Revista Furtacor

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EDIÇÃO N. 01 - R$35,00 - NOVEMBRO 2020










A FurtaCor é seu respiro do mundo real. Aqui você encontra um local seguro e sem rótulos. Nesse ambiente, sua diferença nos une, não nos separa, por isso, estamos prontos para receber suas risadas, suas dores, seus desabafos e, principalmente, seus questionamentos. Queremos conversas saudáveis, reflexões necessárias e a desconstrução como foco para um mundo melhor. Antes de mergulhar em nossos conteúdos, conheça mais um pouco sobre nosso formato. A publicação é dividida em dois Eixos, o primeiro, nomeado como ID, foi desenvolvido em seções que discorrem sobre cada causa estudada por edição temática, de modo a trazer mais visibilidade em um caderno quase independente. Já o segundo, conhecido como Junto & Misturado, viaja por diversos temas e diferentes movimentos, apresentando suas particularidades e possíveis intersecções. Começamos nossa caminhada com um mundo que precisa ser conhecido, a realidade trans, sendo o tema do nosso eixo principal, nele você pode se aprofundar sobre o movimento a partir de tópicos

importantes, como: acessar o SUS para questões de transição, a polêmica que envolve mulheres trans e o feminismo radical, a transformação da identidade trans em política e também uma impactante entrevista sobre as vivências de Amara Moira, mulher trans que viveu parte da sua vida como prostituta. Seguindo para nosso segundo eixo tratamos de questões mais gerais, que muitas vezes englobam mais de uma causa. Nele você lerá assuntos como a luta de Erica Malunguinho e seu trabalho com o Aparelha Luzia, uma entrevista com Jesuíta Barbosa, personalidade que explora sua masculinidade sem estereótipos de gênero e estimula o cenário artístico brasileiro a sair da caixinha, e, além desses assuntos, o eixo também contém um ensaio fotográfico inédito sobre a vivência de pessoas deficientes na periferia. Tudo isso foi construído para você leitore, que junto com a gente busca uma sociedade plural. FurtaCor é um ambiente seguro para sua transmutação. Crie sua própria trajetória. ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING Curso de Graduação em Design com Habilitação em Comunicação Visual e Ênfase em Marketing PROJETO INTEGRADO DO 3º SEMESTRE PROJETO III – CULTURA E INFORMAÇÃO Profª Marise de Chirico COMUNICAÇÃO E LINGUAGEM II Profª Celso Cruz MARKETING II Porfº Neusa Santos MÓDULO COR E PERCEPÇÃO I Porfª Paula Csillag PRODUÇÃO GRÁFICA Profª Mara Martha Roberto PROJETO EDITORIAL E GRÁFICO Beatriz Rocheteau Bruna Fuentes Luísa Brossel Sarah Morales Novembro, 2020 São Paulo, Brasil



COLABORADORES

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STYLING Zerina Akers já trabalhou com nomes importantes da indústria e atualmente trabalha como estilista e curadora de figurino para Beyoncé, trabalho que mais lhe rendeu reconhecimento e ela se viu celebrada nas páginas de revistas como Vogue e Harper’s Bazaar.

FOTOGRAFIA Fotógrafa e diretora com base em São Paulo, Brasil. Une o universo do skate e da moda em seus cliques, presentes em todos os lugares. Além de movimentar a cena feminina do skate nacional. Os clientes anteriores incluem, Vans, VansParkSeries, Chanel, Paula Raia, Renner, Fila, entre outros.

STYLING Editora de moda da ELLE e Co-fundadora da agência We are Mooc, ela enveredou pelo mundo da moda depois de fazer um curso de stylist em 2014. Hoje, essa agência de cultura e tecnologia trabalha com diversas marcas de moda, sempre levando um olhar sem estereótipos de jovens negros.

MAKE A maquiadora se tornou uma das profissionais mais relevantes do país após se inscrever para o programa Desafio da Beleza, no GNT. Cresceu nas redes sociais e, hoje, é uma das maquiadoras mais conhecidas da sua geração, com maquiagens naturais,coloridas, com muito brilho, experimentações e gloss.



