Caderno Contestado

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notícias do dia - Florianópolis, abril de 2013

Memória

Contestado 100 anos depois nos campos de batalha Marcos Horostecki marcos.horostecki@noticiasdodia.com.br FOTOS: Luiz Evangelista

A Guerra do Contestado foi o maior conflito armado ocorrido em território brasileiro no século 20. No interior do Estado, ocupou 15 mil quilômetros quadrados e matou 20 mil pessoas. A revolta dos caboclos/sertanejos catarinenes teve uma série de motivos, desde a construção da ferrovia São Paulo-Rio Grande do Sul, até a discussão dos li-

mites de território entre Paraná e Santa Catarina. Os caboclos, expulsos de suas terras pela companhia responsável pela ferrovia, travaram batalhas com o que tinham nas mãos. Seguiram líderes espirituais, que prometiam terra e liberdade. Os combates aconteceram há 100 anos e o que restou nesses locais, na hoje conhecida como região do Contestado? As marcas da guerra ainda podem ser encontradas? Quem vive hoje nos antigos campos de batalha? Que

histórias eles têm para contar? Estão preservando uma das mais ricas páginas da história brasileira? Para responder essas perguntas, o Notícias do Dia foi até a região e com uma série de reportagens, nesta semana, mostra que o povo sertanejo ainda existe, mesmo travestido de urbano e da mesma forma sonha com a terra, com a liberdade e com os ideais de fraternidade defendidos pelos líderes guerrilheiros e religiosos do passado. Luiz Evangelista/nd


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Contestado

Parada no tempo da guerra Pouca coisa mudou em 100 anos no local do último grande combate do conflito Fotos Luiz Evangelista/ND

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rosto do agricultor Ari Hoffmann, 41, traz as marcas do dia a dia no campo, sempre debaixo do sol forte, tomando conta do gado para garantir o sustento da família. Perto do final do dia ele se prepara para tomar o tradicional chimarrão com a mulher, Geni, 44, e na companhia do neto, Vinícios, 3. Para eles, os dias passam lentamente, sem as atribulações da vida na cidade grande. Na casa humilde de madeira, o silêncio é quebrado apenas pelo relinchar dos cavalos. Ao redor dela, há novos moradores, numa distância de cerca de um quilômetro ou dois, mas no geral a paisagem pouco mudou nos últimos 100 anos. Há campos, matas, pequenas estradas de terra entrecortando as fazendas e o riacho garantindo água para as criações. O agricultor nativo da região continua guerreiro, lutando pelo sustento da família, exatamente como fizeram avós e bisavós, que entre 1912 e 1916 pegaram em armas para defender terras e famílias e participaram do maior conflito civil da história recente do Brasil: a Guerra do Contestado. Quando escolheu morar na comunidade de Santa Maria, em Timbó Grande, distante 35 quilômetros de Caçador, no Meio Oeste do Estado, Hoffmann sabia muito pouco sobre o confronto, que envolveu a população mais humilde, revoltada com a ação da companhia responsável pela construção da estrada de ferro São Paulo – Rio Grande. A empresa expulsou os moradores da faixa de domínio da ferrovia e com a ajuda das locomotivas explorou fortemente as florestas de pinheiros araucárias, que eram fartas na região. “A gente estudou um pouco e ouviu falar muita coisa. Acho que meu avô esteve na guerra, mas não sei de que lado”, comenta. Foi em Santa Maria que os caboclos ergueram o último grande reduto ou acampamento do conflito. Eram cerca de 5 mil pessoas, incluindo mulheres e crianças, que foram massacradas por quatro destacamentos militares, com cerca de 7 mil soldados. “Pelo lado do rio, a gente ainda encontra alguma coisa da guerra. Já recolhemos chaleiras e balas de fuzil”, comenta Geni.

Evangélica. Ari Hoffmann e o pequeno Vinícios mostram a escola que virou igreja no meio do reduto

Pastagem cresce onde os heróis tombaram

Lazer. Um grande lago foi construído ao lado do local onde os mortos foram enterrados. Um círculo de pedra identifica o cemitério

Notícias do Dia

Da porta da casa dos Hoffmann até o último campo de batalha dos revoltosos do Contestado não é necessário percorrer mais do que 1,5 quilômetro. Ele faz questão de levar os visitantes até o local. Com o neto Vinícios nos braços, mostra a pequena escola, que hoje serve de igreja evangélica e foi erguida no local. Descendo uma ladeira, atravessando o rio por um pequeno pontilhão, está a área onde os mortos da batalha foram enterrados. É o cemitério dos jagunços, que hoje lembra uma simples pastagem. Ao lado, o proprietário das terras construiu um lago, com o objetivo de transformar o local em ponto de visitação e lazer. Todavia, a dificuldade de acesso inviabilizou o projeto. No cemitério não há uma única cruz em memória dos heróis da guerra, apenas um singelo círculo de pedra.

Avenida do Antão,1857 — CEP 88025-150 Florianópolis, Santa Catarina, (48) 3251-1440

Resistência. Sem alimentos, caboclos comeram até o “couro das bruacas”

Sofrimento, fome e morte Foi no reduto vizinho à propriedade de Hoffmann que o sertanejo catarinense mais sofreu. Para sufocar de vez a revolta, o governo mandou quatro frentes de soldados, que sitiaram o local, impedindo a entrada de suprimentos. Até aviões, os primeiros a participarem de um combate no país, foram usados

Editção e reportagem Marcos Horostecki

Fotografia Luiz Evangelista

pelo Exército. A falta de provisões enfraqueceu os rebeldes. Sem sal e sem carne, eles eram obrigados a comer pequenas frutas e chegaram a lamber o próprio suor. “Mastigaram até o couro das bruacas e dos arreios dos cavalos”, diz o jornalista e escritor Paulo Ramos Derengoski, autor de três livros históricos sobre o Contestado.

