Revista DASartes 97

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LYNETTE YIADOM-BOAKYE ARTEMISIA GENTILESCHI JUDY CHICAGO VIVIAN CACCURI KATHARINA GROSSE




DIRETORA Liege Gonzalez Jung CONSELHO EDITORIAL Agnaldo Farias Artur Lescher Guilherme Bueno Marcelo Campos Vanda Klabin EDIÇÃO . NEGÓCIOS André Fabro andre@dasartes.com MÍDIAS SOCIAIS . IMPRENSA dasartes@dasartes.com

A Bounty Left Unpaid, 2011 (detail). © Courtesy of Lynette YiadomBoakye, Corvi-Mora, London and Jack Shainman Gallery, New York.

DESIGNER Moiré Art moire@moire.com.br

Capa: Lynette YiadomBoakye, Light Of The Lit Wick, 2017. © Courtesy of Lynette Yiadom-Boakye, CorviMora, London and Jack Shainman Gallery, New York.

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Contracapa: Artemisia Gentileschi, Self Portrait as Saint Catherine of Alexandria, 1615-17 © The National Gallery, London


KATHARINA GROSSE 10

JUDY CHICAGO 26 8

Agenda

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Alto Falante

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Notas de mercado

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Livros

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Coluna do meio

LYNETTE YIADOMBOAKYE

ARTEMISIA GENTILESHI

VIVIAN CACCURI 80

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Eduardo Srur, Art Saves, Pinheiro's River, 2017. Galeria Kogan Amaro.

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AGEnda

O (não cancelado), evento de arte internacional online acontece nas próximas semanas reunindo 56 galerias brasileiras de 9 cidades diferentes, com obras de 105 artistas. O site contará com obras de artistas selecionados de cada galeria, além de exibir conteúdo ao vivo diário, como transmissões, palestras e visitas guiadas. O programa será alterado semanalmente, variando artistas e galerias, sendo completado ao final de suas semanas de duração. Esta é a primeira feira online de nível internacional realizada no Brasil e conta com o apoio da ABACT – Associação Brasileira de Galerias Contemporâneas. 8

Será em grupos de 25 galerias por semana e cada galeria apresenta um ou dois artistas por semana. Este é um projeto desenvolvido pela agência TREAT, sediada em Viena. Foi inaugurado em abril de 2020 na esteira da pandemia global COVID-19. No Brasil o evento foi iniciativa de Karla Osorio Netto, galerista de Brasília. A galerista participa junto de outros nomes como Zipper Galeria, Galeria Kogan Amaro, Pinakotheke e Simões de Assis Galeria. not cancelled Brasil • Evento online • 10/6 a 8/7/2020 • www.notcancelled.art/brazil



ALTO relevo


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KATHARINA grosse


A PINTURA DE KATHARINA GROSSE PODE APARECER EM QUALQUER LUGAR. SEUS EXTENSOS TRABALHOS SÃO MUNDOS VISUAIS MULTIDIMENSIONAIS NOS QUAIS PAREDES, TETOS, OBJETOS E EDIFÍCIOS E PAISAGENS INTEIROS SÃO COBERTOS COM CORES VIVAS. PARA A EXPOSIÇÃO IT WASN'T US (NÃO FOMOS NÓS), A ARTISTA IRÁ TRANSFORMAR O SALÃO HISTÓRICO DO HAMBURGER BAHNHOF MUSEUM, EM BERLIM, E A ÁREA ATRÁS DO EDIFÍCIO EM UMA AMPLA IMAGEM QUE DESESTABILIZA RADICALMENTE A ORDEM EXISTENTE NO ESPAÇO DO MUSEU

POR NICHOLAS ANDUEZA

COR, RUÍNA E UTOPIA O Staatliche Museen zu Berlin, gigantesca instituição cultural alemã, traria entre abril e outubro a exposição , de Katharina Grosse, com curadoria de Udo Kittelmann e Gabriele Knapstein. As imensas intervenções pictórico-esculturais da artista alemã mudaram a cara da entrada e das redondezas do Hamburger Bahnhof – Museum für Gegenwart (Berlim), um dos museus sob a guarda do Staatliche Museen. Mas, devido à pandemia global do Coronavírus, a exibição foi adiada para junho de 2020. Mesmo com o adiamento, ou melhor, principalmente por ele, é preciso discutir a obra de Katharina Grosse: pois, nos espaços coloridos que cria, o trabalho parece desdobrar promessas de um mundo outro. A artista apresentou várias exposições solo nos últimos anos, entre as instituições que as abrigaram, destacam-se: em 2015, o 12

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Untitled Trumpet, 2015 (56ª Bienal de Veneza). Foto: Lucio Salvatore.

Pág. Anteriores: Mumbling Mud, Underground, 2018. Foto: JJYPHOTO


Wunderbild, 2018 © Katharina Grosse and VG Bild-Kunst, Bonn, 2019 / Courtesy Galerie nächst St. Stephan/Rosemarie Schwarzwälder, Gagosian und König Gallery. Foto: Jens Ziehe

Museum Wiesbaden e, em 2018, a National Gallery de Praga, a Villa Medici (Roma), a Carriageworks (Sydney) e o Chi K11 Art Museum (Xangai). Também teve trabalhos exibidos em bienais e trienais: Sydney (1998), São Paulo (2002), Nova Orleans (2008), Curitiba (2013), Veneza (2015) e Aarhus (2017). Sem falar nas diversas intervenções em exteriores, encomendadas por instituições como o MoMA PS1, em Nova York (2016). Katharina Grosse se firma cada vez mais como artista de influência – e o faz principalmente através da cor. Em um curta metragem feito pela Art21, a artista aponta como, ao longo de uma história da arte escrita por homens, a cor tendeu a ser lida como um elemento obscuro e irracional da pintura, como seu lado menos inteligente quando confrontado com o da linha, da forma ou do conceito. Esse foi um dos problemas enfrentados por alguém como Monet, por exemplo, cuja força da cor e da pincelada se firmava no deslimite, no esfacelamento dos contornos. Grosse aponta que é justamente o caráter anárquico da cor que constitui sua inteligência: ao botar abaixo as linhas e, com elas, as fronteiras da visão, a cor nos faz (re)pensar. E um pensamento leva a outro: “como a cor ou a tinta se colocam sobre a tela?”, pergunta Grosse, em entrevista. Mais ainda: “por que pinturas seguem as paredes pré-estabelecidas? (...) Poderia a pintura se comportar diferentemente em determinados espaços?”. Se, desde a Renascença, a superfície bidimensional da 14


I Think This Is a Pine Tree, 2013, Ausstellungsansicht “Wall Works“, Hamburger Bahnhof, 2013 © Staatliche Museen zu Berlin, Nationalgalerie / Thomas Bruns, © VG Bild-Kunst, Bonn 2019

tela é o espaço da pintura, fazendo desta uma tentativa de janela para o mundo (no regime representativo), Katharina Grosse inverte os termos: quer transformar o espaço, feito de lugares e coisas, na tela da pintura – precipitando o próprio mundo como janela (para si mesmo e para além de si). “Percebi que a pintura poderia estar em qualquer lugar. Poderia estar em um . Ela é fluida como o filme”, conta Grosse. Interessante como a descoberta da artista traça um paralelo com os (1915) do jovem Tatlin, que também enfrentava limitações espaciais, da pintura (parede) à escultura (chão). O “canto” dá nome a um entrelugar: ao vértice que resulta da interseção dos espaços. É o que vemos em (2018), onde Grosse projeta um corredor de telas gigantescas que superam as paredes e se espraiam pelo chão; ou em (2013), onde ela monta e colore três grandes troncos de árvore apoiados em ângulo do chão à parede. Contudo, se o construtivismo de Tatlin se concentrava em relevos, formas e materiais, Grosse, influenciada pelo expressionismo abstrato, acrescenta um foco também na cor (e no tamanho!). Palco de uma dança entre pigmentos, volumes, contravolumes e pontos de apoio, o “canto” é, ao mesmo tempo, a morada fixa das pinturas topográficas de Grosse e o vácuo dinâmico por onde elas se : (não) expandem. Ou seja, com precisão etimológica, o “canto”, aqui, é 15


One floor up more highly, 2010. Instalação no MASS MoCA, North Adams, Massachusetts, 2010-2012. Foto: Arthur Evans.



