Miguel Fernandez Escaleira Revisão Cleide Clemilde Costa Diagramação Victor César Reys Bilbao Ilustrações de aeronaves Murilo Martins Impressão Prol Gráfica ISBN 978-85-99719-19-0
Agradecimentos Os realizadores desta edição gostariam de agradecer ao imprescindível auxílio das seguintes pessoas, que colaboraram graciosamente, das mais diversas formas, inclusive na obtenção do material ilustrativo, sem as quais este trabalho não teria sido possível: Flávio Flores da Cunha Bierrenbach, Klaus Bieger, Mauro Godoy, Murilo Martins, RAF Museum (Hendon), Rainer Lehmann e Stuart Haigh.
As fotos publicadas nesta edição vieram de numerosas coleções e arquivos, incluindo a Wikimedia Commons (commons.wikimedia.org). Como diversas imagens foram encontradas em diferentes cópias em distintos arquivos, e com o objetivo de não discriminar amigos e colaboradores numa base puramente quantitativa, não foram citadas fontes individuais.
Todos os direitos desta edição reservados à C&R Editorial Caixa Postal 66021 05314-970 – São Paulo-SP Tel: (11) 3831-2115 www.creditorial.com.br
Prefácio
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1. Por que a França Livre?
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2. Piloto do Grupo “Alsace”
37
3. Destacado para a RAF
97
4. A França
171
5. O Tempest
197
6. Dez anos depois na Argélia
311
7. Cinquenta anos depois
335
Apêndice
343
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como:
Após a guerra, no início de 1946, o chefe dos serviços de pesquisa e identificação da RAF, o Flight Lieutenant109 Noël Archer, veio me visitar em Paris e me disse: – Estou com um problema, mas você pode me ajudar. Encontramos em Midlekerque o corpo de um desconhecido, devolvido pelo mar, em 6 de setembro de 1943. Vestia um uniforme azul-marinho com quatro galões estreitos. Aqui está um botão. – Mas é um francês, já que é um botão da Força Aérea! Em seus bolsos, foram encontrados alguns objetos, deixados com o vereador local, e ele me mostra as fotos. Lívido, reconheci a famosa lapiseira, um isqueiro redondo “vermelho com listras douradas”, que eu havia visto muitas vezes nas mãos de Mouchotte, e seu relógio de pulso, chamado de “oito dias”, à prova d’água, com calendário, marcando a data de 3 de setembro, às 8h17, isto é, provavelmente quando o choque das ondas que deslocaram o corpo contra os rochedos fez o mecanismo parar. Mouchotte, prudente, sempre dava corda duas vezes, ao sincronizar os relógios, durante o briefing. Tudo leva a crer numa queda no Mar do Norte, inexplicavelmente distante, fora dos nossos itinerários de 27 de agosto de 1943: apenas o estudo das correntes, a cronologia dos acontecimentos e o relatório das autoridades belgas e alemãs, feito quando o corpo foi encontrado, intacto, poderiam explicar isso. Ele usava somente seu colete salva-vidas. Havia, portanto, saltado de paraquedas, mas por que tão longe? Provavelmente, vítima de um mal-estar, resultado de seu estado de enorme fadiga, deixou à deriva seu avião, após o combate, por quase 200km, no Mar do Norte, num estado de semiconsciência, e saltou, por reflexo, antes que seu Spitfire, quase sem combustível, caísse. Curiosamente, o relatório médico indicou que não havia água em seus pulmões, o que indica que ele morreu antes que seu corpo ficasse à deriva rumo à Bélgica. Ele escreveu, em 26 de agosto de 1943, no fim de suas anotações, publicadas a pedido de sua mãe, após a guerra: “Os sweeps continuam num ritmo terrível. Sinto um cansaço implacável. Meus nervos estão em frangalhos. Fico ofegante ao menor esforço, tenho uma necessidade gritante de descanso!” Quando um homem com a têmpera de Mouchotte é forçado a escrever tais coisas significa que ele está no limite de suas forças. Que piloto, hoje em dia, aceitaria decolar duas vezes por dia, quase todos os dias, despressurizado, a 10.000 ou 12.000m de altitude, num frio de 50º negativos, num cockpit mal-aquecido, em que a temperatura raramente excede 15 ou 20º centígrados negativos? E tudo isso 50, 100 ou 200 vezes! Foi assim que eu soube qual foi, provavelmente, o fim do Comandante Mouchotte, Companheiro da Libertação. Quantos dos meus camaradas, antes ou depois do fim da guerra, com os pulmões queimados pela absorção de oxigênio puro, com gosto de cobre, que tínhamos que respirar todos os dias, não terminaram seus dias em sanatórios?