Projeto gráfico e Diagramação Joice Balboa


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Contestado

Fotos Luiz evangelista/nd

A história enterrada

e abandonada Em ruínas, cemitério histórico está desaparecendo em Matos Costa

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que teriam a dizer sobre a Guerra do Contestado Emilia de Paula, morta em 1912, e Basílio Cuji, morto em 1917? Os nomes não aparecem nos livros de história e nem nas pesquisas recentes dos historiadores, mas estão visíveis nos restos de um dos mais antigos e importantes cemitérios da época do confronto, abandonado na cidade de Matos Costa, a 50 quilômetros de Caçador. O local lembra um cenário de filme de horror. Lápides viradas, sepulturas vazias, cruzes de madeira que se esfarelam num simples toque. Nem endereço o cemitério tem. Em respeito aos mortos da guerra, populares ergueram no local, em 2010, segundo uma inscrição no cimento, uma cruz feita em madeira e pintada de branco. Há restos de velas ao redor do cruzeiro, que comprovam visitação recente. O cemitério está bem à margem da SC-302, mas não é per-

cebido por quem passa pela rodovia. A região é tomada por reflorestamentos de pinheiros americanos, que se encarregam de esconder o local. Para chegar até as sepulturas é preciso paciência e persistência. Logo depois do último posto de combustíveis da cidade, a única estrada já está tomada pelo mato. São apenas 300 metros de chão batido e pedras soltas, mas não há nenhuma indicação sobre a presença dos túmulos. A partir da rodovia é preciso vencer o pinheiral e uma subida íngreme até os fundos do terreno. Ele está cercado por uma taipa de pedras cobertas por musgo verde e remete a uma reflexão sobre a falta de zelo do catarinense quanto ao conflito do Contestado. O cemitério é prova concreta de que, por muitos anos, a ordem de esquecer o confronto e apagá-lo da memória da região, dada pelos coronéis e pelo próprio Exército no pós guerra, foi seguida à risca.

Esquecidas. Poucas sepulturas ainda podem ser vistas no antigo cemitério da época do Contestado em Matos Costa

Material reciclado e casas ocupadas Nas ruas da cidade de Matos Costa, a história do Contestado e do capitão do Exército Matos Costa está viva à margem da linha do trem, mas apagada da memória dos moradores. A antiga estação de passageiros ainda está de pé. Porém, o museu que trata da causa do Contestado está fechado desde a morte da única funcionária e organizadora que possuía, há cinco meses. A área que pertenceu à ferrovia permanece ocupada, inclusive as casas que foram erguidas no pós guerra, para acomodar funcionários da RFFSA (Rede Ferroviária Federal S.A.). Um dos antigos galpões de manutenção dos vagões serve de armazém para os materiais recicláveis recolhidos das ruas por Valdemir Anchau, 54. Natural do Paraná, ele pouco sabe sobre a Guerra do Contestado. “Sei apenas que foi por aqui e que tem relação com ferrovia”, explica. Orgulhoso do trabalho que faz, ele vive da reciclagem há 5 anos e está preocupado com a possibilidade de ter que deixar o local.

União para reunir os fragmentos da guerra

Desperdício. Para o catador de recicláveis Valdemir Anchau, a cidade não sabe tirar proveito do passado

O catador de recicláveis lamenta que o importante papel que a cidade teve na história esteja tão esquecido. Avalia, na sua simplicidade, que os acontecimentos da guerra poderiam trazer desenvolvimento para a região, que depois do conflito viveu um período de mais de 70 anos de declínio econômico, isolada pelo fim da ferrovia e por não possuir acesso por estrada asfaltada. “Muita coisa poderia ser aproveitada para o bem de todos”, argumenta Anchau, enquanto lembra da vida dura, de sol a sol, recolhendo materiais recicláveis com o carrinho de mão. “Faço bem para a cidade recolhendo esse material. Eu poderia fazer mais se tivesse mais apoio e muitas pessoas”, continua. Em Matos Costa e na vizinha Calmon, o Grupo Resgate tenta recolher os fragmentos das batalhas que ocorreram na região e inserir as cidades na história do país. “Se você olhar bem até hoje o caboclo, o povo mais simples dessa nossa região, ainda é discriminado”, sentencia o radialista João Batista Ferreira, coordenador do Grupo. Com a ajuda de amigos e empresários locais, ele arrecada relíquias de época e divulga eventos culturais ligados ao Contestado. Ferreira destaca o aspecto de abandono da estação ferroviária de Calmon,

que poderia abrigar um museu com a história da cidade. “A ALL (concessionária responsável pela ferrovia) não permite a ocupação do local e muitas oportunidades são perdidas”, denuncia. Na estação há vidros quebrados e muita poeira. As luzes ficam acesas durante o dia. Calmon foi uma cidade projetada pela companhia Southern Brazil Lumber & Colonization Co. Inc, de propriedade do mesmo dono da Brazil Railway Company, Percival Farquhar. Era a sede da segunda maior madeireira do grupo e de uma imobiliária, que vendia lotes tomados dos sertanejos. O local era guarnecido por um destacamento de seguranças da companhia, que na opinião de Ferreira eram “os verdadeiros jagunços”. Em 5 de setembro de 1914 toda a vila foi queimada durante um ataque dos revoltosos chefiados por um dos líderes do movimento, Chico Alonso. Os moradores e funcionários da empresa fugiram. A empresa chegou a retomar os trabalhos no local, mas a violência do conflito teria duro impacto no desenvolvimento da região, que hoje sofre com a falta de atenção estadual e federal em termos de recursos e projetos de desenvolvimento.


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Contestado

Um santo roubado

Uma mulher guerreira Imagem de São Sebastião exposta no interior de Lebon Régis é uma das mais importantes relíquias do conflito

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o começo do século 20, antes da Guerra do Contestado, São Sebastião do Sul, hoje distrito de Lebon Régis, era uma próspera freguesia, como eram chamadas na época as comunidades. Tinha cartório, casas de comércio, igreja e destacamento policial. Pequenas estradas levavam até Curitibanos e depois até Caçador, onde passava a estrada de ferro. No local, originalmente chamado de Perdizes Grande, a população ergueu uma capela em honra a São Sebastião, que atraía sempre um grande número de famílias da região para as missas e eventos religiosos. O movimento era constante, chamando a atenção dos visitantes.

O clima de desenvolvimento e expectativa pelo surgimento de uma verdadeira cidade no local acabou interrompido pelos combates entre os caboclos e as tropas do governo, a partir de 1914. Perdizes Grande ficava a menos de dez quilômetros do reduto de Caraguatá – um dos povoados formado pelos revoltosos para resistir à repressão federal. O local também tinha uma líder religiosa, Maria Rosa, que ficou conhecida como a Joana D’Arc do Sertão. Segundo os historiadores, ela era uma figura de grande carisma e conseguiu colocar ao lado da causa pessoas como o juiz de paz e o subdelegado. Até o coronel Matos Costa teria sucumbido aos seus encantos.

Guardiã. Nilva Granemann pesquisou a história do santo da capela da comunidade

A liderança de Maria Rosa cresceu ainda mais com a queda do reduto de Taquaruçu, que foi bombardeado pelas tropas legais. Caraguatá cresceu, mas era comum os caboclos frequentarem Perdizes. A situação só se complicou quando o Exército chegou ao local e os revoltosos foram obrigados a se mudar para Santa Maria, hoje Timbó Grande. Com grande devoção por São Sebastião, o padroeiro da comunidade, os caboclos acabaram por roubar a imagem do santo, carregando-a para o campo de batalha. Eles colocaram fogo na igreja e em toda a comunidade. Por muito pouco o santo também não foi queimado.