ID AGENDA 14 RG Furtacor Explica Acessando o SUS para questões de transição

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TA OSSO! Tranfeminicídio

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O QUE TA ROLANDO? Pessoas trans na política

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NÃO PARECE, MAS É TRANSFOBIA Por que e como não ser tranfóbico Não parece, mas é tranfobia

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PISA MENOS Criei forças apra enfrentar a sociedade sem abaixar a cabeça Carta aos artistas LGBTI+ e aliados

60 64

VIDA SERTRANSNEJA

JUNTO & MISTURADO

66 FOGO NO PARQUINHO! Linguagem neutra

PÁGINAS POÉTICAS por Furtacor 72 PÕE A CARA NO SOL Que corpo é o seu? Colando velcro com seguranca TEM DE TUDO

Deficiência na periferia Muito além do lacre

78 82 92 96 106

ELA FAZ O CORRE DELA Quebrada nerd 120 TOMALADACÁ Djamila Ribeiro 124 Leandra Certeza 126 Coluna Furtacor 128 RAPIDINHA

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BRISANDO

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A REVOLUÇÃO TEM QUE SER SEXUAL

DISCUSSÃO SOBRE IDENTIDADE VIROU POLÍTICA

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FEMINISMO RADICAL E MULHERES TRANS

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ÉRICA MALUNGUINHO: A MULHER QUE CONSTRUIU UM KILOMBO URBANO

UM CABRA FEMININO


NOVIDADES/AGENDA

Hélio Oiticica: a dança em minha experíencia A exposição “Hélio Oiticica: a dança em minha experiência feita pela curadoria de Adriano Pedrosa e Tomás Toledo traz a trajetória e obras de um dos artistas mais radicais do século 20 no panorama da arte brasileira e internacional. Seus experimentos renovaram meios e suportes tradicionais (como o desenho, a pintura, a escultura, o objeto, o filme e o vídeo) criando novas formas e mídias. Caracterizada pelo rigor conceitual, com origens arraigadas na linguagem do construtivismo europeu, do concretismo e da abstração geométrica, a produção de Oiticica é extremamente vital, sensual, sensorial, comprometida com a experiência, participação e com o corpo (tanto do artista quanto dos espectadores-participantes).

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de 13.10 a 22.11.2020


Pinacoteca A exposição permanente da Pinacoteca de São Paulo está disponível em um passeio virtual, e o museu está constantemente publicando conteúdo nas redes sociais, como as análises de grandes obras de arte no Twitter. A Pinacoteca reabriu com a exposição do OsGêmeos que ficará em cartaz até 22 de fevereiro do ano que vem.

ACERVO FIXO FURTACOR

até 22.02.2021

EXPOSIÇÃO “OS GÊMEOS” 15


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FURTACOR EXPLICA FurtaCor Explica é uma iniciativa da FurtaCor que tem como objetivo responder as principais perguntas sobre temas ligados à diversidade; aqui, você encontrará as respostas para as dúvidas sobre a questão trans Texto por HELEN LEITE | Foto por ANGELA WEISS

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ocê sabe a diferença entre uma pessoa trans e travesti? Neste artigo vamos ajudá-lo a se manter informado, evitando, cometer atos preconceituosos.

O que é sexo biológico? Determinado pelos genitais, sistema reprodutivo, cromossomos e hormônios. Pode ser feminino, masculino ou intersexo (quando há presença de determinantes tanto masculinos quanto femininos). O que é identidade de gênero? É como a pessoa se vê, que pode ser como mulher, como homem, como gênero neutro ou como bigênero. Na maioria das vezes, a pessoa se identifica com o gênero correspondente ao seu sexo biológico, ou seja, nasce com um corpo masculino e se sente homem (se identifica com o gênero masculino) ou nasce com um corpo feminino e se sente mulher. Indivíduos assim são chamados de cisgêneros. Mas, para algumas pessoas, o processo não acontece dessa maneira e atualmente existem diversas nomeações para quando isso ocorre.

