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OLHOS SOBRE A TELA
OLHOS SOBRE A TELA SOMOS TODOS JECAS
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por José Aparicio Silva
Sou Jeca, sim senhor, com muito gosto”. Trecho da fala do perso“ nagem Quinzinho, interpretado por Matheus Nachtergaele, essa frase ilustra bem o enaltecimento da identidade rural no espaço urbano em Tapete Vermelho. Numa clara homenagem ao ator, humorista e diretor brasileiro Amácio Mazzaropi, o fi lme conta as histórias de Quinzinho, Zulmira e Neco, moradores da zona rural que vão para a cidade em busca de um cinema em que passe uma fi ta do Mazzaropi. “Menino grande, já sabe ler e escrever e não sabe o que é cinema”, afi rma ele à mulher para justifi car a procura, que é vista com ceticismo por Zulmira: ela duvida que haja cinema e muito menos fi lme do Mazzaropi passando. “Ai, ai, ai, ai, ai... Adondé que cê vai vê fi rme de Mazzaropi? Ondi é qui tem cinema, homi? Mazzaropi já morreu”, exclama ela, logo interrompida pelo marido, que salienta: “Santa ignorância, o home morreu, mas os fi rme não acabam não”. Com representações do espaço, da cultura e da identidade rurais, os fi lmes de Mazzaropi têm protagonistas, sempre caipiras, que se sobressaem ao citadino, exaltando a cultura cabocla, a identidade camponesa e o espaço rural. Os chamados “Jecas” têm arquétipos físicos típicos que denotam certa simplicidade e lutam contra aqueles que tentam se aproveitar da suposta inferioridade caipira e sua inocência. São personagens que apresentam uma dicotomia rural-urbana, têm traços de ruralidade em sua descrição identitária e sua aparente inocência, na verdade, oculta uma astúcia que dribla a simbólica hierarquia imposta pela cidade sobre o campo. A interculturalidade entre campo e cidade surge a partir do processo que assinalou a passagem da sociedade rural para a urbano-industrial no Brasil. Essa transição tem se desenvolvido desde o início do século XX, mas é após os anos 1960-70 que se torna muito perceptível a divergência entre essas culturas: como se tudo o que é do campo fosse sinônimo de atrasado e, consequentemente, o que é da cidade, de progres-
so. Talvez esse seja um dos motivos pelos quais a cultura rural está quase em extinção nos espaços urbanos, e, muitas vezes, o que aparece é uma caricatura dela, denominada cultura sertaneja, que confunde a cultura de raiz cabocla. Daí a ênfase na letra da música Navegantes das Gerais, da dupla Zé Mulato e Cassiano: “Se me chamam de caipira, fico até agradecido, pois falando sertanejo eu posso ser confundido”.
Amácio Mazzaropi iniciou seus trabalhos artísticos ainda na década de 1930, mas só estreou no cinema em 1952, com o filme “Sai da Frente”. Construiu seu caipira estereotipado na vivência que teve no interior de São Paulo, como ele mesmo disse, seu próprio tipo: caipira bastante natural (na roupa, no andar, na fala), que representa os milhões de caboclos do interior brasileiro. Foi com essa identidade em seus personagens que o cineasta lotou salas de cinema por todo o país, deixando, inegavelmente, seu legado na memória coletiva. Mazzaropi atuou, dirigiu e produziu 32 filmes, finalizando sua carreira em 1980 com “Jecão e a égua milagrosa”. (Para saber mais sobre Mazzaropi, sua vida e obra, acesse: https://museumazzaropi.org.br)
Assim, os filmes de Mazzaropi são importantes por serem capazes, de certo modo, de recuperar traços da cultura cabocla, nostálgica aos mais velhos e desconhecida pelos mais jovens. No percurso entre a roça e o dito cinema, no filme Tapete Vermelho, fica acentuado o estereótipo do caipira que vai à cidade. Sua figura destoa do citadino e por isso ressalta a cultura popular, a qual sofre certo preconceito e, quem sabe, por isso desperte o riso. Nesse sentido, ao prestar homenagem a esse gênio do cinema, tarefa que cumpre com excelência, enfatiza elementos da cultura caipira, tais como a dança da catira, a moda de viola, a contação de causos, a medicina popular pela mão da benzedeira, e recupera, por conseguinte, a figura do Jeca no imaginário popular brasileiro. Muito embora exista a tentativa de imposição do tipo urbano com seu jeito de falar, de se portar e se vestir, que parecem aspectos suficientes para a dominação e exploração do outro, o Jeca não se deixa inferiorizar. Amácio Mazzaropi mesmo definia o caipira como “um homem comum, inteligente, mas sem preparo, alguém muito vivo, malicioso, bom chefe de família. A única coisa diferente é que ele não teve preparo, então tem aquele linguajar típico, mas no fundo, no fundo, ele pode dar lições boas a muita gente da cidade”. O Jeca interpretado por Matheus Nachtergaele cumpre essa definição, uma vez que a todo momento se afirma e se legitima como caipira, mas, ao contrário do que o público urbano poderia esperar, se sobressai nas discussões. Quando o vendedor da loja questiona por que o caipira quer ver cinema e o chama de Jeca, mandando-o ir cuidar da sua plantação de batatas, Quinzinho responde de forma bastante altiva lhe encarando seriamente: “Sou Jeca sim, com muito gosto, tenho minha terrinha, tenho meu inhame, não é batata não, trabalho pra mim. Não sou empregado!” A saga da família Silva, da saída de sua chácara até encontrar um cinema em alguma cidade com um filme do Mazzaropi, mostra o contraste entre os elementos de modernidade citadinos e os do meio rural que permanecem nas cidades pequenas e