Guerreiro. São Sebastião foi roubado da igreja

Marcas do incêndio ainda presentes Até os dias de hoje, na capela de São Sebastião do Sul, o santo roubado durante a guerra chama a atenção dos visitantes. Ainda possui as marcas do incêndio. Mas, não fosse o marco do Contestado, colocado na entrada da comunidade, sua participação na batalha quase não seria lembrada. “Os mais antigos queriam esquecer tudo o que aconteceu por aqui. Eles sofreram muito”, diz a agricultora Nilva Spautz Granemann, 49, uma verdadeira guardiã da história da comunidade. O local levou várias décadas para voltar a se estruturar como comunidade, mas nunca mais viveu outro momento de prosperidade nem recebeu estruturas que pudessem elevalo à condição de cidade. Embora com moradores adeptos à causa dos caboclos, a comunidade serviu de base

para o Exército atacar Caraguatá. Antes de ser queimada, a igreja foi transformada em hospital de guerra, onde os feridos do exército foram tratados. “O que os antigos contaram é que apenas três casas ficaram pé. O fogo não as consumiu, pois eram famílias que acreditavam em São João Maria”, acrescenta Nelson Granemann, 68, líder da comunidade. Os moradores ainda relatam que os antepassados foram pressionados para aderir à causa cabocla. “Chegavam na casa e perguntavam se a pessoa acreditava em São João Maria”, conta Nilva. Segundo ela, quando a situação se complicou na comunidade, toda a família dela foi obrigada a fugir. “Meus avós contaram que saíram de casa apenas com a roupa do corpo”, acrescentou.

Crescimento. Prosperidade de São Sebastião do Sul foi interrompida pelos conflitos da Guerra do Contestado


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Contestado Fotos Luiz Evangelista/nd

Resgatado pelo Exército A imagem do santo permaneceu no reduto de Santa Maria até o último grande confronto entre as forças do Exército e os caboclos. Era costume dos revoltosos cultuar os santos considerados guerreiros. São Sebastião era um dos preferidos. A Igreja Católica, na época, mantinha na região padres franciscanos, que tinham preferências por santos como São Paulo, São José e São Francisco. Os caboclos não aceitavam o sermão feito de costas pelos padres e não se identificavam com os santos. Por causa disso se apegavam ainda mais aos monges e guias espirituais, como a própria Maria Rosa, que se encarregavam de difundir histórias, mitos e milagres atribuídos aos santos. Quando o reduto de Santa Maria foi tomado pelas forças do governo, o santo da comunidade foi levado para Florianópolis. Segundo os registros consultados por Nilva Granemann, quando souberam que a imagem havia sido resgatada em boas condições, os moradores se uniram para que a estátua retornasse ao local de origem. O regresso aconteceu por volta de 1919. Atualmente a comunidade trabalha para ampliar o salão de festas da capela. Ao redor da igreja, há apenas umas poucas casas, ocupadas por trabalhadores rurais. Bem diferente da época em que a comunidade foi fundada. No reduto de Caraguatá, onde Maria Rosa liderava os revoltosos montada em um cavalo branco, há apenas um imenso pinheiral. No local, há outro marco histórico construído pelo governo do Estado, mas a placa de bronze foi arrancada e o mato cresce ao seu redor. O riacho ao lado ainda possui uma pequena passagem para cavalos, exatamente como nos tempo da guerra. Hoje nada mais é do que uma imensa área agrícola, onde o silêncio é quebrado pelo canto dos pássaros. Nada mais de tiros e gritos de revolta.

Túmulo. Coronel foi enterrado no exato local onde foi assassinado

O pote de

dinheiro de

Manoel Pepes Família atacada pelos caboclos luta para preservar histórias do confronto

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População. Filhos dos trabalhadores rurais, que hoje residem nas poucas casas existentes na sede da comunidade

São Sebastião O santo, que nasceu no século três, na Itália, foi um verdadeiro mártir cristão. Segundo registros atribuídos a Santo Ambrósio, foi soldado do Império Romano e um cristão convicto e ativo. Fazia de tudo para ajudar as pessoas e para professar sua fé, convertendo soldados e prisioneiros. Até ser denunciado ao imperador Deocleciano, que o condenou a morte. Teve o corpo varado por flechas, mas sobreviveu. Voltou a se apresentador ao imperador, condenando-o por seus atos contra os cristãos. Deocleciano, então, teria mandado açoitá-lo até a morte, em 20 de janeiro do ano 288.

Caraguatá. Passagem para cavalos é herança da guerra

urante a Guerra do Contestado, fazendeiros que não eram simpáticos ao movimento caboclo ou não acreditavam na santidade de São João Maria corriam o risco de ter os celeiros saqueados e incendiados. Muitos assassinatos e emboscadas marcaram o conflito e não foram sequer investigados. Na fazenda Rio Doce, então município de Curitibanos, hoje Lebon Régis, o fazendeiro com título de coronel Manoel Gomes Pepes, 43, se sentia seguro. Mantinha um grupo de 50 soldados em suas terras e, ao mesmo tempo, atendida pedidos dos caboclos, fornecendo mantimentos e até montaria. Tinha empregado e ensinado montaria a um dos principais líderes dos revoltosos, Adeodato Manoel Ramos. Até 1915, a fazenda prosperava e ficava à margem do conflito.

Porém, o ataque das forças do Exército ao reduto de Santa Maria, hoje Timbó Grande, deixou os caboclos sem provisões e obrigou os revoltosos a fugirem, com o objetivo de se reagruparem em antigos e novos redutos. Adeodato, então comandante dos revoltosos, passaria a promover uma série de saques, com objetivo de reorganizar os revoltosos. Visitado dias antes por uma patrulha de caboclos, Pepes percebe a chegada de um novo grupo em suas terras e resolve fugir a pé, carregando seu dote: um pote de ferro recheado com moedas de ouro e prata. Surpreendido nos fundos da sede da fazenda, é assassinado por Adeodato, seu ex-funcionário, que manda que o restante da família seja poupada pelo destacamento. Enquanto a mulher e os filhos choram em volta do corpo, toda a fazenda é queimada. O pote de dinheiro nunca mais foi visto.


