Revista Morashá - ed 110

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ANO xxvIII edição 110 MAR 2021


homenagem especial joseph safra z”l

ANO XXVIII - Março 2021 - Nº 110

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Carta ao leitor Estamos quase às vésperas de Pessach, que, este ano, cairá no dia 27 de março, 15 de Nissan de 5781. A história de Pessach, o Êxodo do Egito, é uma das celebrações maiores e mais antigas do mundo. Conta como, há muito tempo, um povo experimentou a opressão e foi conduzido à liberdade através de uma jornada longa e árdua pelo deserto. Essa história, recontada na noite do Seder ano após ano, continua sendo a fonte inesgotável de inspiração para todos aqueles que anseiam por liberdade. Em Pessach, mais do que qualquer outra data, vemos como a história de um povo pode se tornar a inspiração de muitos; como, leal à sua fé ao longo dos séculos, o Povo Judeu se tornou o guardião de uma visão por meio da qual “todos os povos da terra serão abençoados”. Desejo a todos um Chag Pessach Casher ve-Sameach.


ÍNDICE

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30

34

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03 carta ao leitor

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06 nossas festas

30 destaque

Milagre e fé

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sabedoria A Reencarnação e as “Viagens” da Alma

POR Rabino Gabriel Aboutboul

HISTÓRIA O Êxodo do século 20 POR ZEVI GHIVELDER Turquia e a diplomacia neo-otomana de Erdogan POR jaime spitzcovsky

34

ATUALIDADE O “Gabinete judaico” do Presidente Biden 4


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06 42

nossos sábios Rabi Adin Steinsaltz ZT’’L por TEV DJMAL

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SHOÁ Médicos nazistas, indignos de homenagens por Morton Scheinberg

SUPLEMENTO de PESSACH 5

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NOSSAS FESTAS

milagres e fé Pessach é a Festa da Fé. É conhecida pela Matzá que comemos, chamada de “pão da fé”, e pelos milagres que comemora, como são contados no Livro Êxodo e na Hagadá que recitamos durante o Seder. A fé e os milagres são temas que fazem parte de qualquer religião – e certamente da nossa. Mas qual o significado da fé e dos milagres segundo o Judaísmo?

A

fé não se relaciona apenas a crenças religiosas, mas, na mesma intensidade, senão mais, a uma infinidade de pequenas coisas que são parte de nossa vida diária. Certas pessoas são crédulas enquanto outras são céticas, mas todos somos crentes, em algum grau. Há muita fé mesmo em pessoas que se julgam ateus. Muitos de nós se orgulham de sua racionalidade, acreditando basear seus atos e crenças em conhecimentos precisos, fatos comprovados e uma apurada triagem de nossas opiniões. A verdade, contudo, é que ninguém é totalmente descrente. Todos nós aceitamos quase tudo de boa-fé.

Por exemplo, qual o estudante que tem tempo, recursos e conhecimentos necessários para verificar se cada uma das informações em seus livros didáticos de Geografia e Biologia estão corretas? Em História, também; quase tudo o que aprendemos não pode ser verificado: baseamos nosso conhecimento em fontes históricas que são muito subjetivas e, em certos casos, imprecisas. Contudo, as aceitamos e aceitamos os fatos como verdadeiros. E não apenas as crianças acreditam no que lhes é ensinado. Mesmo os adultos têm de dar, com frequência, muitos votos de confiança, acreditando no que lhes dizem. Por exemplo, damos um voto de confiança sempre que compramos um medicamento em uma farmácia: quem tem tempo e recursos para enviar o medicamento para um laboratório verificar se está tudo certo? E ainda que o mandássemos ao laboratório, teríamos que confiar que eles o verificariam corretamente. Da mesma maneira, sempre que entramos em um avião, damos um voto de confiança ao piloto, confiando que ele tenha capacidade de o pilotar, mesmo sem o conhecermos pessoalmente, e também confiamos que a aeronave esteja perfeitamente apta a voar, apesar de a maioria de nós não saber coisa alguma sobre aviação e pilotagem.

A fé está entranhada em nossa vida e é impossível viver sem ela. Quando crianças, acreditamos em tudo o que nos ensinam no colégio e raramente questionamos algo. A maior parte de nosso conhecimento, mesmo já adultos, não é verificada e, quase sempre, impossível de sê-lo – e nós acreditamos, de bom grado, que seja verdadeiro e correto. E o fazemos por ser praticamente impossível tentar comprovar até mesmo as coisas mais básicas. Não temos tempo nem recursos nem o conhecimento que nos permita pesquisar e tentar comprovar a maioria das coisas que julgamos saber. 6


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Iluminura. A REFEIÇÃO DE PESSACH, COM MATZOT. Sidur, Ferrara, 1520

Praticamente tudo o que alegamos saber se baseia em fé, em maior ou menor grau, pois é impossível ter certeza absoluta de algo, qualquer coisa que seja. De tempos em tempos, somos lembrados disso: os jornais admitem ter apresentado de maneira errônea os fatos; descobrem-se erros factuais em livros didáticos; uma empresa farmacêutica é processada por conter informações errôneas nas bulas acerca dos ingredientes, dosagens e instruções. Contudo, apesar de todas as informações erradas e os percalços, temos confiança nos professores, nos pilotos e nas empresas que produzem e manuseiam os alimentos que ingerimos e os medicamentos que tomamos.

possa verificar. Mas isso é impossível de ser feito. Mesmo o mais cético dos cientistas precisa fundamentar suas pesquisas e resultados em várias premissas, e mesmo aquele que é

CÁLICE DE KIDUSH PARA PESSACH, COM A ORAÇÃO HA-LACHMÁ -ANY’Á, QUE EXPLICA O QUE É A MATZÁ, NO SEDER DE PESSACH

Quando alguém alega ser cético, esse alguém não está fazendo uma afirmação precisa. Um verdadeiro cético despido de qualquer fé não aceita nada sem que ele próprio o 7

paranoico e obcecado por teorias da conspiração tem de aceitar que certas coisas são verdadeiras. Mesmo o ser humano menos crédulo tem de ter fé a cada instante de sua vida, desde acreditar que o Sol irá nascer no dia seguinte até crer que um gigantesco meteoro não colidirá com a Terra, fazendo-a desaparecer. Se as pessoas não tivessem fé alguma, elas não investiriam no futuro – nem em seus estudos nem em sua carreira, que dirá em poupar para sua aposentadoria – porque ao fazê-lo precisam ter fé de que estarão vivas para colher o que plantaram. A fé é onipresente e ninguém vive sem tê-la. Mas podemos decidir o que aceitar como fé e o que não. É importante observar, porém, que a percepção da dicotomia entre “questões de fé” e “fatos incontestáveis” tem menos a ver com racionalidade do que com o que é socialmente março 2021


NOSSAS FESTAS

iluminura. HAGADÁ RYLANDS, RITO SEFARADI, ORIGINAL DA CATALUNHA, ESPANHA, SÉC. 14

aceito em nossa sociedade, grupo social ou em nosso período histórico. Aquilo que é do “conhecimento de todos” é algo que não nos sentimos obrigados a comprovar, ao passo que tudo aquilo que não é parte do saber geral da maioria das pessoas fica a critério dos crédulos – ou seja, dos que creem. Todos nós conhecemos pessoas que não frequentam sinagogas ou igrejas pelo fato de julgarem não haver provas da existência de D’us, mas que falam, com naturalidade, sobre as vibrações ou buscam a cura nos cristais, ou mesmo que consultam a página de Astrologia no jornal. Nem todas as pessoas creem em tais superstições; algumas preferem aderir a outras menos óbvias, como acreditar em tudo que leem nas mídias sociais ou se deixar levar por influenciadores digitais e celebridades. Há pessoas que se recusam a procurar um lugar de oração porque alegam não ter provas de que as orações são eficazes, mas que creem que se vestir com roupas de certas cores no Réveillon traz boa sorte.

Há muita fé e talvez mesmo um excesso de credulidade nos seres humanos – mesmo entre aqueles que se vangloriam de serem céticos e racionais. A questão é: por que essa abundância de crença não inclui, na maioria das vezes, a fé em D’us? Talvez seja porque exige muito esforço o fato de se abrir a essa possibilidade, e talvez até uma mudança significativa na vida da pessoa. A principal razão para tantas pessoas acreditarem em superstições e, por outro lado, serem tão esquivas a ter fé em D’us é porque é muito fácil e não exige esforço algum crer em coisas banais. Já as crenças religiosas, essas carregam em si muitas consequências mentais, morais e práticas. Outra razão para o fato de os seres humanos aceitarem tantas coisas sem exigir qualquer prova é simplesmente o fato de não considerarem tais coisas importantes ou significativas. Por exemplo, se perguntássemos a um estudioso de História em que época viveu Alexandre, o Grande, essa pessoa nos daria a data e provavelmente vários detalhes sobre sua vida e seus feitos. Ninguém duvida da existência desse 8

grande líder militar grego. E por quê? Acreditamos na sua existência graças a registros históricos bastante antigos a respeito de eventos que ocorreram há mais de dois milênios. Obviamente, nenhum de nós conheceu Alexandre, o Grande, em pessoa. Acreditamos que tenha existido porque aceitamos como verdade o que nos dizem os livros de História da Civilização. Certamente há evidências circunstanciais que embasam a crença em sua existência, e mesmo o Talmud se refere a ele. Mas não podemos dizer que temos certeza de sua existência como temos dos governantes atuais. Alexandre, o Grande, viveu há muito tempo e ninguém tem como afirmar que haja prova absoluta e irrefutável de que ele não seja um personagem de ficção. Por que, então, é tão fácil as pessoas acreditarem na existência de Alexandre, o Grande? Porque não nos importa, ao menos para a maioria de nós, se ele realmente existiu. Se não existiu, mas é fruto da invenção de alguém, que diferença faz? Da mesma forma, aceitamos dados sobre o tamanho do Oceano Pacífico e sobre a altitude do Monte Everest. Essas crenças não trazem consequências, por isso aceitamos como verdadeiras as informações dos livros didáticos e dos mapas-múndi. No entanto, há certas crenças que acarretam muitas consequências. A fé em assuntos importantes e existenciais deixa muitas marcas em nossa vida: molda nossa visão de mundo e nosso comportamento, o certo e o errado e nossos valores de vida. A existência Divina obviamente tem implicações extensas. A aceitação de um princípio de fé não é difícil – nós o fazemos o tempo todo. O difícil é aceitar as consequências inerentes a esse princípio.


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Milagres e fenômenos naturais Quando, em 1961, os primeiros cosmonautas soviéticos retornaram do espaço, o premiê Nikita Khrushchev lhes perguntou: “Vocês viram alguém lá em cima?”. Quando responderam negativamente, Khrushchev declarou, alegremente, que isso constituía a prova derradeira de que D’us não existia. O raciocínio do líder soviético era que se os cosmonautas não viram D’us no espaço sideral – o lugar onde tantas pessoas acreditam, erroneamente, que Ele se encontra –, isso significava que Ele inexistia. O problema óbvio com a conclusão do líder soviético – além do fato de que D’us não é um ser físico – é que várias coisas que existem no mundo e têm profundo impacto em nossa vida não podem ser captadas por nossos cinco sentidos. O fato de os seres humanos não conseguirem ver algo obviamente não significa que esse algo inexista. Um exemplo atual e relevante, ainda que infeliz: não podemos ver a olho nu, falar, ouvir, tocar ou cheirar o Coronavírus. Contudo esse vírus virou o mundo de cabeça para baixo, afetando a vida de bilhões de pessoas. Os cientistas têm as ferramentas avançadas – potentes microscópios – que lhes permitem identificar o vírus. Mas, e se vivêssemos em uma época em que não se tinha o conhecimento científico nem esses poderosos microscópios para ver e identificar o Coronavírus? E mesmo hoje, apesar de todos os óbitos e destruição, há pessoas que alegam que o Coronavírus é uma fraude. Talvez essa gente siga o mesmo raciocínio que Khrushchev utilizou para tentar negar a existência Divina: aquilo que não conseguimos ver não existe. E mesmo quando os cientistas fornecem imagens

aumentadas do vírus, essas pessoas dizem que se trata de uma invenção da comunidade científica e da indústria farmacêutica que lucra com a mesma. Não há comprovação que baste para alguém que se recusa a crer em algo. Se há pessoas que esperam ver D’us “andando” pelo espaço sideral, elas ficarão desapontadas pois não O encontrarão. Há pessoas que entendem que um Ser Infinito não é corpóreo – e que, portanto, não pode ser visto –, mas que pedem milagres como prova da existência Divina. No entanto, filosoficamente – como indicou Maimônides (o Rambam) há quase um milênio – um milagre não prova coisa alguma. Um milagre apenas significa que algo de extraordinário ocorreu, e apenas isso. Um milagre que viola o que conhecemos por leis da natureza é simplesmente o que é: algo surpreendente que está além do que entendemos das leis da Ciência. Por exemplo: o relato

que consta na Torá sobre o cajado de Aaron ter virado uma serpente e depois voltar a ser um cajado é muito surpreendente e sobrenatural – não há explicação científica para isso. Mas não tem nada que ver com a existência de D’us. Nem sequer comprova que Aaron e Moshé eram emissários Divinos, pois, como a própria Torá nos conta, os feiticeiros do Faraó também souberam replicar esse feito sobrenatural. Os eventos sobrenaturais não provam que D’us exista. Tudo o que provam é que o mundo não é totalmente regido pela lei natural. Um evento sobrenatural é apenas uma anomalia – e nada mais. De fato, pode mesmo nem ser um evento significativo. Há uma parábola na literatura árabe que se aplica à nossa discussão. Um velho filósofo estava perdido em uma ilha com um jovem discípulo. Ele havia educado o jovem, ensinando-lhe tudo o que sabia. Quando cresceu, o aluno perguntou ao mestre: “Como

iluminura. HAGADÁ RYLANDS, RITO SEFARADI, ORIGINAL DA CATALUNHA, ESPANHA, SÉC. 14

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NOSSAS FESTAS

galáxia de Andrômeda e as girafas existem – quer acreditemos ou não em sua existência. E existem independentemente do fato de acreditarmos ou não em sua existência. Da mesma forma, a existência de D’us independe de seres humanos que acreditem ou não em Sua existência. D’us existe mesmo que ninguém o creia. Como ensinou Maimônides, os fatos moldam as opiniões e não o contrário – as opiniões não moldam os fatos. As coisas são verdade ou não; existem ou não existem, independentemente das crenças e opiniões das pessoas.

Os Milagres de Pessach

iluminura, HAGADÁ GOLDEN, barcelona, 1320

viemos parar neste mundo?”. E o professor lhe descreveu o processo. O jovem, apesar de sua educação e respeito pelo mestre, respondeu: “Isso que você me diz é uma ficção tão mirabolante que não dá para se acreditar. Por experiência própria sei que se eu não respirar por dois minutos, morro. E agora você vem me dizer que eu sobrevivi durante nove meses sem respirar! Isso claramente é uma impossibilidade, sem lógica alguma, e prova cabal de que toda essa história é inventada!”. Um dos pontos dessa parábola é que mesmo uma teoria improvável não compromete a realidade. Se algo existe, simplesmente existe, quer seja provável ou improvável,

quer acreditemos nesse algo quer não, quer possamos ou não provar sua existência. Se é, é; se não é, não é. Não importa quão plausível ou implausível seja algo, as opiniões de terceiros não têm impacto algum em sua existência ou inexistência. Por exemplo, acreditamos que as girafas existam porque a maioria de nós já as viu. Por outro lado, há pessoas que não creem na existência do Leviatã – uma gigantesca criatura marinha mencionada no Talmud e no Livro dos Salmos – pelo fato de nunca a termos visto. Mas se tivéssemos que descrever uma girafa a alguém que nunca tivesse visto esse animal, essa pessoa poderia dizer que se trata de um conceito implausível; as girafas não parecem mesmo criaturas plausíveis. O planeta Marte, a 10

Como o Êxodo do Egito marca a gênese do Povo Judeu como nação, muitos creem, erroneamente, que os eventos que levaram à libertação dos Filhos de Israel sejam as bases da Fé Judaica. Acreditam que a veracidade do Judaísmo gira em torno do fato de as Dez Pragas do Egito e da abertura do Mar serem decorrentes de milagres. E que, se houvesse explicação científica para a razão disso ter ocorrido, a história do Êxodo do Egito não seria prova alguma da existência de D’us e da veracidade da Torá. A verdade é que nós, judeus, somos os primeiros a admitir, como ensinou Maimônides, que os milagres não provam nada. O Judaísmo e seus princípios fundamentais, como o conhecimento da Existência Divina, a Providência e a Revelação independem da ocorrência das Dez Pragas e da abertura do Mar. Cremos em D’us e em Sua Torá não por causa do Êxodo do Egito, mas por causa da Revelação Divina no Sinai, perante milhões de pessoas.


