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PALAVRAS MAIORES
PALAVRAS MAIORES NOVA RESPOSTA AO TEMPO
por Roberto Amaral para Aldir Blanc
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Resposta ao tempo
Batidas na porta da frente É o tempo Eu bebo um pouquinho pra ter Argumento Mas fi co sem jeito calado, ele ri Ele zomba do quanto eu chorei Porque sabe passar E eu não sei Num dia azul de verão Sinto o vento Há folhas no meu coração É o tempo Recordo um amor que perdi Ele ri Diz que somos iguais Se eu notei Pois não sabe fi car E eu também não sei E gira em volta de mim Sussurra que apaga os caminhos Que amores terminam no escuro Sozinhos Respondo que ele aprisiona Eu liberto Que ele adormece as paixões Eu desperto E o tempo se rói Com inveja de mim Me vigia querendo aprender Como eu morro de amor Pra tentar reviver No fundo é uma eterna criança Que não soube amadurecer Eu posso, ele não vai poder Me esquecer Respondo que ele aprisiona Eu liberto Que ele adormece as paixões Eu desperto E o tempo se rói
Com inveja de mim Me vigia querendo aprender Como eu morro de amor Pra tentar reviver No fundo é uma eterna criança Que não soube amadurecer Eu posso, e ele não vai poder Me esquecer No fundo é uma eterna criança Que não soube amadurecer Eu posso, ele não vai poder Me esquecer
Compositores: Cristóvão Bastos/Aldir Blanc Letra de Resposta ao tempo © Sony/ ATV Music Publishing LLC Vocalista: Nana Caymmi
Resposta ao tempo é uma daquelas canções que começa por agradar desde o lirismo de sua abertura, pois que harmonizada por cordas que se submetem, sobranceiras, à maestria de um piano cuja vaidade não se nota, e pela marotice rítmica de um bongô que se espreguiça para redobrar. Trata-se, na verdade, de um delicioso e anacrônico bolero, quando interpretado pela voz matizada de ternura e sobriedade de Nana Caymmi. Composta por Cristóvão Bastos & Aldir Blanc, foi lançada em 1998, tornando-se, à época, tema de abertura da minissérie Hilda Furacão, inspirada no romance homônimo de Roberto Drummond, de 1991. Não assisti à minissérie, mas li o livro. Porém, isso foi há tanto tempo que nem lembro mais do enredo. Portanto, não me perguntem nada sobre ele. Quero falar aqui apenas e tão somente sobre a letra da canção.
A que desafio o Tempo, essa figura irresoluta e enigmática, lançou à Voz Lírica, a ponto de esta ter se sentido provocada o suficiente em dar-lhe uma resposta? Vamos, com calma, tentar elucidar tal mistério.
“Batidas na porta da frente É o tempo Eu bebo um pouquinho Pra ter argumento...” Na primeira estrofe percebe-se que o Tempo chega à casa da Voz Lírica. Com a soberba dos para sempre vencedores, não arromba a porta, mas bate com jeito, certo de que está cumprindo apenas um ritual muitas vezes por ele repetido: o de anunciar a sua passagem devastadora pela vida dos humanos, demonstrando com isso o seu poderio contra o qual não há força nem arranjo que o impeça de fazer o que precisa ser feito, a saber, fazer valer a sua perfeita imperfeição. A Voz Lírica, colhida pelo susto e pela apreensão, vê-se agora diante da situação em que precisa dar a resposta ao Tempo, já que, uma vez tendo aceitado o desafio por ele lançado, não pode mais calar-se. No entanto, é perceptível que ela não se preparou, pelo menos no sentido em que um bom retórico estaria preparado: com alegações bem formuladas, fundamentos incontestáveis, justificativas plausíveis, premissas ultra elaboradas, pressupostos, pretextos, silogismos, etc. etc. Em vez de tudo isso, a Voz Lírica entrega-se ao sabor do improviso, destinando seu argumento ao que a embriaguez lhe ditar.