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Contestado Carinho. Nercina do Vale mostra a foto do pai e da mãe, que viveram no pós guerra

Fotos Luiz Evangelista/nd

A guardiã solitária Neta preserva memórias do coronel e do pai, que reconstruiu fazenda

A

queima da Fazenda Rio Doce e a morte do coronel Manoel Pepes, em 10 de junho de 1915, não é encontrada nos livros de história tradicionais, mas tem a neta do fazendeiro, Nercina do Vale, 66, como guardiã. Ela luta para manter viva a memória do avô e do pai, que também foi herói, segundo ela, porque reconstruiu a fazenda trabalhando como tropeiro – um dos primeiros da região no período pós guerra. Sem nenhum tipo de ajuda pública, apenas com doações de amigos e com artigos que sobraram do incêndio na fazenda, Nercina mantém em casa um pequeno museu particular. A maior parte das peças diz respeito ao trabalho dos tropeiros, que conduziam o gado entre o Rio Grande do Sul e São Paulo e passaram a usar a fazenda como ponto de parada. Mas algumas relíquias de família também fazem parte do acervo, como fotos do pai e do avô, documentos da fazenda e as balas de fuzil supostamente usadas no assassinato de Pepes e encontradas no local onde ele foi alvejado por Adeodato. “Tenho muito amor por tudo que está aqui, guardo com muito carinho. Tudo foi deixado por eles para que a memória fosse respeitada e as histórias fossem contadas”, explica Nercina. Os documentos históricos a agricultora guarda em uma mala, que exibe a todos os visitantes da fazenda. Segundo ela, a casa principal, onde ela mora desde menina, foi construída pelo pai e é bem menor que a sede original da fazenda, queimada pelos revoltosos.

Museu. Mesmo sozinha, Nercina recolhe, cataloga e arquiva artigos de época em seu museu

Documentos. A Fazenda Rio Doce é uma das poucas que persistem desde a Guerra. Méritos de Miguel Pepes, filho do coronel

Celeiro guarda peças da Guerra e dos tropeiros As peças do tempo dos tropeiros e da Guerra do Contestado estão espalhadas pela casa de Nercina. Boa parte já possui uma etiqueta, informando origem e dados básicos do objeto. Há artefatos também de origem indígena, que estão guardadas na sala principal do museu particular, dentro do celeiro. No local a agricultora montou até um “cavalo de pau” para exibir os instrumentos usados pelos tropeiros durante as viagens. O artigo de maior valor histórico do período do conflito,

no entanto, fica a cerca de 200 metros do celeiro, no meio de uma pastagem. É o túmulo de Manoel Gomes Pepes. Ele foi enterrado no exato local foi atacado, em atenção a um pedido que teria feito à mulher antes de morrer. Mesmo fazendo parte da segunda geração da família, Nercina ainda se emociona quando vai até o local. “Meu pai e minha avó foram poupados, mas ficaram vários dias sozinhos na fazenda, velando o corpo, até serem resgatados e levados para

Lages. Cozinharam em pedaços de cerâmica que sobraram dos escombros da fazenda e passaram muita dificuldade”, garante. Segundo Nercina, ao logo de toda a vida e mesmo depois de recuperar a fazenda, o pai sempre evitou falar da guerra. “Dizia que foi um período muito sofrido, que dava muita tristeza de lembrar. Não gostava de falar sobre o que passou para recuperar a vida da família depois da guerra. Com mil réis por mês, como tropeiro, ele conseguiu reerguer tudo”, finalizou.


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Contestado

Cronologia da guerra O conflito do Contestado foi maior do que o de Canudos, no Nordeste. Se estendeu por uma área de 28 mil quilômetros quadrados. Combateram sete mil soldados e oito mil caboclos. Pelo menos dez mil pessoas morreram.

Os campos de BatalhA

Canoinhas

Onde ocorreram os principais combates

Porto União

Caçador

• • Região disputada por Paraná e Santa Catarina Região da Guerra do Contestado

Videira

Estrada de ferro São Paulo - Rio Grande

• Curitibanos

Campos Novos

Florianópolis Principais redutos rebeldes São Pedro

• Lages

Papude Aleixo

•Passo Fundo

Santa Maria P. Branca B. Sossego

1910 Termina a construção da

Taquaruçu

estrada de ferro São Paulo-Rio Grande do Sul. Pelo menos 8 mil operários são dispensados pela Brazil Railway. Boa parte decide permanecer na região.

Caraguatá Tavares Campina dos Buenos

1911 Para ressarcir os custos da

construção da ferrovia, o empresário Percival Farquhar é autorizado a retirar a madeira e colonizar a faixa de 15 quilômetros no entorno da linha férrea. É criada a Southern Brazil Lumber and Colonization Company. A empresa começa a retirar as terras os antigos moradores.

1912 O povo,

triste e cansado, encontra alento em um novo Monge, José Maria. • Dia 6 de agosto O monge vai até a festa do Senhor Bom Jesus, em Taquaruçu, então município de Curitibanos. Estão presentes Monge. José Maria ex-funcionários da Brazil Railway e famílias expulsas de suas terras pela Lumber. É formada uma espécie de núcleo em torno do monge. Teria sido nesta data que, após ler a história do imperador Carlos Magno, José Maria escolheu os seus 12 Pares. Um grupo de guarda, que como no livro era extremamente leal ao líder. • Outubro O monge se retira para Irani. Nesse ponto, o movimento já era visto como uma ameaça pelos poderes constituídos. O Paraná encarava a perseguição ao monge, pela Polícia de Santa Catarina, uma invasão de seu território.

Exército. Acampamento em Porto União • Dia 22 de outubro Ocorre o primeiro combate, em Irani. O monge faz uma profecia. Avisa que iria na frente, para lutar contra as tropas, que morreria no primeiro confronto e levaria consigo o adversário, mas ressuscitaria um ano depois. Na batalha, além do monge, morre o coronel João Gualberto, comandante da Policia Militar do Paraná.

1913 • Dia 1º de dezembro Confiantes no retorno do monge, famílias expulsas, ex-operários e egressos de outras lutas no vizinho Rio Grande do Sul começam a se reuniu no reduto de Taquaruçu. Os líderes são Euzébio dos Santos e Chico Ventura. Um filho de Euzébio, Manoel, é tido como vidente.

• Dia 8 de fevereiro Em novo ataque, desta vez por tropas federais, o reduto de Taquaruçu é bombardeado e arrasado. Sobreviventes fogem com destindo a Caraguatá, onde os revoltosos têm a virgem Maria Rosa como líder espiritual.

• Dia 6 de setembro Ataque dos caboclos à estação São João. Emboscada e assassinato do capitão Matos Costa.

• Dia 9 de março O Exército ataca Caraguatá, mas é repelido. Os revoltosos são atingidos por uma epidemia de tifo e decidem se mudar para Bom Sossego.

• Dia 25 de setembro Ataque e ocupação da cidade de Curitibanos pelos caboclos.

• Abril O que restou de Caraguatá é queimado pelo general Carlos Mesquista. Ele dá a missão por cumprida e deixa no local um destacamento chefiado pelo capitão Matos Costa.

Aviões são empregados no reconhecimento aéreo dos redutos dos caboclos.

