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DESASSOSSEGOS
DESASSOSSEGOS ENTREVISTA
com Renato Sérgio Maluf por Igor de Barros Ferreira Dias
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Há décadas assistimos ao aumento constante dos preços dos alimentos, o que transformou itens básicos da mesa dos brasileiros em vilões. Aliás, nem precisamos ir tão longe, é só nos lembrarmos da crise do feijão há poucos anos, da carne no ano passado e, na atualidade, do preço do arroz. Famílias que ganham até dois salários mínimos destinam quase um terço de sua renda à alimentação, sobrando muito pouco para o atendimento a outras necessidades básicas. Segundo o IBGE, o Brasil conta com 13 milhões de desempregados, 6 milhões de desalentados e 30% do contingente de trabalhadores subutilizado que lidam com um desgoverno que, deliberadamente, através da sua economia ultraliberal, transforma a cotidiana ida ao supermercado em uma dramática humilhação. Para tratar deste cenário, Desassossegos conta nesta entrevista, cedida gentilmente por e-mail, com Renato Sérgio Maluf. Uma das maiores referências na problemática alimentar brasileira, professor do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA), da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Maluf dedicou sua vasta obra e ação pública à consolidação de uma Segurança e Soberania Alimentar e Nutricional que incluísse todos os brasileiros. Aqui ele trata dos principais problemas enfrentados (ou não) na atual conjuntura. Pandemia, crise econômica, fome, agricultura familiar, soberania e segurança alimentar se entrelaçam e impõem a todos nós a reflexão sobre que futuro está chegando e quais norteadores temos para mudar os rumos do povo brasileiro.
Desassossegos: Sua atuação nos campos das políticas públicas para a agricultura, segurança e soberania alimentar remonta há décadas de estudo. A respeito desses temas, o que te desassossega na atualidade?
Várias coisas, já que a pandemia trouxe para o primeiro plano o tema da alimentação adequada, em termos de acesso a ela e das formas de sua produção. Por um lado, a crise econômica que já vinha se desenvolvendo foi muito agravada com a pandemia, com duas consequências principais para o nosso tema, que são o desemprego em níveis muito elevados e a miséria com a volta da fome. Por outro lado, o desmonte das políticas públicas tem repercutido com força sobre os apoios antes existentes da agricultura de base familiar, diversificada e preferencialmente agroecológica.
Soberania Alimentar e Segurança Alimentar são dois conceitos fundamentais para a compreensão da problemática alimentar. Quais os elos e diferenças existentes em suas definições?
Eu entendo a soberania alimentar como um princípio orientador de ações e políticas públicas que diz respeito ao direito dos povos decidirem sobre sua alimentação quanto ao que se come, como se come e como são obtidos esses alimentos. Claro que entre seus requisitos estão o direito à informação, a capacidade de acesso a uma alimentação adequada e saudável e a possibilidade de produzir os alimentos respeitando a diversidade cultural, a biodiversidade e assegurando o acesso à terra. A segurança alimentar e nutricional é um objetivo de políticas públicas intersetoriais e com participação social, orientadas pelos princípios da soberania alimentar e do direito humano à alimentação. Esse objetivo abrange um conjunto amplo de programas que combinam o enfrentamento de questões emergenciais, como a ocorrência da fome, com a construção de caminhos em direção a uma sociedade menos desigual e saudável.
No Brasil, a fome nos persegue historicamente. Além de cinicamente invisibilizada, podemos classifi car a fome enquanto componente estrutural da nossa formação social? Se sim, quais os sujeitos que hegemonizam nossa economia agrária e quais os princípios que deveriam orientar um programa de transformação?
O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, condição que não se deve a qualquer fatalidade, mas tem causas já diagnosticadas, embora pouco enfrentadas. Conseguimos, em 2014, sair da vergonhosa condição de integrar o Mapa da Fome da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), mesmo sendo um dos maiores produtores de alimentos do mundo. Assim que novos dados forem divulgados, não surpreenderá se tivermos retornado à condição de país com fome endêmica. Uma fonte historicamente importante e já diagnosticada das nossas desigualdades sociais é, justamente, a concentração fundiária e o enorme poder político de que dispõem e exercitam as elites agrárias e agroindustriais. Um programa de transformação passa, necessariamente, pelo enfrentamento da questão agrária e agroalimentar, da concentração de riqueza (que inclui a terra e riqueza fi nanceira, muitas vezes interligadas) e a questão democrática que condiciona todas as demais.
Pensando nos pequenos e médios agricultores, quais as consequências das atuações da bancada ruralista e do mercado fi nanceiro na produção alimentar no Brasil na atualidade?
As consequências são fortes e graves, pois é conhecida a postura da grande maioria dos ruralistas com relação a preservar sua própria riqueza e poder e reagir às iniciativas que revisem isso de alguma forma. Essa resistência é visível na reforma agrária, na questão tributária e nos benefícios e tolerâncias com relação, por exemplo, ao desmatamento e uso extensivo de veneno. Esses são fatores que estão na base da condição hegemônica que mantêm na produção agroalimentar, que nem de longe é produto exclusivo de competências. Os mercados fi nanceiros, mais especifi camente, o capital fi nanceiro é a forma de capital dominante no Brasil e no mundo, de modo que a fi nanceirização da riqueza é um dado da realidade. Isso fez com que os próprios alimentos, na forma de commodities agroalimentares, se convertessem em ativos fi nanceiros e sejam afetados pela especulação fi nanceira em âmbito global. A crise alimentar de 2007-2008 evidenciou isso.
Nesta conjuntura de pandemia, quais deveriam ser as ações do Estado Brasileiro para a garantia da alimentação do povo? Qual o papel e desafi os que os pequenos agricultores estão enfrentando e ainda poderão enfrentar neste cenário?
O Estado brasileiro, mais particularmente, o governo brasileiro atual, não tem essa preocupação, ainda que uma ou outra ação continue mais por pressão social que por priorização do governo. Esses têm sido os casos do PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar) e PAA (Programa de Aquisição de Alimentos). Governos estaduais e mesmo municipais vêm atuando de forma importante. No entanto, é nas muitas ações relacionadas com abastecimento alimentar com forte participação das organizações e movimentos sociais que os agricultores familiares têm encontrado mais apoio.
Em entrevista para a Revista Nexo, 24 de abril, você mencionou que está em andamento a construção da Conferência Nacional Popular, Autônoma e Democrática em defesa da Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (SSAN). No que consiste a proposta, quais são os objetivos e expectativas de intervenção?
A construção da Conferência Popular é uma resposta da sociedade civil ao fechamento do CONSEA (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional) e desmonte do SISAN (Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional) desde os primeiros dias do Governo Bolsonaro, que implicou no cancelamento da V Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional prevista para ocorrer em 2019. A proposta da Conferência vem sendo construída por um amplo leque de entidades, com muitas atividades preparatórias que têm importância em si mesmas (“banquetaços”, debates virtuais, mobilizações junto a comitês de emergência, etc.). Porém, teve sua realização adiada em razão da pandemia. Não se tem expectativa de interlocução com o Governo Federal, que não tem qualquer interesse nesse tema e até atua contrariamente. No entanto, será fundamental o diálogo com a sociedade em geral e com os governos estaduais e municipais.