5 minute read

EDITORIAL

Next Article
OLHOS SOBRE A TELA

OLHOS SOBRE A TELA

Na obra Um tal Lucas, o argentino Julio Cortázar escreve o seguinte: “Em algum lugar deve haver um depósito de lixo onde estão amontoadas as explicações. Só há uma coisa preocupante neste exato panorama: o que vai acontecer no dia em que alguém conseguir explicar também o depósito de lixo.” As mortes por Covid-19 fazem parte da nossa rotina. Mais de quinhentas, mil por dia? O número varia. É como se despencassem do céu de três a seis aeronaves Boeing 737-800 todos os dias, isso sem considerar que há muitos indícios de subnotificação. Como acontece com tudo o que é cotidiano, não existe mais surpresa. Dá, inclusive, certo tom de normalidade (o “novo normal”?). Bandeira laranja, amarela ou vermelha? Tanto faz, as cores não têm mais distinção. Perdido o momento inicial de se fazer metas, elaborar planos, cumprir estratégias de contingência da doença e de suas consequências, resta agora a incrível normalidade da morte como um refrão que não sai da cabeça. Precisava ser assim? O que foi feito de efetivo e organizado para evitar este estado de “normalidade”? Como somos capazes, enquanto nação, de tratar de tantas vidas de forma tão

Advertisement

banal? Deve haver um depósito de lixo onde estão amontoadas as explicações a estas e muitas outras perguntas. “Morte após morte, todos estão esfarinhados na mesma corrosão: vaidade, sobrevivência, medo do outro.” Os versos de Paulo Venturelli são uma fria constatação. Tão fria que, ao lê-los, devíamos nos emudecer. Vaidade, sobrevivência, medo do outro, negação da doença e da ciência, movimentos contrários à vacina (que ainda nem existe), banalização da morte de idosos e adoentados são faces da mesma corrosão de caráter pela qual temos passado. Mesmo depois de tantos meses de crise pandêmica, o país em depressão econômica, ainda parece haver uma crença geral no mito da saída individual, do “salve-se quem puder”. Para Richard Sennet, em A corrosão do caráter, “esse é o problema do caráter no capitalismo moderno. Há história, mas não narrativa partilhada de dificuldade, e portanto tampouco destino partilhado. Nessas condições, o caráter se corrói.” Caráter em Sennet tem a acepção daquilo que nos caracteriza, nos distingue, nos define, nos dá contorno tanto no olhar para si mesmo, quanto no olhar que o outro nos dá sobre nós. Corroemo-nos, então, de muitas formas: em nossa

condição de ser humano, nossa percepção sobre si, nossa percepção sobre os outros e em nossas atitudes em face da realidade coletiva. Fora do destino partilhado, vivemos às cegas, tateando muros, “emparedados”. Trabalhadores e trabalhadoras têm sido postos numa linha de frente, entrincheirados num dilema falacioso (morrer de fome ou de doença?), enquanto os interesses do capital financeiro com suas reformas e ajustes vão se firmando: o home office, apesar do nome chique, é a usurpação do espaço de conforto e segurança das pessoas para uso ao alcance dos lucros dos patrões; os entregadores de aplicativos que vivenciam um trabalho precarizado, mas são chamados de empreendedores; a invasão do ensino à distância nas escolas como salvação da educação, embora só aumente o contingente de excluídos e restrinja a possibilidade de uma educação crítica; isso sem mencionar a questão ambiental e tantas outras. Existem planos para o mercado, mas não para garantir a vida e saúde das pessoas ou para o retorno seguro às aulas, por exemplo. Os argumentos de que a morte sempre triunfa e de que aqueles que estão morrendo são idosos e doentes, logo, sujeitos que não podem gerar lucro, demonstram como a vida humana é dispensável para

os anseios da fi nanceirização do capital. Assim, é possível se ter uma ideia de quem deve explicar a existência do depósito de lixo onde estão guardadas as explicações. A crise é o espaço para mudança, todos sabemos, mas no meio do turbilhão é fácil perder a noção da direção em que estamos indo. Para colaborar no (re)pensar o mundo, Desassossegos traz neste volume vários artigos provocadores de nossas refl exões e ações. Fernando de Sá Moreira aborda a meritocracia em tempos de pandemia. Na busca de ver luz onde aparentemente só existem trevas, Ana Claudia Santano analisa o contexto da pandemia e suas consequências sociais e para a vida das pessoas. Jeanine Geraldo Javarez questiona a efi cácia das manifestações em hashtags nas redes sociais. Peterson Nogueira discute as fake news e a política brasileira, combinando as obras O Bem-amado e Os Bruzundangas. Numa homenagem a Aldir Blanc, falecido por Covid-19 em maio, Roberto Amaral analisa a canção Resposta ao tempo. Fome, segurança e soberania alimentar são os temas da entrevista de Renato Sérgio Maluf, realizada por Igor de Barros Ferreira Dias. O confl ito entre o campo e a cidade é o assunto de José Aparicio da Silva, que examina o fi lme Tapete Vermelho, clara homenagem a Mazzaropi. A poesia nas margens é o tema do artigo da estudante Marcelly Maria Souza da Cruz. Referência da Literatura Negra brasileira, Miriam Alves nos presenteia com um conto que trata da velhice e do tempo. Neste volume ainda temos as ilustrações das estudantes Lilian de Assis Gonçalves e Ana Pérola Oliveira da Silva e fotografi a de Lis Guedes Fraga. “Cada morte rompe a textura da rede estendida: o mundo”, afi rma Elias Canetti no livro Sobre a morte. Somos nós de uma rede e cada nó desfeito representa fragilizar o todo. É preciso, então, pensar história, destino e futuro como elementos partilhados pelas pessoas, para que se possa construir um mundo para e com as pessoas. Um mundo compartilhado, aliás, é o ensinamento mais óbvio que a pandemia deveria nos deixar. Bons Desassossegos.

This article is from: