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OLHOS SOBRE A TELA

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CONTRARREGRA

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OLHOS SOBRE A TELA

O QUE É A VIDA? por José Aparicio Silva

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No filme “The House That Jack Built” (A casa que Jack construiu), obra de Lars Von Trier de 2018, o personagem Jack é obstinado por realizar a sua arte. Como engenheiro, que pensa ser arquiteto, quer construir a sua casa. Seu argumento nos diálogos com (Vergi) Virgílio é que, para se ter a arte perfeita, é necessário encontrar o material ideal, e ele o encontra. Material esse que aqui não vou expor para garantir a surpresa do espectador ao assistir. Com esse argumento é possível uma reflexão: não importa o tipo de arte, qual modelo ou segmento dela, o mais importante é a matéria. Encontrar a matéria ideal que sirva para efetivar a sua arte. Deve ter sido assim com tantos outros artistas renomados. Ao pensar na arte cinematográfica de José Mojica Marins, cineasta brasileiro, percebo que este encontrou a sua matéria na construção do personagem Zé do Caixão. Essa criação rendeu à Mojica o diferencial de sua carreira como ator, diretor, produtor, a ponto de o personagem ser confundido com a sua pessoa. O que é a vida? É o princípio da morte. O que é a morte? É o fim da vida. O que é a existência? É a continuidade do sangue. O que é o sangue? É a razão da existência. Essas perguntas e respostas de cunho reflexivo e filosófico sobre o sentido da vida bem poderiam ser parte dos diálogos entre o protagonista Jack e o coadjuvante Virgílio. Mas, não! Essas reflexões não são de Lars Von Trier, e sim de José Mojica Marins, ou melhor, de

seu personagem Zé do Caixão. Segundo o próprio Mojica, esse personagem ter-lhe-ia surgido durante um sonho (pesadelo) e logo tratou de dar a ele a sua devida materialização e performance. Essa fala acima, retirada do início do roteiro do primeiro filme em que há sua aparição, traz consigo o dilema que acompanhou o personagem na trilogia iniciada com o filme À meia-noite levarei sua alma, de 1964, continuada com Esta noite encarnarei no teu cadáver, em 1967, e concluído somente em 2008, com o filme Encarnação do demônio. Josefel Zanatas é um agente funerário (coveiro) de uma cidade pequena, mas por ser um sujeito incrédulo e transgressor, recebe o apelido de Zé do Caixão. Ele é sádico e obcecado por encontrar uma mulher que possa gerar um filho dele com o intuito de manter a sua linhagem, pois, embora niilista, acredita ser essa a razão da existência, ou seja, perpetuar a sua espécie. Seu sadismo e descrença faz com que ele seja agressivo com todos, sobretudo, com os crentes, devotos. Desdenha de deus e do diabo, os quais julga como produtos dos ignorantes. Para garantir a construção desse personagem, Mojica utilizou-se de vários adereços performáticos (sua matéria), tais como a entonação de voz, as vestes (que se assemelham ao imaginário criado pelo Conde Drácula) como capa e cartola, as unhas compridas e uma personalidade perversa e assassina. Assim, o Zé do Caixão rompe com a moral e com a ordem estabelecida e denota um aspecto de superioridade. Na busca pelo seu herdeiro de sangue, ele mata a esposa por ser estéril e estupra a namorada do amigo. Violentada, ela jura que morrerá e virá buscar a alma do coveiro. A partir daí os pesadelos e assombrações são constantes para o personagem. Essa saga é crucial de sua existência nos três filmes, numa relação entre os fatos passados e a rememoração deles. O primeiro filme, em 1964, À meia noite levarei sua alma, não foi bem recebido pela crítica, a qual não compreendeu a proposta de imediato. Conforme contam André Barcinski e Ivan Finotti, autores do livro Maldito, uma biografia do Zé do Caixão, a única crítica positiva que o filme recebeu na época foi da jornalista Tati de Moraes no jornal carioca Última Hora. Disse ela: “o filme é o primeiro do gênero a ser feito aqui no Brasil e é para ser visto metade a sério, metade rindo (o público reage na hora exata), fórmula ideal para o humor negro.” Hoje podemos reconhecer que a jornalista estava correta, pois Mojica criou e produziu um gênero singular de cinema naquele contexto. Uma mistura de existencialismo e surrealismo. É questionador à estética predominante no cinema daquele momento e o seu personagem traçou outras possibilidades de se ver a realidade e, principalmente, faz refletir sobre os valores éticos e morais presentes na sociedade conservadora. No segundo filme, Esta noite encarnarei no teu cadáver, Mojica contou com um pouco mais de recursos financeiros e isso fez com o que a qualidade técnica melhorasse. Com equipamentos modernos e elenco com atores profissionais, a crítica teve argumentos para reconhecê-lo como ator, diretor e produtor. Na narrativa, o personagem dá sequência a sua busca pela continuidade da existência através da procriação, característica marcante na sua forte personalidade. Diálogos cínicos e ações cruéis levam o espectador a questionar o absurdo e ao mesmo tempo a mesquinhez da condição humana. Mojica inaugura uma nova estética do terror no cinema nacional, a do “vilão-mocinho”, pois mesmo sendo mal, o Zé do Caixão desperta o carinho e a torcida do público.

