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AGOUROS DA ÁGORA
ANTON WILHELM AMO, UM FILÓSOFO NEGRO NA EUROPA DO SÉCULO XVIII
por Fernando de Sá Moreira
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Toda história encoberta outras muitas histórias. Quero dizer, sempre que recordamos certos acontecimentos e personagens do passado, acabamos por deixar ocultos outros acontecimentos e personagens. Na história da filosofia, há um conjunto relativamente pequeno de pensadores que são reconhecidos como “canônicos” ou “clássicos”. Há uma certa expectativa que, se alguém quiser conhecer a filosofia e sua história, deve então direcionar sua atenção a esses filósofos e seus textos. Mais ainda, espera-se que alguém que conheça apenas os filósofos canônicos, seja alguém que conhece o suficiente da história da filosofia, que sabe tudo o que seria essencial dessa história. Essa é uma ideia falsa.
Bom, não gostaria, de qualquer forma, de usar este espaço hoje para tentar provar que é importante conhecer a história e o pensamento de filósofas(os) que não são consideradas(os) clássicas(os). Quero, na verdade, aproveitar esta oportunidade para lhes contar a história de um importante filósofo negro nascido há pouco mais de 300 anos. Embora seja quase desconhecido, mesmo por estudantes e estudiosos da filosofia, ele é parte inseparável de duas diferentes tradições filosóficas, a africana e a alemã. Seu nome era Amo e sua experiência de vida foi absolutamente única. Infelizmente, muitas informações sobre Amo não foram preservadas. Atualmente, não sabemos com precisão sequer sua data de nascimento. Especula-se que tenha nascido por volta de 1700 em Axim ou em seus arredores. Essa cidade localiza- -se na África Ocidental, um território que era conhecido na época como Guiné. Hoje, essa cidade pertence à costa da atual Gana. A região costeira da África Ocidental tinha naquele momento uma longa história de contato entre povos europeus e africanos. A influência mais marcante naquele momento em Axim vinha dos holandeses. Em 1707, ainda criança, Amo foi levado para Europa pela Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, encarregada de fazer o comércio de mercadorias e pessoas escravizadas entre a Europa, América e África. Inicialmente, Amo foi levado para os Países Baixos e, logo depois, enviado à Alemanha como um “presente” ao duque alemão de Braunschweig-Wolfenbüttel. Lá, ele foi batizado como cristão com o nome de Anton Wilhelm. Nos registros de batismo, seu nome africano, “Amo”, foi omitido. Mas, apesar dos nomes europeus que recebeu, sabemos que ele optou por não abandonar seu nome e origem negro-africana. Ele costumava, por exemplo, assinar suas obras e documentos com uma versão de seu nome em latim: Antonius Guilielmus Amo Guinea Afer. A expressão “Guinea Afer” pode ser traduzida como “Africano da Guiné”. Muito provavelmente, ele chegou à Europa na condição de escravo e foi dado ao duque para servir como o que então se chamava de “mouro da corte”, ou seja, um serviçal negro da nobreza. Na Europa da época, não era absolutamente incomum que nobres adquirissem pessoas negras para atuarem como funcionários da corte. Ter um serviçal negro era um símbolo de exotismo, riqueza e poder. Como presente ao duque, o jovem Amo deveria servir como um agrado da companhia holandesa a um importante nobre alemão. Como retribuição ao pequeno “agrado”, a empresa esperava provavelmente pela abertura de negócios e favorecimentos no ducado germânico. Um mouro da corte, por sua vez, na condição de mostra e exibição de poder, deveria ser visto publicamente pelos membros da corte e suas visitas. Ele deveria, portanto, estar bem vestido e conhecer relativamente bem os hábitos e costumes da nobreza. Logo, seria esperado que um mouro da corte recebesse algum grau mínimo de educação para exercer suas funções. Talvez seja o caso de nos perguntarmos: não seria essa educação mais uma forma de adestramento do que verdadeira educação? Às vezes me pego imaginando que um mouro da corte seria mais ou menos o equivalente a um cachorro. Não qualquer cachorro, é claro, mas um de uma raça muito cara e difícil de conseguir; um