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E por que o Judaísmo não se originou nos milagres ocorridos no Egito e no Mar de Juncos? Porque, como vimos acima, milagres não comprovam a existência de D’us nem a veracidade de religião alguma. Os membros de todas as religiões e até os idólatras conseguiram realizar milagres. A própria Torá atesta isso ao relatar que os feiticeiros do Faraó realizavam feitos sobrenaturais. Se um milagre é definido por romper as leis da Natureza, então o maior milagre de todos os ocorridos no Egito não foram as Dez Pragas nem a divisão do Mar. Foi, como dissemos acima, o cajado de Aaron ter virado uma serpente e depois voltado a ser o cajado. Chama atenção o fato desse fenômeno sobrenatural nem sequer constituir uma das Pragas. De fato, como conta a Torá, nem chegou a impressionar o Faraó, pois seus feiticeiros conseguiram replicar o mesmo feito. Entre as Dez Pragas, a única que constituiu um fenômeno sobrenatural foi a primeira: fazer as águas do Egito virarem sangue. Não há explicação científica para isso. Mas como a própria Torá nos conta, os feiticeiros do Faraó também conseguiram fazê-lo. Claramente, nem o cajado virar serpente nem as águas virarem sangue provaram algo sobre a existência de D’us. Afinal, como poderiam fenômenos sobrenaturais que podem ser realizados por feiticeiros politeístas, idólatras e malvados atestar a existência de D’us? E as demais nove pragas e a abertura do Mar nem mesmo foram sobrenaturais. Rãs, piolhos, insetos, pragas e morte do gado, chagas, granizo, nuvens de

iluminura, HAGADÁ GOLDEN, barcelona, 1320

gafanhotos, trevas e a morte súbita dos primogênitos foram eventos assombrosos, mas não sobrenaturais. Há explicações científicas até para o fato do granizo que abateu o Egito conter fogo. Quanto à abertura do Mar, isso poderia ter sido causado por um tsunami. Ironicamente, as últimas oito pragas, que não eram sobrenaturais, foram as que os feiticeiros egípcios não conseguiram reproduzir: eles conseguiram replicar apenas a praga do sangue – que foi, de fato, sobrenatural – e a praga das rãs. Isso serve de corroboração de que não podemos definir um milagre como sendo uma violação das leis da natureza, pois nove dos dez milagres que D’us realizou para libertar os judeus do Egito não foram fenômenos sobrenaturais. 11

O que, então, houve de milagroso nas Dez Pragas e na abertura do Mar, que constituem um dos temas principais do Seder de Pessach? Foi o fato de terem caído sobre os egípcios, poupando os judeus. O Faraó libertou os Filhos de Israel não pelo fato de o Egito estar assolado por desastres, pois estes ocorrem de tempos em tempos. Tampouco o impressionou o cajado de Aaron ter transformado as águas do Egito em sangue; seus feiticeiros também o fizeram. O que perturbou o Faraó foi o fato desses fenômenos só terem ocorrido com os egípcios, não com os judeus, que viviam na mesma terra. O mesmo se aplica às demais pragas, já que nenhuma delas caiu sobre os judeus e suas propriedades. Por exemplo, março 2021


NOSSAS FESTAS

como foi possível que uma praga apenas matasse o gado dos egípcios, sem afetar nem um único animal dos milhões de judeus que viviam no país? Seus animais não eram diferentes daqueles dos egípcios. Não há explicação lógica para os animais pertencentes aos judeus terem sido poupados. A 10ª praga finalmente derrubou o Faraó – não devido à morte súbita no Egito, mas porque foi direcionada a alvos específicos – os primogênitos egípcios, poupando todos os judeus. Finalmente, ficou claro ao Faraó aquilo que seus feiticeiros lhe tinham alertado, no momento em que não conseguiram replicar a terceira praga, a do piolho: tudo o que ocorria não era causado por forças aleatórias da natureza, mas eram ato de um Poder Superior que claramente punia os egípcios.

diferenciam entre os cidadãos de diferentes nacionalidades. A única razão lógica para as pragas pouparem os judeus foi o fato de não serem desastres naturais, mas sim, recursos usados pelo Todo Poderoso. Ou seja, os milagres do Egito não foram as pragas, mas o fato de terem sido instrumentos da Divina Providência. Se as pragas também tivessem atingido os judeus, não haveria milagre e o Povo de Israel não teria sido libertado. A Graça Divina a favor dos judeus expressa pelas Dez Pragas é o tipo de milagre que pode reforçar a fé na existência de D’us – a percepção de que os eventos no mundo, naturais ou sobrenaturais, não são aleatórios, mas sim, orquestrados por um Poder Superior. O propósito de um milagre, portanto, não é a violação das leis da natureza. O propósito de um milagre é nos fazer lembrar que

Assim sendo, a definição de um milagre – como explicamos em um artigo anterior em Morashá (Ed. 106, Os Milagres no Judaísmo) – não é necessariamente um evento sobrenatural, mas um favorecimento e ato de graça Divinos. O que as Dez Pragas e a abertura do Mar demonstraram, ao Povo de Israel e ao Faraó e seus magos, foi que Aquele que controla as forças da natureza poupou os judeus enquanto castigava os egípcios. O Mar de Juncos, as fontes de água de um país, as rãs, os piolhos e as demais pragas não 12

há um Ser Superior que coordena tudo o que ocorre no mundo, sejam essas ocorrências fenômenos naturais ou sobrenaturais. Em Pessach, e particularmente durante o Seder, narramos e celebramos os milagres – os favorecimentos Divinos – que conduziram à libertação de nosso povo da escravidão egípcia. Mas temos que enfatizar que mesmo os milagres da Providência Divina expressos nas Dez Pragas não constituem o berço do Judaísmo. Cremos na veracidade do Judaísmo não apenas por causa dos eventos que levaram ao Êxodo do Egito, mas por causa da Revelação Divina no Monte Sinai. Como explica o Sefer HaChinuch: Se D’us não Se tivesse revelado a todo o Povo Judeu no Monte Sinai e nos dado a Sua Torá, uma pessoa desafiadora poderia dizer, ao ver todos os milagres que Moshé realizou perante o Faraó e perante o Povo de Israel: “Quem sabe se Moshé os realizou por meio do poder de D’us ou por meio de técnicas demoníacas de sabedoria ou do poder do nome dos anjos?”. E apesar de que todos os sábios e feiticeiros egípcios disseram ao Faraó que Moshé fizera os milagres por meio do poder de D’us, como está escrito: “É o dedo de D’us” (Êxodo 8:15), mesmo assim uma pessoa obstinada ainda poderia dizer: “Tudo se deveu à superioridade de conhecimento de Moshé sobre a magia e as forças demoníacas que o levaram a fazer as mágicas – e foi por isso que os magos egípcios cederam perante ele”.


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seder de pessach, século 18, moses leib ben wolf

A existência Divina obviamente tem implicações extensas. A aceitação de um princípio de fé não é difícil – nós o fazemos o tempo todo. O difícil é aceitar as consequências inerentes a esse princípio. Em outras palavras, um cético poderia argumentar que Moshé dominava certas artes de magia que eram desconhecidas pelos egípcios, e por isso estes atribuíram os milagres a D’us apenas por desconhecerem o fato de que tais atos milagrosos podiam ser realizados por outros meios. Contudo, depois que o Povo de Israel vivenciou a profecia no Monte Sinai, ouvindo a Voz de D’us, não houve mais lugar para ceticismo algum. E eles entenderam claramente que todos os atos de Moshé haviam sido efetuados sob o comando do Mestre do Universo e que Sua Mão comandara tudo o que lhes ocorrera. Uma das razões para Pessach ser considerado a Festa da Fé é que apesar de haver documentos históricos e achados arqueológicos que atestem os relatos da Torá sobre as Dez Pragas, é preciso termos

fé e acreditarmos nelas, assim como fazemos ao estudar História Antiga. E ainda, uma pessoa cética pode sempre argumentar que essas pragas não provam a Existência Divina, pois pode ter sido apenas uma incrível coincidência o fato de terem assolado apenas os egípcios, poupando os judeus. Alguns desses argumentos são válidos, e é por essa razão que o Êxodo não constitui a base do Judaísmo. A história da saída do Egito é relatada pelo segundo livro da Torá e está associada a muitos mandamentos do Judaísmo, inclusive à própria mitzvá de mencionar o Êxodo todos os dias de nossa vida. Contudo, as Dez Pragas e a abertura do Mar de Juncos não constituem a base do Judaísmo. Afinal, como ensinou o Rambam, os milagres não provam nada. Mas os eventos históricos, particularmente quando 13

envolvem milhões de pessoas, como foi a Revelação Divina no Monte Sinai, exigem uma medida de fé, mas o tipo de fé que é usado pelos cientistas e historiadores respeitados e por todos aqueles que buscam sinceramente a verdade – a fé que é aceita como fato apenas porque se baseia em evidência concreta. Pessach celebra a liberdade do Povo Judeu, mas apenas marca o início de um processo que culmina 50 dias depois, na festa de Shavuot, quando celebramos a Divina Revelação no Monte Sinai – um evento no qual a fé em D’us do Povo de Israel foi corroborada com fatos concretos. BIBLIOGRAFIA

Simple Words - Rabbi Adin Even-Israel Steinsaltz - Simon & Schuster The Schottenstein Edition Sefer Hachinuch / Book of Mitzvos - Volume #1 - Artscroll - Mesorah

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sabedoria

A Reencarnação e as “Viagens” da Alma por Rabino Gabriel Aboutboul

Reencarnação, – as “viagens” feitas pela alma e como isso afeta nossa vida – um tema místico, extenso e complexo QUe requer muitos anos de estudo profundo. Tanto a Torá quanto o Talmud fazem alusões à reencarnação, mas este assunto é tratado extensamente nas obras da Cabalá. Neste artigo abordaremos algumas ideias gerais sobre o tema de acordo com o Judaísmo.

A

reencarnação é um conceito judaico abordado em profundidade nos estudos da Cabalá. O Rei Salomão escreveu Dor Holech, VeDor Ba - “Uma geração vai e uma geração vem” (Eclesiastes - Cohelet 1:4). Nossos Sábios revelam que essa frase alude ao conceito da reencarnação: na geração que vai e na geração que vem, há uma volta – um retorno das gerações. Isto é, as almas, conforme ensinam os livros místicos, não são novas.

reencarnação levanta muitas perguntas. Por que uma alma reencarna? Como e quando volta ao mundo? E qual o propósito dessa volta? Essas são algumas perguntas que abordaremos neste artigo.

A Neshamá – a Alma Antes de abordar alguns conceitos sobre reencarnação, é necessário entender o que significa neshamá – alma. A neshamá é uma energia espiritual que se expressa por meio do corpo de um ser humano. A alma é o “eu verdadeiro”.

Em hebraico, a palavra para reencarnação, guilgul, tem a mesma raiz que a palavra galgal, que significa roda. Ida e volta, subida e descida são ciclos que vão se fechando na vida de uma pessoa. Em hebraico, tanto a palavra guilgul como a palavra hessed (bondade, generosidade) possuem o mesmo valor numérico de 72. Isso significa que esses dois conceitos estão relacionados. De fato, é uma bondade Divina o fato da alma poder retornar ao mundo para completar e aperfeiçoar sua missão.

O Judaísmo ensina que o corpo é sagrado – constitui um bem precioso que D’us dá ao ser humano. Ele é o instrumento que permite que a alma se expresse no mundo material e realize a vontade de D’us. O princípio da reencarnação se baseia no fato de haver certas coisas que a alma pode realizar apenas em um corpo, quando encarna, mas não nos Céus. É, portanto, um mandamento do Judaísmo – uma mitzvá da Torá – cuidar do corpo e da saúde.

O conceito de reencarnação não é fundamental para o dia-a-dia. Contudo, saber um pouco sobre a volta da alma ao mundo nos ajuda a entender com mais profundidade a essência da vida. O conceito de

Diferentemente do corpo, a alma, como citamos acima, é constituída por energia espiritual. Quando o ser humano 14


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falece, essa energia espiritual se separa do corpo e adentra outra dimensão espiritual. Mas essa energia pode também, mais cedo ou mais tarde, retornar ao nosso mundo físico por meio da reencarnação. O ser humano é composto por uma alma animal - Nefesh HaBehamit - a alma vital que está ligada à vida do corpo – e uma alma Divina – Nefesh HaElokit – a alma responsável pela nossa essência. Quando falamos de reencarnação, estamos nos referindo à alma Divina, que vem e retorna ao mundo, possivelmente múltiplas vezes, para cumprir sua missão. A alma Divina se divide em cinco níveis – cinco partes espirituais. Três desses níveis estão presentes em nós, em nosso dia-a-dia. Esse é um dos motivos por que, nos dias da semana, rezamos três vezes – Shacharit, Minchá e Arvit. Cada uma dessas 15

três orações está associada a um dos três níveis da alma. O quarto nível da alma se revela no Shabat, em Rosh Chodesh (o novo mês judaico) e nas Festas Judaicas (Chaguim). É por esse motivo que em tais datas há uma oração adicional – Mussaf. O quinto nível da alma – o mais elevado e espiritual, que nunca se separa de D’us – revela-se uma vez ao ano – em Yom Kipur, particularmente durante a reza

da Neilá. Este dia é o único no calendário judaico em que há cinco orações – Shacharit, Minchá, Arvit, Mussaf e Neilá – porque nesse dia os cinco níveis da alma se revelam. Em certos momentos cruciais da nossa vida esse quinto nível da alma também pode se revelar. O fato de haver cinco níveis da alma é o motivo por trás do costume chassídico, baseado em ensinamentos da Cabalá, de se acender, durante a semana de luto, cinco velas para a alma de uma pessoa falecida. Há, na tradição judaica – e isto consta no Shulchan Aruch, o Código de Lei Judaica, o costume de visitar, em dias especiais, o túmulo de entes queridos. Pergunta-se: se as almas reencarnam, qual o propósito de visitar túmulos? A resposta é que o primeiro nível da alma permanece no túmulo. Essa parte da alma não MARÇO 2021


sabedoria

reencarna: ela permanece ligada ao corpo. Esse é o significado da visita ao cemitério e da colocação da Matzevá – a pedra tumular. A Matzevá é chamada de abrigo da alma. Esta visita, nesses dias especiais, traz tranquilidade e proporciona felicidade à alma do falecido.

O que nossa alma se recorda No Judaísmo não há a busca pelo conhecimento do que fomos ou fizemos em vidas passadas. Certos Tzadikim – almas excepcionais, em raríssimos casos, pronunciaramse a esse respeito. Alguns dos grandes Sábios conseguiram “ver” a trajetórias das almas – isto é, “viram” o que certas pessoas fizeram em vidas passadas. Mas, isso é algo que raramente ocorre. Mundo afora, muitos se aventuram a falar desse assunto como se fosse corriqueiro – pois é algo que fascina e atrai as pessoas. Muitos pseudomísticos, que falam com autoridade sobre o conceito de reencarnação, descrevem outros mundos e afirmam ter viajado de um mundo para outro. Em alguns casos, até dizem conseguir ver quem esta ou aquela pessoa foi em vidas passadas. Na esmagadora maioria dos casos, as informações transmitidas sobre reencarnação e vidas passadas são falsas, e muitos dos que as transmitem não possuem as habilidades nem o conhecimento necessário, outros não passam de charlatães. Esse assunto requer habilidades espirituais incomuns, muita sabedoria e muitos anos de estudo. Certamente não é algo que esteja ao alcance de qualquer um.

– não devemos acreditar com facilidade em pessoas que alegam possuir “poderes sobrenaturais”. Como ensinam nossos Sábios: “Quem sabe não fala e quem fala não sabe”. O Judaísmo aconselha que nos afastemos de tais práticas e pessoas. Foram pouquíssimos os Tzadikim – verdadeiros Sábios e cabalistas – que possuíam o poder de ver além de nosso mundo físico. Uma pergunta feita com frequência é se a alma mantém lembranças de vidas passadas e se essas recordações teriam relevância para a vida atual. Uma resposta a essa pergunta se encontra no Talmud: durante o período de gestação, um anjo ensina a Torá ao feto, mas quando o bebê nasce, o anjo toca nos seus lábios e a criança esquece o que estudou. Perguntam os nossos Sábios: por que motivo o anjo ensinou a Torá à criança enquanto estava no útero da mãe se o bebê se esquece de tudo que aprendeu assim que nasce? Eles respondem: porque é muito mais fácil lembrar algum ensinamento

esquecido do que aprendê-lo pela primeira vez. Esse mesmo conceito se aplica à reencarnação: mesmo que não nos lembremos do que ocorreu em vidas passadas, é mais fácil percorrer o caminho correto se nossa alma carregar consigo as experiências e lições de vidas passadas. Vale ressaltar, porém, que há almas muito especiais que têm plena consciência de quem eram e do que vivenciaram em vidas passadas. Pergunta-se: por que não é dado a todos nós o poder de lembrar do que ocorreu em vidas passadas? A resposta: porque não precisamos dessas memórias. Se precisássemos, D’us nos permitiria lembrar de tudo que ocorreu em nossas vidas passadas. O conhecimento de quem fomos e do que fizemos em vidas anteriores limitaria nosso livre arbítrio. A alma volta a este mundo por diversos motivos, inclusive para retificar erros do passado, mas se soubéssemos com clareza o que é necessário retificar, nossas escolhas seriam pré-definidas.

é uma bondade Divina o fato Da alma poder retornar ao mundo para completar e aperfeiçoar sua missão.

Quando se lida com assuntos espirituais, todo cuidado é pouco 16


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Isso não significa que não carregamos nenhuma lembrança de vidas passadas. Por exemplo, há pessoas que possuem conhecimentos intuitivos sobre certas ideias, idiomas ou lugares. Isso pode significar que tais ideias ou lugares tiveram relevância em sua vida passada e isso ficou profundamente embutido em sua alma. Em outras palavras, mesmo que a maioria de nós não consiga acessar as lembranças de vidas passadas, algumas ideias ou experiências permanecem em nossa alma. É importante ressaltar que nós, judeus, não buscamos acessar tais lembranças. No Judaísmo, não há a busca pelo que fomos ou fizemos em vidas passadas. A Torá nos ensina que devemos nos concentrar no presente – no que precisa ser feito hoje e agora – e olhar para o futuro, não para o passado. O que importa não é o que fizemos em vidas passadas, mas o que faremos nesta vida.

Conhecer o passado pode explicar o futuro Em certas circunstâncias, conhecer o que nos aconteceu em outras encarnações nos ajudaria a entender certas situações que ainda não somos capazes de entender. Algumas histórias sobre o Baal Shem Tov, o fundador do movimento chassídico, que viveu há aproximadamente 300 anos, exemplificam o conceito de como o conhecimento sobre vidas passadas ajuda a entender certas situações da vida atual. Uma vez, um aluno perguntou ao Baal Shem Tov sobre a aparente falta de Justiça Divina no mundo.

ilustração das sefirot

O Baal Shem Tov contou ao aluno a seguinte história: uma pessoa muito rica estava de viagem e deixou seu dinheiro guardado com um amigo sem recursos. Como confiava plenamente no amigo, não deixou por escrito nada que indicasse ser o dono do dinheiro depositado com o amigo. Enquanto o homem rico estava de viagem, o amigo faleceu. Os filhos deste último, homem pobre, encontraram o dinheiro. Ficaram surpresos, pois haviam passado por dificuldades ao longo da vida, e dividiram o dinheiro entre si. Depois de alguns meses, o homem rico voltou e perguntou aos filhos de 17

seu amigo onde estava seu dinheiro. Estes lhe perguntaram se possuía algo demonstrando que o dinheiro lhe pertencia. O homem respondeu que não, pois confiava plenamente no pai deles. O homem levou o caso ao rabino de sua cidade. De acordo com a Lei da Torá, só se pode tirar algo de alguém – dinheiro ou posses – por meio de um documento ou algum outro tipo de prova. Como ele não possuía nenhum documento provando que o dinheiro era seu, mesmo o rabino tendo achado sua história convincente, respondeu que não havia nada que ele pudesse fazer. MARÇO 2021


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E assim, o dinheiro permaneceu com os filhos do falecido. Depois de contar essa história, o Baal Shem Tov pediu ao aluno que fosse a um certo oásis – que subisse em uma árvore e lá permanecesse para testemunhar um evento. O aluno seguiu as instruções do Baal Shem Tov. Pouco tempo depois, chegou um homem ao oásis, bebeu água, deitouse para descansar e soltou o cinto que vestia, onde carregava moedas de ouro. Após descansar, esse homem se levantou e continuou seu caminho, mas esqueceu o cinto com as moedas. Pouco tempo depois, chegou uma outra pessoa no oásis e encontrou as moedas. Como não havia ninguém por perto, pegou as moedas de ouro e foi-se embora. Chegou um terceiro viajante ao oásis, e também parou para descansar. De repente, o homem que havia se esquecido do cinto volta à procura das moedas. Não as encontrando, começou a discutir com esse terceiro viajante, exigindo que devolvesse as moedas. Chegou até a agredi-lo fisicamente,

até ele se convencer que o terceiro viajante não havia encontrado nenhum dinheiro. O aluno do Baal Shem Tov presenciou o incidente e, quando voltou ao Mestre, ele lhe explicou o que ocorrera. O primeiro viajante era a reencarnação do homem pobre cujos filhos ficaram com o dinheiro do amigo. Ele perdeu as moedas porque os filhos haviam ficado com o dinheiro que não lhes pertencia na vida anterior. O segundo era a reencarnação do homem rico: ele recuperou o dinheiro que havia perdido na vida anterior. O terceiro viajante havia sido o rabino na vida anterior, que permitiu que os filhos do homem pobre ficassem com o dinheiro que, na realidade, não pertencia ao pai deles. Ele foi agredido fisicamente pelo primeiro viajante porque, apesar de ter seguido a lei da Torá, causara sofrimento ao homem rico. O Baal Shem Tov explicou ao aluno que o que ele presenciara

no oásis tinha sido uma resposta à sua pergunta sobre a Justiça Divina. Em outras palavras, uma injustiça ocorrida em uma vida foi retificada em uma vida posterior. Contudo, a verdade é que raramente conseguimos vislumbrar a história como um todo. O conceito da reencarnação nos ajuda a compreender que há muito que não entendemos porque não somos capazes de ver a história inteira de nossa vida – a trajetória de nossa alma em encarnações passadas. Mas é importante que saibamos que todos os eventos de nossa vida têm presente, passado e futuro. Há créditos e débitos do passado e missões para o futuro. Quais os ciclos e como se fecham constitui uma esfera de conhecimento que está muito além do alcance de cada um de nós. Mas o importante é entendermos que cada alma possui uma missão especial de trazer retificação ao mundo. Uma segunda história que transmite ensinamentos sobre a reencarnação: uma pessoa muito rica foi visitar o Baal Shem Tov. Era comum as pessoas o procurarem em busca de conselhos ou bênçãos, mas esse homem não foi pedir nada ao Mestre – só desejava conhecê-lo. O Baal Shem Tov o recebeu e disse que já que ele havia vindo de longe, não permitiria que fosse embora de mãos vazias – contaria a ele a seguinte história: Em uma cidade, havia dois colegas de escola. As duas crianças eram tão amigas que, todos os dias, uma delas dava à outra metade de seu lanche. Os dois cresceram e se casaram. Mas, antes de se casarem, fizeram um pacto: seriam como irmãos pelo restante da vida e sempre se apoiariam. Os dois foram viver