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O que é uma pessoa trans? O termo trans é utilizado para se referir a uma pessoa que não se identifica com o gênero ao qual foi designado em seu nascimento. Quando nascemos, nossos gêneros são determinados pelo nosso sexo. Assim, uma pessoa que nasce com um pênis é considerada como um homem. Contudo, algumas pessoas percebem que se identificam com o outro gênero e passam a viver como assim desejam e se sentem melhor consigo mesmas. Dessa forma, podemos utilizar “mulher trans” para uma pessoa que tem o sexo biológico masculino, mas se entende como uma figura feminina. Já o termo “homem trans” é indicado para tratar uma pessoa que seu sexo biológico é feminino, mas se identifica com uma imagem pessoal masculina. Pensando no significado etimológico, o prefixo trans- significa “além de”. O termo é utilizado como um “termo guarda-chuva” e se refere a todas as pessoas com identidades trans: transexuais, transgêneros, travestis, etc.

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O que é uma pessoa cis/cisgênero? O prefixo cis-, acrescentado à palavra “gênero”, vem do Latim e significa “do lado de cá”. Dessa forma, o termo Cis/Cisgênero é utilizado para se referir às pessoas cujo gênero é o mesmo que o designado em seu nascimento. Ao nascer, uma pessoa é designada homem ou mulher de acordo com seu sexo biológico. Se a pessoa, ao longo da vida, se entende/se identifica com mesmo gênero atribuído ao momento do nascimento, então é cisgênera. O que é uma pessoa travesti? Travesti é uma pessoa que tem o sexo biológico masculino, mas se entende como uma figura feminina. Durante muito tempo, o termo era considerado pejorativo, mas atualmente ele vem sendo ressignificado e passou a ter mais peso político.

O que é drag queen/king? O termo drag queen/king se refere a pessoas que se produzem com roupas e acessórios do gênero oposto ao seu com o objetivo de realizar uma performance artística. Enquanto a drag queen seria um homem cisgênero fazendo uma performance como mulher, o drag king seria uma mulher cisgênero performando como homem.

Qual é a diferença entre trans, transgênero, transexual e travesti? Tecnicamente é difícil apontar as diferenças entre O que é uma pessoa não binária? esses conceitos. Por conta do fato das identida- Há ainda pessoas cuja identidade de gênero não é des se basearem na ideia de autoidentificação, o nem masculina nem feminina, está entre os sexos ou melhor caminho é entender como a pessoa se vê e é uma combinação de gêneros. Essas são chamadas respeitar isso. de não binárias. Contudo, vale a pena mencionar que os termos trans, transgênero e transexual podem ser utilizados O que é transfobia? tanto para identidades masculinas, quanto femininas. O termo “fobia” é utilizado para designar medo, Já o termo travesti é utilizado apenas pessoas trans repulsa, desconforto ou ódio. Dessa forma, o termo com identidades femininas. Desse modo, o artigo e “Transfobia” pode ser definido como uma série de pronomes corretos são A travesti e ELA. atitudes, sentimentos ou ações preconceituosas ou discriminatórias contra pessoas trans. As ações podem ser violentas ou veladas. diferença entre transexual e orientação sexual Muitas pessoas ainda confundem orientação sexual/romântica e identidade de gênero. A primeira diz respeito ao interesse sexual por outras pessoas. Pode ser por pessoas do mesmo gênero (homoafetivo/homossexual), por pessoas do gênero oposto (heteroafetivo/heterossexual), por ambos os gêneros (biafetivo/bissexual) ou por pessoas de ambos os gêneros e pessoas não binárias (pan-afetivo/pansexual). A identidade de gênero não determina a orientação sexual de alguém.Um homem transexual (que nasceu com o corpo feminino e o transformou em um corpo masculino) pode tanto ser gay (gostar de homens) quanto heterossexual (gostar de mulheres) ou bissexual (gostar dos dois). O mesmo pode acontecer com uma travesti. Se ela gostar de homens, ela será uma travesti heterossexual.