O filme Esta noite encarnarei em teu cadáver, realizado em plena vigência da Ditadura Militar no Brasil, foi censurado por estupidez dos censores. Recebeu algumas sanções, uma menção de “Proibido para menores de 18 anos” e teve seu diálogo final alterado porque a manifestação do personagem dizia, mesmo diante da morte, que deus não existia, e isso para a censura era um ataque à fé cristã e aos bons costumes. Os censores trataram de escrever o texto final que foi inserido na fala do Zé do Caixão pela técnica da dublagem. Assim ficou: “Deus, Deus… Sim, Deus é a verdade! Eu creio em tua força! Salvai-me! A cruz, a cruz, padre! A cruz, o símbolo do filho”. E assim termina. Na “cabeça de papel”, a redenção do personagem diante da cruz e do padre restabelecia a ordem e a moral, aos olhos da ditadura militar o bem venceu o mal e a verdade triunfou. Mojica falou sobre isso numa entrevista em 2008 ao Jornal Zero Hora, em Porto Alegre: “Sofri uma perseguição incrível da ditadura militar. Nos anos 60, os milicos me ameaçaram tanto que todos os produtores dispostos a fazer o filme se afastaram. Acabei rodando “O Ritual dos Sádicos”, mas foi pior. Diziam que, por trás do terror, havia uma mensagem política. Só não sei que mensagem era essa”.

Em Encarnação do demônio, Zé do Caixão retorna mais perverso ainda. Depois

de ter passado 40 anos trancafiado (30 de prisão e 10 de sanatório), agora conta com um grupo de discípulos que o seguem. A paisagem urbana lhe causa um estranhamento e observa com mais ceticismo ainda a miséria e a ganância convivendo no mesmo espaço. Nesse filme, José Mojica faz uma dura crítica ao Estado, porque ele é omisso à violência, mas ao mesmo tempo utiliza-se dela para legitimar o poder perante a sociedade. Esse filme contrasta o terror pautado pelo sobrenatural e a real prática da violência. O personagem executa crimes horríveis e deixa rastro de violência por onde passa, mas mesmo assim, com estilo já consolidado, Zé do Caixão, inserido em situações extremas de protagonismo de brutalidade, torna-se uma figura controversa no imaginário popular, ao mesmo tempo em que é o marginal, é também carismático para o público. É assim também com o personagem Jack, de Lars Von Trier: muito embora seja um Serial Killer, seu jeito compulsivo e atrapalhado em busca da matéria perfeita para a sua arte faz com que simpatizemos com ele. José Mojica Marins materializou seu sonho (ou pesadelo, para alguns). O cineasta dizia que, em 1963, sonhou com um coveiro aterrorizador que o tirava da cama e carregava-o até seu túmulo. Baseado nele criou um personagem, deu uma história de vida para ele (um jovem que luta na primeira guerra e se transtornou com os horrores dela e ao retornar se torna um sádico e sanguinário coveiro), deu-lhe um nome, Josefel Zanatas (José “Fel” que denota o amargo e “Zanatas”, Satanás ao contrário em sua pronúncia) mais tarde apelidado de Zé do Caixão. A matéria para seu personagem encontrou em seu próprio corpo. Emprestou-lhe seu corpo, mas todo adereçado por roupas escuras, uma capa preta, cartola e ornamentos no pescoço; barba torneada e unhas enormes; deu- -lhe uma voz rouca e forte que às vezes era do próprio ator e, outras, dublagem. Mojica criou para Zé do Caixão uma concepção de vida e uma filosofia sobre a morte e a continuidade da existência bastante coerente, a qual segue com ele por toda a história do personagem. Dessa criação material advém o sucesso do artista como diretor, ator e produtor reconhecido internacionalmente. Minha comparação dele com o Lars Von Trier se dá porque acredito estarem no mesmo patamar como cineastas, cada um com suas singularidades, mas geniais. Ambos fizeram trilogias que marcaram vossas carreiras, Von Trier com a Trilogia da Depressão e Mojica com a Trilogia da Sobrenaturalidade (assim desejo chamar). Essa comparação é tímida, mas válida nessas obras. Isto porque possuem técnicas de focagem similares, tais como enquadramento Zoom, Close-ups, câmeras em mãos para dar ideia de movimentos, sem uso de tripés em algumas cenas; narrativas reflexivas de cunhos racionais e/ou sobrenaturais; maniqueísmo, sincretismo religioso, messianismo; imagens com uso da sexualidade como questionadora de dilemas ético-morais; cenas de ultraviolência; cortes abruptos e transições tão rápidas de decupagem da cena que geram suspense, pânico no espectador; sons simples de trovão, vento, portas, janelas, água, pássaros, entre outros, mas com efeitos sonoros intensos e inseridos de uma forma tão violenta e inesperada que amedrontam até os cinéfilos que assistem pela enésima vez a mesma cena. Ou seja, fizeram filmes de estilos absolutamente distintos, mas que poderiam conversar por algumas formas e conteúdos. Em 04 de dezembro de 2010, tive a oportunidade de conviver um dia com José Mojica Marins, porque fui incumbido de buscá-lo no aeroporto e levá-lo para uma sessão na qual participaria pessoalmente. Nesse dia ouvi do próprio Mojica que não gostava muito da dubiedade entre o Zé Mojica e o Zé do Caixão e pude comprovar na prática que eram dois seres diferentes. Conversamos sobre muitos assuntos, falava-me de sua enorme família, vários filhos e netos e algumas esposas, das suas técnicas de produção, dos insights que tinha durante a realização dos filmes, da ignorância dos censores durante a ditadura, dos prêmios e homenagens que recebeu no exterior como Coffin Joe, ou seja, um bate papo normal com um profissional do cinema que ao mesmo tempo era um pai e avô carinhoso e orgulhoso disso. Mojica tinha ciência da dificuldade que era para as pessoas a separação entre criatura e criador em relação ao Zé do Caixão. José Mojica Marins e Zé do Caixão pareciam ser indissociáveis, e aparentemente eram. Visualmente eram a mesma pessoa. Em algumas horas de convivência com ele, percebi um pouco de sua essência. Quando ligavam uma câmera ou subia ao palco e se caracterizava como Zé do Caixão, ele se transformava, seu tom de voz se elevava e as palavras saiam ásperas, mas quando não era assim, voltava a ser o Mojica, uma pessoa delicada e atenciosa com todos que lhe dirigiam a palavra. Para encerrarmos, de onde começamos, vamos pensar nas questões levantadas sobre a razão da existência, a vida e sua continuidade como se fossem dos personagens Jack e Zé do Caixão. Notamos que ambos buscavam respostas. Tratando-se de continuidade, Jack, de Lars Von Trier, sabemos, em

