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CONTRARREGRA

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EDITORIAL

EDITORIAL

CONTRARREGRA O PAPEL DAS HASHTAGS NA COMODITIZAÇÃO DAS MINORIAS

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No momento em que escrevo, a hashtag mais utilizada é #blacklivesmatter ou #vidasnegrasimportam em virtude da comoção gerada pelo assassinato de George Floyd, um homem negro asfi xiado por um policial branco, em Minneapolis, cidade do Estado de Minnesota do norte dos Estados Unidos, ocorrido em 25 de maio de por Jeanine Geraldo Javarez

2020. O crime foi gravado e compartilhado exaustivamente tanto por veículos da imprensa quanto nas redes sociais, e o pedido de ajuda de Floyd, durante os oito minutos e quarenta e seis segundos em que Derek Chauvin manteve-se ajoelhado sobre seu pescoço, tornou-se o grito de guerra do movimento negro ao redor do mundo: “I can’t breathe”, ele dizia, “Eu não consigo respirar”. Tão rápido quanto fogo em capim seco, pulularam manifestações de indignação no Facebook e Instagram marcadas com #blacklivesmatter. Enquanto manifestantes negros da cidade de Minneapolis incendiavam a delegacia onde o assassino de Floyd trabalhara, a burguesia (branca), placidamente sentada em seu sofá, cumprindo o isolamento social (afi nal, estamos numa pandemia, não é mesmo?), mostrava apoio com uma hashtag. Que lindo.

Imagem de Patrick Behn no Pixabay

Hashtags são etiquetas ou palavras-chave que funcionam como hiperlinks, facilitando a busca dos textos e/ou imagens que as recebem. O termo ganhou notoriedade há alguns anos e hoje é utilizado como barômetro na avaliação dos famosos trending topics ou o que está em alta no momento. #Icantbreathe #blacklivesmatter #niunaamenos e #timesup são algumas das hashtags que circulam por aí no mundo das redes sociais e que têm se tornado uma forma de manifestar apoio às causas das chamadas minorias, como violência contra a mulher e racismo. Em geral acompanhadas de fotografias e textos comoventes, as hashtags são comparáveis a slogans publicitários na medida em que transformam o sofrimento alheio em produto. Na sociedade do espetáculo e do capitalismo selvagem, o símbolo de resistência se tornou um inofensivo “jogo da velha” que livra as mentes politicamente corretas da culpa ao mesmo tempo em que não interfere (nem fere) a lógica que rege o sistema. Muito pelo contrário. Embora pareça extremamente pessimista e desencorajador o que acabo de afirmar, meu intuito aqui é chamar a atenção. Cutucar. Dar um chacoalhão no leitor, na leitora. Em mim mesma também. Quantos de nós não utilizamos as famosas hashtags nas redes sociais? Quantos de nós não nos sentimos impelidos a utilizá-las para mostrar que somos #antifascistas e #somos70porcento? É verdade que uma eleição foi ganha com base em filtros de Facebook, lives, fake news e, por que não?, hashtags, o que por si só mostra que o poder do mundo virtual se esparrama pela vida cotidiana. No entanto, isso seria tão potente quando se trata de movimentos pelos direitos humanos? Em outras palavras, será que o efeito de uma manifestação em massa contra o racismo ou a violência contra a mulher por meio dos mesmos artifícios que elegeram esse ser execrável é igual? Pelo que tenho observado, não. E o que eu acredito ser um dos principais motivos para isso é o fato de a geometria do poder ser desigual em relação ao que é prejudicial ao sistema, ou seja, o poder do artifício é inversamente proporcional à potência de alterar o status quo. Por isso, o que elege Bolsonaro não funciona do mesmo jeito para acabar com o racismo. O que é semelhante em ambos os casos, porém, é o apelo propagandístico das hashtags: elas viralizam, são fáceis de memorizar, e, como tal, transformam aquilo a que se referem em mercadoria. Nada mais vantajoso, portanto, para a manutenção de um sistema baseado no consumo compulsivo, já que, da mesma forma que potencializam o alcance de um discurso, o apagam no instante em que surge uma nova hashtag – um novo produto, se assim quiser o leitor. Mesmo que algumas das pessoas que utilizam as hashtags participem dos protestos de rua e de fato tentem implementar esses discursos na prática, não há como negar que muitas outras aliviam a consciência pesada de não estar fazendo nada para mudar essa situação somente compartilhando #blacklivesmatter. Quantos dos que povoam as redes sociais sabem quem foi Floyd? Quantos sabem que ele havia acabado de ser demitido do emprego por causa da pandemia? Quantos sabem que seu teste de Covid-19 havia dado positivo? Quantos sabem que ele foi abordado pela polícia racista acusado de ter usado uma nota falsa de vinte dólares? Quantos têm noção do que é sofrer por causa da cor da pele? Ele se tornou um rótulo; seu rosto estampado nos muros do mundo será só mais um espetáculo se #blacklivesmatter não deixar de ser apenas uma hashtag e se transformar na prática cotidiana de todos nós. E é aí que mora o perigo. O que era para ser um grito por liberdade, um grito de revolução, torna-se o slogan de uma campanha publicitária para comercializar um discurso que tem o rótulo de antirracista, mas que, no fundo, é vazio porque não está acompanhado de práticas antirracistas. Afinal, se o racismo é estrutural e, como tal, a base do próprio sistema capitalista, e este sobrevive e se desenvolve segundo a lógica de mercado, transformar o discurso antirracista em mercadoria é uma estratégia bastante perspicaz para solapar qualquer tentativa de transformação. Basta ver como as hashtags #lutecomoumagarota #girlpower e tantas outras viraram estampas de camisetas, canecas, chaveiros, transfigurando todo um discurso em prol da igualdade de gêneros em objetos do cotidiano. Mais ainda: em objetos de desejo por parte daqueles que se aliam a esses discursos. Como se um chaveiro ou um botton fossem capazes de mudar alguma coisa. Ademais, aliadas ao consumo de representações teoricamente subversivas que, na verdade, reforçam – muitas vezes sub-repticiamente, outras, nem tanto – estereótipos racistas e misóginos, as hashtags normalizam e naturalizam a hipocrisia na