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FONTE: CORREIO BRASILIENSE


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Amara Moira viveu como homem por 29 anos. Agora, mulher, doutora em literatura e exprostituta, conta como é a vida do lado de lá Texto por MILLY LACOMBE Foto por AMARA MOIRA


mara Moira vai mexer com suas crenças e é bastante difícil que, chegando ao fim desta entrevista, você ainda veja o mundo com olhos antigos. Amara é um evento: doutora em Ulisses, professora de literatura, trans e bissexual, além de já ter trabalhado nas ruas como prostituta. Aos 32 anos, é inundada por um tipo de sabedoria que talvez seja qualidade de travestis: um conhecimento do que é a condição humana sem as máscaras que as instituições impõem. É nas esquinas da vida noturna que o específico masculino se revela pleno, e Amara é bastante capaz de fazer a tradução e a interpretação do que ali acontece para todos nós que ficamos desse lado do muro. Ela nasceu e cresceu em Campinas, numa família de classe média. Foi uma criança sozinha, excluída por ser considerada nerd, o que a fez se isolar nos livros. Aos 4 anos aprendeu a ler sozinha, os pais não sabem exatamente como. Aos 5, já alfabetizada e prestes a entrar na escola, soube que a coordenadora pedagógica pediu que os pais não a deixassem ler nem escrever por seis meses, para que ela esquecesse o que sabia e não atrapalhasse o andamento das aulas. E Amara se fechou no quarto e nos livros. Viveu dentro de um corpo masculino por 29 anos e, como homem, teve namoradas e foi para a cama com outros homens. “Sempre me entendi bissexual, mas acredito que internalizei um bocado de homofobia”, diz. As relações que tinha com homens só podiam ser sexuais e sem envolvimento de afeto, “no limite entre o prazer e a punição”, explica. Já com mulheres, teve relacionamentos mais afetuosos, e desde o final da adolescência. Quando se descobriu trans, com quase 30 anos, não sabia como iria dizer aos pais, que a princípio reagiram mal, mas depois perceberam que Amara estava feliz, e que já não era mais a pessoa fechada e isolada de antes. Pode parecer confuso que alguém que nasceu com genital masculino e sentia atração por homens queira existir num corpo de mulher e, nesse corpo, ganhe seios, mantenha o pênis e sinta atração por mulheres, mas são apenas as limitações de nosso entendimento que causam a confusão. Amara joga uma luz: “Uma coisa é o desejo, ou por quem você sente atração, e outra é como a pessoa se entende, como ela quer se ver e ser vista”. Amara é uma mulher com pênis, e é importante que pessoas como ela contem suas histórias e comecem a expandir nossa consciência e nosso entendimento de gênero, identidade e sexualidade.

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Pela primeira vez construímos uma relação amorosa e de união. Eles se reinventaram para eu poder continuar existindo ao lado deles


Doutora em crítica literária (tem dois livros publicados: E se eu fosse puta? e Vidas trans – A coragem de existir), feminista, revolucionária, mais velha de três filhos, Amara fala rindo e oferece gentileza de sobra para explicar todas as coisas que parecem inusitadas para quem nasceu dentro de um corpo que nunca estranhou

Nesse momento que senti de forma mais contundente que a vida que vivi até ali era uma máscara

Tpm. Qual foi a primeira coisa que você sentiu quando se viu mulher pela primeira vez? Amara Moira. Era uma sensação de liberdade imensa, uma sensação de leveza que eu nunca experimentei. Eu era uma personagem, uma personagem que me impuseram quando nasci, por conta do meu genital, e que eu não sabia que poderia existir de outras formas. Acho que de repente poder me colocar para o outro como Amara, poder pedir para as outras pessoas me chamarem de Amara e poder perceber pelo olhar alheio que eu estava existindo como Amara me deu vontade de continuar querendo existir. E o outro lado dessa aventura? Amara Moira. É… tinha essa leveza e essa liberdade, como se viver fizesse sentido a partir daquele momento, como se eu começasse a entender um propósito. Mas existe também a parte violenta. Eu vivi 29 anos como homem para a sociedade e, nesse período todo, nunca tocaram no meu corpo sem meu consentimento. E de repente, a partir do momento que me veem andar como Amara em público, nas ruas, no metrô, ônibus, isso passa a ser uma experiência de ter que lidar com o assédio, com mãos que tocam em mim, com bocas que chegam no meu ouvido e dizem coisas muito baixas, obscenas e invasivas esperando que eu vá gostar de escutar. As pessoas acreditam que travesti e mulher existem porque gostam de homem e, nesse sentido, gostam de qualquer homem, qualquer um que queira estar com elas. E, se aquele cidadão se dignou a revelar o seu desejo pelo nosso corpo, temos que agradecê-lo por isso, e satisfazê-lo imediatamente. Então, essa é uma das questões mais delicadas de existir como Amara. Existir como Amara faz sentido, mas ao mesmo tempo estou sempre exposta a esse olhar fetichizado, objetificante, e que só consegue compreender minha existência em termos de gostar de homens.