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em cidades diferentes. Um deles se tornou muito rico. Já o outro, empobreceu. Um dia, o amigo sem recursos disse à esposa que viajaria para visitar seu amigo de infância e lhe pedir ajuda. Chegando à casa do amigo rico, este o recebeu com um sorriso no rosto. O amigo sem recursos contou que estava passando por muitas dificuldades. Ao ouvir isso, o outro chamou o seu contador e disse: “Quando éramos crianças, este meu amigo me dava metade de seu lanche todos os dias. Por favor, faça a conta de tudo que possuo e dê metade a ele”. O amigo esperava ajuda, mas nunca tamanha generosidade. E voltou a seu lar tendo recebido metade das posses de seu amigo. Com o passar do tempo, tornou-se até mais rico do que o outro que lhe havia dado metade de tudo que possuía. Tristemente, o amigo que havia sido tão generoso, perdeu dinheiro e se encontrou em uma situação de penúria. Agora, era ele que precisava pedir ajuda ao amigo. Viajou a seu encontro para lhe pedir ajuda, certo de que sua generosidade seria retribuída. Mas quando finalmente conseguiu ser atendido pelo amigo, este disse que não o conhecia, que não ajudava ninguém e o mandou embora. De tanto desgosto e tristeza, o homem generoso, que havia perdido sua riqueza, faleceu no mesmo dia. Curiosamente, o amigo que havia se recusado a ajudá-lo, também morreu no mesmo dia. As duas almas foram para Gan Eden, onde se iniciou o julgamento de ambos. Para a Corte Celestial, era evidente qual seria o veredicto. Contudo, o amigo generoso intercedeu: não queria que seu amigo sofresse por sua causa. Os Céus decidiram que as duas almas voltariam ao mundo nas mesmas circunstâncias em que se

zohar, “o livro do esplendor”

encontravam quando saíram dele. O rico continuaria rico e o pobre continuaria pobre e, um dia, ambos voltariam a se encontrar, mas não se lembrariam do que havia ocorrido na vida anterior. De fato, um dia, um homem pobre bate à porta de um homem rico e lhe pede ajuda, pois estava passado fome. O homem rico o recebe, recusa-se a ajudá-lo e o envergonha. De tanta vergonha o pobre morreu. Uma segunda chance havia sido dada à alma do homem que havia se recusado a ajudar o amigo em uma vida anterior – e ele a desperdiçou. O Baal Shem Tov termina de contar essa história e percebe que o visitante está pálido. Este diz ao Mestre: “Foi exatamente isso que aconteceu comigo: um homem pobre me pediu ajuda e eu o despachei, de mãos vazias. Isso significa que não há mais salvação para mim?”. O Baal Shem Tov responde-lhe: “D’us o encaminhou aqui para que você possa se salvar. Você deve fazer o seguinte: procure a família do homem a quem você se recusou a ajudar, e lhes dê tudo o que precisam até o resto de suas vidas. O resto 19

do dinheiro você dá aos pobres – você próprio não tire proveito deste dinheiro. Assim, sua alma retificará o erro do passado”. Essa história transmite a ideia de que se o ser humano tivesse memória do que ocorreu em vidas passadas, saberia exatamente o que fazer para retificar os erros cometidos em encarnações anteriores. Contudo, isso tiraria o livre arbítrio da pessoa. Precisamos viver a vida sem saber o que ocorreu em encarnações anteriores para que possamos tomar boas decisões que, por si só, retifiquem os erros de vidas passadas. O Talmud ensina que, “o pobre faz mais pelo rico do que o rico faz pelo pobre”. Em certos casos, uma pessoa que nos pede ajuda pode estar nos dando a oportunidade de retificar erros cometidos em vidas passadas: é possível que essa pessoa nos tenha ajudado em uma vida passada e esta é a oportunidade de pagar a dívida. O conceito da reencarnação nos ensina que não conseguimos ver todo o ciclo das nossas vidas. Assim, devemos ver a vida que estamos vivendo de maneira diferente – com mais humildade. Precisamos MARÇO 2021


sabedoria

também ver que na Torá existe o mandamento tanto de dar como o de receber ajuda, e que a alma vem a este mundo para cumprir todos os mandamentos. Muitas pessoas gostam apenas de dar, não de receber. Mas, às vezes, receber ajuda também constitui uma mitzvá a ser cumprida. Como vimos nas histórias do Baal Shem Tov, uma alma pode voltar ao mundo para retificar um erro de uma vida passada. Vale lembrar que, em Yom Kipur, D’us perdoa os pecados cometidos contra Ele, mas não contra os seres humanos. Cabe à pessoa retificar os erros cometidos contra outras pessoas. Se os erros não forem retificados durante uma vida, existe a possibilidade de as mesmas almas reencarnarem e passarem por uma situação similar que permite que o erro de uma vida anterior seja retificado. Para a alma constitui uma forma de conseguir o Tikun – o conserto espiritual de uma falha. Esta, porém, não é a única forma de consegui-lo.

voltar ao mundo diversas vezes para cumprir missões diferentes. Geralmente, as almas de mulheres não precisam reencarnar tantas vezes como as dos homens. O motivo disso é que as almas das mulheres são mais perfeitas – assim, não necessitam tanto de retificação. Os livros místicos ensinam que muitas almas femininas voltam ao mundo não porque necessitam de alguma retificação, e sim, para ajudar sua alma gêmea, seus filhos ou algum familiar.

Várias almas em um corpo? Existe a possibilidade de várias almas habitarem um mesmo

corpo? A resposta é que isso é uma possibilidade. Existe no Judaísmo o conceito de dibuk – possessão. Não é exatamente o mesmo fenômeno que é trazido em livros e filmes de ficção, mas é uma realidade reconhecida pelo Judaísmo. Contudo, evocar espíritos é terminantemente proibido pela Torá, pois envolve forças negativas. O Judaísmo proíbe que as pessoas se envolvam com tais práticas. A segunda situação em que mais de uma alma pode habitar dentro de um único corpo é um fenômeno denominado ibur. O ibur neshamot (gravidez das almas) ocorre quando uma alma se “acopla” temporariamente a outra.

Pergaminho cabalístico, 1605. Oxford Library

Quantas vezes reencarnamos A alma tem inúmeras chances de reencarnar. Podemos voltar para retificar erros de vidas passadas, mas a cada viagem da alma, ela acumula bons atos. O bem que fazemos durante nossas vidas – tanto a atual como as passadas – se acumula. Isso vale tanto para o indivíduo como para o mundo como um todo. A cada geração, o mundo acumula mais e mais energia positiva. Esse é o fenômeno que levará à Era Messiânica – a utopia tão almejada pelo Povo Judeu e pela humanidade. Ao reencarnar diversas vezes, a alma recebe inúmeras oportunidades de crescer e se desenvolver. A neshamá pode 20


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O ibur ocorre quando a alma de um Tzadik ou de um ente querido se “acopla” a um corpo. Por exemplo, o Patriarca Avraham constitui o símbolo da bondade. Caso uma pessoa que tenha praticado a bondade por toda a vida encontre obstáculos em sua capacidade de ajudar ainda mais os outros, uma parte da alma de Avraham pode se “acoplar” a essa pessoa para lhe dar mais ímpeto – abrir novos horizontes para que ele continue a praticar a bondade. Nesse caso, essa pessoa teve o grande mérito de ter consigo, temporariamente, parte da alma de Avraham Avinu, graças aos seus atos de generosidade Há momentos em que sentimos que entes queridos estão ao nosso lado. Podemos sentir a força de nossa mãe, pai, avô ou avó. Isso não significa necessariamente que a alma de tal pessoa esteja “acoplada” à nossa. Contudo, existe essa possibilidade. A segunda situação em que uma alma se “acopla” a uma pessoa ocorre quando a alma cumpriu sua missão, mas ficou faltando algum detalhe que não foi realizado – não por sua culpa, mas por motivos circunstanciais. Nesse caso, a alma não precisa voltar ao mundo e viver mais uma vida, mas precisa completar o que lhe falta. Um exemplo é a mitzvá do Pidion HaBen – o resgate do primogênito. Para um homem completar essa mitzvá, há uma série de exigências, entre elas, que tanto o pai como a mãe não sejam Cohanim ou Levi’im e que o menino tenha nascido de parto natural. Uma série de circunstâncias pode fazer com que uma pessoa não consiga cumprir a mitzvá do Pidion HaBen. Nesse caso, a alma que nunca cumpriu essa mitzvá se

“acopla” ao pai que está realizando a cerimônia para o seu filho e, assim, essa alma está se beneficiando e atingindo a perfeição espiritual. Depois de participar do Pidion HaBen, a alma parte do mundo.

extremamente profundo que requer muito estudo e que deve ser abordado com muito cuidado. Mas saber da existência de vidas passadas amplia o nosso panorama e a nossa responsabilidade.

Qual é a nossa missão?

Todos carregamos uma carga genética de nossos pais e dos nossos avós, mas possuímos também uma carga muito mais profunda de várias vidas passadas. Cabe a nós decidir o que fazer – como dar continuidade ao Judaísmo e à nossa herança espiritual. Somos fruto de uma história e cabe a cada um de nós não desperdiçar essa história.

Todos nós temos uma missão especial e singular – tanto individual como coletiva. Mas a grande maioria de nós não sabe exatamente qual é nossa missão. Nossos Sábios ensinam que há alguns indicativos. De maneira geral, viemos ao mundo para fazer o bem – cumprir os 613 mandamentos da Torá. Mas os Sábios do Talmud ensinam que nossa missão está associada aos mandamentos da Torá que fazemos com mais cuidado e carinho. Ao mesmo tempo, nossa missão também pode estar ligada a um mandamento da Torá que encontramos muita dificuldade em realizar. Essas dificuldades podem indicar erros de vidas passadas que precisamos corrigir nesta vida. Concluímos este ensaio sobre os fundamentos da reencarnação ressaltando que esse é um tema 21

Todo ser humano carrega consigo não apenas o legado milenar de seus antepassados, mas também os atos que realizou em encarnações anteriores. A cada dia de nossa vida temos a oportunidade de crescer espiritualmente, corrigindo erros de vidas passadas e acumulando méritos, e isso nos leva tanto à nossa própria elevação espiritual como a de todo o mundo.

Rabino Gabriel Aboutboul é rabino da Sinagoga de Ipanema no Rio de Janeiro e palestrante

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HISTÓRIA

O ÊXODO DO SÉCULO 20 Por ZEVI GHIVELDER

NO DIA 15 DE JUNHO DE 1970, ONZE JUDEUS SOVIÉTICOS CAPTURARAM UM AVIÃO NO AEROPORTO DE LENINGRADO. PRETENDIAM VOAR PARA A SUÉCIA E DE LÁ PARA ISRAEL. FORAM PRESOS E NO DIA 28 DE DEZEMBRO DO MESMO ANO, SENTENCIADOS A LONGAS PENAS. ESTE JULGAMENTO FOI O ESTOPIM DE UM PROTESTO QUE TRANSFORMOU O MUNDO JUDAICO E O ESTADO DE ISRAEL.

A

vida dos judeus na Rússia e na União Soviética foi marcada por muitos séculos com sangue e lágrimas. A repulsa aos judeus está entranhada na alma russa desde o século 11, quando se constituiu a Igreja Ortodoxa Russa que consagrou nos respectivos cultos apenas o Novo Testamento e, portanto, ignorou as raízes bíblicas do Povo Judeu, acusado para sempre como “responsável pela crucificação de seu Senhor”. É um sentimento que perdurou por dois mil anos e até hoje permanece vivo.

No início da revolução soviética, foi o judeu Leon Trotsky, cujo verdadeiro sobrenome era Bronstein, quem assumiu as rédeas do país ao lado de Lenin. Somente meses mais tarde, ao ocupar um posto menor no novo governo, o georgiano Iossif (depois Joseph) Vissarianovitch Ivanovitch Djugashvili, autodenominado Stalin, criou um departamento que deu origem à Yevsektzia, braço judaico do Partido Comunista. De dezembro de 1918 a agosto de 1919 coube a este órgão a bem-sucedida missão de abolir nas escolas judaicas o ensino do idioma hebraico, proibir as lições religiosas, suprimir qualquer manifestação de caráter sionista e eliminar todas as instituições judaicas tidas como incompatíveis com o marxismo. Cumprida a tarefa, Stalin escreveu um artigo para uma publicação soviética, no qual afirmou: “As massas judaicas agora têm sua pátria-mãe socialista que está sendo defendida ao lado dos trabalhadores e camponeses russos contra o imperialismo ocidental e seus agentes. A questão judaica não mais existe na Rússia soviética. Os trabalhadores judeus e as massas operárias doravante possuem direitos civis e nacionais”. E a última frase, uma síntese da falsidade: “A cultura judaica não mais encontra obstáculos para o seu desenvolvimento”. A maioria dos judeus se deixou

O antissemitismo russo se intensificou a partir do século 19 com uma horrenda sucessão de pogroms (matanças) que primeiro tiveram como alvos aldeias com maioria de população judaica e depois se estenderam até cidades como Kishinev, em 1903, e Kiev, em 1919, ambas na Ucrânia. A matança em Kiev foi particularmente dolorosa para milhares de judeus que, impregnados pelo nacionalismo e pelo marxismo emergente da 1ª Guerra Mundial, acreditaram que uma sociedade igualitária significaria sua aceitação na sociedade. Reproduzo, a seguir, um texto já publicado nestas páginas (Morashá, no. 78) que expõe de forma sucinta a traição dos bolcheviques aos judeus. 22


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JUDEUS SOVIÉTICOS DESEMBARCAM NO AEROPORTO BEN GURION, ISRAEL, EM AVIÃO DA EL AL. JANEIRO DE 1990

iludir por tais declarações, mesmo porque era espantosa a quantidade de judeus detentores de importantes cargos no primeiro escalão do governo: Trotsky, Zinoviev, Sverdlov, Kamenev, Radek, Kaganovitch, Litvinov, Yoffe e muitos outros em posição de destaque. Depois de centenas de milhares de judeus terem lutado no Exército Vermelho durante a 2ª Guerra Mundial, os anos subsequentes lhes foram terríveis com uma breve pausa. Esta aconteceu em 1947 quando a União Soviética se colocou vigorosamente a favor da causa sionista, com um célebre e inesperado discurso pronunciado por seu embaixador, Andrei Gromyko, e votou a favor da partilha da Palestina nas Nações Unidas. Aquilo que parecia um endosso soviético ao Sionismo, era na verdade uma estratégia de Stalin destinada a

eliminar a presença britânica no Oriente Médio. Em outubro do ano seguinte a opressão contra os judeus russos foi

Protestando em prol dos judeus soviéticos

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intensificada a partir da conturbada chegada de Golda Meir a Moscou, como embaixadora do recém-criado Estado de Israel. Os líderes comunistas não conseguiam acreditar no que se desenrolava perante seus olhos: uma multidão de cerca de cem mil judeus havia se deslocado até o aeroporto de Moscou para saudar a vinda da embaixadora. As autoridades não se conformaram que 30 anos depois da revolução bolchevique, a população judaica da Rússia soviética, calculada em três milhões de pessoas, não tivesse total e irrestrita fidelidade ao país em que vivia. Trinta meses depois, uma equipe israelense de basquete desembarcou em Moscou para disputar um torneio internacional. Na saída do terminal do aeroporto, o ônibus que conduzia os jogadores foi cercado MARÇO 2021


HISTÓRIA

presentes de ínfimo valor que minha mãe lhe enviou pelo correio. Jamais conseguiu obter das autoridades um apartamento pouco maior do que o quarto e sala onde vivia com a mulher e a filha, dividindo o banheiro e a cozinha com outras cinco famílias.

GOLDA MEIR, EMBAIXADORA DE ISRAEL NA EX-URSS, CERCADA POR MULTIDÃO DE 50.000 JUDEUS DIANTE DA SINAGOGA CHORAL, EM MOSCOU. 7 OUT. 1948

por uma multidão de judeus que aclamava os rapazes do time e gritava em hebraico “No ano que vem, em Jerusalém! ”. Dessa vez, porém, o regime já sabia como agir. A equipe de Israel deveria fazer a primeira partida no estádio X que, na última hora, foi transferida para o estádio Y para evitar o público judaico que, decerto, lotaria a arquibancada. O mesmo aconteceu no jogo seguinte, com igual troca de estádios. Os donos do poder assim se contentaram em varrer a repressão para debaixo do tapete. Para todos aqueles acontecimentos a resposta soviética foi cruel. Em 1952, a elite dos escritores e poetas judeus foi acusada de crimes inexistentes e rotulada com o selo mais estigmatizante e impiedoso: eram cosmopolitas, seja lá o que isso pudesse significar. Uma dezena de escritores e poetas foram executados. No ano seguinte, a caça aos judeus teve como alvo um grupo dos melhores médicos do país, ativos em Moscou, acusados de conspirar para envenenar os dirigentes do Partido Comunista. Também foram assassinados. Stalin morreu em março de 1953, mas isso não significou o arrefecimento do antissemitismo.

