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ÓCIOS
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Passagem do tempo
Miriam Alves
Sentado confortavelmente, no terraço da casa que construiu tijolo por tijolo, não com as próprias mãos, porque o seu ofício era outro. Ficava ali horas, ostentando com orgulho aquele fruto de anos de seu trabalho. Havia dias que contemplava a rua, esvaziando a mente, em outros, as lembranças vinham lhe fazer companhia. As recordações de infância faziam-se presentes, sentia-se transportado no tempo. Via-se moleque travesso atirando pedregulhos no poço no quintal, fi cava calculando o pedregulhos no poço no quintal, fi cava calculando o tempo do percurso da pedra atravessando a escuridão, tempo do percurso da pedra atravessando a escuridão, até quedar-se lá no fundo, fazendo um tibum ao atingir a até quedar-se lá no fundo, fazendo um tibum ao atingir a água. água. Cresceu, transformou-se num rapaz simpático, falante, Cresceu, transformou-se num rapaz simpático, falante, gostava de contar casos, histórias de suas aventuras, hábito que gostava de contar casos, histórias de suas aventuras, hábito que o acompanhou ao longo de sua vida. Fazia amigos com facilidade. o acompanhou ao longo de sua vida. Fazia amigos com facilidade. Uma juventude povoada de bailes. Galanteador, não lhe faltavam naUma juventude povoada de bailes. Galanteador, não lhe faltavam namoradas, às vezes duas ou três, o que lhe obrigava a fazer malabarismos, moradas, às vezes duas ou três, o que lhe obrigava a fazer malabarismos, para encontrá-las, para que uma não soubesse da outra. Esmerava-se no vestir, terno e gravata, camisa branca impecável, costume de uma época. Sapatos pretos engraxados e lustrados até assumirem o brilho de espelho.
Não vivia só de diversão, tinha suas responsabilidades, trabalhava de ofi cial alfaiate, profi ssão que aprendera aos doze anos, por imposição de pai e mãe, que se preocupavam em garantir-lhe um futuro digno. No começo não gostava, sonhava em ser pugilista ou tocar saxofone, como via os músicos negros americanos, que assistia nos fi lmes de Hollywood, quando levava alguma de suas namoradas ao cinema. Depois, pegou gosto se tornando um profi ssional requisitado. Além da vantagem de ter dinheiro para os seus prazeres, suas roupas eram confeccionadas, com requintes, nas alfaiatarias em que trabalhava, transformando-o no negro mais elegante das festas.
Quando se sentava ali, passava o fi lme de sua vida, e ele como diretor, roteirista e protagonista, selecionava as coisas prazerosas, para exibir na tela do seu íntimo. De vez em quando, a memória lhe traía e o levava para re-
cordações, lhe envolvendo em melancolia. Nesses momentos os olhos lacrimejavam, dava um aperto no peito, com a respiração entrecortada, assumia o autocontrole e lembrava do dia de seu primeiro casamento, com a única mulher que amou de verdade, como dizia, apesar de uma lista considerável de namoradas e amantes e ter se casado mais duas vezes. Quando se casou com ela, foi por amor, e seguir as orientações de seu pai, que para ser homem decente, responsável, não havia outro caminho a seguir, tinha que ter um lar, mulher e filhos. Era o certo a fazer, por mais que gostasse de uma vida de aventuras, o que nunca deixou de ter fora do casamento. Constituiu o que exigiam de um pai de família, com três filhos, trabalhou para dar comida, educação, um teto seguro, respeito na vizinhança, tendo a seu lado uma mulher forte, que o estimulava, repreendia, incentivava. Na ocasião em que ela veio a falecer, ele sentiu-se perdido, despedaçado, sofreu. Filhos crescidos, cada qual procurando seu rumo, viu-se livre para retomar os caminhos de quando era solteiro, mas sentia-se vazio, se casou novamente. Não se acertou com a segunda esposa, esperava dela a determinação da primeira, não encontrando, divorciou-se. Apesar de ter atingido a idade cinquentona, nunca deixou de cultivar, com vaidade, a elegância. Exercia seu charme galanteador, atraindo amigos com sua boa prosa, e o interesse das mulheres. Casou pela terceira vez. Forjou felicidade tendo uma prole de seis filhos, plano que sonhou ter com a primeira esposa. Ao passar do tempo, a memória o traía, com frequência, lhe fazendo reviver tristes lembranças. Para cada amigo que morria, um pouco de sua juventude se esvaía. Tornara-se longevo, alcançou a idade de noventa e dois anos. Vivenciou os fatos que impuseram as grandes mudanças no mundo. Testemunhou através dos jornais, rádio e televisão, os acontecimentos marcantes: a segunda guerra mundial, a ditadura de Getúlio Vargas, a marcha pelos direitos civis nos Estados Unidos da América, a mudança dos costumes com a revolução cultural da década de 60. Sentado na cadeira predileta, espera a passagem do tempo e a vida passar, deixando a memória vagar ao bel prazer. A casa construída com os frutos de seu trabalho, compartilhada com filhos, netos e bisnetos, noras e genros, não o afastava do sentimento de solidão. Eles, sem paciência para ouvi-lo contar suas histórias, o chamavam para levá-lo ao banho, ajudando-o a caminhar em seus passos sem o vigor de outrora. Ofereciam um prato de comida, que ele degustava só, ao som da televisão, seus olhos embaçados não conseguiam mais distinguir as imagens.
Miriam Alves é escritora. (Do livro Juntar Pedaços, a sair em breve pela Editora Malê, do Rio de Janeiro)
Miriam Alves é um dos nomes mais importantes da literatura que ficou conhecida como Negra ou Afro-brasileira. Ativista, foi integrante do coletivo cultural Quilombhoje de 1980 a 1989, sendo uma das primeiras mulheres a fazer parte do grupo. Publicou poemas e contos em Cadernos Negros, série literária mais influente da história cultural da afrodescendência no Brasil, a partir do volume cinco (1982), e também em diversas antologias nacionais e internacionais. Com trinta e sete anos de carreira, tem sete livros individuais publicados, sendo o primeiro Momentos de Buscas, poemas (1983), e o mais recente Maréia, romance (2019), publicado pela Editora Malê. O livro de contos Juntar Pedaços sairá em breve.
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