• Dia 29 de dezembro A Polícia Militar de Santa Catarina ataca o reduto e é repelida.

1914

• Junho Surgem novos líderes dos revoltosos e novos pequenos redutos. • Dia 15 de Junho Os caboclos atacam Canoinhas. • Agosto O reduto principal se muda para a região de Caçador.

Armados. Caboclos se organizam

• Abril/Maio Comandados por Adeodato Manoel Ramos, sobreviventes se agrupam em outros pequenos redutos. A intenção é continuar combatendo.

1915 • Dia 19 de janeiro

• Fevereiro O Capitão Tertuliano Potyguara destrói redutos em São Sebastião e Pinheiros. Os sobreviventes se dirigem para Santa Maria.

Rendição. O fim de Bonifácio Papudo • Outubro Tomado reduto de Pedra Branca. • Dezembro O último reduto, São Pedro, é destruído por uma força de vaqueanos.

1916 • Agosto Prisão de

Adeodato, último dos • Dia 8 de fevereiro Capitão. Potyguara

Família. Líder caboclo João Ventura

• Janeiro Os revoltosos começam a se reunir em Caraguatá.

• Dia 11 de setembro General Setembrino de Carvalho chega ao Contestado para assumir o comando das tropas federais.

mais de 2 mil soldados. Todo o reduto é incendiado.

• Dia 5 de setembro Ataque dos caboclos e destruição da estação Calmon e da sede das segunda maior serraria da Lumber.

Tropas sob o comando de Estilac Leal fazem o primeiro ataca a Santa Maria. • Dia 1º de março Pilotando o MoraneSaulnier, o primeiro-tenente Ricardo Kirk sofre um acidente e morre durante missão de reconhecimento no reduto de Santa Maria. • Final do mês de março O Exército, sob o comando de Potyguara, rompe um dos flancos da resistência cabocla e entra em Santa Maria. Fica cercado, mas recebe apoio de Estilac Leal, com

comandantes dos revoltosos. Ele é o único que não recebe nenhum tipo de anistia. Preso na Capital, tenta fugir e é morto sete anos depois.

ia 20 de outubro D Líder. Adeodato preso de 1916 Termina a questão de limites. Os governadores de Santa Catarina e Paraná assinam um tratado que estabelece as divisas de cada um dos estados.

Principais Causas A revolta no sertão catarinense

Limites

No começo do século 20, Santa Catarina e Paraná brigavam pela definição das divisas dos estados. A República ainda tomava corpo e havia o temor de que de que a Argentina avançasse sobre o território brasileiro. Para afastar de vez a possibilidade de perda de uma boa porção do país para os vizinhos, o governo federal acelera a construção de uma ferrovia ligando São Paulo ao Rio Grande do Sul. Em paralelo, seguia a disputa entre os dois estados. Tanto que a primeira reação grupo formado por José Maria, por parte de Santa Catarina, é encarada como invasão pelo Paraná.

Ferrovia

O governo pensava em ocupar a região do Contestado, para não perdê-la para a Argentina. Mas a região já era povoada e muitas famílias haviam recebido terras do antigo império. Quando o empresário Percival Farquhar inicia o trabalho de colonização e cobra do governo o pagamento pela construção da ferrovia, famílias são expulsas de seus lares e a revolta toma conta da região. Além disso, a companhia abandonou boa parte dos mais 8 mil homens contratados para a abertura das linhas e colocação dos dormentes. Muitas dessas pessoas eram marginais, recrutados dentro de cadeias, e também se rebelaram.

Religião

Isolado no sertão, o caboclo, ameaçado de perder suas terras, se ressentia de apoio espiritual. E não encontrou ajuda na Igreja Católica. O homem do Contestado não aceitava os sermões feitos de costas pelos padres e foi cativado pelos monges. Os dois primeiros não participaram do conflito e não falavam de política. Mas ganharam fama por promoverem curas e oferecerem conselhos, até mesmo matrimoniais. Em meio à fama dos dois primeiros, o terceiro, José Maria, critica a República e reúne pessoas em torno de si. Quando é condenado por criar uma comunidade, mobiliza e apoia a reação cabocla.


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A fé renasce na terra dos guias espirituais

Luiz Evangelista/nd

Contestado

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urante as batalhas do Contestado, a fé no monge João Maria era como um alimento para o combatente caboclo e servia de tábua de salvação para os coronéis, que diziam acreditar no “homem santo” do sertão para escapar da morte. Até hoje os descendentes dos participantes da guerra contam histórias de fazendas que não pegaram fogo porque os proprietários mantinham, nas paredes, quadros com a imagem de João Maria. Dos três monges ou guias espirituais da região, apenas o terceiro participou efetivamente do conflito. Organizou o que chamou de um “Exército Encantado” e prometeu ressuscitar após morrer na primeira batalha. O primeiro, no entanto, que teria percorrido a região no início do século, é o mais venerado. João Maria (João Maria de Agostini) é até chamado de santo e respeitado pela Igreja Católica. Imagens dele estão no jardim da igreja Matriz de Matos Costa e na cabeceira da cama de milhares de devotos em toda a região. O carinho para com o “Santo do Sertão” mostra que, mesmo depois de encerrado o conflito, a população continua buscando alento em antigas receitas e guias espirituais, que ainda podem ser encontrados na região. É o caso do médium espírita Marcos José Alves, 37, da cidade de Palmas (PR). A comunidade atribui a ele a possibilidade de receber o espírito de São João Maria e, por meio dele, promover curas e oferecer orientações, assim como fazia o Santo do Sertão.

Reprodução Luiz Evangelista/nd

Depois da guerra, crença em São João Maria cresce com a ajuda de espíritas e católicos

Médium. Marcos Alves atende os consulentes na cidade de Palmas, no Paraná

O pouco que vale muito O médium confessa que nunca teve paixão pelos livros e que fica surpreso com os ensinamentos que recebe do monge e do médico. Alves também sabe muito pouco da história do Contestado, mas se sente honrado em poder servir de instrumento para que o monge continue ajudando as pessoas. “A espiritualidade é uma forma de ajudar as pessoas, não de ser ajudado”, lembrou, criticando os médiuns que se aproveitam da religião para retirar dinheiro das pessoas. “O monge só me deixou um único ensinamento: humildade, humildade e humildade, nada mais. Não adianta eu sair pelo mundo falando de João Maria. Onde eu estiver eu vou ter a chance de ajudar as pessoas”, acrescentou.