+ (lugar), segundo a criação de Morus. É uma antitopologia móvel, por onde navegam as obras de Grosse, entre apoio e suspensão, material e fictício. Outro dado primordial dessas obras é a escala. Vistas de longe, por foto, mostram-se impactantes: são imensidões de cor e relevo que tornam pequeninos os visitantes. No entanto, presencialmente, o tamanho das obras nos convida a (2018), adentrá-las. Em por exemplo, a tela, presa desde o teto, escorre pelas paredes e forma o próprio (1990), de chão por onde deve pisar o visitante. Difícil não se lembrar dos Akira Kurosawa, que, em dado momento do filme, mostram um espectador literalmente entrando nos quadros de Van Gogh, perdendo-se por entre as pinceladas. , envolvido pelo que vê (e pisa), o espectador se põe no Em epicentro de um dilúvio pictórico. A tela se desfralda desde o teto em relevos sinuosos, cujos meandros enfatizam não só o dinamismo da cor, mas também sua fluidez sem forma. Assim, a transposição da fronteira do traço nos lança para dentro de ondas, correntezas e escorrimentos, ou para dentro de florestas, ecossistemas

The Horse Trotted Another Couple of Metres, Then It Stopped, 2018 © Katharina Grosse and VG Bild-Kunst, Bonn, 2019. Foto: Zan Wimberley.

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psycholustro – The Warehouse, 2014, Philadelphia, Courtesy König Galerie, Berlin. Foto: Steve Weinik. Acima: Rockaway, 2016, New York. Courtesy MoMA PS1. Foto: Pablo Enriquez. © Katharina Grosse und VG Bild-Kunst, Bonn, 2019.

pictóricos. Em Grosse, a junção do pigmento com a escala nos evidencia a própria escala da cor: seus próprios ritmos, energias e intensidades, seus modos de ser e de pensar. São questões abarcadas desde o processo da artista, que, ao pintar manualmente com aerossol industrial, garante movimentos ágeis, fluidos e sem contornos muito definidos. Grosse diz preferir a mobilidade do pensamento à fixidez de ideias categóricas. Influenciada, segundo ela mesma, pela arte conceitual e equipada com sua pistola de tinta, a artista colore como pensa: movendo-se. Ela fala de seu encanto pelas cores “cruas”, também garantidas pelo pigmento industrial, que é opaco e intenso. Por isso, aliás, seus emaranhados de cores não são exatamente misturas, mas composições: como na música, construída por intervalos melódicos ao longo do tempo, em Grosse, assistimos a intervalos pictóricos ao longo dos relevos. Mas ainda é preciso citar outro elemento: a materialidade das coisas e dos lugares que servem de suporte. Já vimos as três árvores, e podemos acrescentar: (2018), onde terra e escombros formam o meio para a dispersão pictórica de Grosse; ou, mais dramaticamente, (2017), (2014) e (2016), três obras irmãs, 19


Asphalt Air and Hair, 2017, ARoS Triennial THE GARDEN, Dänemark © Katharina Grosse und VG Bild-Kunst, Bonn, 2019. Foto: Nic Tenwiggenhorn.


“ ”

realizadas em exteriores. Como escreve Julia Eckert para o catálogo da , ao transpassar exposição fronteiras com a cor, Katharina Grosse estabelece novas correlações, contudo, “o que estava lá antes não desaparece, mas permanece visível como um vestígio de algo pretérito, agora despido de sentido”. Ou seja, os “cantos” de Grosse, tanto no sentido das quinas de apoio, quanto no da composição melódica das cores, florescem a partir de . São espaços e coisas que visivelmente estão aí, mas claramente já deixaram de ser. A artista diz que “é como se alguma coisa tivesse acontecido”, como se um evento dramático tivesse transformado a paisagem em um momento em que ninguém estava presente. Testemunhamos os restos de uma inflexão, de uma dobra do mundo sobre si mesmo que o fez explodir em cor. 21




Como resultado, formam-se novos territórios, “cantos” que agora nem parede têm, são como raros oásis pictóricos. Em Grosse, as viabilizam essas da . Cruzamentos paradoxais de tempos e espaços fundados pelo derramamento da tela sobre o mundo. São pinturas topográficas, que não abandonam só a bidimensionalidade das paredes, mas também a noção fronteiriça de moldura e, como escreve Julia Eckert, põem abaixo os maniqueísmos dentro-fora, natural-artificial.

Acima e páginas anteriores: One floor up more highly, 2010. Instalação no MASS MoCA, North Adams, Massachusetts, 2010-2012. Foto: Arthur Evans. 24


Em tempos de pandemia, repensar os espaços se torna vital. Hoje as ruas se esvaziam: parecem ruínas, projetadas à luz de um passado não pandêmico. Os lares, por sua vez, surgem como ilhas utópicas: os últimos lugares onde as máscaras ainda não são obrigatórias. Talvez as cores expansivas de Katharina Grosse, ao devassarem certas fronteiras, sussurrem-nos que repensar os espaços é também ressonhá-los. pandêmico. Os lares, por sua vez, surgem como ilhas utópicas: os últimos lugares

Nicholas Andueza é doutorando bolsista em Comunicação e Cultura na UFRJ, é professor de cinema em cursos em Nova Friburgo e trabalha como editor.

KATHARINA GROSSE: IT WASN’T US • STAATLICHE MUSEEN ZU BERLIN • ALEMANHA • 14/6/20 A 20/01/21


DEStaque

JUDY Through The flower 2, 1973. © Judy Chicago


chicago ,


On Fire at 80. © Judy Chicago


POR DRIKA DE OLIVEIRA

Devido à atual pandemia de Covid-19, o De Young Museum (São Francisco – Califórnia) adiou o evento , ainda sem nova data. A exposição, organizada por Claudia Schmuckli, celebra a primeira retrospectiva da artista norte-americana Judy Chicago, trazendo ao público obras produzidas desde o início de sua carreira, nos anos 1960, até seu trabalho mais recente. Considerada uma artista feminista pioneira, Chicago teria sua obra apresentada em conjunto com o 100º aniversário do direito de voto das mulheres nos Estados Unidos. A exposição trará cerca de 150 pinturas, além de esculturas, performances, gravuras, entre outros. também vai expor materiais de arquivo, sinalizando o papel de Chicago não só como artista, mas também como educadora. Para a abertura da retrospectiva, Judy Chicago pretende criar uma performance com fumaça colorida, técnica que já usou em mais de 40 projetos, desde 1968. O primeiro deles é a série (1968-1974),

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trabalho colaborativo de performances em protesto à cena artística daquele momento, quase inteiramente dominada por homens. Com a fumaça, Judy Chicago faz uma espécie de intervenção fluida no espaço, abraçando-o com uma densidade colorida que, no entanto, é leve como o ar. Ela retoma a atenção às cores das obras minimalistas que produziu em 1965, na importante exposição , no Jewish Museum (Nova York). Na ocasião, contudo, das 51 obras expostas, apenas três eram de artistas mulheres. Assim, na contramão desse sistema, a fumaça de Judy Chicago implode as formas fixas, como em um impulso dinâmico de libertação da própria arte. Chicago publicou 14 livros, a maioria sobre suas próprias obras. Como educadora, criou o primeiro programa feminista de educação e arte na CalArts (California Institute of the Arts), nos anos 1970. Pouco depois, cofundou o Feminist Studio Workshop e o Woman’s Building. Em constante movimento, Judy sempre buscou sua própria autonomia, dentro e fora da arte. Nascida Judith Sylvia Cohen, em 1939, em Chicago, a artista de origem judaica decidiu mudar seu sobrenome aos 31 anos. Ela abdicou dos nomes do pai e do marido e passou a se chamar Judy Chicago. Em referência à mudança, publicou uma foto usando luvas de boxe: mudar o nome é também mudar a própria história. É a partir de 1973 que Judy Chicago começou a compor obras mais explicitamente feministas, muito embora a própria existência de seu trabalho na história da arte já represente, em si, um ato feminista. (1972-73) e 30