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Só muito recentemente, uns sete anos atrás, comecei a me dar conta do armário em que vivia e que era preciso abrir aquela porta e ir descobrir quem eu era. Eu não sabia o que era, só sabia que queria ser livre. Ser Amara pra mim é ser livre

Quando você se vestiu de mulher pela primeira vez? Amara Moira. Esquisita essa pergunta. O que é se vestir de mulher? Várias mulheres se vestem como eu me vestia antes da transição, e hoje em dia praticamente só uso vestido, única roupa com que me sinto confortável, então não sei se faz sentido insistir nessa terminologia. Vesti por curiosidade roupas da minha irmã quando ainda era criança, sem nem imaginar que eu era trans, e depois disso passei quase duas décadas com medo de imaginar a possibilidade de usar de novo roupas consideradas femininas. Tinha medo de descobrir coisas, me perder nessas descoberta. Mas no escopo dos abusos que o feminino sofre a travesti não está ainda mais ao extremo? Amara Moira. Entendem na gente um “querer ser mulher”, e o tratamento que nos dão é bastante indicativo do que entendem como o que a pessoa que quer ser mulher procura. Querer ser mulher é querer transar com homens, querer se submeter ao desejo masculino, querer servi-lo. Então, nesse corpo novo, passo a viver na pele algumas questões que eu conhecia pelo feminismo, mas que ainda nunca tinha vivido. Por exemplo? Amara Moira. Por exemplo essa coisa do você diz não e a pessoa entende como sim. Você fala que está sentin do dor e a pessoa entende isso como prazer. Você está transando com um cara e você sinaliza a dor e o cara entende que sua dor é prazer, porque é dessa forma que o olhar masculino muitas vezes entende o corpo da mulher. Então, se ela está sentindo dor, ela está sentindo prazer; se ela falar não, ela está dizendo sim. E é sempre nesse embate, e naquele momento você vê que a sua palavra parece que não conta. O que quer que você queira dizer vai ser interpretado de uma outra forma, por um filtro misógino, machista.

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O que é fascinante é que você estava do outro lado, viveu como homem por 29 anos. Amara Moira. Dou palestras e uma vez teve um homem que chegou e falou: “Poxa, minha esposa é feminista e ela sempre fala várias coisas para mim e hoje, ouvindo você, consegui entender o que ela diz”. Talvez por eu já ter vivido as duas experiências consiga encontrar as palavras que escancarem essa violência, porque essa violência foi escancarada pra mim. A sua vida como homem era muito diferente da que tem hoje como mulher? Amara Moira. Eu tenho certeza absoluta de que, durante 29 anos, minha vida foi diferente do que tem sido nos últimos três. Então, talvez eu entenda quais mecanismos verbais usar para que esse cara entenda o que eu quero dizer. Muitas vezes falo sobre a cantada, essa cantada que a gente sofre na rua, que é o cara brincando com os nossos medos. Muitas vezes eles nem têm compreensão de que eles estão ali brincando com os nossos medos, brincando de poder, sabe? Você está andando na rua, ele brinca com você. Como o cara para quem sinalizo que estou sentindo dor e ele continua a transa, fica mais excitado por isso. Ele também não tem consciência de que ele está me violentando. Eles são capazes de cometer as maiores atrocidades e violências sem ter qualquer compreensão disso. Como sair desse lugar de opressão? Amara Moira. Um dos desafios nossos, do feminismo, é começar a furar esses bloqueios que existem, e começar a fazer esses caras repensarem suas próprias atitudes. Senão a gente continua tendo que estabelecer um front de guerra entre homens e mulheres. Foi o que aquele feminismo dos anos 60 fez, o nós contra eles. Foi importante para conquistar um espaço, mas talvez agora a batalha seja uma outra. Amara Moira. Quando a gente compreende que existem homens e que homens são violentos passa a ser importante a gente pensar em modelos de educação que não reproduzam essas violências. A gente não pode simplesmente constatar que homens têm um comportamento violento e querer estabelecer um front de guerra. Eu acho que a gente precisa começar a pensar em termos de uma educação transformadora, de outros modelos de homem.