medida em que tendem a ocultar, sob o brilho reluzente da diversidade e da (aparente) conscientização, a permanência do sistema capitalista supremacista branco, machista e heteronormativo. Nesse sentido, o cinema e a literatura desempenham um papel crucial, pois, se por um lado, têm o poder de combater a ideologia dominante, por outro, também podem perpetuá-la. bell hooks, em

seu livro Olhares negros: raça e representação, comenta o quanto o sistema é perverso, pois premia diretores negros, por exemplo, que reproduzem em seus fi lmes o discurso racista – com acesso a bens materiais – que prejudica a eles próprios, e reprime aqueles cuja obra poderia operar no sentido transformador.

bell hooks é o pseudônimo da teórica feminista, artista, professora e ativista social estadunidense Gloria Jean Waltkins. Inspirado no nome da bisavó materna, a escrita em minúscula procura chamar a atenção para o conteúdo de sua escrita e não para a autoria dos textos.

Obviamente nem sempre isso é tão explícito a ponto de ser visível para o cidadão médio, uma vez que o êxito de uns em detrimento de outros muitas vezes é justifi cado pela qualidade estética e pelo sucesso de público do fi lme. Ora, se as pessoas consomem aquilo que o sistema lhes dá, é claro que seus gostos são moldados por esse mesmo sistema. Logo, um fi lme que subverte a ideologia dominante difi cilmente será agradável para o grande público. Isso, por sua vez, infl uencia o investimento de capital para a produção desses fi lmes, que é substancialmente menor já que sua circulação é mais restrita, o que retroalimenta o ciclo da manutenção do status quo. Um exemplo emblemático disso é o fi lme Estranhos em casa, de 2019. Dirigido por Olivier Abbou, o terror francês conta a história de uma família que, ao retornar de férias, descobre que o casal que estava cuidando de sua residência não os deixará entrar. Embora seja uma narrativa que aparentemente denuncia o racismo, já que o protagonista, Paul Diallo, professor de História negro, casado com Chloe, uma mulher branca com quem tem um fi lho, é frequentemente alvo de discriminação por conta de sua cor de pele, não sendo aceito nem pelos brancos, pois é negro, nem pelos negros, porque vive como um homem branco, a construção do personagem reforça e reproduz estereótipos machistas e racistas. Por isso, consumir representações cinematográfi cas e literárias de maneira crítica deve ser a regra e não a exceção. Afi nal, se não percebemos as tênues linhas discursivas que reforçam a ideologia dominante, como vamos percebê-las em ação no nosso dia-a-dia? Nesse sentido, transformar o assassinato de Floyd ou o estupro de mais uma garota numa hashtag amplia a reverberação do acontecimento ao mesmo tempo em que promove a apropriação do discurso subversivo pelo próprio sistema, anulando-o, por conseguinte. Essa anulação acontece por duas vias: primeiro, por tornar a causa em questão uma mercadoria; segundo, por dar a falsa ideia de que digitar uma hashtag num post do Facebook faz do sujeito um militante ou alguém politicamente engajado. Parece que estamos, então, num beco sem saída, pois se de um lado a conscientização depende da divulgação do que acontece no mundo, de outro, essa divulgação acaba por banalizar o assunto ou, ainda, esvaziá-lo de sentido. É por isso que se a publicização não for acompanhada de práticas transformadoras cairemos na mesma ladainha hipócrita de sempre: repetiremos #blacklivesmatter e #timesup incansavelmente por um tempo e depois tudo cairá no esquecimento até que outro evento traumático ganhe a mídia e seja deglutido, de novo, por outra (ou pela mesma) hashtag.

Jeanine Geraldo Javarez é professora do Instituto Federal do Paraná – Campus Pinhais

h� ps://rascunhoeliteratura.blogspot.com/

Olhares negros: raça e representação, de bell hooks

Publicado em 2019, a coletânea de ensaios da autora estadunidense versa sobre como são representados os olhares negros nas mais diversas mídias e como o próprio ato de olhar é resultado de uma construção cultural patriarcal racista.

>>> Indicação de Filme

Furie (2019)

Dirigido por Olivier Abbou, Estranhos em casa lembra Laranja Mecânica, de Kubrick. Com uma narrativa centrada em Paul, o thriller francês prende a atenção do espectador com cenas de violência explícita, embora a pretensão em se discutir a questão racial esteja fadada ao insucesso em virtude de uma representação racista e misógina do homem negro. Se assistido com um olhar crítico, pode proporcionar boas refl exões.

>>> Indicação de Blog

O blog Rascunho & Literatura, criado em 2017, conta com textos sobre crítica literária, refl exões políticas e escrita criativa.

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