109 - Patente da RAF, correspondente na FAB à de capitão.
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Destacado para a RAF o Esquadrão 602 “City of Glasgow”
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28 de setembro de 1943. om um aperto no coração, deixei Biggin Hill e me separei do Esquadrão “Alsace”, com o qual travei minhas primeiras batalhas e onde encontrei camaradas cujo patriotismo e entusiasmo me deixavam orgulhoso de ser francês. Quando a caminhonete que me leva passa pelo corpo da guarda, vejo desaparecer, entre as árvores atrás de mim, a bandeira tricolor com a cruz de Lorraine, tremulando em frente à área de dispersão... Prevenido por Jacques, livrei-me da maior parte das minhas bagagens. Mas, ainda assim, por um hábito meu, estou sobrecarregado de malas, um saco de paraquedas, que parece cheio de chumbo (que peso descomunal, essa trapizonga e o dinghy!), meu cinturão com revólver e porta-cartuchos, meu casaco de pele. Um curioso espetáculo, com meu uniforme francês, para os viajantes que me veem através das janelas do trem, enquanto espero pelo meu. Em Ashford, um caminhão vem me buscar e, alguns minutos depois, faço minha entrada no Airfield 125110. Jacques faz as apresentações. Encontro todo o grupo simpático e internacional de piratas aéreos que compõe o Esquadrão 602 “City of Glasgow”: escoceses, australianos, neozelandeses, canadenses, um belga, dois franceses e alguns ingleses. O major que comanda o grupo – Mike Beightagh – é um irlandês, uma cara rosada de bebê, grande beberrão, bom piloto e bom líder. Os dois flight commanders (comandantes de esquadrilhas) são fenômenos na sua categoria. O da Esquadrilha “A”, sargento, dez meses antes, por sua coragem e ousadia, foi promovido ao posto de capitão em tempo recorde. Forte como um touro, 1,90m de altura, com seu grande riso, Bill Loud comandava a Esquadrilha B. O outro, Max Sutherland, é o típico inglês, produto das high schools111, o bigode eriçado, excampeão de boxe peso pesado da polícia de Londres. Ele deveria ser o meu comandante de esquadrilha. Tipo corajoso, um pouco infantil, humor instável, capaz tanto de teimosias de menina caprichosa quanto dos maiores atos de generosidade. No fundo, um ótimo piloto, experiente e de uma coragem a toda prova. Nomeado mais tarde comandante do 602, Max tornou-se um grande amigo meu. Comparado a Biggin Hill, com todo o seu conforto e seu glamour de primeira base de caça do mundo, o Airfield 125 posava algo como o parente pobre. Mas uma atmosfera de camaradagem, de despreocupação, de viver o dia a dia, tornava irresistível meu novo grupo. Uma das primeiras unidades a serem transferidas para a Tactical Air Force112, o 602 – estrela de primeira grandeza durante a Battle of Britain113 – foi relegado a um papel secundário, nos dois anos seguintes, mas começava a se reerguer, havia alguns meses, sob o estímulo de Beightagh. 110 - Aeródromo 125. 111 - Colégio de ensino médio. 112 - Força Aérea Tática, unidade operativa da RAF. 113 - Batalha da Inglaterra, o épico e decisivo enfrentamento entre a Luftwaffe e a RAF, com a vitória desta última, entre julho e outubro de 1940.
114 - Referência a três tipos de bombardeiros médios americanos, também usados pela RAF, os Martin B-26 Marauder, North American B-25 Mitchell e Douglas A-20 Havoc (ou Boston, na RAF).