Ele acha que é uma brincadeira brincar com o seu medo

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Como? Amara Moira. Eu vejo muitas feministas, por exemplo, falando que homens são criados para serem insensíveis, para sempre levar o seu corpo ao limite, para estar sempre tentando demonstrar o quanto eles são capazes, o quanto eles são poderosos e importantes. Isso é extremamente útil para o capitalismo. São corpos a serem usados pelo capitalismo e pelo Estado em tempos de guerra ou em tempos de paz, nas indústrias… Um corpo sempre sendo levado ao limite, a coisa da masculinidade, do eu dou conta. Existe um propósito que vai além. Cria-se esse homem, esse homem violenta mulheres, mas esse homem também está sendo usado para um interesse maior do qual ele não tem nem consciência. O sistema nunca vai desencorajar a gente a funcionar nesse modelo. Amara Moira. Nesse sentido, a ambivalência do universo trans traz uma nova luz. Por exemplo, esses homens que foram criados para serem mulheres por conta de terem nascido com vagina sabem como ninguém o que é ser criado para ser mulher. Eu tenho muita expectativa, muita esperança, de que essa seja a primeira geração de homens feministas, que tenham consciência do que é ser criado para ser mulher e das limitações que são impostas a essas pessoas, desde criança, só por conta do genital com que nasceram. Que esses homens trans sejam instrumentos de transformação da sociedade. Algumas mulheres entenderam que vencer seria ser CEO: mulheres casadas, que têm filho, que chegaram lá e passam a mensagem “Basta querer que você consegue”. Nem todo mundo pode ter cinco babás para dar conta de ser uma profissional de sucesso. Amara Moira. Acho que é essa a questão. A gente não quer simplesmente que as mulheres de elite tenham as mesmas condições dos homens de elite. A gente quer que todas as mulheres tenham as mesmas condições de todos os homens. A gente quer que todas as mulheres negras tenham as mesmas oportunidades das mulheres brancas, e o que os homens negros também tenham.

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Nos últimos tempos o número de feminicídios envolvendo mulheres brancas diminuiu e o de mulheres negras aumentou


Então você carrega mais peso do que você dá conta, você faz mais do que você deveria dar conta, porque você é homem e homem dá conta. Entende?

Não dá para falar em feminismo sem falar de consciência de classe? Amara Moira. Não dá, ou a gente só resolve a situação para um grupo muito elitizado de mulheres. É como se o feminismo estivesse dando certo para um determinado grupo apenas: mulheres brancas em geral, mas especialmente de elite, que já podem transformar o feminismo em uma mercadoria. É perigoso porque aí começa a ter cerveja feminista, revista feminista, bom, revista tudo bem, né [risos], camiseta feminista… É uma armadilha para os homens também, não? Amara Moira. O sistema marginaliza as profissionais do sexo, mas marginaliza porque tem aí uma utilidade. Isso entra como compensação para que a gente possa escutar essas coisas que esse cara não vai poder falar, porque ser homem implica ser homem inclusive na transa. É uma constante afirmar-se homem. Não tem a ver com prazer: tem a ver com se afirmar homem. Aí vão procurar a gente para poder tirar essa máscara que o machismo impõe a esses homens, e respirar ar puro por alguns minutos, e depois colocar de novo essa máscara, e até mesmo sentir nojo de ter vivido aquele desejo, porque aquele desejo é considerado abominável para a sociedade. O universo das profissionais do sexo acaba sendo o respiro de um sistema de opressão terrível e cruel. Amara Moira. Essa é uma questão terrível, porque podia ser diferente. Podia ser simplesmente uma pessoa que chega para a gente e fala: “Olha, eu sei transar muito mal, eu tenho muito pouco conhecimento do meu corpo em termos de zonas erógenas, de zonas de prazer, me ensina a experimentar um pouco mais, a explorar o meu corpo”. Uma educadora sexual, uma pessoa que está ali determinada a fazer uso do seu saber sexual, do saber do corpo. A gente sabe lidar com diferentes corpos, com desejos diferentes, com prazer, com fantasia. A gente podia ser tratada como algo mais do que objetos, ser valorizadas por isso. Em debates sobre sexualidade, a prostituta nunca é chamada. E prostitutas são quem têm contato com o sexo que existe, um contato com o desejo que existe; não o desejo que deveria existir, o que existe de fato. E se for falar com a gente vai descobrir que nem sempre é a penetração, ou não é a penetração nesses termos. Sexo é tão mais…