Monge. João Maria de Agostini percorreu a região antes do conflito

Quando nasceu, Marcos José Alves foi abandonado em uma lata de lixo. Encontrado em uma caixa de sapatos, durante a infância teve oito diferentes mães. Na adolescência conviveu com problemas comportamentais, que só foram resolvidos a partir do encaminhamento para um centro espírita em Dionísio Cerqueira, no Oeste do Estado. “Eu era uma pessoa muito inquieta. Um dos maiores problemas era o sonambulismo. As pessoas diziam que eu conversava com alguém que não estava presente”, explicou. No centro espírita, Alves conta que encontrou o equilíbrio que lhe

permitiu levar uma vida distante dos problemas de comportamento. Hoje é casado e cuida de uma área de reflorestamento nos arredores da cidade de Palmas, no Paraná. Uma vida simples, sem muitos luxos, como a da maioria dos agricultores da região. Durante o dia lida com a terra e busca se manter em paz, enquanto a mulher trabalha como cozinheira em uma lanchonete próxima, às margens da BR-280. Uma vez por mês ele atende na cidade, na casa da última mãe adotiva, gente que vem dos mais diversos pontos do país para ouvir conselhos e receber passes espirituais. A vida em sintonia com a

natureza, a fala mansa e os conselhos que tocam fundo na alma aproximam o homem de estatura mediana e olhos e cabelos escuros, um biotipo bem próximo do caboclo do Contestado, do São João Maria que os moradores da região conhecem. Alves não sabe explicar a partir de quando passou a receber o espírito do monge. Afirma que reconhece apenas a energia dele e do seu principal guia, Dr. Leocádio, um médico caridoso que viveu no litoral do Paraná bem antes da guerra. O trabalho dos dois, no entanto, seria bastante parecido e focado no aconselhamento dos consulentes, nas mais diversas áreas.

Marcos José Alves, médium espírita

Luiz Evangelista/nd

Oito mães depois do abandono em uma caixa de sapatos

A espiritualidade é uma forma de ajudar as pessoas, não de ser ajudado.”

Memorial. Santo popular ganhou espaço nos jardins da igreja de Matos Costa


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Contestado

Um arquivo vivo da guerra N

a cidade de Lages, onde mesmo aposentado ainda milita como conselheiro da Empresa Brasil de Comunicação, o jornalista e escritor Paulo Ramos Derengoski não abandona a velha máquina de escrever. “Atravessei o país com ela. Sei bem o peso que ela tem”, assegura. É com a força dos dedos sobre o teclado da velha companheira que ele escreve, quase que semanalmente, artigos com base em mais de 40 anos de pesquisa e paixão pelo conflito do Contestado. Derengoski é uma espécie de arquivo vivo da guerra. Lembra datas sem precisar consultar os livros ou os arquivos históricos e detalha os confrontos como se fosse um professor de história. Para ele, o conflito em torno das terras da região não se resolveu até os dias de hoje, muito embora entenda que o homem guerreiro do Contestado esteja em extinção. “O homem do Contestado acabou. Caçador hoje é uma cidade industrial. O bisneto de quem lutou na guerra

hoje dirige caminhão para uma empresa madeireira, faz faculdade e mexe com computador”, analisou. Embora em um novo ciclo, hoje o dos reflorestamentos de pinheiros americanos, a madeira permanece como principal riqueza e, na opinião do escritor, é tão opressora como no início do século 20. “Hoje é o pinus que expulsa o homem e não a estrada de ferro. Não há mais sertanejos. A região é a mais abandonada do Estado. Mantém as mesmas grandes concentrações de terras nas mãos de poucos e possui o menor Índice de Desenvolvimento Humano de Santa Catarina”, continua. Derengoski lamenta que o Contestado não tenha contado “com um Euclides da Cunha”, assim como aconteceu com Canudos. “O escritor eternizou e expôs o conflito em Os Sertões. Aqui o Contestado é esquecido nas aulas de história e os coronéis ainda existem, travestidos de vendedores de madeira”, acrescentou. Reprodução Luiz Evangelista/nd

Piquete. Grupo armado pelos coronéis da época

Ferrovia. Visita de Theodore Roosevelt à região

Coronéis. Interesse na madeira e na erva mate

Fotos Luiz Evangelista/nd

Jornalista e escritor, Paulo Ramos Derengoski avalia que a luta dos caboclos não acabou

Pesquisador. Derengoski analisa que os coronéis não foram extintos e vendem madeira na região até os dias de hoje

As três causas do conflito Atualmente, mesmo existindo situações semelhantes às do passado, o escritor avalia como pouco provável que a comunidade regional tenha forças para se organizar e lutar como no início do século 20. No passado, na opinião de Derengoski, houve três causas básicas para a transformação da insatisfação do sertanejo em confronto armado. A primeira, segundo ele, está relacionada à chamada Questão do Contestado ou a definição das divisas dos estados do Paraná e Santa Catarina. Na época, o Paraná defendia que a divisa fosse o rio Canoas. Pretendia ficar com o Meio-Oeste catarinense, região de grande produção de erva mate. Santa Catarina queria os limites no rio Iguaçu, estendendo seus domínios por todo o Oeste, até a fronteira do Brasil com a Argentina. A própria Argentina pleiteava um pedaço do Brasil, mas não tinha nenhum povoado além da atual região de São Miguel do Oeste. No cerne dessa questão de limites, conforme os estudos de Derengoski, também estava a erva mate – um recurso natural disputado pelos dois estados e pela própria Argentina. A população também se ressentia de apoio espiritual. “O povo pobre e miserável, que vivia dos pinhais e em parte era descendente de indígenas, recorreu aos profetas e guias espirituais”, argumenta. “Assim cresceu a fama do monge João Maria. Ele dava conselhos e fazia o papel de médico, oferecendo ervas e curando pessoas desenganadas”, acrescenta. João Maria, o primeiro guia espiritual da região, era o Italiano João Maria de Agostini e circulou pelo Contestado bem antes da guerra, arregimentando, conforme Derengoski, um grande número de seguidores.

A chegada da estrada de ferro A construção da estrada de ferro São PauloRio Grande, pela Brazil Railway Company, é apontada pelo escritor como a terceira causa do conflito. A companhia, com o direito de explorar até 15 quilômetros a partir da linha, expulsou os sertanejos de suas terras criando uma massa de revoltados. “Alguns desses revoltados eram fazendeiros e também foram expulsos das terras com violência”, explicou. Os empregados da companhia, muitos deles migrantes de locais como o Nordeste brasileiro, também se juntaram aos moradores. Demitidos ao final dos serviços, eles não tinham para onde ir. Segundo os arquivos pesquisados por Derengoski, eram mais de 8 mil trabalhadores a serviço da companhia. “Os sertanejos tinham

tendências monarquistas, porque o império dava títulos de terras. A República instituiu o cartório e as escrituras, que eles não reconheciam”, acrescentou. A massa de revoltados, ainda conforme Derengoski, também contou com o suporte de refugiados da Revolução Farroupilha, que tinham a intenção de “ir à forra” com o governo brasileiro. O Exército, de outro lado, vivia os primeiros anos da República e estava embalado pela vitória contra o surto monárquico de Canudos. “Em 22 de outubro de 1912 acontece o primeiro confronto, na cidade de Irani. Os revoltosos têm como líder Miguel Lucena de Boa Ventura, que se dizia sobrinho de João Maria e se chamava José Maria”, complementa.