À esquerda: Smoke Bodies, 1972. Abaixo: Peeling Back, 1974. © Judy Chicago

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À esquerda: Entryway Banner #2. Abaixo: Boadaceia plate from The Dinner Party, 1974-79. © Judy Chicago

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(1973) são as suas primeiras obras a abordar a sexualidade e o corpo femininos. Alguns anos depois, a artista (1979), hoje uma de suas obras fez a instalação mais celebradas, mas que, à época, segundo a própria artista, foi bastante criticada por ser acessível a um público mais amplo. No entanto, Judy estava à frente das críticas. é composta por diferentes camadas: 1) os , com desenhos que lembram o interior do corpo humano e , anunciando o recorte mencionam frases como feminista; 2) a imensa , em forma de triângulo equilátero, na qual Judy dedica 39 lugares a mulheres , mosaico de mais importantes na história; 3) o de dois mil azulejos feitos à mão, citando os nomes de 999 mulheres, entre artistas, ativistas e escritoras; 4) os , que elucidam quem são essas mulheres; e 5) os , onde são citados colaboradores da obra. é uma instalação-monumento: ela resgata e celebra a memória coletiva das mulheres. Na mesa triangular, cada um dos 39 lugares tem um prato, um cálice (ambos de cerâmica) e um guardanapo bordado com fios de ouro. A maioria desses pratos tem vulvas pintadas com cores e formatos que se relacionam à obra de cada artista homenageada. Ao usar bordado e cerâmica, Judy opta por técnicas de artesanato, historicamente lidas como “menores” perante a arte, além de estarem associadas a tradições femininas. A obra foi vista por mais de um milhão de pessoas, em seis países, e hoje está em exposição permanente no Elizabeth A. Sackler Center for Feminist Art, do Brooklyn Museum. A obra recebeu um apoio expressivo do público e assim Judy fundou a Through the Flower (1977), organização sem fins lucrativos voltada para a educação de mulheres. Das deusas da pré-história à era das revoluções, a instalação é considerada a primeira grande obra feminista épica. Segundo a artista, ela contaria uma história simbólica da mulher no Ocidente.

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Rainbow Pickett, 1965. © Judy Chicago


À esquerda: Menstruation Bathroom e Cock and cunt play, 1972. À direita: Birth Tear, 1982 e Earth Bird, 1983. © Judy Chicago

Antes de , Chicago já havia participado daquela que foi considerada a primeira exposição feminista pública de arte nos EUA: (1972). Em uma mansão abandonada, um grupo de mulheres capitaneado por Judy Chicago e Miriam Schapiro se organizou para conceber um espaço artístico de troca entre mulheres. O caráter subversivo de fica evidente não só nas instalações e performances resultantes, mas desde o processo: mulheres que se organizam coletivamente para limpar, pintar, levantar paredes e fazer reparos. O espaço funcionou por apenas um mês e ainda assim recebeu cerca de dez mil visitantes. Constituída por espaços como (Judy Chicago), (Susan Frazier) e (Shawnee Wollen), a casa-instalação foi citada em 2019 pela revista como uma das 25 obras que definem a arte contemporânea. Entre as performances apresentadas em , está , de Judy Chicago. Trata-se do diálogo de dois personagens, 36


interpretados por atrizes vestidas com roupas pretas e exibindo grandes genitálias de tecido – um pênis e uma vagina. Em dado momento, o corpo com vagina questiona: “por que você não lava a louça?”, e o corpo com pênis responde: “porque eu tenho um pau!”. A “peça” lembra o que faz a personagem Pomme no filme , de Agnès Varda, também da década de 1970: apresentações feministas itinerantes que são, ao mesmo tempo, didáticas e sutis – como o trabalho de Chicago. No início da década de 1980, Judy Chicago abordou as múltiplas complexidades do nascimento em . Junto a mais de cem mulheres bordadeiras, compôs obras como (1983), tapeçaria de mais de três metros de comprimento que expressa, no corpo da mulher, a matéria viva do mundo. Do fundo escuro da obra, o corpo pulsa e faz nascer a luz. Mas essa imagem gloriosa se contrapõe a encontro entre a dor e a potência do corpo feminino, expressas no parir. 37


Acima: Logo from the Holocaust Project, 1992. © Judy Chicago and Donald Woodman. À direita: Crippled by the Need to Control/Blind Individuality, 1983 © Judy Chicago

A partir de 1985, Judy Chicago se voltou para o Holocausto. , criado junto com seu marido, Donald Woodman, indica a masculinidade tóxica como causa direta da destruição humana, ideia que a artista aborda mais explicitamente em (1982-1987). Perto de completar 81 anos, Judy mantém sua arte viva e atenta. são pinturas sobre o impacto humano no meio ambiente e, assim como no projeto sobre o Holocausto, Chicago sinaliza a destruição da natureza como a autodestruição humana. Em já era possível observar um ponto-chave para pensar o trabalho de Judy Chicago: a memória como salvação da arte produzida por mulheres. Pelo caminho do arquivo, do registro de contribuições feitas por mulheres na história da arte, a artista parece fixar no tempo sua própria obra. Na urgência de resgatar as 38


Skull, 1983. © Gerhard Richter 2019 (08102019)

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I.G., 1993. © Gerhard Richter 2019 (08102019).

Purple Poem for Miami , 2019. Fireworks performance commissioned by ICA, Miami © Judy Chicago.



Smothered from The End: A Meditation on Death and Extinction, 2015. © Judy Chicago/Artists Rights Society (ARS), New York; Photo © Donald Woodman/ARS, NY.

histórias apagadas pela subvalorização das mulheres, a artista lançou, em outubro de 2019, um portal com a maior parte de sua obra digitalizada, que pode ser acessada em www.judychicago.com. Além disso, depositou obras e materiais de arquivo em quatro instituições diferentes, onde também estão acessíveis para pesquisa. Esta matéria não é uma tentativa de dar conta da vasta trajetória de Judy Chicago. É, na verdade, o esforço de indicar algumas obras para que, por meio dessa artista, olhemos também para as histórias de outras mulheres.

Drika de Oliveira é fotógrafa e atua também como preservadora audiovisual na Cinemateca do MAMRio. Graduada em Comunicação Social-Cinema pela PUC-Rio. Membra da ABPA (Associação Brasileira de Preservação Audiovisual).

JUDY CHICAGO: A RETROSPECTIVE • DE YOUNG MUSEUM • SÃO FRANCISCO • EUA • EM BREVE 42


Acima: How Will I Die, #8 e # 9, from The End: A Meditation on Death and Extinction, 2015. © Judy Chicago/Artists Rights Society (ARS), New York; Photo © Donald Woodman/ARS, NY.

Black Mesa Landscape, New Mexico / Out Back of Marie's II, 1930. © 2016 Georgia O'Keeffe Museum/ DACS, London.


Condor and the Mole, 2011. Courtesy of Lynette Yiadom-Boakye.

CApa


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LYNETTE yiadom-boakye


AS FIGURAS NAS PINTURAS DE LYNETTE YIADOMBOAKYE NÃO SÃO PESSOAS REAIS - ELA AS CRIA A PARTIR DE IMAGENS ENCONTRADAS E DE SUA PRÓPRIA IMAGINAÇÃO. FAMILIARES E MISTERIOSAS, ELAS CONVIDAM OS ESPECTADORES A PROJETAR SUAS PRÓPRIAS INTERPRETAÇÕES E LEVANTAR QUESTÕES IMPORTANTES DE IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO. LYNETTE É UMA PINTORA E ESCRITORA BRITÂNICA ACLAMADA POR SEUS RETRATOS ENIGMÁTICOS DE PESSOAS FICTÍCIAS E QUE MUITAS VEZES SÃO PINTADOS DE FORMA ESPONTÂNEA E INSTINTIVA QUE PARECEM EXISTIR FORA DE UM TEMPO OU LOCAL ESPECÍFICO

POR ALECSANDRA MATIAS DE OLIVEIRA .” (William Shakespeare)

De origem ganesa, Lynette Yiadom-Boakye (Londres, 1977) tem recebido bastante atenção de críticos e especialistas no cenário internacional. Ganhadora do Prêmio Geração Futura, da Fundação Pinchuk (2012), selecionada para o Prêmio Turner (2013), agraciada com o Prêmio Carnegie (2018), e destaque do Pavilhão de Gana, na 58ª Bienal de Veneza (2019), a moça não para por aí: além de artista, é também escritora. Procurados por colecionadores, seus trabalhos estão em diversas galerias e museus, tais como a Tate, a V&A e a Serpentine. E, agora, ela prepara sua megaexposição , na Tate Britain. Essa mostra reunirá cerca de 80 pinturas e trabalhos em papel, de 2003 até os dias atuais, na mais extensa pesquisa da artista até hoje – promessa dos curadores da Tate. Com essa trajetória brilhante, a “pergunta de um milhão de libras esterlinas” é: o que há de inovador na produção de Yiadom-Brokye? A resposta pode não ser tão linear e exige a análise de diversas camadas do seu discurso estético. Quem aceitar este desafio, deve vir "trabalhado na observação" e buscar comigo por referências, especialmente em suas pinturas. 46


Citrine by the Ounce, 2014 © Courtesy of Lynette Yiadom-Boakye.