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O que essa sua experiência como prostituta ensinou a respeito do universo masculino? Amara Moira. Eu tinha essa noção de que homens procuravam prostitutas como um exercício de liberdade sexual, e me dei conta de que eles procuram porque é proibido que eles vivam a sexualidade da forma como imaginam ou desejam. A gente gosta de pegar a pessoa que tem desejos pervertidos e jogar na fogueira, mas esquece que a sociedade está produzindo pessoas que têm aquele desejo. E jogar aquela pessoa na fogueira só vai resolver esse sintoma, não o fato de que a sociedade continua produzindo pessoas que desejam daquela mesma forma. A gente precisa começar a reconhecer o nosso papel enquanto sociedade por criar tais e tais desejos. Para isso vai ser preciso a perspectiva da prostituta. Senão, a gente vai continuar lidando com o fantasma.

E pensar de que forma podemos criar pessoas mais livres em termos de sexualidade

Os corpos que são aceitos e celebrados. Amara Moira. A gente entende na prática que os homens mais saradões e bonitões às vezes são os que pior entendem do que fazer na cama. E o quanto pode ser prazeroso estar com corpos que estão completamente fora desse padrão de beleza e masculinidade. A gente pode falar coisas muito concretas de como romper com as expectativas que os padrões impõem. É tudo torto e desvirtuado, mas incrivelmente conveniente para o status quo, que finge se indignar com esse estado de coisas, mas não cria mecanismos para transformá-las. Amara Moira. Por exemplo, uma menina de 12 anos já chega na rua e recebe cantada, porque, nossa, que bundão, que mulherão, vai dar trabalho pro pai. Que história é essa de vai dar trabalho pro pai? Que história é essa de olhar de maneira lasciva, com desejo sexual, para uma criança de 12 anos, às vezes menos? Quando surge aquela hashtag “meu primeiro assédio”, a gente descobre que é com 8 ou 9 anos a primeira vez que a criança é tratada como objeto de desejo sexual. Essa questão de que falam que a mulher amadurece primeiro que homens é só mais uma forma de justificar o assédio em crianças e adolescentes. É perigoso. Elas amadurecem no mesmo tempo, 
não interessa olhar pro corpo e pensar “Ah, já tem um corpo de mulher, então já pode ser assediada”. Isso é bastante baixo e a gente precisa começar a contrariar e a contrapor essas compreensões.