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A RAF deveria fornecer esquadrilhas para apoiar a invasão do continente, em estreita cooperação com o Exército. O 602, com uma dezena de outros grupos, havia sido, com esse propósito, submetido a uma intensiva preparação: ataque em voo rasante, metralhagem de tanques, reconhecimento tático, bombardeio em mergulho, etc. Finalmente, estas unidades foram enviadas para os airfields para completar sua formação. Durante quatro meses, os pilotos dormiam em barracas, aprendiam a abastecer seus aviões, a rearmá-los, a camuflá-los, além de defendê-los com uma metralhadora na mão – levando, finalmente, uma verdadeira vida de “comando”, ou melhor, de escoteiro! Operando em pistas semelhantes às que seriam construídas em poucas horas pela engenharia (dois ou três campos, reunidos em uma pista de aterrissagem, através das treliças metálicas aplicadas diretamente ao solo), os esquadrões 602, 132, 122, 65 e outros também participavam da atual ofensiva da RAF. Equipados com Spitfire VD de asas encurtadas, estes esquadrões executavam missões de proteção aproximada para os Maraudeur, os Mitchell e os Boston114... O 602 compartilha o Airfield 125 com outra unidade de Spit, o 132 “City of Bombay” – sob o comando de um velho amigo, o Major Colloredo-Mansfeld –, e um esquadrão de Hurricane antitanque, o 184. Localizada no promontório arenoso de Dungeness, a região não é desagradável, sob o belo sol de um estupendo mês de setembro. Nossas barracas foram erguidas num pomar. Prevalece um ambiente charmoso de piquenique, camping e colônia de férias. Basta estender o braço pela porta da barraca e colher maçãs quase maduras, que o ar puro e a juventude de nossos estômagos suportam. Comemos ao ar livre e, quando chove, num celeiro, com todos os pilotos juntos, de qualquer jeito. Não tenho gamela nem talheres, e uso os de Jacques. Fico, é claro, em sua barraca, que compartilhamos com um belga – Jean Oste – e um inglês absolutamente charmoso, que se tornaria um de meus melhores amigos, Jimmy Kelly. Ele dá gritos furiosos cada vez que começamos a falar em francês. Dormimos em camas de campanha. O grande problema é a iluminação. As velas são muito perigosas por causa do feno que reveste o piso de nossas barracas. Estamos equipados com lampiões, fornecidos pelas lojas da Royal Air Force, que nunca funcionam. Quando temos fósforos, não temos mais pavio. Quando arranjamos um novo pavio (que geralmente surrupiamos da barraca ao lado!), não temos querosene. Quando temos tudo de que precisamos e, finalmente, conseguimos acender a coisa, com grande precaução, geralmente tudo voa pelos ares, o que provoca um galope desenfreado que termina numa batalha com extintores “de espuma”. O major f... com todo o pessoal da tenda e, finalmente, nos despimos à luz de um isqueiro ou das estrelas...
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De manhã, somos acordados por um soldado que traz uma jarra cheia de chá quente e faz uma tamanha gritaria que todos ficam imediatamente em pé, correndo descalços na grama, com a caneca na mão. Em seguida, vamos buscar água com baldes que sempre vazam, fazendo uma toalete que envergonharia até mesmo um gato. Vestimos uma farda imunda, calçamos as botas de voo, amarramos um lenço no pescoço e corremos até a cantina, em busca de ovos com presunto, uma xícara de café e uma fatia de pão redondo, assado na fazenda vizinha... Começa então uma correria desvairada por todo o aeródromo, 12 de nós, precariamente empilhados num jipe, seguindo em alta velocidade pelo campo, pulando valas e vencendo as barreiras... Removemos as redes de camuflagem que cobrem os aviões, aquecemos e verificamos os motores e nos preparamos para o primeiro show do dia... Tal é a vida quotidiana do meu novo grupo. “Clipped, cropped, clapped”, esta é a magnífica descrição concisa do Spitfire VD, de autoria do comediante do grupo, o ilustre Tommy Thommerson. “Clipped” devido às suas asas cortadas. Para aumentar a velocidade e maneabilidade lateral, os engenheiros da Vickers Armstrong reduziram em cerca de 1m a envergadura do Spitfire, removendo as