Complication, 2013. © Courtesy of Lynette Yiadom-Boakye.

À primeira vista d’olhos, a artista apresenta figuras ficcionais e atemporais com um elenco predominantemente negro. Em entrevistas, a pintora se refere aos personagens dela como “sugestões de pessoas”. Eles não existem. Estão em outro lugar. Não têm marcas históricas. Eximem-se de narrativas. Os personagens de (2013), por exemplo, são criados pela imaginação da artista. Nas pinturas, Yiadom-Brokye se apropria de um dos gêneros mais célebres da arte: o retrato (do italiano ). Na história da arte, o retrato é a representação da imagem de uma pessoa. Traduz de modo penetrante o mundo que se oculta atrás de cada rosto, o seu mistério, por vezes, a sua angústia e os traços de sua existência – seria o “espelho da alma”. Nesse sentido, seus retratos estão sob a égide dessa normatização da arte ocidental. A escolha dela pelo figurativo acentua a descrição da forma humana, dos elementos da natureza e os objetos criados pelo homem. E, alinhado aos costumes do fazer artístico, o emprego da tinta óleo – a técnica mais tradicional nas artes visuais, disseminada no século 15, por meio dos trabalhos dos irmãos Van Eyck –, é 48


A Passion Like No Other 2012. © Courtesy of Lynette Yiadom-Boakye.

completamente dominado pela artista britânica. A paleta escura e os fundos soturnos característicos de seus trabalhos contribuem para a natureza atemporal dos seus retratos, transmitindo a sensação de quietude e melancolia. Outra convergência entre o repertório de Yiadom-Brokye e a tradição da arte ocidental é a melancolia. Os chamados “herdeiros de saturno” (Dürer, Cervantes, Shakespeare, Wateau, entre outros) transformam o humor e o mal-estar em alegoria e metáfora. Esses artistas confirmam uma “estética da melancolia”, que passa pelo ideário medieval (como um pecado capital), adentra o Renascimento (às vezes como doença; outras vezes como traço de genialidade – retomando as ideias aristotélicas), ressurge no Barroco (como o medo inexorável frente à morte), no rococó (transforma-se na “doce melancolia”) e, finalmente, torna-se a base primordial do Romantismo. A referência à “estética da melancolia” surge em trabalhos, tais como, r (2012) e (2014), que trazem de volta à arte contemporânea essa metáfora cara à tradição ocidental. 49



Yiadom-Brokye não renega sua formação artística: frequentou a Faculdade de Arte e Design Central Saint Martins, a Faculdade de Artes Talmouth e a Escola da Academia Real. Ela admite as influências de Édouard Manet, Diego Velásquez e Edgard Degas em seu “fazer artístico”. Destaque-se Degas e Manet no desejo de retenção da luz e do movimento através das pinceladas soltas e rápidas. A aproximação está também na postura dos indivíduos criados por Yiadom-Brokye.

O personagem de (2018) nos encara com o olhar direto e inquisidor – o mesmo que encontramos em (1863), de Manet. Diferentemente dos seus amigos impressionistas Monet, Renoir e Pisarro, Degas não saía pelos campos com cavaletes e lonas em armação portátil. Ele trabalhava com o desenho de memória, retratando figuras e animais, especialmente o corpo humano de uma forma ousada e libertadora. Nossa artista não usa modelos, seus personagens fictícios estão em sua imaginação. Como não ver as reminiscências das “bailarinas de Degas” em (2011)?

Tie the Temptress to the Trojan 2018. © Courtesy of Lynette Yiadom-Boakye. 51


Ever The Women Watchful, 2017. © Courtesy of Lynette Yiadom-Boakye and Jack Shainman Gallery, New York.

A photo guide to Rankyo 1927–35.


Repose III, 2017. © Courtesy Lynette Yiadom-Boakye and Jack Shainman Gallery, New York. Popular musicofscores 1928-32


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Kobayakawa Kiyoshi, Rouge, no: 6 1936.


No Need of Speech 2018 Foto: Bryan Conley À esquerda: To Improvise a Mountain, 2018. Foto: Marcus Leith © Courtesy of Lynette Yiadom-Boakye

Até aqui fincamos alicerces nas fontes e nas referências de Yiadom-Brokye e se percebe sua adequação à tradição da arte ocidental (confesso, foi uma pequena maldade minha). Agora, apresento-lhes a desconfiança quanto a uma possível traição: os títulos enigmáticos das pinturas. Sempre reticente, a artista não explica totalmente os nomes dados às obras. Os títulos dessas pinturas não as identificam; eles são paralelos às imagens e, assim como as figuras retratadas escolheram não descrever ou explicar. Observe o título (2018) e (2018) – irradiam contenção e serenidade, mas não descrevem a cena que temos diante dos olhos. Eles são como índice de uma coleção de contos modernos. Não esqueça que nossa artista também é escritora. Seus contos e poemas, geralmente, estão em seus catálogos. Porém, chama a atenção o subtítulo de sua retrospectiva, – algo como “voar em aliança com a noite”, uma aliança no sentido de “conspiração com a noite” – vista como a metáfora para os mistérios, o desconhecido, as coisas obscuras; que não são claras e evidentes. Porém, a reviravolta na pintura de Yiadom-Brokye está no registro dos rostos das mulheres e homens negros. Em termos gerais, a tradição europeia sempre forneceu à pele branca o papel de protagonista. Nossa artista trai essa tradição, quando seus retratos trazem personagens negros sem exotismo, servilismo ou coisificados. Eles são tipos humanos plenos de dignidade; centrais na pintura, eles têm alma (atributo visto como imanente à vida, ao pensamento, ao afeto e à sensibilidade). Notem que todo o repertório da história da arte ocidental é reexaminado por essa postura da artista. Ela subverte por dentro! Traz o novo, usando as tradicionais 55


regras da arte. Toda a continuidade reforça o contemporâneo. Nesse ponto, caberia a questão: ela usa inversamente as mesmas armas de Picasso, Matisse e Braque, quando “descobriram” a expressividade, a clareza estrutural e simplicidade técnica da arte africana? Em outras palavras, ela legitima sua pintura por meio da tradição ocidental para romper e ressurgir com o “novo”? Nos diversos depoimentos concedidos pela artista, ela não coloca a questão da representação do negro como um ato político. Em particular, na entrevista para la nos diz: “as pessoas são tentadas a politizar o Ulrich Obrist, no fato de eu pintar figuras negras, e a complexidade disso é uma parte essencial do trabalho. Mas meu ponto de partida é sempre a linguagem da pintura em si e como isso se relaciona com o assunto”. Em outra entrevista, ela insiste: “uma cor, uma composição, um gesto, uma direção específica da luz. Meus pontos de partida são geralmente formais”. Intrigam as respostas de Yiadom-Boakye? Talvez, mas pensemos: se a artista está explorando o território da individualidade negra ter como “bandeira política” a centralidade do negro na arte ocidental, tão somente reproduziria o cânone branco – isso banalizaria sua pintura. Para os negros, a individualidade negra sempre existiu. Para os brancos, isso é uma questão (não para os negros!). Para a artista, seus personagens fictícios são negros porque representam seu universo – eles também podem ser vistos como personagens literários. São estudos de caráter de pessoas que não existem. A tela se converte em texto; a figura, o protagonista.