Qualquer judeu que tivesse – e havia milhares que tinham – um parente nas Américas ou na Europa era tachado de cosmopolita e isso trazia consequências que se estendiam desde maus-tratos e prisões até deportações para a Sibéria. Prevaleciam o pânico e o pavor. Um irmão da minha avó materna, Liova, era residente de Leningrado, atual São Petersburgo. Apesar de ter chegado ao posto de coronel-médico do Exército Vermelho ficou marcado por causa de um pacote com

Refuseniks Vladimir E Maria Slepak

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Outra irmã, Sarah, emigrou em 1931 da Bessarábia para São Paulo, onde se casou com o engenheiro elétrico Eduardo Annenberg, natural de Odessa. No início dos anos de 1950, obter um visto de turista para a União Soviética correspondia a uma proeza que acabou sendo alcançada por um casal paulista de judeus que Eduardo conhecia. Informou um endereço em Odessa, que talvez ainda fosse o de sua da mãe, com a qual tinha perdido contato por causa da guerra. Pediu apenas que o casal a procurasse e lhe dissesse que ele estava vivo e bem, trabalhando em São Paulo. Os amigos encontram a dita senhora no endereço fornecido, mas a mulher demonstrou enorme temor ao ter que falar com estrangeiros e bateu a porta com uma só frase: “Eu não tenho nenhum filho chamado Eduardo”. Mas, enquanto os judeus soviéticos estavam submetidos a uma letargia com relação à sua ancestralidade nacional, os judeus de todas as partes do mundo não os tinham abandonado. Nos Estados Unidos começou a ganhar corpo o movimento Let my people go, deixe meu povo sair, a conclamação feita por Moisés ao faraó do Egito. Em 1962, foi realizado no Hotel Glória, no Rio de Janeiro, um seminário com dois dias de duração, focado na questão judaica na União Soviética, presidido pelo escritor e pensador Alceu Amoroso Lima com a participação de expressivos intelectuais brasileiros. O encontro


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resultou numa petição pela liberdade dos judeus russos, entregue ao então presidente João Goulart que a encaminhou para Moscou. A partir de 1960, em função de pressões internacionais, para as quais o Kremlin, apesar de todo o seu poder, era sensível, os soviéticos começaram a permitir que judeus e não-judeus solicitassem vistos de saída. Mesmo cientes de que poderiam sofrer retaliações, as pessoas se arriscavam e preenchiam infindáveis papéis burocráticos, nos

era o único patrão. Mesmo com alta qualificação profissional, muitos se conformaram em trabalhar, por exemplo, como varredores noturnos de ruas, porque se não tivessem nenhum trabalho seriam acusados de parasitas e levados às prisões. O caso de Yossef Begun é emblemático. Matemático de fama internacional, também dava aulas clandestinas de hebraico. Quando pediu o visto para emigrar para Israel, perdeu o emprego e foi deportado para um gulag (campo de trabalhos forçados) na Sibéria. Só chegou a Israel oito anos depois.

Yakov Birnbaum

YAKOV BIRNBAUM LIDERANDO PROTESTOS DIANTE DA MISSÃO SOVIÉTICA NA ONU, ABRIL 1971. O PRIMEIRO DELES FOI EM 1964

quais se comprometiam a deixar o país praticamente com apenas a roupa do corpo. Um jovem judeu chamado Vladimir Slepak enfrentou a situação e cumpriu todas as formalidades. O visto de saída foi recusado. As autoridades alegaram que, como ele era engenheiro e havia trabalhado em diversas fábricas produtoras de materiais sensíveis, poderia transferir segredos industriais para o Ocidente. Ele insistiu e sete anos depois foi bemsucedido. Outros milhares de judeus

russos pediram vistos e a maioria foi indeferida. Por isso passaram a se autodenominar refuseniks, algo como recusados ou rejeitados. Esses refuseniks foram se multiplicando com incrível rapidez e volume. Hoje, visto em perspectiva, se constata que eles deixaram para o mundo o legado de uma coragem sem paralelo. Sabiam que enfrentariam um futuro sombrio só por assinar aqueles formulários. Como consequência, perderam os empregos e não puderam ter outros porque o Estado 25

A miséria e a humilhação a que os refuseniks estavam submetidos emocionou o mundo e impulsionou o movimento Let my people go. Judeus e não-judeus de todos os continentes passaram a ajudá-los, inclusive com remessas de dinheiro que em parte eram confiscadas pelas autoridades. Ao mesmo tempo, a luta dos refuseniks chegou às páginas da imprensa internacional com acentuado destaque. Um jornalista americano entrevistou uma refusenik que não se deixava intimidar e perguntou se ela não tinha medo de ir para a prisão. A mulher respondeu: “E onde você acha que eu estou, agora?” No movimento em favor dos judeus soviéticos avultou a figura de um homem extraordinário, chamado Yakov Birnbaum, que a história esqueceu. Birnbaum nasceu em Hamburgo, Alemanha, em 1926. Com doze anos de idade foi resgatado do nazismo para a Inglaterra no famoso Kindertransport, ao lado de outras centenas de crianças. Completou um curso superior em Londres e, em 1964, foi para Nova York onde fundou a Liga de Estudantes Pelos Judeus Soviéticos, à frente da qual MARÇO 2021


história

dias. O orgulho judaico iluminou os refuseniks que, em 1970, não tiveram medo de protestar em Leningrado contra as sentenças impostas aos 11 judeus sequestradores e que foram aclamados como heróis.

PROTESTO EM TEL AVIV CONTRA AS CONDENAÇÕES DE LENINGRADO. 26 DEZEMBRO 1970

organizou manifestações de tal maneira ruidosas que chegaram a impressionar os ativistas americanos em luta pelos direitos civis. Essas manifestações aconteciam em diversos pontos da cidade e, de preferência, em frente à missão soviética nas Nações Unidas. Ao longo dos anos, Birnbaum foi incansável na coleta de fundos para os refuseniks. Em dezembro de 1987, na véspera de um encontro entre Reagan e Gorbachev, mobilizou um protesto que atraiu 200 mil pessoas, a metade delas não-judeus. Yakov Birnbaum morreu pobre e abandonado em Nova York, no dia 9 de abril de 2014. A seu respeito, Nathan Sharansky, ícone dos refuseniks, declarou: “Ele foi um dos primeiros que começou a nossa luta. Sem ele, o Êxodo dos tempos modernos jamais chegaria a ser uma realidade”. Na década de 1960, a União Soviética se havia tornado a maior fornecedora de material bélico para o Egito e a Síria, além de liderar as esquerdas do mundo numa sistemática campanha destinada a deslegitimar a existência de Israel. Apesar do rígido controle exercido sobre a imprensa, o regime soviético

não conseguiu ocultar a vitória de Israel na Guerra dos Seis Dias. Esta vitória foi um rastilho que incendiou milhões de judeus russos. Era como se tivessem despertado de um torpor de centenas de anos para reencontrar suas identidades, consciências, valores e religião ancestrais. De súbito, após tantas matanças e submissões, os judeus russos ficaram extasiados com Israel, aquele pequeno e distante Estado Judeu que tinha enfrentado e derrotado três exércitos inimigos em apenas seis

cartaz de propaganda em apoio aos judeus soviéticos, 1969

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A política de concessão de vistos de saída para Israel ou outros países continuou em ritmo de conta-gotas até os estertores da União Soviética, por mais dois anos, desde a queda do Muro de Berlim até o colapso do sistema comunista. O fim do regime soviético determinou a abertura dos até então lacrados portões da Rússia, proporcionando a emigração de mais de um milhão de judeus para Israel, um êxodo com verdadeiros contornos bíblicos, com a mesma dimensão de grandeza e de conquista humana do êxodo do Povo Judeu do Egito, três mil anos atrás. Na história moderna inexiste outro país que tenha aumentado a sua população em 20 por cento no decorrer de uma década. O jornalista israelense Matti Friedman escreve que tem na retina o desembarque, em 1991, de mais de uma centena de imigrantes russos, ainda na escada do avião, trazendo pesadas roupas de inverno, que seriam desnecessárias em Israel e sob iminente ameaça dos mísseis Scud, que, naquela mesma hora, na 1ª guerra do Golfo, Saddam Hussein disparava contra o país que os acolhia. Outro jornalista observou, 30 anos após a chegada da primeira onda de judeus da União Soviética: “É como se em dez anos os Estados Unidos tivessem absorvido toda a população da França e da Holanda”. Houve, ainda, quem dissesse que o êxito dessa imigração era um milagre. Porém um milagre, por mais milagroso que seja, não acontece duas vezes e no


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Imagens de judeus soviéticos em Israel

mesmo lugar. O primeiro tinha ocorrido nos dois primeiros anos de independência, quando Israel absorveu uma quantidade de imigrantes equivalente ao yishuv, a população judaica que fincara os alicerces do novo país. A absorção dos russos não foi um milagre, mas o resultado de enorme consciência nacional, de um esforço econômico sem precedentes e de um complexo planejamento graças ao qual para os recém-chegados não faltou água, sempre escassa no país, nem tetos que os abrigassem, nem escolas para as crianças. A adaptação de um milhão de russos em Israel foi tão única, tão insólita, tão consumada, que desafia a avaliação dos mais minuciosos antropólogos e sociólogos. Embora chamados de russos, da Rússia mesmo só emigrou um terço dos judeus, outro terço era oriundo da Ucrânia e os demais viviam em diversas repúblicas soviéticas, com destaque para a Geórgia. Todos

estes, ao mesmo tempo em que se tornaram cidadãos israelenses integrais, souberam preservar a prática de seu idioma, sua cultura, tradições e gastronomia. Dizem os entendidos que quem quiser saborear autêntica comida russa, deve se dirigir aos restaurantes da cidade portuária de Ashdod, ao sul de Tel Aviv, também conhecida como “pequena Moscou”, onde se come o melhor pão preto e salame do planeta. Não houve um choque entre a sociedade já existente e a que lhe foi acrescida. Pelo contrário, houve uma complementação e um enriquecimento nos meios de comunicação com a impressão de publicações em cirílico, além de programas de rádio e de televisão falados em russo. Contribuiu principalmente para tal sucesso o engajamento no serviço militar dos jovens à medida que iam completando 18 anos de idade. Na verdade, os imigrantes jovens tiveram um papel fundamental 27

no processo de assimilação ao novo país. Casais jovens acreditaram no futuro e não hesitaram em ter filhos, proporcionando considerável aumento demográfico. Alguns cientistas políticos julgam que essa geração, nascida no início dos anos de 1990, será a elite política, científica e intelectual de Israel por volta de 2035. Por ora, muitos deles, que estão na casa dos 19 aos 29 anos, já se tornaram celebridades como pop stars, atores e músicos. A par disso, como até agora só se passaram 30 anos, ainda está para ser escrita a história de como médicos e enfermeiras russos se tornaram um pilar no sistema de saúde de Israel; como engenheiros, matemáticos, físicos e pesquisadores científicos obtiveram conquistas tecnológicas que situaram Israel como o país mais inovador do mundo. No início dos anos de 1990, o establishment político de Israel se dividia em duas correntes majoritárias: o partido trabalhista e o conservador, ou esquerda e março 2021


HISTÓRIA

função da mobilização da sociedade e os israelenses têm a esperança de que a situação encontre um caminho para ser resolvida.

O ENTÃO PRIMEIRO-MINISTRO ITZKHAK RABIN CUMPRIMENTA IMIGRANTES RUSSOS NO AVIÃO DA RÚSSIA PARA ISRAEL

direita como agora se prefere, inclusive com rotatividade no poder. Os novos imigrantes não tinham a mais remota intimidade com a democracia, mesmo porque nos últimos mil anos a Rússia não tinha experimentado um só dia sem tirania. Eles tinham, sim, o mais profundo horror ao regime comunista, com justa causa. Em pouco tempo os judeus russos apreenderam os meandros do regime democrático, ignoraram a esquerda e se voltaram para a direita, causando um impacto espetacular no espectro eleitoral israelense. Assim, robusteceram o Partido Likud, então liderado por Ariel Sharon, já admirado como o herói e salvador de Israel desde a Guerra do Yom Kipur, em 1973, que também havia mobilizado e dado ânimo aos refuseniks. A invalidez de Sharon em 2008 e morte seis anos depois propiciaram a ascensão política de Binyamin Netanyahu, que conta com boa parte do eleitorado russo. Mas, nem tudo são flores. Os imigrantes russos enfrentaram – e continuam enfrentando – um sério problema em Israel. Conforme a Halachá, o conjunto das leis judaicas, um judeu, homem ou mulher, deve ser necessariamente filho de mãe

judia. Na massa de imigrantes, cerca de 30 por cento dos casais eram constituídos por casamentos mistos ou pelo homem ou a mulher convertidos de forma duvidosa, não reconhecida pelo judaísmo, com raras exceções. Apesar de a primeira lei vigente em Israel ter sido a Lei do Retorno, segundo a qual qualquer judeu que se radicasse no país teria direito a imediata cidadania, aquela parte dos imigrantes em conflito com a Halachá ainda batalha para regularizar sua condição legal. Nos últimos anos as autoridades religiosas têm sido mais flexíveis em

Integra esse movimento Nathan Sharansky, o mais proeminente, o gigante dos refuseniks. Anatoli Sharansky nasceu na Ucrânia, então pertencente à União Soviética, no dia 20 de janeiro de 1948 e se formou em matemática no Instituto de Física e Tecnologia de Moscou. Foi cativado pela luta em favor dos direitos humanos quando atuou como intérprete para o idioma inglês do físico Andrei Sakharov, incansável opositor do regime, alvo de cruel e constante perseguição promovida pelo Kremlin. Em 1973, sensibilizado pela Guerra do Yom Kipur, pediu um visto para Israel, negado, conforme soube, “por motivos de segurança”. Isto fez com que se aproximasse dos refuseniks e se tornasse um dos mais combativos ativistas do movimento. Sobre seu engajamento, anos depois escreveu: “Em poucas semanas eu me senti conectado com meus irmãos judeus soviéticos e, mesmo longe, conectado com meus irmãos

O ENTÃO PRIMEIRO-MINISTRO SHIMON PERES RECEBE O EX-PRISIONEIRO ANATOLI SHARANSKY NO AEROPORTO BEN GURION, ISRAEL, 2 NOV. 1986

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israelenses e com os judeus de todas as partes do mundo”. Registrou em outra publicação: “Na solicitação de vistos havia uma brecha legal que permitia a reunificação de famílias, mas os judeus tinham medo de apontar a existência de parentes no exterior. Além disso, as autoridades abarrotaram os pedidos de vistos de saída com tormentosas exigências burocráticas, pensando que isto levaria os judeus a desistir da solicitação. Ficaram assombrados quando, apesar de tanto aparato, os pedidos dobraram”. A proeminência de Sharansky o levou à prisão em 1977. No interrogatório a que foi submetido, não se intimidou perante os inquisidores da KGB e lhes disse: “É uma afronta me dizerem que estou contra o povo e a cultura da Rússia. Por acaso imaginam que Dostoievsky e Tolstoi estejam do lado de vocês? Eles estão do meu lado! ”. No ano seguinte, acusado de traição e de espionagem em favor dos Estados Unidos, foi condenado a 13 anos de encarceramento num gulag da Sibéria. Naquela altura, Sharansky já era um nome internacionalmente conhecido e admirado como porta-voz dos refuseniks. Petições por sua liberdade começaram a ser entregues em dezenas de embaixadas da União Soviética. Mais uma vez o Kremlin sentiu o golpe e, num esforço de relações públicas, começou a permitir que cientistas, matemáticos, músicos e outros artistas judeus viajassem para o Ocidente e comparecessem a entrevistas coletivas da imprensa. Eram os chamados “judeus oficiais” que, em troca de privilégios, se prestavam àquele desprezível papel. Anos depois, Sharansky escreveu: “De nada adiantou. O mundo percebeu que somente as nossas vozes eram sinceras”.

YITZHAK SHAMIR, ENTÃO PRIMEIRO-MINISTRO, RECEBE EM SEU GABINETE O EX-PRISIONEIRO DE TZION YULI EDELSTEIN. MAIO 1987

No dia 9 de fevereiro de 1986, Sharansky foi libertado, por iniciativa de Gorbachev, e levado para Leipzig, na Alemanha Oriental, onde atravessou a chamada “ponte dos espiões”, lugar de troca de prisioneiros dos dois lados da Cortina de Ferro, e foi recebido no lado ocidental pelo embaixador de Israel que ali mesmo lhe entregou um passaporte israelense no qual, em vez de Anatoli, constava seu nome em hebraico, Nathan. No dia 11, foi acolhido em Tel Aviv pelo então primeiro-ministro Shimon Peres e

em sua pátria sonhada começou uma bem-sucedida carreira política que cobriu desde postos ministeriais até a presidência da Agência Judaica, onde encerrou a carreira de homem público para se dedicar à literatura. Há um momento especialmente significativo na saga de Sharansky. Na Sibéria, quando foi aberta a porta da cela que o detinha, ele caminhou para a liberdade levando como única bagagem seu Livro de Salmos. O guarda impediu a saída do livro e Sharansky reagiu: “Então volto para a cela. Sem meu Livro de Salmos, não vou”. Foi com esse livro embaixo do braço que Nathan Sharansky desembarcou em Israel.

Bibliografia

Sharansky, Nathan, “Never Alone”, Public Affairs, EUA, 2020. Sharansky, Nathan, “Não Temerei o Mal”, Best-seller, Brasil, 1988. Friedman, Matti, “Israel’s Russian Wave”, Mosaic, novembro 2020. Kosharovski, Iuli, “We Are Jews Again”, Syracuse University Press, EUA, 2017.

Zevi Ghivelder é escritor e jornalista.

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DESTAQUE

Turquia e a diplomacia neo-otomana de Erdogan POR JAIME SPITZCOVSKY

O presidente turco, Recep Tayyp Erdogan, em quase 20 anos de poder e dono de uma agenda nacionalista e populista, transformou o país de um aliado de Israel e de países ocidentais, nos anos 1990, em um desestabilizador do Oriente Médio e de regiões próximas, com apoio a grupos terroristas e intervenções militares fora de suas fronteiras.

E

rdogan e seu partido, o AKP ( Justiça e Desenvolvimento), governam desde 2002 e, com uma orientação religiosa e de nacionalismo nostálgico dos tempos de poder do Império Otomano (séculos 13 a 20), afastam a Turquia das tendências secularistas e próocidentais, alicerces da modernização do país em décadas passadas.

E, mantendo posição de neutralidade durante a maior parte do conflito, a Turquia se posicionou ao lado dos aliados meses antes do final da 2ª Guerra Mundial. No cenário a seguir, da rivalidade global entre EUA e União Soviética, a liderança turca consolidou a aliança com Washington e o país passou a integrar a Otan, aliança militar liderada pela Casa Branca e criada em 1949. Naquela época, em 1947, a Turquia votou nas Nações Unidas contra a resolução 181, da Partilha da Palestina, refletindo posição do bloco islâmico. No entanto, dois anos depois, mudou de rumo, reconheceu o Estado de Israel e se tornou o primeiro país do mundo islâmico a fazê-lo.

Em 1923, Mustafa Kemal Ataturk proclamou a república, a ser construída das ruínas de um império que viu, na derrota na 1ª Guerra Mundial (1914-1918), momento decisivo em sua decadência. O kemalismo levou a Turquia a separar Estado de religião, num movimento inédito no mundo islâmico e apontou para a aproximação com países europeus como diretriz fundamental da Turquia pós-império.

As relações bilaterais, porém, sofreram com altos e baixos nos anos seguintes. Dois momentos de crise ilustram as turbulências. Em 1956, Ancara convocou de volta seu embaixador em Israel, em protesto pelas ações militares israelenses, em aliança com britânicos e franceses, contra o Egito de Gamal Abdel Nasser.

Ataturk introduziu o caminho da secularização e da ocidentalização, mas não da democratização. Militar, manteve ainda um sistema autoritário, com as Forças Armadas como espinha dorsal do novo regime, construído também a partir de acordos internacionais, como os tratados de Sèvres (1920) e de Lausanne (1923), assinados com as grandes potências e países vizinhos.

