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AGOUROS DA ÁGORA

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LENTE DE AUMENTO

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AGOUROS DA ÁGORA

A PANDEMIA RI DA MERITOCRACIA DA “NOVA DIREITA”

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por Fernando de Sá Moreira

No momento em que este texto foi escrito, em meados de agosto de 2020, o Brasil se encontrava perto de atingir 110 mil mortos oficiais por Covid-19. Há indícios suficientes para acreditar que esses números escondem uma enorme subnotificação. O país encontrava-se em 2º lugar no número total de óbitos, atrás apenas dos EUA. Enquanto isso, o mundo se aproximava dos 800 mil casos fatais entre os mais de 20 milhões de infectados confirmados. Agora, enquanto você lê esta coluna, os números são certamente ainda piores. Quando da escrita do texto, havia poucos indícios de que alguma solução estivesse próxima. Quem sabe, agora, durante sua leitura, meu pessimismo esteja já superado e tenhamos motivo para ter melhores esperanças.

Isso tudo acontece enquanto o Brasil e parte do mundo vivem uma guinada política e social à direita, em muitos casos ao extremismo de direita. Em nossas terras, influenciadores e políticos ganharam uma visibilidade razoável nos últimos anos com discursos que se diziam economicamente liberais e/ou moralmente conservadores. Um dos elementos-chave desses discursos foi quase sempre o conceito de meritocracia. Como muitas outras coisas no debate político amplo, o conceito mesmo de meritocracia raramente é definido. O que mais importa é afirmar que a meritocracia é boa, que o Brasil deveria ser mais meritocrático, e que os governos anteriores, principalmente os de esquerda, teriam afastado o Brasil do ideal da meritocracia. Mas, ainda que não se forneça uma definição clara, é possível identificar algumas ideias comumente associadas ao que seria a tal meritocracia nesses discursos. Se não cometo nenhuma injustiça, na perspectiva dessa “nova direita”, a meritocracia seria uma forma de organização social e política, na qual o progresso ou a degradação individual seriam resultado direto do mérito individual. Ou seja, tudo o que acontece de bom ou ruim na vida do indivíduo deveria ser um resultado direto de suas ações enquanto indivíduo. E, isso importaria politicamente, porque avançaríamos e progrediríamos como sociedade pelo efeito direto e indireto do mérito individual dos membros da sociedade. A ideia, no geral, não parece de todo ruim e, de fato, orienta a organização de uma série de elementos das instituições brasileiras. Esse é o caso, por exemplo, de concursos públicos, nos quais, supostamente, a nota de um indivíduo indicaria que ele seria mais merecedor de ocupar um cargo público do que os demais candidatos e candidatas. Esse também seria um dos princípios do sistema penal, que, supostamente, deveria olhar com atenção para as ações de um indivíduo, a fim de aferir se ele é merecedor da liberdade ou de uma pena. Porém, no fundo, nada é tão simples e fácil. Além das dificuldades de aplicar princípios meritocráticos individualistas nas diversas esferas da vida em sociedade, frequentemente somos colocados em situações nas quais esses princípios mesmos parecem não serem capazes de nos fornecer respostas adequadas. A pandemia do novo coronavírus é um desses casos. Ela, por assim dizer, ri da meritocracia individualista e a confronta, de modo trágico, com inúmeras mortes completamente evitáveis. Não se dar conta a esse respeito, torna ineficiente a resposta social à doença, que se espalha implacavelmente pelo mundo. Sabemos que o novo coronavírus é particularmente perigoso para a população idosa e para pessoas com certas comorbidades, como diabetes, pressão alta, problemas respiratórios ou imunológicos crônicos etc. Diante disso, muitas pessoas jovens estão agindo de forma completamente descompromissada com as orientações das autoridades de saúde, pois acreditam que, se forem infectadas, dificilmente sofrerão consequências graves. O raciocínio se dá todo aqui dentro de uma lógica de tomada de decisão conectada a um raciocínio individualista. A pessoa age de forma irresponsável porque, em grande medida, está disposta a enfrentar as consequências individuais de sua ação. É como se dissesse: “Se eu pegar essa doença, o que é que vocês têm a ver com isso? É meu problema e tudo que acontecer comigo é consequência do meu mérito ou demérito pessoal. Eu que arque com as consequências individuais de minha decisão individual”. Diante disso, alguém pode tentar convencer essa pessoa a agir com mais prudência, dizendo: “Então é assim que você presa por sua vida? Está disposto a morrer só para tomar uma cerveja no boteco?”. E não faltou quem usasse o meme dos coveiros dançarinos de Gana para se referir a quem furava a quarentena. Infelizmente, é comum que nem a pessoa que descumpre as medidas de segurança sanitária nem a pessoa que tenta demovê-la atentem ao fato de que a noção de mérito individual simplesmente não está em jogo aqui. A pessoa que escolheu ir tomar cerveja no boteco muito provavelmente considerou a possibilidade de causar sua própria morte, mas está disposta a isso;

