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DESASSOSSEGOS

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MIL FACES SECRETAS

MIL FACES SECRETAS

“Meu desassossego vem da inclinação dominante, submissa aos fluxos culturais hegemônicos, que nos leva à simples reprodução do estabelecido, avesso às reais necessidades de nossa terra.”

ENTREVISTA

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com Benjamin Abdala Junior DESASSOSSEGOS

Professor da Universidade de São Paulo - USP, Benjamin Ab- dala Junior é dono de uma car- reira intelectual extensamente produtiva. Foi um dos introdutores dos estudos das Literaturas de Línguas Africanas no Brasil, primeiro presidente da AFROLIC - Associação Internacional de Estudos Literários e Culturais Africanos, participou como representante das áreas de Humanas no Conselho Técnico-Cien- tífico da CAPES e publicou mais de 40 livros, entre várias outras atividades. Por e-mail, Benjamin conversou com Desassossegos, abordando a necessidade de nos voltarmos a um ensino crítico, orientado para o pensamento novo, sobretudo, criativo. Para ele, essa é uma das condições funda- mentais para construirmos um país atento às necessidades de sua terra, mas interconec- tado com a comunidade cultural dos países de Língua Portuguesa. Assim, o autor ainda critica o pensamento emparedado em disci- plinas fechadas e a submissão aos fluxos cul- turais hegemônicos.

Desassossegos - Como professor uni- versitário e pensador, o que te desassossega ultimamente?

Sempre defendi o ensino crítico, vol- tado para o pensamento novo, criativo. Essa

perspectiva é importantíssima em todos os níveis de ensino e áreas do conhecimento. Não podemos nos limitar a reproduzir acriticamente o que nos chega das assimetrias dos fluxos culturais entre as nações. Tais horizontes, que sempre defendi, nos leva à criação de um pensamento crítico nacional, com interconexões com a nossa comunidade cultural dos países de língua portuguesa. É assim que teremos condições de pensar o mundo com os pés em nosso Brasil e mesmo em nossa comunidade supranacional, criando, além de linhas de pensamento próprias, também tecnologias nos múltiplos campos do conhecimento. Meu desassossego vem da inclinação dominante, submissa aos fluxos culturais hegemônicos, que nos leva à simples reprodução do estabelecido, avesso às reais necessidades de nossa terra.

Em tempos de revisionismo histórico, fake news, pós-verdade e entertainments, qual é o papel da leitura do literário na formação de leitores?

A leitura crítica é fundamental para um pensamento afeito às reais necessidades do país. É uma inclinação a ser desenvolvida desde o curso primário, através de leituras criativas e críticas. Tal inclinação nos leva sempre a rever o estabelecido nas múltiplas áreas do conhecimento. No caso do discurso histórico, ele se fez em função das conjunturas dominantes e deve ser revisto constantemente. Não há verdades definitivas.

Em uma sociedade de leitores de Redes Sociais, qual é a função do intelectual, do professor universitário, do pensador ligado às humanidades? Ou esses atores sociais não têm mais relevância no atual cenário de hiperespecialização?

As áreas de Humanas são fundamentais para o conhecimento. No Conselho Superior da Capes, os projetos interdisciplinares eram enviados sobretudo para mim. E eu defendia o ponto de vista de que a interdisciplinaridade era condição para se voltar à produção de um pensamento novo. Fechar-se nos parâmetros de uma área no máximo leva à especialização dentro dela, sem maior criatividade. O conhecimento novo leva a interações que não podem ser emparedadas. Importante a se destacar, nesse sentido, é que o Conselho, que envolvia representantes das múltiplas áreas do conhecimento, concordava comigo e via criticamente esses emparedamentos disciplinares.

Ao analisarmos a produção literária brasileira contemporânea, observa-se um neo-realismo diferente daquele tratado pelo modernismo. Como esse engajamento na literatura atual concorre com a “administração da diferença”?

A “administração da diferença” é fundamental para o conhecimento, o que não significa emparedar-se na especificidade da diferença. O mundo é complexo, híbrido e o conhecimento muitas vezes contraditório. Logo, nada está isolado e a diferença deve ser considerada, sem desconsiderações de suas interfaces com os modos de pensar de outras diferenças, que imprimem maior colorido à própria vida. Esta, em sua dinâmica, não se reduz a um uniforme, chapado, próprio das contínuas repetições das mesmices.

Que obra literária você julga indispensável para o leitor brasileiro contemporâneo? Por quê?

Toda obra literária bem realizada é realmente crítica, podendo ser lida por leitores de várias épocas, que as atualizam a nossa situação histórica e mesmo existencial. Ler São Bernardo, de Graciliano Ramos, por exemplo, não é só ler a história de um fazendeiro nordestino, mas de um indivíduo de inclinação burguesa em qualquer situação, inclusive na atualidade. Em relação a ficcionistas da atualidade, indicaria sobretudo o sentido crítico de um ficcionista de nossa comunidade linguística, o autor português José Saramago. Em termos de Brasil, esse é o sentido de atualidade crítica que encontramos em um Luiz Ruffato e Milton Hatoum. Indico, em especial, o primeiro livro de Milton Hatoum, o Relato de um certo Oriente, que nos permite pensar o nosso país com as nossas múltiplas misturas culturais.

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