Cerca de duas décadas mais tarde, em 1975, o governo turco apoiou a infame resolução da ONU a equiparar sionismo a racismo, revogada pela própria organização em 1991. E, nessa última votação, a Turquia se absteve. 30


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ISTAMBUL, VISTA PANORÂMICA AO PÔR-DO-SOL

No entanto, foi exatamente na década de 1990 que as relações entre Ancara e Jerusalém passaram a se aprimorar e atingiram o melhor momento da sua história. Como pano de fundo, o início de diálogo entre israelenses e palestinos, resultado direto do fim da Guerra Fria e da derrota do campo soviético, alicerce fundamental para rejeição ao diálogo de Yasser Arafat. A Turquia também aumentava a aposta, à época, em sua aproximação com países ocidentais e até mesmo numa eventual adesão à União Europeia. As relações florescentes com Israel, nos campos político, econômico e militar, eram usadas por governos turcos como argumento para evidenciar as opções geopolíticas de um país que gostava de se definir como “o mais ocidental do Oriente e o mais oriental do Ocidente”, devido à sua privilegiada

posição geográfica, numa área em que se encontram os continentes europeu e asiático. Em meio ao avanço da democracia turca, ao fortalecimento de diplomacia pró-Europa e da herança secular de Ataturk, sempre protegida pelos militares, o comércio e o turismo entre Turquia e Israel se expandiram significativamente, assim como a cooperação no setor de segurança. Os países se viam como trincheiras contra o terrorismo e o extremismo religioso. À época, analistas internacionais chegaram a apontar o “modelo turco” como uma alternativa para países islâmicos, a ser estimulado por países ocidentais: sistema democrático e secular, em uma população majoritariamente muçulmana. Os EUA chegaram a defender a inclusão da Turquia na União 31

Europeia, como forma de fortalecer a aliança com Ancara. Em 1997, integrantes da cúpula militar turca visitaram Israel, e um navio de guerra chegou a aportar em Haifa, num cenário marcado ainda por exercícios navais regulares conjuntos e o uso de espaço aéreo turco para treinamento de pilotos israelenses. O Estado Judeu mergulhava em sua principal aliança com um integrante do mundo muçulmano. Naquela década, a economia turca se expandia em ritmo acelerado, tornando-se um dos principais exemplos dos chamados paísesemergentes. O crescimento econômico foi puxado pelas exportações de bens industrializados e agrícolas à Europa, assim como pelo surgimento de oportunidades de negócios para empresas turcas em MARÇO 2021


DESTAQUE

regiões da antiga União Soviética, área geograficamente muito próxima e, por vezes, rica em gás e petróleo, como Azerbaijão e Cazaquistão. O dinamismo da economia alterou o tecido social turco, com o surgimento e ascensão de uma nova classe média, oriunda sobretudo das áreas afastadas de metrópoles como Istambul e Ancara. Essa parcela da população começou a aumentar sua atuação política, trazendo ideias mais conservadoras para o debate público na Turquia. O protagonismo dessa nova classe média permitiu o crescimento de grupos políticos apoiados em ideias religiosas, o que foi aproveitado pelo AKP e por seu líder, Recep Erdogan. Em 2002, eles venceram a eleição nacional e chegaram ao poder, apoiados nessa nova classe média mais conservadora e mais religiosa. Começa então uma nova fase da história turca e de sua relação com os países ocidentais, com Israel e com o cenário internacional. Recebido com muito ceticismo no cenário global, Erdogan iniciou seu governo com promessas de manter a linha pró-Ocidente, as relações com Israel e o modelo secular de Ataturk. A linha autoritária e populista, no entanto, não demorou muito para se impor e colocar a

Mustafa Kemal Ataturk

Turquia no caminho de um regime que desrespeita a democracia, injeta nacionalismo e religião em seu sistema político, além de reorientar a diplomacia. Em quase duas décadas no poder, Erdogan enveredou pelo caminho do chamado “neo-otomanismo”, arquitetado para resgatar valores e nostalgia do período imperial. A doutrina serve como plataforma para desmontar os avanços democráticos e a herança kemalista. No plano doméstico, abandonou-se o parlamentarismo e se implantou um regime presidencialista, permitindo a concentração de poderes nas mãos de Erdogan, apelidado, por seus detratores, de o “novo sultão”. Na política externa, Erdogan promoveu profundas mudanças.

MILHARES DE PESSOAS MANIFESTAM SEU APOIO A ERDOGAN

Abandonou o pilar pró-Ocidente, afastou-se da União Europeia e, como nova prioridade diplomática, passou a investir na expansão de influência turca em áreas dominadas, no passado, pelo Império Otomano. Bálcãs, Mediterrâneo Oriental, Oriente Médio e Norte da África voltaram a ocupar o foco dos estrategistas de Ancara. Regiões do Cáucaso e da Ásia Central também passaram a compor a lista. Embora a Turquia continue na Otan, Erdogan e sua agenda autoritária entraram em choque com os EUA, sobretudo na administração Obama, e passaram a se aproximar da Rússia, inimigo histórico dos otomanos. A aproximação com Moscou significou mais um fator de irritação na relação com uma União Europeia liderada por França e Alemanha. A Turquia de Erdogan passou a expandir sua influência no mundo árabe e sunita, e se colocou como líder, ao lado do Catar, do campo defensor de grupos radicais como a Irmandade Muçulmana e Hamas, em contraposição aos países da região mais identificados por alianças com EUA e nações ocidentais, como Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Egito. Erdogan passou a também usar presença militar para garantir o alcance de sua influência. Abriu base no Catar, interveio na guerra da Líbia e invadiu a Síria, para garantir controle da porção norte do país árabe e tentar enfraquecer os curdos, inimigos históricos de Ancara. Com uma política externa intervencionista e apoiando grupos islâmicos radicais, Erdogan optou por dar apoio e abrigo a líderes da organização terrorista Hamas e a hostilizar Israel. Em 2009, o líder

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turco abandonou, de forma abrupta, um painel no Fórum Econômico Mundial de Davos com o então presidente israelense Shimon Peres, sinalizando o afastamento do exaliado. No ano seguinte, a crise bilateral chegou ao ápice. Uma flotilha zarpou da Turquia com destino a Gaza, a fim de demonstrar apoio ao Hamas, ignorou advertências de Israel para interromper a provocação e, quando comandos israelenses agiram para impedir a chegada da embarcação Mavi Marmara, 10 ativistas turcos morreram nos enfrentamentos. Recep Erdogan aproveitou o episódio para retirar seu embaixador de Israel e expulsou o representante diplomático israelense em Ancara. Os laços, no entanto, não foram formalmente rompidos. As relações continuaram em estado de deterioração. Erdogan passou a se aproximar da Venezuela de Hugo Chávez e manteve o namoro com Nicolás Maduro, colocando a Turquia como um dos poucos apoiadores do ditador venezuelano no cenário internacional. Israel e Turquia também se viram em campos opostos na crescente intensificação de tensões no Mediterrâneo Oriental, onde recentes descobertas de campos submarinos de gás natural levaram a novas movimentações navais na região, com diversos países reivindicando soberania de áreas ricas em recursos naturais. Tal disputa acrescenta mais um capítulo na rivalidade histórica entre Turquia e Grécia. Gregos, com apoio de cipriotas, se aliaram a israelenses e egípcios para conter as ameaças da Turquia.

GRANDE SINAGOGA DE EDIRNE. DE RITO SEFARADI, LOCALIZA-SE NA RUA MAARIF, EDIRNE, TURQUIA

Exercícios navais dos dois campos adversários aumentaram tensões nos últimos meses no Mediterrâneo Oriental. O apetite expansionista de Erdogan levou-o também a apoiar decisivamente o aliado Azerbaijão na recente guerra com a Armênia, na disputa pelo controle de uma região conhecida como Nagorno-Karabah. O conflito, em 2020, deixou milhares de mortos e foi interrompido graças a uma intervenção da Rússia, que obrigou as duas ex-repúblicas soviéticas a um entendimento, apesar da vantagem bélica, nas últimas batalhas, dos azerbaijanos, aliados de Erdogan. A disputa no espaço da antiga URSS contribuiu para deteriorar ainda mais as relações entre Turquia e França, colocando o presidente Emmanuel Macron como um dos principais adversários de Erdogan no cenário internacional. O governo francês apoia a Armênia, em lado oposto à política externa turca, próAzerbaijão, num embate registrado também em outros pontos do tabuleiro geopolítico, a exemplo do Mediterrâneo Oriental ou da guerra da Líbia. 33

A chegada de Joe Biden à Casa Branca, com a posse em janeiro, adiciona mais nuvens cinzentas nas relações da Turquia com os EUA, pois a nova administração norteamericana certamente vai enfatizar o tema de respeito à democracia e aos direitos humanos. E, diante dessa perspectiva, surgiram especulações de que Erdogan poderia optar por recuperar e melhorar o diálogo com Israel, a fim de usar o governo israelense como ponte para destravar eventual diálogo entre Ancara e Washington. Segue a lógica: pressionado por profunda crise econômica e pela pandemia, o governo turco diminuiria em alguns tons sua política externa agressiva e antiocidental, interessada em melhorar laços comerciais com os EUA e seus aliados. Relatos na mídia israelense registram alguns sinais de Erdogan no sentido da reaproximação. A ver. Líderes populistas, como o da Turquia, gostam de usar a imprevisibilidade como ingrediente de sua ação política. Jaime Spitzcovsky COLUNISTA DA FOLHA DE S.PAULO, FOI CORRESPONDENTE DO JORNAL EM MOSCOU E EM PEQUIM.

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O “Gabinete judaico” do Presidente Biden Muitos se perguntam como será o novo Presidente dos Estados Unidos e quais os seus vínculos com a comunidade judaica americana e com Israel. Vejamos, pois, algumas de suas principais escolhas: O Chefe de Gabinete, Secretário de Estado, Secretário de Segurança Interna, Secretário do Tesouro e seu Procurador Geral (equivalente ao nosso Ministro da Justiça) estão entre os membros judeus do gabinete dE Governo do Presidente Biden.

O

consistente apoio do novo presidente a Israel tem sido uma constante em todas as cinco décadas de sua carreira na vida pública, desde que foi eleito para o Senado americano em 1972. No ano seguinte, Biden visitou Israel. Apesar de nem sempre estar de acordo com as decisões políticas do país, seu comprometimento com Israel sempre foi inamovível. Batalhou no Senado pela valiosa ajuda americana anual a esse país, referindo-se à mesma como “o melhor investimento de US$3 bilhões que já fizemos”, além de se opor a qualquer tentativa de corte ou imposição de condições negativas à ajuda ao país amigo.

Presidente Biden e a Vice-Presidente Harris têm laços familiares muito próximos com os judeus. O marido de Kamala Harris, Douglas Craig Emhoff, é judeu. E o Presidente Biden também tem uma mishpachá judaica – todos os seus três filhos são casados com cônjuges judeus. Em um evento político em Ohio, em 2016, Biden declarou: “Sou o único católico irlandês que vocês conhecem que viu concretizado o seu sonho de ver sua filha casada com um cirurgião judeu”... No tocante à questão israelense, a escolha do gabinete de Biden alinha-se muito intimamente com suas visões políticas. Talvez ele nem sempre concorde com o Primeiro-Ministro Bibi Netanyahu quanto à necessidade de uma solução de dois estados ou quanto aos assentamentos na Cisjordânia, mas para ele a salvaguarda da segurança do Estado Judeu não é negociável e é da maior importância na região.

Ele também representa uma forte voz contra o antissemitismo. Joe Biden prometeu que, como Presidente, continuará a assegurar que o Estado Judeu, o Povo Judeu e os valores judaicos tenham o apoio inquebrantável dos Estados Unidos da América. Ademais desse tradicional apoio, o 34


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Antes mesmo de tomar posse, o novo presidente já havia dado sinais sobre a possibilidade de os Estados Unidos voltarem ao Acordo Internacional sobre o programa nuclear do Irã. A princípio, Israel se opõe a isso e pede que o governo Biden inclua novos termos no acordo, como limitações do programa balístico iraniano e exigências de que o Irã pare de patrocinar o terrorismo ao redor do mundo. Ainda é cedo para se dizer se o Presidente Biden retornará ao acordo inicial, assinado pelo governo Obama, sem novas exigências. E isso constitui um preocupante ponto de interrogação para Israel. O Primeiro-Ministro Bibi Netanyahu vê o Irã como a maior ameaça a Israel e sempre se opôs abertamente aos termos

do Acordo Nuclear de 2015. Em 2018, o Presidente Trump retirou os Estados Unidos desse Acordo Nuclear com o Irã, afirmando que o país é o “principal Estado patrocinador do terrorismo” e que nada que o Irã faça é mais perigoso do que a busca por armas nucleares. Ao retirar os Estados Unidos desse Acordo, Trump restaurou sanções econômicas contra o Irã. Contudo, o governo de Donald Trump não demonstrou que tomaria ações militares para impedir que esse país adquirisse armas nucleares, apesar do programa nuclear iraniano ter avançado durante os quatro anos da administração Trump. Não se sabe o que uma administração Biden fará se o Irã continuar com suas ambições nucleares. Vejamos os integrantes judeus do Gabinete do novo Presidente dos Estados Unidos da América: 35

Ron Klain, Chefe de Gabinete Ron Klain foi a primeira nomeação importante do novo presidente americano e sua função é a de Chefe de Gabinete na Casa Branca (ou Chefe da Casa Civil, como conhecemos no Brasil). Klain foi uma escolha óbvia para Biden, que

Ron Klain

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gosta de se cercar de seus leais confidentes de longa data. Ademais de ser um veterano insider com grande vivência e trânsito em Washington, Klain é conhecido como o “alter ego político” do presidente. O Chefe de Gabinete da Casa Branca serve de íntimo conselheiro presidencial e gerencia toda a equipe da Casa Branca, inclusive o escritório de comunicações. O ocupante dessa função desempenha importante papel na implementação da agenda do Presidente. Negocia com o Congresso, outras agências e grupos políticos em nome da Casa Branca. Ademais, atua como confidente do Presidente, além de controlar o acesso ao Oval Office e ao próprio Presidente. Ron Klain nasceu em 8 de agosto de 1961, em Indiana. Seu pai era empreiteiro e sua mãe, agente de viagens. “Cresci em Indiana, em uma comunidade judaica de bom tamanho, mas sempre fomos uma minoria”, ele contou ao The New York Times em 2007.

“O fato de não termos uma árvore de Natal era parte importante de nossa identidade judaica em um lugar onde todo mundo a tinha”. Klain ainda frequenta a sinagoga onde cresceu, sendo sempre convidado para dirigir a palavra ao Kahal, e comparece aos serviços religiosos nos feriados judaicos. Juntamente com seu Rabino, ele participou de um video sobre a pandemia da Covid-19, em que comparou a praga dos primogênitos da história de Pessach a uma doença infecto-contagiosa, e os judeus que receberam a ordem de ficar em casa durante essa praga a todos nós que temos que manter distanciamento social, atualmente. Biden e Klain têm trabalhado juntos desde a década de 1980. Em 1987, Klain trabalhou na primeira campanha presidencial do hoje presidente. Serviu como Chefe de Gabinete de Al Gore (no governo Clinton) e de Joe Biden (durante o primeiro mandato de Obama), em que ambos eram vice-presidentes. Em 2009, Klain teve um papel central na

redação e implementação do Plano de Recuperação Econômica do governo Obama. Ele foi também um importante assessor da campanha presidencial de 2020 de Joe Biden. Ajudou a formatar a resposta de Biden ao Coronavírus, ajudando-o também a se preparar para os debates presidenciais. Klain tem experiência com os surtos de vírus, tendo sido o coordenador da reação da Casa Branca ao Ebola, no governo de Obama, e foi apelidado de “Tsar do Ebola” pela maneira hábil com que conduziu a reação ao surto dessa doença, em 2014. No ano seguinte, foi incumbido pelo presidente e seu vice Biden a implementar um gabinete de prevenção a pandemias, na Casa Branca, que funcionou até 2018, quando foi extinto pelo Presidente Donald Trump. Pelo acima descrito, a escolha de seu Chefe de Gabinete deixa muito evidente o alto compromentimento do Presidente Biden com o controle e erradicação da pandemia do Coronavírus. Já a política do Oriente Médio não é a área de especialização de Ron Klain, mas ele é considerado amigo de Israel. Em certa ocasião criticou o Primeiro-Ministro Bibi Netanyahu pelo Twitter por seu relacionamento com o Presidente Trump. “O Primeiro -Ministro de Israel aparentemente não vê problema em Trump abraçar os nazistas que cantam ‘Os judeus não nos substituirão’ ”, ele tuitou em 17 de março de 2018, após protestos de supremacistas brancos em Charlottesville. Klain conhece bem o Presidente Biden, bem como o funcionamento interno da Casa Branca. Seu staff conta com aproximadamente 4 mil

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funcionários e um orçamento anual de cerca de 700 milhões de dólares.

Tony Blinken, Secretário de Estado Este é outro dos leais confidentes, de longa data, de Biden. Os dois trabalham juntos há 20 anos. Há mais de uma década Blinken tem sido um dos assessores políticos mais próximos do novo Presidente americano.

A Vice-presidente Kamala Harris prestando juramento, ladeada por seu marido

Antony John Blinken nasceu em Nova York em 16 de abril de 1962. Seu pai, Donald, era um gigante no ambiente de capital de risco e sua mãe, Judith, mecenas das artes.

No início da década de 2000, Tony Blinken foi nomeado Diretor de Pessoal da Comissão de Relações Exteriores do Senado, presidida pelo então Senador Joe Biden. Em 2008, ajudou o Senador na campanha presidencial. Quando Biden foi escolhido para vice de Obama, Blinken serviu como Assessor de Segurança Nacional de Biden, até posteriormente quando Obama o promoveu a ViceAssessor Nacional de Segurança e Vice-Secretário de Estado, de 2015-2017.

O bisavô de Blinken, Meir Blinken, conseguiu escapar dos pogroms da Rússia, e emigrou para os Estados Unidos. Era um conceituado escritor em iídiche. Samuel Pisar, padrasto de Tony Blinken, era sobrevivente do Holocausto e se tornou um renomado advogado, autor de livros e Assessor de Política Externa do Departamento do Estado e dos comitês do Senado e da Câmara. Tendo sobrevivido a dois campos de morte, Auschwitz e Dachau, contou certa vez ao The Washington Post que acreditava que as histórias que contara a seu enteado tinham causado grande impacto no jovem, influenciando sua visão de mundo. Pisar foi co-fundador do Yad Vashem-França. Seguem-se alguns comentários de Tony Blinken ao aceitar sua nomeação para titular da Secretaria de Estado: “Meu falecido padrasto, Samuel Pisar, era uma das 900 crianças de uma escola em Bialystok, Polônia, mas o único a sobreviver ao

Tony Blinken

Holocausto, após quatro anos em campos de concentração. Ao fim da guerra, conseguiu fugir da Marcha da Morte e se refugiou nas florestas da Bavária. Em seu esconderijo, ouviu o som de um tanque que se aproximava. Ao invés da Cruz de Ferro, ele avistou uma Estrela Branca de cinco pontas. Correu em direção ao tanque. A abertura superior se abriu e um soldado afro-americano olhou para ele. Ele caiu de joelhos e disse as únicas três palavras que sabia em inglês, ensinadas por sua mãe: “God Bless America”, D’us Abençoe a América. O soldado o fez subir ao tanque, à América, à liberdade. É isso que somos”. 37

Blinken tem credenciais muito sólidas a favor de Israel. Em várias oportunidades, durante a campanha presidencial, ele declarou perante grupos judeus que Biden não exporia as divergências entre os Estados Unidos e Israel em público – de maneira diferente da posição assumida pelo governo Obama. E disse que, no entender do novo presidente, amigos mantêm suas diferenças entre quatro paredes. Blinken tentou levar Obama a adotar semelhante atitude com Israel, mas nem sempre teve sucesso. O novo Secretário de Estado também afirmou que Biden jamais condicionaria a ajuda militar a Israel a uma determinada política MARÇO 2021


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israelense. Em outras palavras – o novo presidente dos EUA não condicionará a ajuda a Israel a qualquer decisão política, como a anexação ou outras decisões do governo de Israel com a qual o governo americano possa não concordar. Blinken reiterou o compromisso de Joe Biden de retomar o auxílio aos palestinos desde que se cumpram as restrições do Congresso – que o condicionam à cessação, por parte da Autoridade Palestina, de pagamentos de recompensa a família de palestinos que mataram ou atentaram contra a vida de americanos e israelenses. Blinken afirmou que manterá a Embaixada americana em Jerusalém, dará apoio incondicional a Israel nas Nações Unidas e rejeitará o movimento BDS. E pretende dar continuidade aos Acordos de Abrahão intermediados pelo governo Trump entre Israel, os Estados Unidos, os Emirados Árabes Unidos e Bahrein. E manifestou sua esperança de que à medida que mais países árabes normalizem suas relações com Israel – a exemplo dos recentes Marrocos e Sudão – Jerusalém se sinta mais seguro para firmar um acordo de paz com os palestinos.