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Contestado

As memórias da máquina a vapor Apaixonado pela profissão, ferroviário aposentado preserva a história dos trens e da guerra

O

Reprodução Luiz Evangelista/nd

Tilhos. Símbolo da eficiência americana

aposentado Joeli Laba, 67, fica chateado sempre que o chamam de exferroviávio. Afirma que, embora tenha deixado de exercer a profissão, nunca se afastou dos trilhos. Morador de Caçador, ele viveu os melhores anos da estrada de ferro São Paulo-Rio Grande. Deixou a ativa em 1995, dois anos antes da privatização da linha, que foi concedida à companhia argentina América Latina Logística. Os meses seguintes à aposentadoria fizeram o auxiliar de agente de estação refletir. “Eu pensava: fiquei uma vida toda aqui e não tenho uma única lembrança. Nada para mostrar para os meus netos”, revela. O apego à ferrovia era grande. Afinal, Laba havia atuado em momentos como a grande enchente de 1983, que destruiu boa parte da linha e pode ser considerada um marco para a decadência do modal ferroviário de transporte na região. O tráfego ficou interrompido por seis longos meses. Aos poucos, Laba foi juntan-

do fotografias sobre o trabalho na estrada de ferro. Estações, trens, túneis, tudo o que o deixasse mais próximo possível da ferrovia. Já nas primeiras fotos veio o interesse pela história da ferrovia na região e um contato direto com a guerra, os caboclos, os monges e cada uma das versões do conflito, que está intimamente ligado à passagem dos trilhos pelo Contestado. “Enquanto eu trabalhava, não tinha noção do quanto a história da região é rica. Com esse trabalho, depois de aposentado, percebi a importância da fotografia. Ela é um documento, vale mais do que mil palavras”, argumenta. Laba é, atualmente, um dos maiores colecionadores de fotografias e fatos históricos da guerra e da ferrovia. Mantém quase três mil artigos, boa parte com boa qualidade de revelação e conservação. Tanto que tem cedido o material para ser exposto nos museus da região. Quer compartilhar a história que fez parte da sua vida com as novas gerações.

Dez homens para abraçar uma árvore

Ontem. Locomotivas eram o progresso

Hoje. Trilho encanta aposentado

As fotos do acervo de Joeli Laba mostram o que de fato motivou o empresário americano Percival Farqhuar a participar do projeto do governo brasileiro de construir rapidamente uma ferrovia nos sertões catarinenses: as centenárias imbuias e araucárias, cujas circunferências eram maiores do que dez homens de mãos dadas. “Uma riqueza enorme, que era retirada dos arredores dos trilhos do trem por modernos guindastes a vapor e embarcados para o porto de São Francisco do Sul, de onde eram exportadas para os Estados Unidos”, explica. Laba comenta que, pelas imagens históricas, a Brazil Railway e a Lumber Corporation, empresas de Farqhuar, eram extremamente eficientes. Podem ser considerados exemplos concretos da ação do chamado imperialismo norte-americano no Brasil. Mesmo no terreno íngreme da região, a companhia construía

15 quilômetros de ferrovia por mês. Além disso, era capaz de montar linhas secundárias em plena floresta, somente para a retirada da madeira e o transporte até as fábricas em Três Barras e Calmon. Nas fábricas, enormes caldeiras movimentavam as serras e garantiam pressão para locomotivas “sem fogo” usadas para percorrer a fábrica sem o risco de provocarem incêndios. A mão de obra era brasileira, composta por mais de 8 mil pessoas. “Para construir a ferrovia, a empresa e o governo andaram por todas as penitenciárias do país, prometendo anistia e arrecadando gente da pior espécie. Ladrões, assassinos, toda essa gente veio para cá trabalhar. Eles viam a riqueza sendo retirada e foram em muito responsáveis pela guerra. Não foi o caboclo. Esse povo todo foi sendo dispensado e acabou ficando por aqui. O caboclo do Contestado é um injustiçado”, ponderou.

Paixão. Mesmo aposentado, Joeli Laba não se afasta da ferrovia

Estação. Abandono dos trilhos é um grande erro segundo o aposentado


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Contestado Fotos Luiz Evangelista/nd

Como nos filmes de cowboy A partir das fotografias, Laba também passou a colecionar histórias sobre a guerra e a estrada de ferro. Uma das preferidas é o “assalto ao trem pagador” ocorrido em 1909, na região de Pinheiro Preto, na fase final da construção da ferrovia. O dinheiro transportado seria da Brazil Railway e serviria para pagar os trabalhadores envolvidos na obra. O crime tem duas versões, segundo ele. Uma diz que os malotes foram retirados de dentro do trem. A outra diz que o assalto ocorreu quando o dinheiro já era transportado por mulas até o local onde estavam os trabalhadores. “As mulas foram muito importantes no período. Aparecem em muitas das fotografias, ajudando os operários”, acrescenta.

O responsável pelo assalto, conforme os estudos do ferroviário, seria um exempreiteiro da construtora, conhecido como Zeca Vacariano, que também mantinha na região de Irani um armazém em que atendia os funcionários da obra. Ele teria armado uma emboscada e conseguido levar todo o dinheiro, não se sabe se por ganância ou vingança, já que teria sido excluído de algumas empreitadas da construção. O episódio deve ser tema de um filme, que Laba está ajudando a produzir. Desde os anos de 1990 ele também coleciona documentários e vídeos sobre a ferrovia na região. O herdeiro do acervo será o neto, Rafael Laba da Costa, 13 anos, que foi iniciado pelo avó no carinho pelos trens.