À direita: In Lieu Of Keen Virtue (2017). Abaixo: Cream Taste, 2013. © Courtesy of Lynette Yiadom-Boakye and Jack Shainman Gallery, New York.

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Giant, 2016. Pirelli Hangar Biccoca, Milรฃo, Itรกlia. Foto: Sha Ribeiro.

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Mercy Over Matter, 2017. © Courtesy of Lynette Yiadom-Boakye and Jack Shainman Gallery, New York.


Of All The Seasons, 2017. © Courtesy of Lynette Yiadom-Boakye and Jack Shainman Gallery, New York.


A Cage For The Love, 2017. À direita: The Hours Behind You, 2011. © Courtesy of Lynette Yiadom-Boakye and Jack Shainman Gallery, New York.


Nessa prática romancista, a artista deixa espaço à interpretação do público. Ela admite que esteja preocupada mais com a pintura e menos com o assunto. Surge, assim, o conhecido e falso embate existente entre artista e público, ou, ainda, o desequilíbrio entre forma e conteúdo. Insistir no domínio de um ou outro é ação que regressa de tempos em tempos e, de modo geral, tem o efeito colateral de revitalizar a prática artística da época, reprimindo o que se torna familiar demais ou defendendo o novo ou o anteriormente ignorado. Depois disso tudo, o que lhe parece? À primeira vista, a leitura das pinturas de Lynette Yiadom-Boakye parece tranquila, mas as camadas de interpretações, os índices e as referências trazem a intensidade do contemporâneo – um tempo que não rompe com tradições, mas as subvertem; que se preocupa com a forma, mas é sempre perseguido pelo conteúdo; que nega (ou coloca) o político em segundo plano, mas que não pode descartá-lo. Assim, segue o “espelho da alma” do artista mostrando os dilemas e as contradições do nosso tempo.

Alecsandra Matias de Oliveira é doutora em Artes Visuais (ECA USP), membro da Associação Brasileira de Crítica de Arte (ABCA).

LYNETTE YIADOM-BOAKYE • FLY IN LEAGUE WITH THE NIGHT • TATE BRITAIN • REINO UNIDO • 20/5 A 31/8/2020 61


FLASHback


Mary Magdalene in Ecstasy, 1620-25 © Photo: Dominique Provost Art Photography - Bruges.

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ARTEMISIA gentileschi


ARTEMISIA GENTILESCHI FOI UMA DAS MAIORES PINTORAS DO PERÍODO CONHECIDO COMO BARROCO ITALIANO. NASCIDA NA ÚLTIMA DÉCADA DO SÉCULO 16, EM ROMA, ELA SE INSERIU E ATUOU NO MUNDO DA PRODUÇÃO ARTÍSTICA, AINDA QUE A CONJUNTURA HISTÓRICA DA ÉPOCA DIFICULTASSE ÀS MULHERES O ACESSO À CULTURA LETRADA, ÀS TÉCNICAS E AO CONHECIMENTO EM GERAL

Artemisia construiu e representou, em especial, o feminino em sua produção pictórica, e as últimas exposições realizadas na Europa têm buscado valorizar a dimensão sua obra e sua relevância para a história da arte e da pintura. Análises mais recentes da vida e da obra de Artemisia Gentileschi têm procurado repensar associações que apresentaram a pintora como seguidora do pai, discípula de Caravaggio, ou artista que se vingou de seu algoz por meio de composições visuais em que figuras femininas tiravam a vida de seus inimigos, a exemplo das diferentes versões de Judite degolando Holofernes e Jael cravando uma estaca na têmpora de Sisara. Ao realizarmos pesquisa bibliográfica, notamos um importante rastro a respeito da trajetória da pintora, que decidimos perseguir, tanto pela curiosidade de saber mais sobre a artista e sua obra, como pela sensação de que a dimensão de sua atuação na pintura era, muitas vezes, reduzida ou minimizada. É importante lembrar que, para as mulheres, a identidade de gênero parece prevalecer sobre suas identidades profissionais e, no caso de Artemisia, episódios específicos de sua trajetória biográfica foram diretamente associados à sua obra pictórica. Nesse sentido, problematizar as relações entre a vida e a obra da artista foi o que nos permitiu conhecer algumas facetas da identidade de “Artemisia pintora”.

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Judith and her Maidservant, 1623-5. © The Detroit Institute of Arts.

POR CRISTINE TEDESCO



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Corisca and the Satyr, about 1635-7 © Photo courtesy of the owner.

A análise das fontes escritas a partir de pesquisas em arquivos históricos italianos nos possibilitou perceber os embates de gênero que ela enfrentou ao atuar em espaços majoritariamente masculinos, os da criação artística. Artemisia se confrontou, por exemplo, com as dúvidas que gerava em seus mecenas sobre a qualidade de suas composições, antes que esses vissem as obras dela, e com pagamentos que, segundo o entendimento da artista, desvalorizavam sua trajetória como pintora. Também circunscreve o conjunto de fontes escritas, as violências e relações abusivas que Artemisia vivenciou. Por outro lado, as mesmas fontes revelaram como a pintora negociou com os limites de seu tempo, tencionando as fronteiras de gênero vigentes na primeira metade do século 17. A experiência de análise da maioria das obras produzidas por Artemisia, já identificadas, em museus, galerias, coleções particulares e exposições visitadas na Europa, e o confronto com as fontes escritas, criou condições para que pudéssemos conhecer outras perspectivas sobre a pintora, para além da lente da violência, muitas vezes utilizada como chave de leitura para explicar sua obra. Investigar a trajetória profissional de Artemisia na pintura nos permitiu conhecer uma artista inserida no contexto das cortes da península italiana e da Europa, tendo desenvolvido uma produção à altura das exigências de alguns dos mais importantes líderes políticos e colecionadores de sua época. Acreditamos que um dos elementos que triunfa na obra de Artemisia é o corpo feminino. Suas produções visuais apresentam corpos femininos evidenciados por meio de recursos técnicos os quais resultam da trajetória de uma artista que, contrariando certos limites para uma 65


Jael and Sisera, 1620 © Szépmüvészeti Múzeum / Museum of Fine Arts, Budapest (75.11).



Susannah and the Elders, 1610 © Kunstsammlungen Graf von Schönborn, Pommersfelden (inv. 191).

pintora, teve acesso ao conhecimento disponível em seu tempo no que se refere às artes. Além de ter seu próprio corpo como modelo, Artemisia também desenvolveu estudos de anatomia, perspectiva e claro-escuro, como revelaram tanto as correspondências enviadas a alguns de seus mecenas, como os próprios resultados alcançados em suas composições. A obra de Artemisia demonstrou que a artista não teve acesso ao nu masculino. Por outro lado, driblando e negociando com as restrições da época no que se refere às temáticas representadas nas produções das artistas, os corpos femininos desnudados são muito frequentes na obra da pintora. Essa produção, em muito resultante dos usos do próprio corpo como modelo, colaborou para tornar Artemisia uma especialista em figuras humanas femininas ora ornamentadas com as roupagens mais sofisticadas daquela época, ora despidas e representadas com ênfase em seus aspectos mundanos. Nesse sentido, a análise das correspondências de Artemisia nos permitem afirmar que foi uma pintora que valorizava suas próprias criações e invenções, ao mesmo tempo em que esteve em constante diálogo com os artistas de seu tempo. Soube apreender o conhecimento que lhe foi disponibilizado no ateliê do pai, no contato com obras de pintores como Caravaggio, na Academia de Desenho de Florença, na qual se discutiam diferentes áreas do saber e onde conheceu autores humanistas, na interação com artistas como Cristofano Allori, no contato com a produção escultórica de Michelangelo e da Roma antiga, no provável acesso à produção de Tintoretto, em Veneza. Suas aprimoradas representações do feminino em sua anatomia e indumentária são, acima de tudo, imagens que resultam de um bem sucedido pensar sobre a pintura. Além disso, as correspondências de Artemisia também revelaram que a pintora conhecia as fontes literárias mais utilizadas para fundamentar as representações imagéticas, autores como Ovídio, Petrarca, Ariosto, Poliziano e Ripa. 70


Acima: Young Woman Sewing, 1655 e The Account Keeper, 1656. © St. Louis Art Museum.