Ele conta que cresceu com uma forte identidade judaica. Hoje, casado e com três filhas, diz com orgulho que lhes transmitiu essa sólida herança.

O novo casal presidencial americano

Alejandro Mayorkas, Secretário de Segurança Interna Nascido em Cuba, em 24 de novembro de 1959, Alejandro Mayorkas é um imigrante judeucubano, filho de pai judeu sefardita, de Cuba, e mãe judia da Romênia, que, sobrevivendo ao Holocausto, conseguiu escapar para Cuba. Em 1960 a família conseguiu fugir do regime de Fidel Castro para os Estados Unidos. Alejandro tinha um ano.

Os políticos israelenses conhecem Blinken, com quem mantêm uma boa relação de trabalho. Assim sendo, a indicação de seu nome foi muito bem recebida por israelenses de todos os setores. Michael Oren, que foi Embaixador nos EUA, tuitou que não podia imaginar uma escolha melhor e mais adequada do que Blinken para o cargo. O Departamento de Estado tem um orçamento de cerca de 52 bilhões de dólares e conta com 69.000 funcionários.

No governo do ex-Presidente Clinton, Mayorkas ocupou o cargo de Secretário de Justiça para o distrito central da Califórnia e durante o mandato de Obama foi Vice-Secretário de Estado de Segurança Interna. Nessa função trabalhou muito próximo a grupos judaicos, discursando com frequência sobre as ameaças enfrentadas pelos judeus americanos e a ascensão do antissemitismo e dos crimes de ódio. Durante o mandato de três anos na Secretaria de Segurança Interna, Mayorkas alocou grande parte de doações não-governamentais destinadas à área de segurança para combater manifestações antissemitas online, e para implementar medidas de contraterrorismo para proteger sinagogas e outras instituições judaicas. Ele luta feroz e abertamente contra o antissemitismo. Mayorkas foi homenageado pelo Conselho das Federações Judaicas “por seu trabalho no combate ao antissemitismo como parte de suas obrigações com a pasta de Segurança Interna”. Sua primeira visita a Israel ocorreu em 1977 e desde então tem voltado inúmeras vezes, muitas delas a trabalho. Tem vários parentes em Israel, adora a comida israelense e sempre manifesta seu respeito pelo excelente trabalho feito pelo país na questão da segurança cibernética.

Alejandro Mayorkas

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O novo Secretário de Segurança Interna de Biden é conhecido por seu empenho na questão de cibersegurança. Em 2016, Mayorkas liderou um contrato para


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automatizar o compartilhamento de dados cibernéticos entre Israel e os Estados Unidos: “Compartilhamos informações de modo a fortalecer ambos os nossos países”.

Em 2005, ela foi a primeira gestora no âmbito federal a descrever como uma “bolha” os crescentes preços das moradias, com sérias possibilidades de se tornar um grave problema para a Economia. E alertou sobre o crescente perigo dos créditos hipotecários de alto risco, conhecidos como sub-prime, que, como se viu, contribuíram para o colapso financeiro de 2008.

O novo Secretário não tem medido esforços para fortalecer e melhorar as relações entre os Estados Unidos e Israel e seu empenho ajudou a reforçar a sólida parceria que existe entre ambos. Apesar de não ser o primeiro judeu a chefiar o Departamento de Segurança Interna, ele é o primeiro imigrante, e de origem latina, nesse importante cargo. E chefiará uma Secretaria que dispõe de um orçamento de cerca de 50 bilhões de dólares e conta com 240.000 funcionários. Janet Yellen, Secretária do Tesouro

americano, onde ela conheceu seu futuro marido, George Arthur Akerlof, também economista.

Em 2010, o Presidente Barack Obama a nomeou para a vicepresidência do Federal Reserve. Três anos depois ele a indicava para presidir o importante banco central americano, no lugar do economista Ben Bernanke, também judeu.

Janet Yellen nasceu em 13 de agosto de 1946, no Brooklyn, filha do médico Julius e da professora Anna Yellen. Ambos judeus poloneses, “não eram muito chegados à religião”. Como mulher e economista, ela quebrou todas as barreiras em sua profissão, sendo uma das pessoas mais respeitadas em sua área. Em 1963, Janet se formou em primeiro lugar no Ensino Médio e foi aceita pela Brown University, onde cursou Economia. Em 1971, tirou o Doutorado em Economia, por Yale, sendo a única mulher da turma. De 1971-1976 foi Professora Assistente em Harvard, à época a única mulher a lecionar Economia. A faculdade, no entanto, não lhe abriu o caminho para ser professora titular. Em 1976, começa a trabalhar como pesquisadora em Economia no Federal Reserve, o Banco Central

Janet Yellen

Casaram-se e têm um filho, que seguiu a profissão dos pais. Seu marido, George, foi o co-ganhador do Nobel de Economia, em 2001. Durante vários anos Janet foi professora titular na Universidade da Califórnia em Berkeley e, de 1997 a 1999, presidiu o Conselho de Consultores Econômicos, no governo de Bill Clinton. 39

Em 2014, Janet Yellen teve importante papel na recuperação do país da grande recessão que o assolava, com repercussão nas economias mundo afora. Ela foi a primeira mulher a presidir o todo-poderoso Fed, e nessa função contribuiu para o controle da inflação e do desemprego. MARÇO 2021


ATUALIDADE

aconselhamento do Presidente em questões de política econômica e financeira. E como Secretária do Tesouro, Janet Yellen enfrentará o gigantesco desafio de reerguer a economia americana num momento em que a mesma tenta se recuperar do baque do Coronavírus.

Presidente Joe Biden no Salão Oval

Em seu mandato também cresceram a empregabilidade e os salários, enquanto conseguia manter baixas as taxas de juros. Discreta e muito eficiente, esteve durante um mandato à frente do Federal Reserve, até ser substituída pelo Presidente Trump, em 2018. Seu trabalho foi elogiado por democratas e republicanos. Muito respeitada na Wall Street, ela ficou conhecida por não ter medo de enfrentar os grandes banqueiros. Seus colegas a descrevem como firme, mas muito gentil, brilhante e sempre a pessoa mais preparada em uma reunião. Conhecida, também, por sua habilidade de conseguir o consenso e ser ótima mediadora, ela é discreta e simples. Quando trabalhava no Fed ela era vista frequentemente almoçando no refeitório do Fed – e não nos caros restaurantes preferidos pelo mercado.

um imposto sobre as emissões para combater as mudanças climáticas. Rompendo novamente as barreiras, ela é a primeira mulher a ocupar o cargo de Secretária do Tesouro desde que a instituição foi criada, em 1789. E é a terceira pessoa judia, em seguida, a ocupá-lo, após Steven Mnuchin (no governo Trump) e Jack Lew (no segundo mandato de Obama). Esta Pasta é responsável pela cobrança de impostos, emissão de dívida, impressão de papel moeda, supervisão dos bancos e

A pandemia tirou a vida de centenas de milhares de americanos, levando ao fechamento de outros tantos milhares de empresas, grandes e pequenas. A nova Secretária terá que enfrentar o enorme desemprego, o aumento nos números da pobreza e os incontáveis cidadãos que enfrentam despejos e outros inúmeros e graves problemas de subsistência. Janet Yellen é a primeira pessoa a acumular em seu currículo a Presidência do Tesouro, do Federal Reserve e do Conselho de Consultores Econômicos da Casa Branca – um feito nada desprezível. Como Secretária do Tesouro, ela supervisionará 87 mil funcionários e um orçamento de cerca de 20 bilhões de dólares.

Merrick Garland, Procurador Geral Merrick Brian Garland nasceu em Chicago, em 13 de novembro de 1952, e cresceu em um subúrbio com uma grande população judaica. Advogado e jurista, ele conta com grande orgulho a história de sua família, imigrantes judeus aos Estados Unidos. Seus avós vieram da Rússia no início dos anos 1900, fugindo do antissemitismo e almejando uma vida e um futuro melhor na América. Seu pai, Cyril, provém de uma família de imigrantes judeus da Letônia e tinha uma pequena empresa de publicidade que funcionava em sua casa.

Durante meados do ano de 2020, Janet Yellen foi uma voz forte a pressionar o Congresso para aprovar mais auxílio financeiro para evitar os danos duradouros da pandemia da Covid-19. Ela também é forte defensora da regulamentação a favor do clima e endossa a criação de 40


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A mãe, Shirley, fazia trabalho voluntário, tendo trabalhado como diretora do Voluntariado do Conselho de Idosos Judeus, em Chicago. Ao ser nomeado para o Supremo pelo Presidente Obama, Garland declarou que aprendera com seu pai “a importância do trabalho duro e dos acordos justos” e, com a mãe, o valor do trabalho voluntário. Sua esposa, Lynn Rosenman, vem de uma respeitada família judia. Seu avô, Samuel Rosenman, de Nova York, foi juiz da Corte Suprema estadual e conselheiro especial de dois presidentes, Franklin Roosevelt and Harry Truman. O casal, que se casou em 1987 e tem duas filhas, é conhecido por seus Seders de Pessach, que contam com ilustres convidados. O novo Procurador Geral, cargo que equivale a nosso Ministro da Justiça, é descrito com tendo fortes valores éticos judaicos. E quem trabalhou com ele o descreve como muito metódico, detalhista, determinado e muito inteligente. Antes de se tornar juiz, Merrick Garland ocupou vários cargos importantes no Ministério da Justiça. Também trabalhou na Promotoria federal, tendo contribuído para a condenação de Timothy McVeigh pela explosão de Oklahoma City, que matou 168 pessoas.

pôr um fim às disparidades raciais nos julgamentos, acabar com o uso da pena de morte federal e restaurar o papel do Ministério da Justiça de investigar e responsabilizar os departamentos de polícia pela “máconduta sistêmica”.

Merrick Garland

recusaram a votar nele ou sequer sabatiná-lo. Mas hoje ele é o Procurador Geral do governo do Presidente Joe Biden. O Procurador Geral é o titular da pasta da Justiça dos Estados Unidos, membro do Gabinete e principal advogado do governo federal. Representa os Estados Unidos em questões legais e aconselha e emite opinião diretamente ao Presidente e aos chefes dos demais ministérios, quando consultado. Durante a campanha eleitoral, Biden prometeu adotar medidas para

Apesar de muitas dessas iniciativas necessitarem de aprovação do Congresso, na qualidade de Procurador Geral Garland terá muito poder e poderá tratar desses assuntos e influenciar as políticas a serem adotadas. O Presidente Biden chamou Merrick Garland de “um dos mais respeitados juristas da atualidade”, dizendo que o colocou à frente desse ministério para “restaurar a fé dos americanos no Estado de Direito e tentar erguer um sistema de justiça mais equilibrado”. Com esse Gabinete tão qualificado, fazemos votos de que o novo presidente dos Estados Unidos da América tenha sucesso em contribuir para a tranquilidade do povo americano e a paz entre as nações e os povos.

Em 1997 foi indicado pelo Presidente Bill Clinton para Juiz do Tribunal de Recursos dos EUA pelo Distrito de Colúmbia, tornando-se presidente desse tribunal em 2013, onde serviu até se tornar Procurador Geral. Em várias ocasiões esteve na lista de finalistas para um assento no Supremo. O Presidente Obama chegou a indicá-lo para esse tribunal máximo em 2016, mas os republicanos do Senado se

Primeiro-Ministro Bibi Netanyahu (à dir.) conduz coletiva de imprensa durante visita do então Vice-Presidente Joe Biden. Jerusalém, 9 mar. 2016

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Rabi Adin Steinsaltz ZT”L POR TEV DJMAL

Rabi Adin Even-Israel Steinsaltz zt”l (1937-2020) foi um professor, filósofo, crítico social e autor prolífico. Ele foi a única pessoa na História a concluir uma tradução completa e um comentário sobre todo o Talmud Bavli e o Tanach.

O

Rabino Adin Even-Israel Steinsaltz nasceu em 11 de julho de 1937 em Jerusalém. Seus pais, Avraham Moshe Steinsaltz e Rivkah Leah Krokovitz, eram imigrantes do Leste europeu que se identificavam como comunistas. Avraham Steinsaltz, bisneto do primeiro Rebe de Slonim, era um fiel comunista que lutou na Espanha, ao lado das Brigadas Internacionais, na Guerra Civil Espanhola contra as forças fascistas do General Francisco Franco. Era também membro do Le’hi, acrônimo em hebraico para Lohamei Herut Israel, Lutadores pela Liberdade de Israel (o Grupo Stern) – organização paramilitar sionista, atuante de 1940-1948, que lutava para expulsar as forças de ocupação inglesas da Terra de Israel.

É assombroso que um marxista fervoroso como Avraham Steinsaltz pudesse considerar os estudos de Torá de importância capital, mas aquilo deixou uma marca profunda em seu filho. De fato, o Rabino Adin Steinsaltz creditava a seu pai o fato de lhe ter indicado o caminho para a obra de sua vida. Foi aquela exposição ao estudo da Torá, juntamente com o que o Rabino Steinsaltz descreveu como seu ceticismo inato, o que o levou à religião. “Por natureza, sou um cético”, declarou em uma entrevista ao The New York Times, há uma década, “e as pessoas muito céticas começam a questionar o ateísmo”. Em outra ocasião, ele disse ao mesmo jornal americano: “Cheguei ao ponto em que o mundo não conseguia conter minha busca pela verdade”.

Os intelectuais mais venerados na família Steinsaltz não eram rabinos, mas Marx, Lenin e Freud. Mas, apesar de sua ideologia, Avraham Steinsaltz, nacionalista judeu imensamente orgulhoso de seu judaísmo, contratou um professor de Talmud para seu filho Adin, quando este tinha apenas 10 anos de idade. E disse ao filho: “Não me importo se você for um Apikores (um herege), mas filho meu não será um Am Ha’aretz (um ignorante em questões da Torá)”.

Conhecido ao longo de sua vida por sua incontida curiosidade intelectual, o Rabino Adin Steinsaltz estudou Matemática, Física e Química na Universidade Hebraica de Jerusalém, enquanto completava seus estudos rabínicos na Yeshivat Tomchei Temimim – do movimento Chabad-Lubavitch – na cidade israelense de Lod. Após completar os estudos, passou a fundar várias instituições educacionais. Aos 24 anos, tornou-se o mais jovem diretor de escola em Israel. 42


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Rabi Adin Even-Israel Steinsaltz: mestre, cientista, escritor, místico e crítico social

Em 1965, Rabi Adin Steinsaltz fundou o Instituto Israelense de Publicações Talmúdicas, dando início ao monumental trabalho de sua vida: um projeto iniciado quando ele tinha apenas 27 anos e que trouxe à tona seu conhecimento enciclopédico sobre um texto enciclopédico – o Talmud. Como, à época, ele era diretor de escolas, ele chamava a tradução e elucidação do Talmud de “meu hobby”, mas esse “hobby” se tornaria o coroamento de sua realização intelectual. Ele passou 45 anos escrevendo uma tradução para o hebraico moderno e comentários sobre todo o Talmud Babilônico, o Talmud Bavli, que é escrito no hebraico do período Mishnaico e no aramaico Babilônico, sem pontuação e sem vogais. A tradução e comentários do Rabino Steinsaltz tornaram o Talmud acessível a milhões de pessoas. Esse projeto épico foi completado em

2010, após um longo trabalho de 16 horas diárias, no mínimo. O trabalho do Rabi Steinsaltz foi bem além de traduzir, pontuar e inserir as vogais nas 2.711 páginas duplas do Talmud Bavli. Ele também forneceu seus próprios comentários, elucidando cada frase

do texto labiríntico e enigmático. Sua obra inclui biografias dos Sábios talmúdicos e explicações sobre expressões e conceitos do Talmud. O Rabi Steinsaltz declarou que sua tradução e comentário dessa obra destinavam-se a atender até mesmo os iniciantes, que tivessem um mínimo de conhecimento. Esse projeto, que levou mais de quatro décadas para ser completado, foi um feito revolucionário – um divisor de águas na História Judaica que causou grande comoção. O exRabino-chefe sefardita Shlomo Amar louvou sua capacidade de “expandir as fronteiras da Santidade” de modo a abarcar aqueles que não são versados nos estudos do Talmud. Durante séculos, o estudo do Talmud era restrito às ieshivot. O grande feito do Rabi Steinsaltz foi estendê-lo para além de sua esfera

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NOSSOS SÁBIOS

relativamente seleta e, com uma tradução e comentários no hebraico moderno, permitir que os judeus que nunca haviam frequentado uma ieshivá pudessem estudá-lo e entendê-lo. Como muitos judeus que vivem na Diáspora não dominam o hebraico, a Edição Steinsaltz do Talmud foi totalmente traduzida ao inglês. Alguns volumes também foram traduzidos a outros idiomas, entre os quais francês, espanhol e russo. Em 1996 foi publicado

impenetrável, de dois mil anos de idade. Em 2010, ao terminar o último dos 45 volumes de sua tradução e comentários do Talmud, o The New York Times publicou que três milhões de cópias já tinham sido vendidas, mundo afora. “O Talmud é o pilar central da sabedoria judaica, muito importante para a total compreensão do significado do Judaísmo”, disse certa vez Rabi Steinsaltz à Jewish

A Yeshiva University atribui ao Rabino Steinsaltz o título de Doutor Honoris Causa

o primeiro volume em russo, constituindo a primeira edição russa do Talmud permitida na Rússia desde a Revolução Bolchevique de 1917. À época, a notícia mereceu destaque no The Washington Post. Essa realização épica do Rabino Steinsaltz desvendou para milhões de pessoas um texto judaico fundamental, mas quase sempre

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Dialética é o conflito originado entre princípios teóricos ou fenômenos empíricos.