Prática. Sem textos pré-elaborados, os estudantes interpretam os principais personagens do conflito

Onde mártires

renascem Acervo. Laba arrecada fotos e gravuras sobre a guerra e a ferrovia

O último trem partiu

Não foi o caboclo o responsável pela guerra. Vieram marginais de todas as penitenciárias do país. E esse povo foi dispensado e ficou por aqui. O caboclo do Contestado é um injustiçado” Joeli Laba, ferroviário aposentado

O ferroviário guarda fotografias de quase todos os personagens da guerra do Contestado. Tem cópias dos últimos retratos dos três monges e dos principais mártires e heróis da guerra. Possui também o registro da passagem do presidente norte-americano, Theodore Roosevelt, pelos trilhos da Brazil Railway, além de várias imagens históricas de líderes como Adeodato e Alemãozinho. Os trens, no entanto, têm destaque especial. Há fotografias de acidentes, de composições sendo carregadas com madeiras e de locomotivas andando em trilhos alagados. As fotos das fábricas da Lumber também chamam atenção. “Três Barras tinha o maior pátio de manobras de trens do Estado. Tudo para facilitar o descarregamento da madeira”, explica. Vista de longe, com três poderosos chaminés, cuspindo fumaça 24 horas por dia, a antiga fábrica lembra em muito os complexos industriais modernos. O que mais revolta o ferroviário nos dias de hoje é o abandono do modal pelos governos. Laba viu, aos poucos, a estrada de ferro morrer. “O trem internacional para a Argentina deixou de circular em 1955. Em 1969 parou a linha entre São Paulo e Porto Alegre. O último trecho a deixar de transportar passageiros foi entre Marcelino Ramos e Porto União. Nessa época o trem já era transporte de pobre, muito barato e o transporte rodoviário já dominava”, lamentou.

Músico, Vicente Telles transforma estudantes em personagens da batalha

E

m frente a uma plateia de adolescentes do colégio Geni Comel, da cidade de Chapecó, o músico e estudioso do Contestado Vicente Telles, 81, parece ter fôlego de menino. No auditório que mantém na própria casa, bem ao lado do museu que fundou para lembrar a guerra, às margens da BR-153, em Irani, ele transforma os visitantes em atores e a gaita de oito baixos numa espécie de caixa mágica, de onde se ouvem os gritos e lamentos dos que tombaram na primeira batalha do Contestado. No confronto em Irani morreram o monge guerreiro José Maria e o coronel João Gualberto, comandante das tropas militares do Paraná. Na arena organizada por Telles eles ganham vida, segundo ele, sempre com o objetivo de fazer com que os jovens reflitam. “Algumas turmas participam menos, outras mais, mas creio que é dessa forma que a história do Contestado deveria ser ensinada, para que não ficasse esquecida como tem ficado

nas escolas”, explica o artista. Telles se esforça para mostrar o sofrimento das famílias dos caboclos aos estudantes e para levantar a tese de que a corrupção, mesmo nos primórdios da República, contribuiu para o conflito. “Percival Farqhuar, dono da Brazil Railway, corrompeu representantes do Congresso para conseguir a obra da ferrovia”, garante. O ponto alto da palestra de Telles aos estudantes é o rescaldo da Batalha do Irani. Ele faz com os jovens encenem a chegada de mulheres e crianças ao local do confronto e atua para que todos se emocionem, com a ajuda das músicas que compõe sobre o Contestado. “O cheiro de pólvora se misturava ao cheiro da matança. Crianças agarradas às pernas das mães. E algumas dessas mulheres, sem saber o que fazer, sem ter pra onde ir, se entregaram ao Exército e foram feitas prisioneiras e depois mortas junto com outros presos. Que futuro restou àquele povo?”, diz teles com olhos marejados.

É dessa forma que a história do Contestado deveria ser ensinada, para que não ficasse esquecida como tem ficado nas escolas.” Vicente Telles, músico e pesquisador


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Contestado Fotos Luiz evangelista/nd

Lamentos. Com o acordeon nos braços, Telles canta histórias do conflito e reproduz os gritos das famílias caboclas atacadas pelo Exército

Artista. Músico se caracteriza para falar das batalhas

O monge ainda presente

Ideais caboclos motivam o trabalho desenvolvido na cidade de Irani

A

s histórias das batalhas do Contestado fazem parte da vida do músico e pesquisador Vicente Telles há quase 50 anos. Ele gravou e compôs dezenas de músicas e versos sobre o tema. “As vezes sinto como se o monge caminhasse do meu lado. Tento perpetuar os ensinamentos e os ideais que ele deixou”, comenta. Telles descobriu a guerra depois de ficar 25 anos afastado da região. Soube que, de um lado, era neto de jagunços, e de outro, de coronéis da época. “Fiquei horrorizado com a operação limpeza, com o fato de as pessoas serem proibidas de falar da guerra. Depois de encerrados os combates, coube ao Estado dar continuidade ao trabalho do Exército e muitas pessoas foram presas e até executadas diante das suas famílias”, explicou. O músico ficava incomodado com a acusação de que seus

antepassados eram bandidos. Foi a fundo para descobrir os motivos da luta. “Se eles mataram, em algum momento, era porque queriam justiça, porque queriam ser livres, não eram bandidos”. Outro motivo de indignação era a constante tentativa, de parte do poder regional, de esconder o conflito e não reconhecer nenhum dos líderes caboclos como heróis regionais. “Tive que construir isso aqui para poder falar livremente sobre o Contestado”, garantiu. O artista foi o fundador do Museu do Contestado de Irani, onde uma exposição permanente apresenta, em fotografias e objetos, os principais atores do conflito. Ao lado do museu está o Cemitério do Contestado, construído logo depois da guerra. Telles sonha com a construção de um parque temático no local, o que segundo ele permitiria que a história fosse contada para um número maior de pessoas, valorizando o conflito e seus mártires. “Ainda pretendo usar os dias que me restam para trabalhar. Para semear na cabeça dos jovens um pouco de indignação”, acrescentou.

Sementes. Com as palestras, o artista quer contribuir para a formação dos jovens

Os verdadeiros heróis da guerra Os caboclos, no entendimento do pesquisador, precisam ser reconhecidos como os verdadeiros mártires da guerra. “Era uma época de tanta terra e pouca gente e os poderosos quiseram esvaziar o que precisava ser preenchido”, comentou. Embora o monge José Maria apareça em muitas pesquisas como uma pessoa que se aproveitou da fama dos outros dois monges e que de santo tinha muito pouco, pois era acusado de envolvimento com uma menor de idade no Paraná, Telles tenta mostrar em suas palestras a fé do povo no líder religioso e um pouco da coragem do monge para o enfrentamento das forças públicas. “Quando soube do ultimato dado pelo coronel, José Maria disse que iria na frente,

morreria no primeiro combate, levaria consigo o inimigo e voltaria um ano depois. Todas as profecias se cumpriram, o que aumentou ainda mais a fé do povo. Eu não teria a coragem que ele teve”, acrescentou. José Maria, alcunha de Miguel Lucena de Boa Ventura, benzia, curava e se dizia irmão do primeiro monge. Costumava ler aos caboclos a história do rei Carlos Margno e seus 12 pares de França. Os 12 pares de França eram como uma guarda real, extremamente leal ao rei, que José Maria acabou reproduzindo durante a guerra. Ele também aproveitou os ensinamentos de Carlos Magno para a guerra e mantinha sempre um tom de contestação às atitudes do governo. “José Maria foi um mártir. Merece ser consagrado como um herói brasileiro”.


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