sua travessia no inferno, se foi, ponto final. Muito provavelmente será esquecido. É uma releitura da Divina Comédia. Dante é imortal, Jack não. No caso do nosso Zé do Caixão, esse, ao meu ver, garante a sua existência, pois o personagem está por aí vivo. Ou seja, é um imortal. A arte perpassa a vida. Ernst Fischer nos lembra que a “arte é concebida como ‘substituto da vida’, como meio de colocar o homem em estado de equilíbrio com o meio circundante”, daí advém a necessidade da arte. Basta aparecer alguma pessoa com direito, coragem, ousadia e talento para dar a devida performance que lhe conferiu o seu criador. José Mojica Marins faleceu no último dia 19 de fevereiro, entretanto, seu personagem mais famoso dará segmento em sua vida e obra. Ou será que, como afirmou o Jornal Zero Hora em 2008, “Não há substituto para Zé do Caixão”?Fica a provocação. Mas por falar em provocação, se quiseres a resposta à razão da vida e da existência, melhor não procurá-la nessas obras. Elas não nos respondem nada, ao contrário, levantam-nos ainda mais dúvidas e nos despertam o medo. Heidegger aponta que o medo faz com que evitemos pensar no sentido da vida, reflete ele que vivemos sem norte algum, como se fosse a vida uma finalidade sem fim. Particularmente, prefiro parafrasear Antônio Abujamra, no programa Provocações, em sua clássica, insistente, paradoxal e retórica questão: O que é a vida? Independentemente de qualquer resposta que recebesse de seu entrevistado, logo após persistia ceticamente numa contra-retórica final: O que é a vida?

José Aparicio da Silva é professor do Instituto Federal do Paraná - Campus Pinhais.

À MEIA NOITE LEVAREI SUA ALMA

Ficha Técnica Direção: José Mojica Marins Ano de Produção: 1964 Cromia: Preto e Branco Duração: 81’ Classificação indicativa: 16 anos.

ESTA NOITE ENCARNAREI NO TEU CADÁVER ENCARNAÇÃO DO

DEMÔNIO

Ficha Técnica Direção: José Mojica Marins Ano de Produção: 1966 Cromia: Colorido e P&B Duração: 108’ Classificação indicativa: 18 anos.

Ficha Técnica Direção: José Mojica Marins Ano de Produção: 2008 Cromia: Colorido Duração: 93’ Classificação indicativa: 18 anos.

>>> Indicação de Filme

A casa que Jack construiu, de Lars Von Trier,

2018. Recomendado para maiores de 18 anos.

Último filme do aclamado diretor dinamarquês, a obra traz a história de Jack, um engenheiro serial killer que, em paralelo, tem a ambição de construir sua própria casa. Com inúmeros diálogos com diversas obras de arte, o filme tem como aproximação mais importante a Divina Comédia, de Dante Alighiere. Ele promove uma interessante reflexão sobre a arte e permite uma experiência sensorial e intelectual marcantes.

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