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LENTE DE AUMENTO

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OLHOS SOBRE A TELA

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LENTE DE AUMENTO

HABITAR A CIDADE: O PLANEJAMENTO DAS DESIGUALDADES EM CURITIBA

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por Adriana Rita Tremarin

Desde 1948, a moradia passou a ser considerada um direito fundamental pela Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). O Brasil, assina: “Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis”. Apesar disso, em Curitiba, estima-se que existam 380 assentamentos precários, com 200 mil pessoas, o que corresponde a um déficit habitacional de 80 mil domicílios. O problema é grave e começa nas disparidades entre as definições: a ONU denomina assentamentos precários o conjunto que inclui favelas, cortiços, loteamentos clandestinos e irregulares; o Instituto Bra

sileiro de Geografia e Estatística (IBGE) utiliza o termo aglomerado subnormal para referir-se às favelas quando elas reúnem, no mínimo, 51 unidades habitacionais sem documento de posse, carentes de serviços públicos essenciais e dispostas sem padrão urbanístico. Ainda assim, os municípios utilizam termos e metodologias muito variadas para levantar dados sobre habitação e esses números poucas vezes são divulgados com objetividade. Tudo isso dificulta os estudos sobre o tema e a proposição de políticas públicas efetivas. Em Curitiba, o relevo dos vales fluviais contribui para a invisibilidade do problema. Nessas áreas, destinadas à mata ciliar, famílias carentes passaram a residir desde a primeira metade do século XX. Ao longo do tempo, a legislação urbana restritiva da cidade planejada elevou o custo da terra, dificultando ainda mais o acesso à moradia digna. Como consequência de décadas de planejamento urbano em descompasso com a região metropolitana, atualmente, as favelas se distribuem em todas as direções, com maior concentração em Curitiba, Almirante

Tamandaré, Colombo, Pinhais e São José dos Pinhais. Nessas áreas, o risco é mais elevado em função das características ambientais impróprias para edificações (altas declividades ou várzeas) e do tipo de ocupação dos assentamentos (precariedade dos materiais e das técnicas construtivas), além da carência de infraestrutura urbana e equipamentos comunitários. A expansão horizontal da metrópole e suas grandes desigualdades socioeconômicas obedecem à lógica do novo ciclo de reprodução e acumulação do capital no meio urbano – a dos negócios imobiliários. Apoiados pela ação do Estado e do mercado financeiro, esse setor se vale do planejamento público, da tecnologia da construção e das atividades da indústria para ordenar a cidade de acordo com seus interesses. O consumo imobiliário de “novos conceitos” de moradia, como os condomínios horizontais de alto padrão, é símbolo de sucesso e distinção social. Esses empreendimentos têm promovido redefinição/revalorização de espaços menos aglomerados das periferias metropolitanas, contribuindo para processos de gentrificação (saída dos moradores de baixa renda pela sobrevalorização da terra), tal como já ocorre em Curitiba há mais tempo. Outra face da problemática da moradia nas grandes cidades é a população em situação de rua. Segundo a Prefeitura Municipal de Curitiba, em 2018, eram cerca de 2,3 mil pessoas vivendo nessa condição. Já para o Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), 5 mil. Essa parcela da população não é considerada nas contagens populacionais do censo realizado pelo IBGE. A alegação é de que esse levantamento é organizado por domicílio. O problema é agravado pela falta de políticas de inclusão social (há apenas 1,3 mil vagas em Unidades de Acolhimento Institucional), falta de programas de habitação popular e de geração de emprego. A atual gestão da prefeitura, por meio da Fundação de Ação Social (FAS), também tem sido criticada pelo fechamento do abrigo e do guarda-volumes que atendia a população em situação de rua na região central e, mais recentemente, pelo recolhimento de pertences dessas pessoas, em ação denunciada como arbitrária e tru-

culenta, tendo sido alvo de ação do Ministério Público. Na mesma rua onde pessoas dormem sob marquises, imóveis vazios escancaram as falhas do planejamento urbano em democratizar a cidade para que esta exerça sua função social. A função social é uma medida de equilíbrio para impedir que o direito à propriedade prejudique o interesse maior da coletividade de ter acesso a bens comuns. Levantamentos de pesquisadores dão conta que o número de domicílios vazios em Curitiba corresponde ao número do déficit habitacional da cidade ou é ainda superior. Movimentos populares de luta pela moradia já propuseram que os imóveis vazios na área central fossem utilizados para habitação social, com diferentes usos e diversidade cultural, de modo que essa apropriação do espaço contribuísse para revitalizar o Centro que corre risco de deterioração justamente pela falta de moradores. Uma forma de reduzir a existência de vazios mantidos pela especulação com preço da terra é a prefeitura cobrar o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) com

valores progressivos no tempo até o proprietário destinar um uso ao imóvel. Contudo, esse instrumento ainda é pouco utilizado em Curitiba em razão das pressões do setor imobiliário que sobrepõe seus interesses junto ao poder público. Como produto de debate político, o planejamento urbano, por meio de seus objetivos e instrumentos de implantação pela legislação urbanística, tanto pode contribuir com a democratização da cidade como para acirrar ainda mais a segregação e as desigualdades. É por essa razão que, coordenado pelo poder público, o planejamento urbano e regional precisa da participação popular para garantir as prioridades coletivas e proteger, em especial, a população mais pobre e vulnerável, com respeito às questões ambientais, à diversidade cultural e à história local. Assim como em sua elaboração, as etapas de implantação e revisão precisam do acompanhamento e da fiscalização da população em diversos canais e fóruns de participação, como nas audiências e consultas públicas, nos trabalhos dos conselhos municipais, nas sessões do legislativo, dentre outros. As cidades são espaços de vida onde se vive junto, nos encontros e nos embates.

Adriana Rita Tremarin é professora de Geografia da rede particular de ensino, em Curitiba.

>>> Indicação de Filme

CURITIBA: O MITO DA CIDADE MODELO (11’).

Documentário sobre o planejamento de Curitiba e a produção das desigualdades a partir de entrevistas com moradores e lide- ranças de favelas e professores- -pesquisadores da questão urbana. Disponível em: <www.youtube. com/watch?v=rl8VSNYldpo>.

PALAVRAS MAIORES

DESVENDANDO OS INSTITUTOS FEDERAIS: IDENTIDADE E OBJETIVOS

por Eliezer Pacheco

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