cachorro exótico e raro, que fosse ensinado a fazer alguns truques para impressionar as visitas. Porém, há uma diferença: os truques do cachorro de raça têm apenas valor de entretenimento, enquanto os “truques” do mouro da corte são também uma forma efetiva de trabalho serviçal. As perspectivas para o jovem Amo não eram certamente as melhores. Todavia, por alguma razão, ele chegou a acessar mais do que apenas um adestramento utilitário. Ele recebeu uma educação primorosa e, tendo demonstrado grande aptidão intelectual durante toda a vida, frequentou importantes universidades alemãs. Superando as expectativas, tornou-se filósofo e professor universitário em Halle, Wittenberg e Jena, sendo sempre muito elogiado tanto como aluno quanto como professor. Apesar do esforço de pesquisadores em reconstruir a história de Amo, as informações encontram-se bastante fragmentadas. Sabe-se que ele produziu ao menos três textos filosóficos. Destes, o que mais gera interesse se chama Sobre o direito dos negros na Europa e, infelizmente, foi perdido. Tra
ta-se de um trabalho acadêmico defendido por Amo e aprovado com elogios em 1729 na Universidade de Halle. Especula-se que o filósofo africano defendia naquele trabalho que a escravidão era ilegal e ilegítima. Até onde se sabe, ele baseou sua argumentação na relação histórica e jurídica entre Reinos Africanos, o Império Romano e Reinos Europeus Modernos. A existência desse trabalho é, sem dúvida, um marco importante na literatura antiescravista mundial. Os outros dois trabalhos de Amo, intitulados Sobre a impassividade da mente humana e Tratado sobre a arte do sóbrio e acurado filosofar, estão ainda hoje preservados e disponíveis em latim, inglês, francês e alemão. Ambos os textos debatem as condições de produção do conhecimento e a relação corpo-alma no ser humano, em um profundo debate entre a filosofia e as ciências. O saber de Amo em ciências naturais foi referendado posteriormente pelo importante naturalista alemão Johann Friedrich Blumenbach. Blumenbach foi um dos responsáveis pela difusão nos séculos XVIII e XIX da ideia de que o ser humano poderia ser classificado biologicamente em diferentes “raças”. Infelizmente, essa ideia teve um papel importante na conformação de toda uma ciência racista no século XIX e XX. Para a biologia atual, é uma ideia considerada como totalmente equivocada. Mas, vale notar que, mesmo defendendo a existência de diferentes raças na espécie humana, Blumenbach não apenas elogiou Amo como um negro de elevada capacidade intelectual, mas também usou os textos e história do pensador africano para defender que não existiriam raças superiores a outras. Por volta de 1747, Amo decide retornar à África, abandonando assim cerca de 40 anos de vida na Europa. Não se conhece nenhum testemunho que possa indicar absolutamente porque ele tomou essa decisão. Há diversos indícios que uma das razões deve ser o racismo que sofreu em terras europeias. Segundo relatos de época, ao retornar ao continente africano, ele foi capaz de reencontrar parte de sua família. Não se sabe se produziu filosoficamente em terras africanas. Faltam-nos registros. Entretanto, convém dizer que, ao lado das várias línguas ocidentais que aprendera (dizem que alemão, holandês, inglês, francês, grego, latim e hebraico), ele também teria sido capaz de reaprender seu idioma materno (provavelmente a língua nzema). Um médico chamado Gallandat, que trabalhava em um navio, passou por Axim em 1753 e conhecendo a fama do filósofo Anton Wilhelm Amo foi ao seu encontro. Gallandat anotou em seu diário que Amo era considerado um sábio e um adivinho entre seus conterrâneos africanos. As condições de sua morte são desconhecidas.
Fernando de Sá Moreira é professor da Universidade Federal Fluminense - UFF.
>>> Indicações de sites
“Amo Afer Online” é um site de recursos de pesquisa dedicado a Anton Wilhelm Amo que mantenho. Ele pode ser acessado em <www. amoafer.wordpress.com>. A imagem que ilustra a coluna de hoje é de autoria de Estevão Ribeiro, pai da personagem “Rê Tinta”, uma menina negra que enfrenta o racismo com inteligência e informação. <www. instagram.com/renatatinta>.