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EDITORIAL

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ÓCIOS

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Osenhor… Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando.” Riobaldo, de Grande sertão: veredas, já conhecia esta verdade: que a vida é uma travessia, e que, portanto, nunca é igual, se desembrulha em constante mudança - ora afina ora desafina. A meio caminho da vida, Dante, em A divina comédia, também realizou sua travessia. Precisou parar tudo o que estava fazendo, pois encontrava-se perdido, e transcorreu um percurso terrível para encontrar a iluminação. Vivenciou o inferno e o purgatório antes de encontrar o caminho para o paraíso. Eis a razão também para que Uma temporada no inferno, de Arthur Rimbaud, seja anterior ao livro Iluminações. A metáfora da travessia é bem conhecida, mas merece ser sempre lembrada. Ela pode nos fazer acordar para observar a paisagem e também nos fazer querer mudar os rumos, recordando que, uma vez travessia, a vida também são veredas. Acordar para observar a paisagem é desalienar o pensamento; querer mudar o caminho é desalienar a práxis. Os dois lados necessários para equilibrar a equação de sabermos onde nossos pés “ tocam e por onde nossa cabeça anda, para parafrasear o professor Benjamin Abdala Junior. A paisagem, de fato, não é animadora: a pandemia do coronavírus parou o mundo; a inépcia dos governos em tratar da doença e suas consequências nos deixa pasmos; o uso político da pandemia e a vantagem aos mercados ao custo de vidas são desumanos e acentuam as formas de mistanásia presentes na sociedade; as políticas neoliberais, que podem ser acirradas agora, já têm aumentado as desigualdades e levado a economia do país à ruína; discursos e práticas fascistas se acentuam pelo Brasil e pelo mundo, criando um cenário de medo constante; o obscurantismo religioso se sobrepondo aos saberes historicamente construídos pela ciência e influenciando políticas de governo que se dizem a-ideológicas confundem os mais vulneráveis; o negacionismo e a mentira enublam fatos para a manutenção de uma consciência política predatória; a invenção abjeta de um passado idílico, em cuja violência estaria a resposta para todos os nossos problemas, tem alimentado a consciência de “pessoas de bem” - tudo isso e mais, criando a sensação de crise constante como se não houvesse saída, são alguns dos elementos que compõem o cenário. No entanto, se ficarmos cegos pelo claro do nosso tempo, ou seja, pela sensação de presente sem fim que nega o passado e perde a noção de futuro, não seremos capazes de repensar nossa prática cotidiana. É preciso estar atento ao escuro do tempo que a luz também produz. Em A peste, de Albert Camus, o narrador nos conta como uma cidade foi devastada por uma peste proveniente de uma infestação de ratos. No início, ele relata que, em Orã, “nossos concidadãos trabalham muito, mas apenas para enriquecer”. Em seguida, adverte: “mas há cidades e países em que as pessoas, de vez em quando, suspeitam que exista algo mais.” Já que o mundo todo parou por conta de um inimigo invisível que colapsou o sistema econômico, colocando em xeque a aparentemente sólida estrutura social em que vivíamos, não seria prudente nos perguntarmos se não existe algo mais além de nossa infinda competição por lucro? Não seria sábio de nossa parte suspeitar que há vida para além de nossas atitudes individualistas, hedonistas, narcisistas, enfim, egoístas? Não seria o momento de nos perguntarmos “por que agimos assim, afinal”? “‘Por quê?’, como a intuição infantil, é uma pergunta que, implicitamente, sempre situa nosso objetivo além do horizonte”, assevera Alberto Manguel, em Uma história

natural da curiosidade. Vale lembrar que, de repente, um vírus nos alertou que vivemos em comunidade… E olhar além do horizonte, nesse momento, pressupõe um olhar coletivo, presume que nos perguntemos por que continuamos a nos destruir uns aos outros e a arruinar o meio ambiente em nome de um modo de vida devastador. Apenas assim novos horizontes podem ser possíveis. É necessário repensar o modo como temos vivido, para que não fiquemos submersos e paralisados diante dessa crise de convicções. É necessário, pois, que não nos atentemos apenas aos nossos umbigos e que nossas ações não sejam apenas o bater em panelas nas janelas de nossas casas bem aquecidas. “Somente uma maneira de pensar direcionada para a mudança do mundo, que municia com informação esse desejo de mudança, diz respeito a um futuro que não é feito de constrangimento (futuro como o espaço de surgimento inconcluso diante de nós) e a um passado que não é feito de encantamento. Por isso é decisivo que apenas o saber como teoria-práxis consciente diz respeito ao que está em devir e que, por isso mesmo, é passível de decisão”, diz Ernst Bloch, em O princípio esperança. O saber, o desejo e a resolução de mudança são decisivos para nos imbuirmos numa perspectiva mais comunitária e cooperativa de mundo, em que o mercado e seus interesses não solapem nossas vidas. Os tempos são de mudança - e nós mudamos junto. Mas as mudanças podem ser para melhor ou pior. Se a paisagem da travessia atual parece terrível, é urgente que nos alimentemos de saber e de esperança, para tomarmos a decisão certa em favor do coletivo. Para que mudemos cooperativamente. Para que nos enchendo de “por que”, possamos nos encher também de um projeto de futuro mais solidário. Para contribuir em tais reflexões, Desassossegos preparou um volume bastante crítico. Em entrevista, o professor Benjamin Abdala Junior, da Universidade de São Paulo, aborda a necessidade de criatividade e comunitarismo para pensarmos novos rumos. Nádia Souki, professora da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia de Belo Horizonte-MG, discute a banalidade do mal e aborda as ideias da filósofa Hannah Arendt. O escritor Paulo Venturelli trata sobre o livro Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, e reflete a atualidade da obra, tema abordado também por Ana Luiza Oliveira, estudante do Instituto Federal do Paraná - Campus Pinhais, que articula Huxley a Malthus e Darwin. Fernando de Sá Moreira, professor da Universidade Federal Fluminense, nos apresenta Anton Wilhelm Amo, filósofo negro em plena Europa do século XVIII. Desigualdade e planejamento em Curitiba são o tema de Adriana Rita Tremarin, professora da rede particular na capital. José Aparicio da Silva, professor do Instituto Federal do Paraná - Campus Pinhais, aborda a vida e obra de um dos maiores artistas brasileiros, José Mojica Marins. Professores da Universidade Estadual de Ponta Grossa, Joseli Maria Silva e Marcio Jose Ornat debatem a relação entre corpo e identidade. Para fechar o volume, o escritor Luiz Ruffato, em conto inédito, traz a história de um jovem humilde que tem a vida transformada pela leitura. Contribuem com ilustrações neste volume o quadrinista capixaba Estevão Ribeiro e a estudante Ana Káthia Silva dos Santos, do Instituto Federal do Paraná - Campus Telêmaco Borba, e com fotografias a estudante Natália Assueiro Carneiro, também do Instituto Federal do Paraná - Campus Telêmaco Borba, e a professora Raquel Aline Zanini. Pensar e agir são duas faces da mesma moeda. Se estamos sempre mudando, numa travessia que dura toda nossa vida, é mister que o façamos imbuídos de um saber e de um projeto comprometidos com todas as pessoas, para que possamos tomar as melhores decisões em favor de todo mundo.

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