Self Portrait as the Allegory of Painting (La Pittura), about 1638-9 Royal Collection Trust © Her Majesty Queen Elizabeth II 2019.

São legados da obra de Artemisia Gentileschi para a história da arte e da pintura imagens de diferentes facetas do feminino que, ora são representações de figuras rebeldes – como , de 1610; fortes e imponentes – como as suas versões de Judite; majestosas – como Clio, Santa Catarina e Minerva; introspectivas – como Madalena; ora representações que minimizam a dimensão do sagrado das personagens inserindo-as em cenas do cotidiano – como na ; ou figuras que dialogam com as discussões científicas em voga na época – como a e ; ora são figuras que apelam à intervenção divina – como a , de 1622; representações que servem à contemplação dos corpos femininos – como Cleópatra e Danae; composições visuais que colaboraram para apresentar a pintura como uma atividade do intelecto, como ; ou seja, obras produzidas a partir de uma preocupação em agradar os diferentes grupos que consumiam suas obras e revelam o profundo entendimento sobre os usos das imagens nessa época. Tais representações têm em comum, sobretudo, a potência do corpo em sua anatomia. Atravessadas por réstias de luz, inseridas em cenas teatrais de fundos escuros ou vistas em perspectiva, em cenários externos ou ambientes internos, quase sempre em primeiro plano, regendo armas ou em fuga, são imagens que testemunham a excelência da pintora em retratar as diferentes facetas do feminino. 72


Colaboraram para inserir a obra de Artemisia nas discussões sobre a arte e a pintura em voga em seu tempo os diferentes autorretratos da artista feitos ao longo de sua trajetória. Imagens que revelam construções de si como pintora e estudiosa da figura humana inserida em espaços onde circulavam figuras da nobreza, do clero e colecionadores. Os autorretratos de Artemisia são composições que evidenciam certa preocupação da artista em construir uma imagem de si mesma como pintora, questão presente também em suas correspondências, nas quais exaltava sua fama internacional como estratégia para valorizar suas criações. Além de apresentar a si mesma como pintora, os autorretratos de Artemisia também se inserem nos debates que consideravam a pintura uma atividade intelectual e faziam referências aos textos que fundamentavam essa concepção, a exemplo de Cesare Ripa. A análise das obras também contribuiu para evidenciar as assinaturas de Artemisia em suas composições. Em muitas obras, a pintora optou por assinaturas inseridas em objetos que faziam parte do cenário representado, escolha que remete às lições apreendidas com outros artistas de sua época. Para além de executar as técnicas com as quais teve contato nas diferentes regiões da península italiana, o conjunto da obra de Artemisia, quando confrontado com obras de outros artistas, também revelou a adesão de pintores como Onofrio Palumbo e Bernardo Cavallino ao método da pintora de representar figuras femininas em posições imponentes e, principalmente, à prática de criar sofisticadas indumentárias nas roupagens das figuras.

Cleopatra, 1633-5. © Private Collection / Photo Giorgio Benni.



Danaë,1612. © Saint Louis Art Museum.


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Nesse sentido, as trocas de conhecimento e o legado de Artemisia aos artistas junto aos quais atuou, principalmente em Nápoles, é uma das questões que pensamos investigar em trabalhos futuros de pesquisa. O uso da técnica do raio x, que já vem sendo utilizada por diferentes instituições da Europa e dos Estados Unidos, tem contribuído para ampliar o conjunto da obra de Artemisia, tendo em vista que sua autoria vem sendo identificada em obras atribuídas a outros artistas ou em obras de autoria até então desconhecida. Assim, permanece em aberto tanto a obra pictórica da artista como seus desenhos e croquis que podem estar em museus, galerias e acervos particulares. A atuação de Artemisia na pintura não se limitou aos temas mais comuns às artistas, natureza morta e retratos, chegou aos gêneros da tradição veterotestamentária, da mitologia, da história, às figuras humanas em movimento e aos nus. Além de ter deixado um importante legado acerca das representações do feminino, a pintora construiu um espaço de atuação para o feminino e para si mesma, um processo contínuo que se deu no interior de relações e tensões de gênero, em um lugar de perpétuas disputas. Nesse sentido, seguindo o fio de um destino pessoal, analisamos a atuação de uma artista que pintou temas históricos, mitológicos, e religiosos, inclusive para locais de culto, ora em confronto com os limites de seu tempo no que se refere às composições produzidas pelas artistas da mesma época, ora em diálogo com os métodos pictóricos de sua época, usando espelhos, explorando jogos de luzes e sombras, profundidade, efeitos cromáticos e outras técnicas em voga no período.

David and Bathsheba, 1636-7 © Columbus Museum of Art.

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Após a morte de Artemisia, provavelmente em Nápoles, entre 1654 e 1656, as aquisições de suas obras foram noticiadas em inventários, testamentos e coleções de diferentes regiões da península italiana. As principais cidades que comercializaram suas obras, ao longo dos séculos 17 e 18, foram Veneza, Gênova, Florença, Nápoles, Roma e Parma. Acreditamos que o período de atuação de Artemisia em Londres, entre 1638 e 1640, também pode render novas pesquisas, tendo em vista que provavelmente tenham sido registrados pagamentos referentes a obras feitas pela artista a pedido da corte da família real inglesa. Tendo em vista que o autorretrato de Artemisia foi produzido para ser inserido na coleção de autorretratos dos artistas mais admirados pelo rei Carlos I, é possível que tal admiração possa ter motivados outras encomendas. As relações entre a vida e a obra e a proximidade da pintora com intelectuais de seu tempo sinalizam novas páginas para a pesquisa que não se findam com a grata experiência da tese de doutorado, defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 2018, publicada em livro no corrente ano de 2020. Intitulado , (veja na sessão Livros na pág. 94) o livro apresenta estudos sobre a pintora, além de outras artistas da mesma época que são muito pouco conhecidas tanto na acadêmica como entre o público que frequenta museus.

Cristine Tedesco é doutora em História pelo Programa de Pós-graduação em História da UFRGS. Desenvolve estudos sobre o protagonismo feminino nas artes no período entre os séculos 16 e 17, na península italiana. Investiga e analisa, em especial, a vida e a obra da pintora Artemisia Gentileschi (1593-1654). Atua como professora de História da Arte.

ARTEMISIA GENTILESCHI: ARTEMISIA • NATIONAL GALLERY • REINO UNIDO • EM BREVE


Judith beheading Holofernes, 1612-13 Š Photo Luciano Romano / Museo e Real Bosco di Capodimonte 2016.


REFLexo

VIVIAN


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caccuri

Mosquito Shrine II. @ ICA Miami.


VIVIAN CACCURI CRIA OBJETOS, INSTALAÇÕES E PERFORMANCES QUE BUSCAM REFORMULAR A EXPERIÊNCIA COTIDIANA E, POR EXTENSÃO, PERTURBAM AS NARRATIVAS TRADICIONAIS. EM SEU TRABALHO, A CONQUISTA DA NATUREZA NO OCIDENTE ASSUME FORMAS ESTRANHAS. A INSTALAÇÃO MOSQUITO SHRINE PT. 2, A SER ABERTA NO INSTITUITO DE ARTE CONTEMPORÂNEA DE MIAMI, É O RESULTADO DA PESQUISA DA ARTISTA SOBRE DEPOIMENTOS E REGISTROS DO SÉCULO 18, DETALHANDO HISTÓRIAS DE DOENÇAS NO HEMISFÉRIO OCIDENTAL COM A CHEGADA DE COLONOS EUROPEUS AO “NOVO MUNDO”

POR VIVIAN CACCURI

TRANSPLANTE DA ALMA “Neste trabalho, relaciono o som do mosquito com um som de um órgão de igreja. Foi feito em outra residência, em um conservatório no Norte da Suécia e lá eu tive acesso a um dos maiores órgãos da Escandinávia. Eu compus uma peça para o órgão me baseando nas flautas de pífano – que são flautas folclóricas brasileiras. Eu me fundamentei nessas harmonias para combinar e conversar com o som do mosquito. É um contraste muito grande porque tem o som do órgão, que é essa coisa grandiosa e institucional que parece querer nos levar para outro lugar como se fosse uma nave, um veículo. E no outro ponto está o som do mosquito, que é o oposto do belo, e o considero feio. E o mosquito é essa coisa pequena que está sempre próximo do nosso corpo e nos lembrando da nossa mortalidade. Assim, eles estão em extremos opostos. O órgão quer nos levar para uma espécie de vida eterna e o mosquito acabar com ela. Essa instalação de grande porte foi comissionada e exibida no Röda Sten, Studio Acusticum e Norbotten Resurscentrum för Konst e tinha o tempo de 35 minutos sincronizando com movimentos de cor e luz com uma espécie de programação de luzes de teatro dentro de uma grande galeria.”