Telegraphic Agency. “Mas é um livro que os judeus não conseguem entender. Trata-se de uma situação perigosa, como uma amnésia coletiva. Tentei abrir caminhos pelos quais eles pudessem penetrar no Talmud sem encontrar barreiras intransponíveis. Trata-se de algo que sempre será um desafio, mas tentei diminuir esses desafios ao máximo”. Em 2012, o Rabino Steinsaltz disse ao The Times of Israel que “O Talmud é o livro da sanidade mental. E quando você o estuda, ele lhe dá uma certa medida de sanidade”. Afinal, 44

ele explicava, essa obra consiste principalmente de insistentes discussões lógicas e racionais sobre questões legais, que visam a chegar à verdade factual. O que poderia ser mais são do que isso? A propósito, o Rabino Steinsaltz, que nasceu e viveu em Israel durante praticamente toda a sua vida, dizia o seguinte sobre o estudo da Torá nas escolas israelenses: “Foi um grande erro basear tanto a educação em Israel no Tanach (Torá, Profetas e Escritos). Pois o Tanach foi escrito por profetas. E quem o lê, de certa forma se torna, em sua mente, um pequeno profeta. E é assim que os israelenses falam um com o outro – eles não conversam; todos se autoconsideram donos de um conhecimento total e ilimitado. O estudo do Talmud mudaria a forma de pensar israelense, pois essa obra versa sobre e se conecta com a dialética1”. Sua tradução e comentários do Talmud fizeram com que o Rabi Steinsaltz fosse comparado a Rashi – o Sábio do século 11, nascido na França, que escreveu o comentário clássico sobre o Tanach e quase todo o Talmud Babilônico. A revista Time saudou Rabi Steinsaltz como a oncein-a-millennium scholar: um erudito como ele vem a este mundo uma vez em cada mil anos. Já a revista Newsweek assim se manifestou: “A tradição judaica está repleta de histórias de rabinos excepcionais. Mas certamente nenhum dos que hoje estão vivos pode ser comparado em talento e influência a Adin Steinsaltz, cujos talentos extraordinários como estudioso, mestre, cientista, escritor, místico e crítico social atraíram discípulos de todas as facções da sociedade”. Além de, como vimos, ter traduzido e comentado linha por linha do Talmud Babilônico inteiro, Rabi


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Steinsaltz também escreveu um comentário sobre todo o Tanach (que também foi todo traduzido ao inglês), sobre a Mishná – o núcleo da Torá Oral, sobre o Mishnê Torá – o Código da Lei Judaica, de Maimônides, e também o Tanya – trabalho central sobre a Cabalá, de autoria do Rabi Shneur Zalman de Liadi, fundador e primeiro Rebe da dinastia ChabadLubavitch. Além de todas essas obras magistrais, o Rabino Steinsaltz escreveu 60 livros, entre os quais um volume considerado referência no Misticismo Judaico, The Thirteen Petalled Rose, um clássico que foi traduzido em oito idiomas, inclusive o português, com o título A Rosa de Treze Pétalas: Introdução à Cabala e a Fé Judaica (Editora Maayanot). Ele também escreveu centenas de artigos sobre uma variedade de assuntos judaicos. Tendo fundado uma rede de ieshivot em Israel e na antiga União Soviética, o Rabino Steinsaltz foi muito atuante no trabalho com os judeus na Cortina de Ferro. Em 1989, fundou uma ieshivá em Moscou, que foi a primeira instituição judaica sancionada pelo governo russo em 60 anos.

proeza intelectual, sua voraz sede de conhecimento e significado, sua sabedoria profunda, sua determinação em terminar seus projetos e ignorar seus críticos, e sobretudo, sua humildade e humanidade que fizeram com que fosse apreciado e amado por tantas pessoas. No entanto, há algo de muito intrigante na trajetória de sua vida: como o filho de comunistas ardorosos – que admitia ter estudado as obras de Marx e Lenin antes

Muito crédito merece seu pai, Avraham Steinsaltz – que, apesar de comunista ferrenho, insistia em que nenhum filho seu fosse ignorante em Torá. O Rabino Steinsaltz

O Rabino Steinsaltz e seu mestre, o Lubavitcher Rebe

Entre os inúmeros títulos honorários, prêmios e homenagens que recebeu, inclui-se o renomado Prêmio Israel, em 1988 – a mais alta honraria do país.

reconhecia a importância de uma série de figuras rabínicas na sua juventude – começando certamente pelo professor de Talmud contratado por seu pai para lhe ensinar, aos 10 anos. Mas a influência suprema em sua vida e que ofuscou todas as demais foi a do Lubavitcher Rebe, e a tal ponto que na pedra tumular do Rabino Steinsaltz, o epíteto que mais se destaca foi que ele era “devotado, de corpo e alma, ao Lubavitcher Rebe”.

O Rabino Steinsaltz e o Lubavitcher Rebe Sem sombra de dúvida, as épicas realizações do Rabino Adin Steinsaltz foram o produto de sua mente privilegiada, seus dotes intelectuais e espirituais e sua dedicação incansável. Ele era conhecido por seu amor a D’us, sua reverência à Torá, sua

mesmo de ler a Torá – podia ter se tornado o erudito sobre o Talmud mais respeitado e influente de sua geração? Quem teria capturado o coração e a mente desse jovem prodígio e ajudado a acender sua alma?

“Meu Rebe” – biografia do Lubavitcher Rebe escrita pelo Rabino Steinsaltz

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A trajetória a partir de uma casa não religiosa e marxista até se MARÇO 2021


NOSSOS SÁBIOS

tornar um dos mais importantes estudiosos e comentaristas da Torá, de todos os tempos – que abriu para milhões de pessoas o portão para o estudo do Talmud e de outros textos judaicos fundamentais – foi em grande parte impulsionada pelo Rebe e seus emissários – rabinos do movimento Chabad-Lubavitch – que, nas palavras do próprio Rabino Steinsaltz, “esbanjaram amor, tempo e paciência em um certo rapaz”. O Rebe de Lubavitch foi o mestre, guia e a fonte de inspiração de Rabi Steinsaltz – e este, por sua vez, foi seguidor dedicado do Rebe, de quem recebeu uma atenção e uma proximidade excepcionais, e que lhe retribuiu por meio de suas conquistas épicas. De inúmeras formas, pode-se dizer que Rabi Steinsaltz se tornou um desdobramento do Rebe. Ele teve um papel central na visão do Rebe e em seu objetivo de atingir todos os judeus e os trazer para mais perto do Judaísmo.

O significado da obra magistral do Rabino Steinsaltz

O Rabino Steinsaltz em frente à estátua de Lenin, na cidade de Yalta, Crimeia

Rabino Steinsaltz que os autores desses emocionantes obituários não cogitaram: como foi possível que ele tivesse escrito tamanha quantidade de trabalhos? Ainda que o Rabino Steinsaltz trabalhasse 16 horas ou mais por dia, e que tivesse alunos seus o auxiliando, há algo muito surpreendente – talvez sobrenatural, mesmo – no fato de ele ter conseguido escrever tanto. Certa vez, o Rabi Steinsaltz disse: “A maioria das pessoas pensam que

Ainda que ele não tivesse feito nada mais além de escrever, na vida, teria sido impossível produzir tamanha quantidade de textos como ele o fez, especialmente se considerarmos a profundidade e complexidade de todas as suas obras. O mais espantoso é que ele fez muito mais do que escrever. Era pai, era esposo;

FOTO: Tamir Platzmann

O Rabi Adin Even-Israel Steinsaltz ostenta a distinção especial de ter sido a única pessoa na História a escrever um comentário tanto sobre todo o Tanach como sobre todo o Talmud Bavli. Ele foi um dos mais – senão o mais – prolífico comentarista da Torá de todos os tempos. Os inúmeros e belos artigos publicados após seu falecimento nos veículos de comunicação mais destacados, como o The New York Times e o The Washington Post, louvam suas obras e conquistas, em particular o fato de ele ter tornado o estudo do Talmud acessível a milhões de pessoas. Mas há algo fascinante e fundamental sobre a vida do

todos dispõem de 24 horas por dia, mas isso talvez não seja verdade. Algumas pessoas, como o Rambam (Maimônides), pareciam ter mais de 24 horas em seu dia”. E, ao que tudo indica, o Rabi Steinsaltz era uma dessas pessoas, pois não é possível explicar como ele conseguiu produzir tanto quanto ele o fez em vida. E nisso reside uma das várias semelhanças entre o Rabi Steinsaltz e Rashi – o maior de todos os comentaristas da Torá. Um dos aspectos sobrenaturais da vida de Rashi é que é impossível que um ser humano tenha escrito tanto quanto ele conseguiu, ao longo de sua vida. No entanto, não há dúvidas de que foi ele mesmo quem escreveu tudo o que leva seu nome. O mesmo pode ser dito acerca do Rabino Adin Steinsaltz.

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era rabino, professor e conselheiro. Era um homem profundamente religioso que se imergia em orações e amava recitar os Salmos. Tendo um conhecimento enciclopédico sobre a Torá – e sendo um de seus mais prolíficos disseminadores – ele estudou a fundo todos os principais trabalhos sobre a Torá. Um de seus filhos, o Rabino Meni Even-Israel Steinsaltz, revelou recentemente que seu pai estudava, todo ano, tanto o Talmud Bavli como o Talmud Yerushalmi na sua totalidade. Mesmo para um Mestre do Talmud, como ele era, isso constitui uma desmedida quantidade de estudo da Torá, bem mais do que conseguem os grandes eruditos que estudam Torá o dia inteiro. Ainda mais marcante é o fato de que ele não estudava apenas os textos religiosos judaicos. Rabi Steinsaltz era uma verdadeira enciclopédia – cientista e matemático com profundo conhecimento sobre uma enormidade de áreas. Ele lia e apreciava a boa literatura laica e até se permitia desfrutar das histórias de detetives e de ficção cientifica. Além de tudo o que estudou e escreveu, o Rabino Steinsaltz trabalhou com todas as forças para disseminar o Judaísmo. Fundou e dirigiu escolas, ieshivot e centros educacionais, dando aulas, palestras e entrevistas em Israel e na Diáspora. Não há explicação racional para se entender como ele encontrou tempo para produzir suas obras épicas, especialmente se considerarmos o quanto ele estudava e trabalhava. Mas, ainda assim, da mesma forma como quando nos referimos a Rashi, não há dúvida de que o Rabino Steinsaltz escreveu tudo o que foi publicado em seu nome. Talvez ele não o admitisse, mas havia um toque de sobrenatural na história de sua vida. Ao contrário do Lubavitcher Rebe, que foi um quase-profeta

O Rabino Steinsaltz carregando um Sefer Torá

e fazedor de milagres, não foram atribuídos poderes sobrenaturais ao Rabi Steinsaltz. Ele é famoso por suas qualidades de Sábio e gênio – um intelectual extraordinário, erudito, cientista, professor, crítico social, escritor e comentarista da Torá. Contudo, quem examina sua vida e tudo o que ele produziu, invariavelmente se pergunta se ele, a exemplo de nossos mestres Rashi, Rambam e o Rebe, também transcendia os limites naturais de nosso mundo.

desse trabalho enciclopédico, enigmático e complexo, fundamental para que se entenda realmente o Judaísmo. Sendo assim, Rabi Steinsaltz também construiu pontes sobrenaturais que levam a D’us. Ao democratizar o estudo do Talmud, ele abriu novos canais de comunicação entre o ser humano e o Santo, Abençoado o Seu Nome. O Rabino Steinsaltz e seu filho, Rabino Meni Even-Israel, com um volume recém-impresso da edição em inglês do Talmud Steinsaltz

Mas a singularidade da obra do Rabi Steinsaltz não reside apenas na quantidade de trabalhos dele, mas em seus efeitos espirituais. Para se compreender a magnitude de seu legado, é necessário entender que o estudo da Torá é incomparável ao de qualquer outro campo de sabedoria e conhecimento. Como ensina a Cabalá, a Torá é a interface que permite que nós, seres humanos finitos, possamos interagir com D’us Infinito. É por meio do estudo da Torá que o homem e D’us se comunicam. Portanto, ao traduzir e escrever comentários sobre todo o Talmud, o Rabino Steinsaltz foi muito além de desvendar o estudo 47

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nossos sábios

Seu filho, o Rabino Meni EvenIsrael Steinsaltz, contou que seu pai dizia que “a Torá é o registro de D’us falando com o ser humano. No entanto, o Talmud registra o ser humano falando com D’us”. E seu pai disse certa vez: “Essa obra é essencial para nossa existência”. Além de ter sido o estudioso do Talmud mais influente de nossa geração, o Rabino Adin Steinsaltz também foi um místico e um mestre da Cabalá. Sendo assim, não surpreende o fato de ele ter decidido traduzir e escrever comentários sobre os textos sagrados fundamentais do Judaísmo: o Tanach, a Mishná, o Talmud Bavli e obras Cabalísticas como o Tanya. Ele dedicou sua vida a tornar acessíveis esses textos magistrais ao máximo possível de judeus, pois, como ensina a Cabalá, o estudo dessas obras é o caminho para os Quatro Mundos que constituem a Existência: Assiyá (o Mundo da Ação), Yetzirá (o Mundo da Formação), Beri’á (o Mundo da Criação) e Atzilut (o Mundo da Proximidade Divina).

sobre o Tanach, Mishná, Talmud Bavli e Tanya possibilitam a praticamente qualquer um de nós, judeus, alcançar os Quatro Mundos da Existência.

O estudo do Tanach é associado ao mundo de Assiyá – nosso mundo físico. O estudo da Mishná é a escada para Yetzirá – o mundo dos anjos. O estudo do Talmud (Guemará) é a ponte para Beri’á, que é o mundo dos anjos mais elevados. Finalmente, o estudo dos trabalhos Cabalísticos, como o Tanya, forja uma conexão com o mais elevado dos Quatro Mundos – Atzilut, onde a Luz Divina irradia e se une ao Santo, Bendito é Ele. As traduções e comentários do Rabi Steinsaltz

Página do Talmud: texto escrito no hebraico do período Mishnaico e no aramaico Babilônico, sem pontuação e sem vogais

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Mas, apesar dessas contribuições singulares ao Povo Judeu e ao universo do estudo da Torá, Rabi Steinsaltz – como muitos dos gigantes em Torá do passado, como o Rambam e o Ramchal – teve também sua parcela de críticos e oponentes. Eles o criticavam por ter facilitado o estudo do Talmud. “Ler o Talmud Steinsaltz em inglês é como tentar entender um quebracabeças depois de o mesmo ter sido desvendado”, escreveu um de seus críticos no The Nation, revista prestigiosa norte-americana. Mas, algo que aparentemente esse crítico e outros do trabalho do Rabi Steinsaltz não entenderam é que o Talmud não é um tipo de quebra-cabeças complicado nem um desafio para o intelecto. D’us não deu Sua Torá ao Povo de Israel para que os judeus pudessem usá-la para aguçar sua mente e sair vencendo uma infinidade de Prêmios Nobel. Na verdade, um dos pontos mais mal compreendidos sobre o estudo da Torá é que seu propósito não é a realização intelectual. O que verdadeiramente importa é a pureza do relacionamento com o texto e não o grau de sua compreensão intelectual. Utilizá-lo para aprimorar ou mesmo provar suas capacidades intelectuais é um uso indevido do Talmud e talvez até uma blasfêmia. O Talmud é um canal para a Luz Divina – um trabalho de santidade que constitui um meio de comunicação entre o homem e D’us – e é apenas com esse espírito que deve ser estudado. Foi justamente a ciência de que o estudo da Torá forja a conexão mais íntima possível entre o homem e D’us o que levou Rabi Steinsaltz a realizar


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1.

2.

3.

1. Com o primeiro-ministro Ariel Sharon em 2002 2. O Rabi Steinsaltz é homenageado pelo Presidente Shimon Peres – 9 fev. 2012 3. Dois gigantes de nossa geração: Rabi Steinsaltz ZT”L e Rabi Lord Jonathan Sacks ZT”L

algo que não tinha sido feito em quase um milênio. Há praticamente mil anos, Rashi escreveu o primeiro comentário abrangente sobre o Talmud Bavli. Aclamado por sua capacidade de apresentar o significado básico do texto de forma concisa e lúcida, Rashi atraiu tanto eruditos quanto iniciantes e seus trabalhos permanecem sendo centrais ao estudo do Talmud. Seria extremamente difícil entender o Talmud não fossem os esclarecimentos de Rashi. Mas, apesar de seus comentários fundamentais e abrangentes, o Talmud continuou sendo um livro fechado para a maioria dos judeus, que não conseguiam ler e entender sua linguagem – em hebraico do período Mishnaico e aramaico do período Babilônico, sem vogais e sem pontuações. Foi o Rabino Steinsaltz quem deu continuidade ao trabalho de Rashi, democratizando ainda mais amplamente o Talmud – ele o tornou acessível mesmo àqueles que não o podem estudar em seu idioma original. Há ainda outro paralelo marcante entre Rabi Steinsaltz e Rashi. O Rashbam, um dos netos de Rashi, revelou que seu avô lhe havia dito

que se ele tivesse que reescrever seu comentário sobre o Chumash (os Cinco Livros da Torá), ele o teria feito de forma mais simples, mais literal. Sem dúvida alguma, Rashi é o pai de todos os comentaristas da Torá e seu trabalho sobre o Chumash é a obra clássica, escrita por ele com inspiração e assistência Divinas: cada uma de suas palavras transborda de santidade e sabedoria. Mas, por outro lado, de maneira oposta a seu comentário sobre o Talmud, seu comentário sobre o Chumash é complexo, apesar de que ele tivesse afirmado que tinha sido escrito para que uma criança de cinco anos pudesse entendê-lo. Na verdade, mesmo aquelas partes que parecem ser simples são tão profundas que há mais de 300 comentários que analisam sua escolha de linguagem e suas citações, de autoria de alguns dos maiores nomes na literatura rabínica, inclusive o Maharal de Praga. Por outro lado, o comentário do Rabino Steinsaltz sobre o Chumash é uma explanação clara e objetiva do texto da Torá, adequada para ser ensinada a uma criança de cinco anos. Talvez seja semelhante ao que Rashi teria feito se ele tivesse a oportunidade de reescrever um comentário mais literal sobre o Chumash. 49

Rabi Steinsaltz tem sido aclamado como “o Rashi desta geração”. Mas esse título é uma meia-verdade, um eufemismo, pois ninguém nas gerações passadas fez o que Rashi ou Rabi Steinsaltz fizeram. Ninguém, na História Judaica, tornou o estudo da Torá e do Talmud mais acessível aos judeus do que esses dois Sábios. De fato, há algo estranhamente semelhante na vida de Rashi e do Rabi Steinsaltz. Ao que parece, o Rabino Adin Steinsaltz veio a este mundo para terminar o que Rashi não pôde concluir em vida.