pontas das asas, que completavam tão harmoniosamente a elipse das mesmas. “Cropped” por causa do seu motor Merlin 57. Trata-se tão somente de um Rolls-Royce Merlin 45, com a turbina de compressor com diâmetro reduzido, que permite o aumento da potência abaixo de 1.000m, de 1.200hp a 1.450hp. Com o volume de ar comprimido sendo, no entanto, muito reduzido, a curva de potência cai rapidamente a partir de 2.500m, até o ponto de chegar a apenas cerca de 600hp, numa altitude de 3.500m. Além disso, esses motores artificialmente impulsionados por até 18 boosts de admissão têm uma vida útil muito limitada. “Clapped” – termo que pode ser traduzido literalmente apenas como “bexiguento” – expressa a opinião geral dos pilotos sobre o Spit VD. Na verdade, embora rápidos no voo rasante (560km/h, em voo nivelado, ao nível do mar), tornam-se verdadeiros blocos de chumbo a 3.000m de altitude, onde somos forçados a operar em nossas missões de escolta. As asas quadradas também os fazem perder sua qualidade principal, que é a de virar bruscamente. Temos pouca confiança nesses aparelhos – sentimento de certo modo justificado pelo fato de que todas as células têm cerca de 300 horas e, ainda pior, os motores têm 100 a 150 horas. Não é nem um pouco divertido fazer duas travessias por dia, ida e volta, sobre o Canal da Mancha, num monomotor desse tipo! Finalmente, os canhões dispõem de apenas 60 projéteis cada (contra 145, no Spitfire IX!). Se lembrarmos que, já em 1941 e 1942, os Spit VD eram facilmente superados pelos Focke Wulf 190, pode-se imaginar meu entusiasmo muito relativo quando Sutherland me anunciou que teríamos que fazer ainda cinco ou seis “sweeps no Spit VD” antes de inaugurar nossos magníficos IXb novinhos em folha.
Temida pelos pilotos aliados, a artilharia antiaérea germânica, a flak, era extremamente organizada e combativa. Aqui, a guarnição de uma peça quádrupla de 20mm.
Clostermann em 1938, posando num treinador North American T-6 Texan, no Ryan College do California Institute of Technology.
Em Biggin Hill, posam diante de um Spitfire (da esquerda para a direita): Johnny Cheketts, Jack Charles (comandante do Esquadrão 611), Mouchotte (comandante do Esquadrão 341 “Alsace”), o Group Captain Adolph “Sailor” Malan (comandante da base) e Alan (“Al”) Christopher Deere, wing commander.
Pierre Clostermann no RAF College de Cranwell, diante de um treinador Miles Master, em 1942.
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Os Avi천es de Pierre Clostermann
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I
nclui a íntegra do diário e os manuscritos de 1941/1945, com um conteúdo totalmente inédito, que quase dobra o tamanho do texto original do best-seller de 1948. Uma importante iconografia ilustra esta obra, incluindo ilustrações das aeronaves voadas pelo autor, feitas exclusivamente para esta edição brasileira.
“‘O Grande Circo’ é o único grande livro nascido da guerra de 39/45.” William Faulkner
“Reli este livro. É magnífico o que vocês fizeram pela França. Obrigado por tê-lo escrito de forma tão primorosa.” General Charles de Gaulle.
O
Grande Circo compreende as memórias de Pierre Clostermann coletadas na correspondência enviada aos pais por um jovem piloto das Forças Aéreas Francesas Livres, destacado nas esquadrilhas de caça da Royal Air Force. Jamais a fúria dos duelos aéreos, travados a 600 quilômetros por hora, a agonia nas chamas, a flak antiaérea mortal foram evocadas desta forma. Estes textos escritos no dia a dia colocam o leitor no cockpit de um avião de caça. Vitórias, derrotas, a perda dos companheiros e sangrentas explosões, a monotonia e os alvoreceres, em centenas de manhãs, sempre com a angústia subjacente de se perguntar se esse seria o último dia.
Publicado em todo o mundo, este texto-verdade é também um testemunho profundamente humano acerca das virtudes frequentemente suscitadas pela guerra: medo, coragem, a devida apreciação do adversário, a repulsa pelos horrores dos bombardeios aliados, o valor da amizade, a abnegação. Após a morte de Pierre Clostermann, em 22 de março de 2006, já era chegada a hora de honrar a obra universal de um herói.