Transplante de alma, 2019. SuĂŠcia. Foto: Hendrik Zeitler / RĂśda Sten.


Sesmaria Soundsystem, 2019. Galeria A Gentil Carioca.

SESMARIA SOUNDSYSTEM

“Dentro dessa mesma pesquisa que eu fiz para o trabalho do órgão, acabei chegando à História do Brasil. E a história está intimamente ligada às plantações de açúcar. Os mosquitos cruzaram o Atlântico com os navios negreiros e se reproduziram de forma totalmente descontrolada nas plantações de açúcar. Era um problema que juntava desfloramento com plantação de açúcar onde naturalmente tinham muitas poças de água, inundação e açúcar. O açúcar é o alimento do mosquito macho, enquanto as fêmeas se alimentam de sangue. Então achei muito interessante pensar que essa vontade pelo açúcar, essa sensação que o açúcar nos traz, acabou gerando uma mudança ambiental tão gigantesca a ponto de termos uma população tão enorme que é quase irreversível, 84


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quase impossível chegar ao ponto onde estávamos antes daquilo. Neste trabalho, há seis caixas de som feitas de rapadura maciça, eu e meus assistentes derretemos aproximadamente entre 100 a 200 quilos de rapadura e ela serviu de gabinete para ser uma caixa de som. Eu instalei o alto-falante e toda fiação e circuito de uma caixa de som dentro dessa caixa maciça de rapadura. foi exposta na minha exposição , na galeria A Gentil Carioca, no Rio de Janeiro, e essas caixas de som tocam uma composição eletrônica feita por mim que mistura sons reais de mosquito processados e transformados em som de folhagens de plantação de açúcar.” 85


“Este foi um trabalho comissionado para Bienal de Kochi-Muziris em Kerala, na Índia. Nele, eu penso em uma espécie de mito, um lugar e um momento fictício onde o ser humano e os mosquitos se encontraram e o que acontece a partir disso. Eu ocupo uma sala com uma tela de mosquito bordada com desenhos que eu fiz e com um feito de concreto (bem parecido com o de rapadura) e uma escultura feita de lâmpadas que atraem mosquito dentro da sala. É uma luz azul que tem uma frequência que atrai esses mosquitos. Nesse , fiz uma composição que usa frequências próximas das frequências das fêmeas, sendo um atrativo para mosquitos machos. Isso inclusive realmente pode acontecer com um alto-falante, que atrai o próprio mosquito se ele está imitando o som das fêmeas. Nessa rede de mosquitos bordada, que se chama – cujo desenvolvimento será mostrado no IAC Miami –, eu mostro o encontro dos 86


Santuário do Mosquito, Índia. Foto: Kochi-Muziris Biennale, 2018.

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SANTUÁRIO DO MOSQUITO

mosquitos com os homens por meio da agricultura. Tem uma menção gráfica à agricultura no meio dessa tela e os mosquitos estão todos se reproduzindo de um lado da tela e de outro lado eu ocupo com figuras humanas totalmente diversas, cada uma com seus formatos, suas expressões, suas cores, pensando que os mosquitos também interferiram nessa evolução natural do homem. Por exemplo, a malária selecionou vários traços genéticos que populações inteiras têm, então eles são uma espécie de do ser humano, junto com outras coisas. Dentro desse desenho, há uma proposta desse encontro de espécies – mosquito e ser humano – e também essa mudança que acontece em termos de forma no nosso corpo, devido a esse encontro, e, dentro dessas mudanças, podemos pensar em muitas coisas que fazemos hoje e têm a ver com isso. Especialmente como a natureza interfere nas nossas formas de ser e estar e nas expressões do nosso corpo.” 87


Mosquito also cry. FRIEZE LIVE London, UK, 2018.

MOSQUITO ALSO CRY é uma performance que desenvolvi na residência Delfina Foundation, em Londres. Eu tentei explicar por que as pessoas odeiam tanto o som do mosquito. É muito interessante porque tentei buscar significados tanto culturais quanto teóricos do campo da música e da psicanálise. Era uma performance de mais ou menos 40 minutos na qual eu usava vídeo e exemplos musicais e também um que eu mesma programei para simular o som do mosquito para tentar colocar hipóteses do porquê esse som ser tão universalmente odiado. Assim, cheguei a algumas conclusões. Tudo é um pouco não ciência, uma ciência . E é fascinante esse choque de conhecimentos que acontecem dentro dessa performance, como por exemplo a psicanálise, que encontra a teoria musical e encontra também razões biológicas e evolutivas desse barulho do mosquito. No final, o resultado é bem engraçado.” 88


VIVIAN CACCURI: MOSQUITO SHRINE PT. 2 • INSTITUTO DE ARTE CONTEMPORÂNEA • MIAMI • 1/5 A 19/7/2020


GARlimpo

ALTO falante

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POR ALEXANDRE SÁ

AQUILO QUE NÃO SE VÊ PARA OXÓSSI

” Merlin Sheldrake “Nós tínhamos raízes que cresciam na direção do outro sob o solo e, quando todas as flores bonitas caíram dos nossos galhos, descobrimos que éramos apenas uma árvore, e não duas” Louis de Bernièrres Um dos pensadores mais relevantes desse tempo de agora é indiscutivelmente Ailton Krenak. Pensador aqui despido de qualquer conceito prévio. Pensador como aquele que retoma o óbvio e o natural da natureza e nos ajuda a não esquecer que ainda há um inevitável descompasso entre as relações que fomos estabelecendo com a terra, com o espaço, com o tempo, com os animais e, inclusive, com nós mesmos; considerando que nós é, também, tudo que está à nossa volta. Macro e micro. Visível e invisível. Pensamento produzido como exercício do viver, aproximado fielmente das estruturas que foram sendo construídas ao longo de sua vida e de suas lutas políticas, no sentido mais lato possível. Sua urgência se dá sem desconsiderar que há de fato uma sabedoria cotidiana que não se acochambra unicamente na vida íntima e pessoal e sabe da responsabilidade pública para qual propostas puramente domésticas seriam, além de injustas, esvaziadas. Falar de si para além da armadilha de falar unicamente de si. Os povos indígenas, cada vez mais destituídos de suas terras, sucateados e massacrados por um processo perverso de higienização, falsamente erigido através de um ideal obtuso de cultura que mascara o escancaramento, agora já inquestionável, do processo neoliberal e de devastação de nossas raízes, além da autorização escusa para venda e cessão do território e da devastação das riquezas do solo, sempre souberam de maneira muito simples, e nada autorreferenciada, que a natureza é viva. E há um universo cotidiano, coletivo, ecossistêmico de relações, vozes, murmúrios, movimentos, rezas, agradecimentos, chegadas e despedidas que nós, da forma que nos construímos, somos incapazes de ouvir. Veja que aqui o verbo que uso é ouvir. É exatamente isto. Um exercício de ouvir. De auscultar. Exercício que fomos perdendo ao longo do tempo de maneira potencialmente desgraçada. Gradativamente. Do parto aos dias de hoje. O candomblé e as religiões de matrizes africanas também são originalmente nutridos por esse desejo: reencontrar pontes que foram perdidas ao longo do processo. Reestabelecer vínculos colocados em falência pelo cotidiano em suas temporalidades ansiosas e em seus horrores produtivistas. Restaurar as ligações energéticas com uma força-tronco que é originária e, de 90