“Mas fico sem jeito Calado, ele ri Ele zomba do quanto eu chorei Porque sabe passar E eu não sei”
Nota-se que o primeiro round do debate foi fragorosamente vencido pelo Tempo. A Voz Lírica, paralisada pela presença terrificante daquele que ajusta os relógios dos humanos ao seu bel prazer, vê-se em súbito emudecimento, imobilizada para qualquer gesto. Diante de, não decepcionante, mas já aguardada atitude, o Tempo executa seu ridente desprezo pelo incompreensível gosto humano em ficar aprisionado a acontecimentos que causam dor, tristeza, enfim, a um passado que não se deixa superar. A solução do Tempo é simples: deixar que tudo passe, subtrair-se a todos os reveses da vida.
“Num dia azul de verão Sinto o vento Há folhas no meu coração É o tempo… Recordo um amor que perdi Ele ri Diz que somos iguais Se eu notei Pois não sabe ficar E eu também não sei...”
Um exemplo do confuso querer humano estar sempre desajustado em relação ao Tempo, seja em relação ao passado, ao presente e ao futuro, é bem demonstrado pela enunciação da Voz Lírica que, embora tenha a oportunidade de usufruir dos prazeres de um dia azul de verão, vê seu coração cativo a outra estação, ou seja, exposto ao vento mortiço de um outono prenhe de melancolia. De qual dor a Voz Lírica se queixa? A velha e irremediável dor de amor. O Tempo a ela não perdoa por subjugar-se a mal tão tedioso quanto piegas, e lhe dispensa a sua mais sarcástica gargalhada. Curioso que, no caso em questão, o Tempo também não deixa de tripudiar sobre a Voz Lírica, ao atribuir a ela mesma a culpa por sua própria infelicidade, ao encontrar uma característica que os aproxima, qual
seja, a incapacidade de permanecer. Em outras palavras, a dor de amor sofrida pela Voz Lírica foi causada por sua assumida condição de não conseguir ficar ao lado de quem ela conquista.
“E gira em volta de mim Sussurra que apaga os caminhos Que amores terminam no escuro Sozinhos...”
Diante do mutismo da Voz Lírica, o Tempo não deixa de desfiar o seu novelo de imprecações, desdizendo do amor e de seus dissabores, tomando para si a tarefa de resolver o problema, ao apagar, com sua irrefreável passagem, todos os sinais e vestígios de amores vividos e de suas inevitáveis aflições. O Tempo, dessa forma, deixa de considerar uma das faculdades mais humanas: a capacidade de guardar lembranças na caixa forte da memória.
“Respondo que ele aprisiona Eu liberto Que ele adormece as paixões Eu desperto... E o tempo se rói Com inveja de mim Me vigia querendo aprender Como eu morro de amor Prá tentar reviver...”
É quando a Voz Lírica, rompendo o estupor que a imobilizou, começa a responder ao desafio do Tempo. O primeiro argumento que lhe vem à mente é quanto à percepção de que Cronos, um dos nomes gregos do Tempo, ao propor que os humanos atenham-se, tão somente, ao seu fluxo ininterrupto, dispensando qualquer envolvimento afetivo com seus variados acontecimentos; na realidade, nada mais faz que retê-los numa amorfa existência, vazia de sentimentos e de emoções, portanto, inumana. Tal condição, ambígua, contraditória e paradoxal, é justamente o que a Voz Lírica vai contestar ao Tempo como sendo o vau da liberdade, posto que o conjunto de acontecimentos que a forjam é constituidor da narrativa que modela no mármore do Tempo a feição humana. Eis que diante de tal argumento, o Tempo começa a ver ruírem as suas certezas e, qual um deus homérico, que traz consigo atributos divinos e humanos, vê-se sucumbir ao mal secreto tão comum entre nós: a inveja. Inveja essa que mobiliza o Tempo a querer aprender, às escondidas: como é isso de se morrer de amor para tentar reviver?
“No fundo é uma eterna criança Que não soube amadurecer Eu posso, ele não vai poder Me esquecer...”
A voz Lírica sentindo-se completamente empoderada por seus surpreendentes argumentos, inspirada que foi pelo verter do vinho, no qual, consta-se, reside a verdade, diverte-se, na derradeira estrofe, com a imaturidade do Tempo, uma imaturidade que não tem começo e não tem fim, portanto, eterna, a-histórica, inarrável, não humana.