de médio porte. O trânsito intenso e confuso, a exploração do comércio, a individualidade, a massificação dos aparelhos de TV e a substituição dos cinemas por lojas e igrejas contrastam com rituais lúdicos ou religiosos, encontrados em alguns lares e bares durante o percurso, confirmando aquilo que Antonio Candido, em seu livro Os parceiros do Rio Bonito, chamou de manifestação da cultura rústica. No bar do Ico, por exemplo, uma dupla toca moda de viola rodeada de pessoas que a ouvem cuidadosamente. Não sei se irônica ou propositadamente, Zé Mulato e Cassiano estão cantando a música Proparoesquisítono, a qual é uma resposta para uma dupla do chamado sertanejo universitário que classificou suas canções como antiquadas. Zé Mulato fala, ao apresentá-la, que essa composição “é para provar que simplicidade não tem nada a ver com burrice, ou pelo menos tem pouco”. Por fim, Quinzinho, depois de sofrer junto com a família uma série de desventuras e tentativas de trapaças, acaba por
encontrar um cinema que, como era de se esperar, não passa fi lmes do Mazzaropi. Ele, então, com seus rolos de fi lme em mãos (os quais encontrou como sucata em uma Igreja evangélica onde antes era um cinema), exige que se passe pelo menos uma sessão com um fi lme Mazzaropiano para mostrar ao seu fi lho. Essa exigência se dá com bastante astúcia. Adquire correntes e cadeados, amarra-se à coluna do Cine Pathé e diz que só sairá de lá quando passarem um fi lme de Mazzaroppi. Berrando a plenos pulmões, Quinzinho exige a presença do dono do cinema e acaba por chamar a atenção da imprensa e dos passantes, que logo se sensibilizam com seu pedido. Ao perceber que havia ganho notoriedade, Quinzinho faz um discurso caloroso: “Voceis pensa que esse bando de ignorante vai vencer eu é? De jeito maneira. Só saio daqui quando passar meu fi rme. Vim lá de Formoso pra ver um fi rme do Mazzaropi, mas o cinema não sabe nem quem é que é Mazzaropi! Agora eu quero o dono do cinema, o dono da bosta do cinema! Bosta de cabra! Nois gastemo pé na estrada, nois comemo o pão que o diabo amassô. Essa tar de comida de quilo. Eu quero o Mazzaropi, cadê o dono do cinema? (...) E agora depois de toda essa trabaiera, nois vai vortá pra roça sem ninguém dá atenção pra nois? Não! Cú de bode, eu quero o dono cinema!” Nessa fala acalorada o Jeca Quinzinho deixa claro aquilo que Soleni Biscouto Fressato deu como o título de seu livro: Caipira sim, trouxa não. Em virtude da publicidade dada à situação, o desejo de Quinzinho, que para muitos dos personagens parecia absurdo, pois desdenhavam da ideia de se ver fi lme do Mazzaropi, acaba sendo acatado pelo dono do Cine Pathé a quem o protagonista também exige que se estenda um tapete vermelho na entrada do cinema. Dessa forma, o contentamento que se segue é também uma espécie de retaliação aos citadinos pelos problemas enfrentados e narrados pelo personagem em seu discurso. Portanto, passar o fi lme do Mazzaropi torna-se muito mais do que um presente ao fi lho Neco: representa uma luta contra a indústria cultural e sua falta de democratização nos fi lmes exibidos, e, acima de tudo, simboliza a luta contra a tentativa de homogeneização da cultura urbana numa cultura quase de plástico. O tapete vermelho é o símbolo da conquista, do triunfo, palco para desfi le do campeão, daquele que tem a palavra fi nal. Assim, para encerrar, tomo de empréstimo a dedicatória do livro Sai da frente: a vida e a obra de Mazzaropi, da autora Marcela Matos, como epílogo deste breve texto, também uma homenagem: “Ao Jeca de Mazzaropi que nos ensinou a ter sempre a última palavra, nem que seja um resmungo ou um deboche”. Afi nal, somos todos Jecas!
José Aparicio da Silva é professor do Instituto Federal do Paraná - CampusPinhais.
>>> Ficha Técnica
Tapete Vermelho Direção: Luiz Alberto Pereira Ano de Produção: 2006 Cromia: Colorido Duração: 102’
>>> Indicação de Filme
Proparoesquisítono
Esse é um recorte do vídeo de realização da Parabolé Educação e Ensino gravado no Teatro Paiol - Curitiba, 03 de Junho 2011, intitulado no Youtube como “Show Trio do Trem convida Zé Mulato e Cassiano”. Disponível em: https://www.youtube. com/watch?v=a2hO-W5dPQA
>>> Indicações de Leitura
Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida, de Antonio Candido.
A obra analisa as relações entre literatura e sociedade e visa descrever um processo e uma realidade humana, característicos do fenômeno geral de urbanização no Estado de São Paulo.
O livro conta a trajetória de um garoto pobre que decidiu tentar a sorte e correr atrás de seus sonhos. Como resultado, tornou-se uma celebridade, um homem de negócios e um artista do cinema brasileiro. Mazzaropi, movido pelo desejo de expandir a indústria da sétima arte no país, montou a PAM Filmes.
Caipira sim, trouxa não: representações da cultura popular no cinema de Mazzaropi, de Soleni Terezinha Biscouto Fressato.
Este livro aborda os estereótipos agregados à imagem do caipira a partir do ponto de vista apresentado nos fi lmes de Mazzaropi, levando em consideração que um registro fílmico é uma problematização da realidade, não um recorte fi el da história. O caipira construído por Mazzaropi é bem diferente daquele construído por Monteiro Lobato, que atribuía a personagens caipiras a imagem de ignorantes, preguiçosos e bobos. Mazzaropi, nadando contra a corrente, capturou as contradições existentes nas relações entre a cidade e o campo.