O Legado do Rabi Adin Steinsaltz Na sexta-feira, 17 do mês de Menachem Av de 5780, 7 de agosto de 2020, o Mestre do Universo determinou que o Rabi Adin Steinsaltz completara sua missão neste mundo. E o Rabi Steinsaltz ascendeu ao Alto aos 83 anos de idade. Muito justo que sua partida deste mundo tenha sido de Jerusalém – a cidade onde ele veio ao mundo – a mais sagrada das cidades, capital eterna e espiritual do Povo Judeu. O Rabi Steinsaltz, que faleceu em virtude de uma pneumonia aguda, havia lutado heroicamente contra várias enfermidades ao MARÇO 2021


NOSSOS SÁBIOS

longo dos anos. Em 2016, ele, um verdadeiro amante das palavras, que pontuou os dois milhões e meio de palavras em hebraico e aramaico do Talmud Babilônico, e que escreveu mais palavras sobre a Torá do que é humanamente possível, perdeu sua capacidade de falar após sofrer um derrame. Apesar de não conseguir falar, o Rabino Steinsaltz continuou a trabalhar e editar seu trabalho anterior, assinalando a seu filho, silenciosamente, o que era para ser editado. É impressionante – e certamente não uma coincidência – o fato de que o Rabi Adin Steinsaltz tenha subido aos Céus na semana em que se leu a porção Ekev da Torá, sobre a qual Rashi escreve: “... o falecimento dos Justos é difícil perante o Eterno, Abençoado o Seu Nome, assim como o foi o dia em que as Tábuas foram quebradas” (Rashi ao comentar Deuteronômio 10:6-7). Tal analogia é particularmente aplicável ao Rabi Steinsaltz, que foi a personificação da Torá e um de seus maiores disseminadores em toda a nossa história. O dia em que ele ascendeu ao lugar mais alto das Alturas foi o dia em que nosso mundo perdeu um luminar que brilhava mais intensamente do que o Sol. Podemos aplicar a ele as palavras que o Talmud usa para falar de Rabi Akiva – o maior Mestre em Torá de todos os tempos: seu nome reverbera de um canto a outro do Universo. A obra magistral e o legado do Rabi Steinsaltz transcendem o tempo e o espaço – são imensuráveis e eternos. Sozinho ele disseminou a Palavra de D’us a milhões de pessoas, possibilitando que eles entrassem em comunhão com o Eterno ao imergirem no estudo de Sua Torá. E graças a ele, o Talmud deixou de ser um livro fechado.

O Talmud Bavli é atualmente estudado não apenas nas sinagogas e ieshivot, mas nos metrôs de Nova York e nos cafés de Tel Aviv. Hoje o Talmud é estudado não apenas pelos rabinos e alunos das ieshivot, mas até mesmo por judeus iniciantes no estudo do Judaísmo. Graças ao Rabi Steinsaltz, a luz da Torá fica cada dia mais forte, brilhando intensamente em inúmeros lares judeus mundo afora. Como seu Mestre, o Lubavitcher Rebe, o Rabino Adin Even-Israel Steinsaltz conseguiu realizar uma tarefa quase impossível – reverter a perda de conhecimento sobre a Torá decorrente do Holocausto, do Socialismo soviético e da enorme assimilação nos Estados Unidos. Nossa geração teve o privilégio de ter em seu meio o Rabino Steinsaltz. Um comentarista da Torá prolífico como ele vem a este mundo uma vez em cada mil anos. Ele era um verdadeiro homem de D’us e a personificação da santidade, da bondade e da sabedoria. Aqueles de nós que fomos privilegiados de conhecê-lo sabemos quão grande era a bênção de apenas ficar em sua presença. 50

Conhecê-lo pessoalmente foi uma experiência singular e inesquecível. Gostaríamos de informar a nossos leitores que a maioria dos artigos religiosos que escrevemos na Morashá tomaram por base os escritos e ensinamentos do Rabino Steinsaltz. É raro não ver seu nome mencionado na bibliografia de qualquer dos artigos religiosos publicados nesta Revista ao longo dos anos. Ele e o Mestre que compartilhamos com ele – o Lubavitcher Rebe – são nossas principais fontes de sabedoria, conhecimento e inspiração. Agradecemos ao Todo Poderoso por nos ter dado o Rabi Adin EvenIsrael Steinsaltz, filho de Avraham Moshe e Rivka Leah. Agradecemos ao Rabi Steinsaltz por ter dedicado sua vida ao Povo Judeu – por nos ter dado, generosamente, o maior de todos os presentes: a dádiva da Torá – fonte de todas as bênçãos e bondade, a ponte até D’us, Abençoado o Seu Nome, e o portão para a Eternidade. Zecher Tzadik Livrachá – que a memória do Tzadik seja uma bênção.


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Médicos nazistas, indignos de homenagens POR Morton Scheinberg

Não obstante os persistentes esforços da Sociedade de Medicina Interna Alemã (SAMI ) PARA evitar que as atrocidades médicas realizadas no Terceiro Reich se tornassem públicas, as aberrações médicas ocorridas nesse período acabaram por vir à tona, levando à reconsideração de títulos honoríficos CONCEDIDOS A MÉDICOS que praticaram atrocidades durante o nazismo.

O

legado da medicina nazista e o papel da Sociedade Alemã tem sido tema de discussões no âmbito médico nas últimas décadas.

Em 1932 a SAMI realizou seu congresso, no qual foi eleito como presidente o Dr. Leopold Lichtwitz, um clínico respeitado, chefe do Departamento de Medicina Interna do Hospital Rudolf Virchow, em Berlim. À época, essa entidade médica já contava com a participação de proeminentes médicos de origem judaica que viviam na Alemanha.

O desenvolvimento da prática da Clínica Médica e sua história na transição do século 18 para o século 19 passam, inexoravelmente, pela Medicina Interna, termo que hoje se refere à Prática Clínica, porém com limites imprecisos em relação às demais práticas da Clínica Médica. A Medicina Interna engloba especialidades como Ortopedia, Cirurgia, Ginecologia e Pediatria. O termo foi inicialmente usado em 1882, em um encontro de Clínica Médica intitulado “Deutsche Gesellschaft für Innere Medizin”. Não demoraria muito para o termo Medicina Interna cruzar o Oceano Atlântico e chegar aos Estados Unidos. Sob a influência da Sociedade Alemã de Medicina Interna (SAMI), o conceito rapidamente se difundiu nos Estados Unidos, com a fundação do American College of Physicians, em 1927. Em paralelo à criação dessa entidade, foi fundada também uma das revistas médicas de maior prestígio dos dias atuais, a Annals of Internal Medicine, coordenada pelo American College of Physicians.

Em 1933, enquanto Dr. Lichtwitz preparava o próximo congresso da SAMI, Adolf Hitler ascendeu ao poder. O Dr Alfred Schittenhelm, médico pró-Nazismo, pediu aos membros da SAMI que destituíssem o Dr. Lichtwitz. Argumentava que o novo congresso da SAMI, que seria inaugurado no dia 20 de abril de 1933, cairia no dia do aniversário do Führer, e não faria sentido que o judeu Lichtwitz, presidente do congresso, assinasse uma carta de congratulações a Hitler – cujo ódio aos judeus era bem conhecido. Todos os médicos assinaram a carta pedindo a renúncia de Lichtwitz, mesmo os que não tinham afinidade com o Partido Nazista e até os vários críticos do governo. Poucas semanas após sua saída forçada da SAMI, Lichtwitz e sua esposa deixaram a Alemanha rumo à Suíça. Em seguida, o casal foi para os Estados Unidos. 51

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Médicos julgados em Nuremberg por crimes de guerra e contra a humanidade, em 1947

Com o auxílio de outros judeus alemães imigrantes, Lichtwitz assumiu a chefia do Departamento de Medicina Interna do Hospital Montefiore, em New York, e recebeu uma cátedra na Columbia University, onde passou a lecionar.

da profissão eram judeus. Milhares desses médicos judeus atendiam dezenas de milhares de pacientes alemães. Ainda que Hitler houvesse decidido excluir todos os judeus da vida alemã, o rompimento dos

Escreveu o livro Pathology of Regulations and Functions, que obteve grande sucesso. No entanto, a Gestapo não poupou críticas à obra, acusando Lichtwitz de “menções desrespeitosas” à classe médica nazista. Ele faleceria em 16 de março de 1943, em New Rochelle, NY, sem ter notícias da sua família que ficara na Europa. Seus dois irmãos foram mortos durante o Holocausto.

Médicos judeus na Alemanha Nazista Em 1933, cerca de 11% de todos os médicos alemães no exercício

Dr. Leopold Lichtwitz

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laços entre esses médicos e seu vasto número de pacientes poderia causar um descontentamento generalizado. Ele sabia, portanto, que teria que agir com maior cautela que em relação a outras profissões. Mas não seriam de forma alguma poupados. O primeiro passo que levaria à destruição dos judeus europeus foi a promulgação de novas leis para “limpar” a nação alemã da presença judaica, e resultaram na exclusão dos judeus de áreas importantes: a própria estrutura estatal (Lei do Serviço Civil), a saúde (Lei dos Médicos) e a estrutura social (a revogação das licenças dos advogados judeus). Já em abril de 1933, uma legislação afetou drasticamente as assim chamadas “atividades judaicas”, que eram a Medicina e o Direito. E pouco a pouco o governo nazista foi implementando leis e decretos que subsequentemente limitaram


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o pagamento devido aos médicos judeus pelos fundos públicos dos seguros de saúde. O governo da cidade de Berlim proibiu advogados e notários judeus de exercerem suas profissões; Munique proibiu os médicos judeus de tratarem pacientes não-judeus; e a Secretaria do Interior da Bavária proibiu que os judeus estudassem Medicina. E assim por diante até a exclusão total de todos os judeus da área médica em particular. Essas leis receberam a corroboração de importante parte da sociedade médica - assim como da jurídica da época, tendo ambas abandonado seus princípios éticos e morais para incorporar as regras do nacionalsocialismo. Ao assumir a presidência da SAMI, o Dr. Alfred Schittenhelm, acima citado, adotou uma postura nacionalista, nazista e o discurso abjeto de “higiene racial” na prática de Medicina Interna, fazendo jus a suas convicções: filiou-se, em maio de 1933, ao Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, tornou-se membro da Liga Alemã de Médicos1 e da Liga de Palestrantes Nacional-Socialista Alemã (a NS-Dozentenbund) e do Schutzstaffel (SS, a Tropa de Proteção nazista), alcançando, em 1938, a patente de SS-Standartenführer. Uma das primeiras medidas adotadas pela SAMI foi a exclusão dos médicos judeus. Quando Hitler assumiu o poder, a Sociedade contava com 1.200 membros, dos quais 230 foram expulsos e

A Liga Alemã de Médicos, presidida pelo Ministro da Saúde do Reich, era uma filial do Partido Nazista com a missão de integrar a profissão médica alemã à visão de mundo nazista. A Liga foi organizada estritamente de acordo com os “ideais” do Führer.

perseguidos por serem de origem judaica. Estima-se que 31 desses médicos foram executados durante o Holocausto ou cometeram suicídio. Cinquenta e cinco desses profissionais emigraram para os Estados Unidos.

da respiração celular que ocorre na matriz mitocondrial das células eucariontes, ele recebeu, em 1953, o Prêmio Nobel de Medicina por seu trabalho, que hoje é estudado nas aulas de Bioquímica nas faculdades de medicina.

O Dr. Hans Adolf Krebs foi um dos médicos judeus que conseguiu deixar a Alemanha. Mundialmente

Com o crescimento dos regimes totalitários fascistoides e prónazistas, a Suíça passou a ser, por

Dr. Hans Popper (no centro, atrás) e equipe, Instituto Patológico, Hospital Mount Sinai, N. York, 1967

reconhecido pelo que é hoje chamado de Ciclo de Krebs, fase

algum tempo, o lugar para onde muitos perseguidos conseguiram emigrar. Entre eles, o Dr. Julius Bauer, eminente endocrinologista austríaco, que lecionava em Viena e escreveu vários artigos sobre sua área de especialização, um deles publicado em um jornal médico suíço. Pouco após a publicação, o Reichsarztefuhrer, chefe da Liga Alemã de Médicos, passou a atacar o trabalho, conclamando a um boicote internacional de seu autor.

Envolvimento da SAMI em crimes de prática médica

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Dr. Hans Adolf Krebs

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Entre 1933 e 1945, todos os presidentes da SAMI eram filiados ao Partido Nacional Socialista. MARÇO 2021


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Após a derrota do Terceiro Reich, o congresso que realizaram em 1948 fez discreta menção à “politização” pró-Nazismo da instituição. No entanto, foram homenageados na ocasião muitos médicos que participaram da entidade durante o período do Terceiro Reich como foi o caso de Dr. Alfred Schittenhelm, como vimos acima, responsável por implementar diretrizes nazistas na Sociedade. Em 1967, Arthur Jones, um estudante de Lichtwitz que presidiu o congresso da entidade naquele ano, convidou Joannes Juda Groen, professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, para palestrar no evento. Na ocasião, este último discorreu sobre as atrocidades cometidas no período nazista, solicitando revisão histórica sobre o comportamento da SAMI nesse período. Infelizmente, várias tentativas de fazer essa revisão acabaram frustradas ou ficaram incompletas, pois sempre eram realizadas por pessoas ligadas à Sociedade. Só pesquisas realizadas por pessoas totalmente descomprometidas com a SAMI tiveram sucesso em desvendar parte da verdade sobre suas funestas atividades durante o Terceiro Reich. O resultado dessas pesquisas foi promover a exposição a um público muito maior sobre as atrocidades da época nazista. Por exemplo, o renomado gastroenterologista de Yale, Prof. Howard Spiro, desencadeou, em 1984, um forte movimento contra o título do então Prêmio da Falk Foundation da Alemanha, que levava o nome Hans Eppinger, médico austríaco nazista (de origem judaica!), chamando a atenção para todas as ambiguidades e os aspectos morais de sua conduta.

Examinando gêmeos, Dr. Otmar von Verschuer, diretor do Departamento de Hereditariedade Humana no Kaiser Wilhelm Institute

No campo de Dachau, médicos da Luftwaffe, a Força Aérea Alemã, e da Instituição de Aviação Experimental alemã realizavam experiências usando os prisioneiros como cobaias. Hans Eppinger foi um dos médicos envolvidos. Seu macabro “estudo” baseava-se em desidratar as cobaias humanas. Noventa ciganos foram isolados em uma área restrita e proibidos de beber água potável, apenas ingerindo água salgada. O objetivo “científico” da “experiência” era descobrir quantos dias um marinheiro nazista poderia sobreviver em alto-mar consumindo apenas água salgada e determinar que sintomas severos experimentariam

Hans Eppinger, médico austríaco nazista

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dentro de 6-12 dias. Após a 2ª Guerra, Hans Eppinger se suicidou um mês antes de se apresentar nos Julgamentos de Nuremberg. O Prof. Howard Spiro defendia, com toda a propriedade, que os médicos que haviam praticado atrocidades durante o período nazista não deveriam ter sua memória homenageada. O Dr. Spiro foi brilhante em chamar a atenção da comunidade médica mundial para a necessidade da biografia das pessoas homenageadas ser condizente com os valores morais, éticos e científicos das premiações médicas. O prêmio mudou de nome e passou a se chamar Hans Popper Prize em 1989, homenageando um especialista de fígado que fugiu do Nazismo e se tornou chefe de Patologia no Hospital Mount Sinai, de New York. Nessa mesma linha, eu mesmo publiquei, há dois anos, nesta Revista, um artigo sobre o tema, intitulado a Ética Médica Nazista. Uma outra evidência histórica foi a medalha Gustav von Bergmann, também criada pela SAMI, homenageando o médico com esse nome que participou ativamente na adoção dos “princípios” médicos do Nazismo. Em 2013, o corpo diretivo da SAMI removeu essa premiação e a rebatizou de Medalha Leopold Lichtwitz.


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Em 2016, a Universidade de Kiel retirou o nome de Alfred Schittenhelm da relação de seus membros honorários. No mundo acadêmico, é um consenso o fato de que a Sociedade de Medicina Interna da Alemanha, SAMI, demorou longos anos para trazer transparência ao que realmente ocorreu dentro da sua entidade entre 1933 e 1945. Nunca vamos saber o que de fato se passou, mas é fato que muitos médicos se submeteram a condutas deploráveis, sem coragem de resistir ou de o denunciar publicamente - e tampouco, acabada a Guerra, de revelar para o mundo o que de fato ocorrera. Vale ressaltar que alguns médicos, como os julgados em Nuremberg, participaram entusiasticamente de experimentos atrozes.

Tentando conviver com o passado As manobras políticas da Sociedade de Medicina Interna Alemã durante a era nazista demoraram muitos

Bibliografia:

Schittenhelm A, Letter to Leopold Lichtwitz, 22 March 1933, Archive signature Paul Martin Collection Folder 77 located at the Institute for Medical Humanities, University of Bonn, Germany To study race problems, German Medical Society will have new program, says chairman. New York Times April 20,1933. Bauer J., Gefahrliche Schagworteauf dem Gebet der Erbbiologie, Schweizer Medizinische Wochhernschift , 1935:65,63) Scheinberg M.: Passado Nazista Altera Nome de Doença. Morashá, Ed. 75, 2012 Scheinberg M .: Ética médica nazista. Morashá, Ed. 97, 2017 Mo. Med. 2013 Nov-Dec; 110(6): 486– 488: German Medical Association Finally Apologizes For Atrocities Committed by German Physicians Under the Nazis [History of the German Society of Internal Medicine (DGIM) - Part 2: The DGIM in the PostWar Period].

Judeu ou não? Medição do nariz, um dos testes para determinação da raça ariana

anos para vir à tona. Após o término da 2ª Guerra Mundial, a SAMI não queria que sua imagem ficasse comprometida por sua participação no regime nazista e procurou ocultar muito do que ocorrera durante esse período. Buscaram manter uma imagem “despolitizada”. Mas, em 1980, em seu centenário, os discursos dos ex-presidentes que atuaram durante o período nazista foram encurtados em comparação aos extensos discursos de presidentes que presidiram em outros períodos. Esforços no período pós-guerra em evitar confrontos com as atrocidades médicas realizadas durante o Nazismo persistiram durante muitos anos. No entanto, as aberrações médicas ocorridas nesse período acabaram por vir à tona. Hoje temos o Código de Nuremberg, criado em 1947 após a 2a Guerra Mundial, que eliminou condutas experimentais sem respaldo científico e estudos sem princípios éticos da prática médica. A tradição de consolidar o legado de excelência na Medicina seguirá em frente, considerando, no entanto, a diversidade, a igualdade e a rejeição à complacência com condutas inaceitáveis, entre as quais o racismo. No caso do Código de Nuremberg, em relação a Pesquisa Clínica em 55

humanos, o denominador comum começa no Termo de Consentimento assinado por um voluntário, como é o caso de voluntários ao recebimento de uma vacina ainda em avaliação, ou aos testes de inovação com medicamentos novos para melhorar o prognóstico de doenças crônicas. E termina quando o Termo de Consentimento assinado é retirado pelo paciente ou voluntário em programas de vacinas, como é o caso das vacinas para prevenção da Covid-19.

Palavras Finais A Medicina não tem exclusividade quando se faz necessária a reconsideração dos títulos honoríficos. A constatação pública do racismo de certa forma institucionalizado nos EUA levou, por exemplo, à retirada do nome de Woodrow Wilson da Princeton University School of Public and International Affairs, pois, como presidente dos EUA, várias de suas intervenções têm nítidas características de supremacia branca. Reconsiderar nomes honoríficos na Medicina não é uma prática comum, mas que começou a ser mais utilizada após os horrores que gradualmente foram-se tornando públicos por relatos de pacientes sobreviventes do Holocausto. Hoje, mais uma vez reiteramos que médicos nazistas que praticaram atrocidades não devem ter sua memória e seu trabalho celebrados e homenageados quaisquer que tenham sido suas descobertas.

Morton Scheinberg é especialista em doenças autoimunes, PhD pela Boston University, Professor Livre Docente pela USP, Master do American College of Rheumatology

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