talvez pense que o seu risco de vida individual não é lá signifi cativamente maior do que o risco que todos corremos ao decidir fazer qualquer atividade no dia a dia. E, na verdade, ainda que os riscos sejam de fato maiores e um tanto incertos, para uma pessoa jovem e sem indicativos de risco, eles não são mesmo tão absurdamente altos. Perceba que ainda estamos operando na lógica dos ganhos e perdas individuais. Porém, a pandemia não liga para indivíduos, tampouco premia ou pune alguém por decisões individuais. Um indivíduo pode não tomar quaisquer cuidados para evitar contaminações e simplesmente nunca chegar a ser contaminado. Acontece que, nisso, ele não teve mérito algum. Mas, a pandemia não liga para mérito pessoal. Outro jovem não se previne também, acaba contaminado, recupera-se sem maiores problemas, mas transmite o novo coronavírus para seu vizinho idoso que há meses tomava todas as medidas sanitárias possíveis e falece de Covid-19 algumas semanas mais tarde. Em termos individuais, apesar de morto, o vizinho precavido possui muito mais mérito do que o jovem descuidado. Mas, a pandemia não liga para mérito pessoal. Para o enfrentamento ao vírus Sars- CoV-2, o que importa são os pensamentos e ações coletivos. Os países que têm registrado até agora maior sucesso em lidar com essa terrível ameaça são aqueles que souberam adotar medidas coletivas de proteção e cuidado. A lógica de uma meritocracia individualista, que no fundo é uma falsa meritocracia, há muito tempo causa estragos incalculáveis à humanidade. A única meritocracia que o vírus reconhece é a coletiva, jamais atomizada em indivíduos. A sociedade ganha ou perde junta. Quiçá possamos, muito a contragosto e a um enorme preço, aprender algo com essa pandemia: aprender que não há verdadeiro mérito individual desconectado da coletividade. Com efeito, segundo a meritocracia da natureza, o governo e a sociedade brasileira mostraram-se até aqui infelizmente plenamente merecedores (coletivamente) da desgraça que se abateu sobre nós, com a perda até o momento de quase 110 mil indivíduos, de 110 mil vidas. Ou aprendemos a agir coletiva e colaborativamente, ou apenas nos lançamos de cabeça em direção a nossa próxima tragédia.

Fernando de Sá Moreira é professor da Universidade Federal Fluminense - UFF.

>>> Indicação de Leitura

Ideias para adiar o fim do mundo (Companhia das Letras, 2019).

Escrito pelo intelectual indígena Ailton Krenak, é um excelente livro para esse momento, que exige não apenas cuidado, mas também reflexão e uma ação transformadora.

>>> Indicação de Podcast

O podcast Xadrez Verbal é um semanário de política internacional, que vem apresentando a cada 15 dias um boletim sobre a pandemia do novo coronavírus com a participação do biólogo e virologista Átila Iamarino. Acompanhe através de qualquer agregador de podcasts ou através do site <http://xadrezverbal.com>.

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