acordo com o autotrabalho e o cuidado de si investidos ao longo da vida, é capaz de reinventar seus caminhos. A isso chamamos de Odu, que é, antes de qualquer coisa, o exercício cotidiano do conhecimento através do desconhecimento. Mistério que também se liquefaz em som. Do mundo. E das coisas. E de um tempo-abismo conjugado entre passado e futuro. O estranho-público nesse caso, é termos sido obrigados a atravessar tamanha devastação para que consigamos relembrar que somos fragilíssimos e talvez tenhamos sucumbido à ingenuidade torpe de acreditar que poderíamos ser outra coisa que não apenas passagem, instante e átimo diante de uma universalidade muito maior e essa, sim, completamente mitológica e onipotente, repleta de particularidades, diferenças e diálogo. O real precisou se apresentar, então, mais uma vez, como retorno do óbvio recalcado. Se ao longo dos últimos tempos houve um exercício coletivo consentido de silenciar as minorias, sejam elas quais forem, o que ainda ressurge como esperança é que a escala física das coisas é extremamente relativa se mergulhada em um exercício de comparação quântica. , há um belíssimo artigo de Robert Macfarlane sobre aquilo Na edição de maio da revista que acontece nos subterrâneos da floresta. Ou de outra forma, sobre o conjunto de “in-ações” possíveis e dificilmente detectadas por baixo da submata pelos fungos. Para além da dificuldade de apreensão de sua fisicalidade, o artigo endossa a nossa deficiência de abordá-los através de uma linguagem essa, ocidental e, talvez já, em relação fúngica, parasitária. Ao abordar tais relações, o autor busca iluminar as hifas, filamentos inter-relacionais que estruturam uma comunicação infinita e inacessível, a nós, humanos, entre os seres da floresta. Se Gilles Deleuze já havia discutido a interconexão entre as raízes dos tubérculos como rizoma, e Nicollas Bourriaud, a mesma interconexão em movimento como radicante, a ideia de hifa nos traz outro elemento fundamental para pensarmos a contemporaneidade e delinearmos algum tipo de aposta. A hifa é, além de infrafina, capaz de fraturar as relações de tempo e espaço. Mais que isso, é ela que agencia uma transmissão de nutrientes e energias entre seus agentes e regula a vida na floresta de forma plural e completamente transversal. Aqui, não se trata de conexões, mas de simbiose, sexo, troca de fluidos proporcionada pelo desejo natural de sobrevivência coletiva de forma indistinta. Para além de uma ingênua abordagem de alguns textos científicos que insistem em dicotomizar tal devir-floresta entre uma luta por sobrevivência das espécies e uma distribuição socialista de nutrientes, o que me interessa como proposta-hifa é a sua invisibilidade silenciosa escapável diante dos olhos-cegos e ouvidos-moucos. É a sua “inescapabilidade”, substantivo nada abstrato, que urge inexistente em nossa língua como fantasma e fratura. É a substânciareLOVução inominável da associação entre um grupo específico e ampliado de existências que diante do risco da morte, sobrevive como murmúrio, mesmo que abaixo do solo do visível. Apesar de você.

Alexandre Sá é artista-pesquisador. Atual diretor do Instituto de Artes da UERJ. Pós-doutor em Filosofia pelo PPGF/UFRJ. Pós-doutor em Estudos Contemporâneos das Artes pela UFF e Doutor em Artes Visuais pela EBAUFRJ. E-mail: alexandresabarretto@gmail.com 91


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GARlimpo

NOTAS do mercado

CHRISTIE’S anuncia obras de pesospesados do mercado, como Philip Guston, Jean-Michel Basquiat e Amoako Boafo, para liderar uma venda de Arte do Pósguerra e Contemporânea, programada para ocorrer em Nova York em 10 de julho. (1973), uma peça icônica do final da carreira do artista Philip Guston deve custar entre US$ 1,5 milhão a US$ 2 milhões.

O leiloeiro ROBERTO DE MAGALHÃES GOUVÊA realiza em 25 de maio, o , que passeia pela produção brasileira e internacional no século 20. As vendas, organizadas pelo editor e bibliófilo Manoel Lauand, oferece 65 lotes, entre revistas, livros, catálogos, objetos de decoração, mobiliário e obras de arte relacionadas à produção artística e arquitetônica de brasileiros e estrangeiros ao longo do século 20.

SOTHEBY’S levará preciosas obras de arte latino-americana para leilões, com trabalhos de Frida Kahlo e Fernando Botero e outros. O leilão acontecerá durante a semana de 29 de junho em Nova York. compreende 35 lotes a serem oferecidos nas noites de vendas Contemporâneas e Impressionistas. No total, estima-se que essas obras faturem mais de US$ 22 milhões.


KAWS é um artista multifacetado que abrange os mundos da arte e do design em seu prolífico corpo de trabalho, que varia de pinturas, murais e esculturas em larga escala a design de produtos e fabricação de brinquedos. A Artnet Auctions apresenta um conjunto completo de 10 impressões da série de KAWS, lançado em 2019 junto da exposição individual do artista na Galeria Nacional de Victoria, em Melbourne, na Austrália. Os lances em uma, duas ou todas essas impressões vigorosas e coloridas podem ser feitas até 10 de junho e variam entre US$ 6 a 8 mil.

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LIVros

Este livro reúne estudos de mestrado e doutorado sobre a pintora Artemisia Gentileschi e outras artistas do Renascimento e Barroco. Apresenta os resultados de uma década de trabalho científico e importantes contribuições para a História das mulheres e das artes. As pesquisas foram realizadas pela Drª e Profª Cristine Tedesco em arquivos históricos, museus e outras instituições de memória da Itália, em especial de Roma, Florença, Veneza e Nápoles. ARTEMISIA GENTILESCHI: TRAJETÓRIA BIOGRÁFICA E REPRESENTAÇÕES DO FEMININO • Textos de Cristine Tedesco • Editora Oikos • R$ 35,00 • 318 páginas

Este livro examina contextos culturais e estereótipos, com exemplos visuais do mundo todo, e demonstra que as ferramentas de comunicação nunca são neutras, incentivando seus usuários a repensar sua visão da cultura global. Obras adicionais de artistas e designers contemporâneos mostram que a consciência política não limita a criatividade, mas abre novos caminhos para explorar uma cultura visual crítica. LEDA CATUNDA: TEMPO CIRCULAR • Textos: Paulo Miyada e Fernanda Brenner • Editora Cobogó • R$ 130,00 • 256 páginas

Suturas reúne obras criadas durante quatro anos pelo artista Gilvan Barreto, incluindo fotografias, colagens de fotos e desenhos que sugerem rupturas e tentativas de reconstrução. Corpos, imagens e memórias são remontados e reunidos por costura manual. SUTURAS • Gilvan Barreto • Edição de autor • R$ 60,00 • 68 páginas.

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COLUNA do meio

Maneco Muller, Esposa e Paulo Sérgio Duarte

Lygia Clark Vale das Videiras Petrópolis

Fotos: Denise Andrade

Maria Clara Mattos, Walter Carvalho, Carolyna Aguiar e Bel Kutner

Claudio Tozzi e Ricardo Camargo

Nuno Souza, Alessandra Clark e Stella Ramos

Carolyna Aguiar

Coleção de artista Ricardo Camargo São Paulo

Ricardo Camargo, Mayara Reple e Fabio Porchat

Fotos: Sônia Balady

Guilherme Werneck, Ricardo Camargo e Antonio Carlos Tuneu

Patricia Lee e Ricardo Camargo

Corrado Varolli, Bianca Boeckel, Levindo e Dorinha Santos

Gilberto Tenor e Bruno Pellizzario

Katia Wille Museu de Arte Sacra de São Paulo

Bianca Boeckel e Katia Wille

Vanderli Domingues, Alice Oliveira e Sonia Medeiros


Lançada em 2008, a Dasartes é a primeira revista de artes visuais do Brasil desde os anos 1990. Em 2015, passou a ser digital, disponível mensalmente para tablets e celulares no site dasartes.com.br, o portal de artes visuais mais visitado do Brasil. Para ficar por dentro do mundo da arte, siga a Dasartes.

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