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FONTE:REVISTA TRIP


É muito difícil pensar em uma sociedade mais justa e igualitária sem que exista uma revolução sexual? Amara Moira. A pulsão sexual é o que move o ser humano. Por exemplo, o cara chega, tá chapado de tesão, e aí ele vai dizer que você é a coisa mais linda que ele já viu na vida, que ele casaria com você, que ele te ama, você é mais mulher do que muita mulher, um monte de baboseira dessas. De repente ele goza, lembra que você é uma figura abjeta para a sociedade, que não deveria sentir desejo por você, e começa a sentir nojo de ter sentido desejo, começa a não conseguir mais interagir. Não toca mais em você, não olha mais na sua cara, ele só quer sair dali o mais rápido possível. E a travesti tem que lidar com essa montanha-russa de emoções a cada programa. Às vezes não quer ser nem passivo, ele só quer transar com uma mulher que tenha um pênis, e depois ele não suporta a ideia de ter feito isso, de ter desejado isso. A gente precisa discutir sobre essas questões que estão no imaginário. O que falta para a gente mudar tudo isso? Amara Moira. Uma educação que implique convivência de diferenças: ricos e pobres, mulheres e homens, brancos e negros podendo estudar nos mesmos espaços e tendo as mesmas oportunidades. Hoje a gente vê que quando a mulher faz uma questão na sala de aula, e a questão é entendida como boba, ela é ridicularizada, enquanto os homens se permitem dizer as maiores abobrinhas, falar as maiores besteiras, mas com a tranquilidade de quem sabe que tem o direito de falar. Você já sentiu isso na pele dos dois lados? Amara Moira. Sim. Fiz minha transição muito tardia, né? Tive um adestramento grande para esse tipo de situação. Depois da minha transição comecei a perceber que as mulheres ao meu redor recebem esse tipo de tratamento. De repente eu estava numa reunião com mulheres e uma mulher estava falando e eu cortava a fala dela. Eu espero que ela corte a minha em seguida, que a gente fique cortando a fala uma da outra, só que não. Eu cortei a fala dela, ela me deixa terminar e às vezes não volta a falar. 
É como se eu tivesse dizendo que ela não tem o direito de falar. É como se ela sentisse que talvez ela não tenha algo de interessante para falar. E aí eu começo a ter que me policiar para não fazer esse tipo de coisa. Eu lembro de um orientador que falava “As mulheres, quando elas tiverem que falar, elas vão falar”. Então elas não estão falando porque elas não têm o que falar? Isso é uma violência absurda. É uma incompreensão absurda do que existe em termos de criação para ser mulher, criações para ser homem, das limitações que são impostas a cada existência. Você bagunça muito a cabeça das pessoas, uma travesti com doutorado. Amara Moira. E uma travesti bissexual. Eu tenho uma companheira [risos]. A gente anda na rua e as pessoas não sabem o que pensar.

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Ato realizado diante do Congresso Nacional, em BrasĂ­lia, para lembrar a memĂłria de vĂ­timas da transfobia no Brasil.


ACESSANDO O SUS PARA QUESTÕES DE TRANSIÇÃO? Constantemente somos procuradas sobre dúvidas em relação para acesso ao processo transexualizador do SUS e sobre quais procedimentos temos garantido o direito, além do funcionamento e fluxo de atendimento Texto por BRUNA BENEVIDES

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rganizamos algumas informações, mas Não utilizamos o termos Afirmação de Gênero, pois é imprescindível que todas as pessoas partimos de uma ideia onde nenhuma modificação possam ler e acessar a Politica Nacional corporal (ou a ausência dela), apesar de serem imde Saúde Integral LGBTI do Ministério da portantes, definem nossa transgeneridade e que Saúde e a própria portaria que instituiu o processo nosso gênero já está muito bem estabelecido quando Transexualizador do SUS. optamos por qualquer mudança. Em 2006, o SUS introduziu, por meio da Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde, o direito ao uso Você tem o direito de usar seu nome social do nome social, pelo qual travestis e transexuais se Você tem o direito de pedir atualização do seu caidentificam e escolhem ser chamados socialmente dastro com nome social e tem que ser garantido pelo – não apenas nos serviços especializados que já os SUS. Juridicamente, está sancionado desde 2009 pela acolhem, mas em qualquer outro da rede pública Portaria nº 1.820 na Carta Direitos dos Usuários do de saúde. SUS. O inciso I do artigo 4º da carta aponta: O Processo Transexualizador foi instituído no Brasil apenas em 2008, passando a permitir o acesso a “Identificação pelo nome e sobrenome civil, deprocedimentos com hormonização, cirurgias de vendo existir em todo documento do usuário modificação corporal e genital e acompanhamento e usuária um campo para se registrar o nome multiprofissional. O programa foi redefinido e ampliasocial, independente do registro civil sendo asdo pela Portaria 2803/2013, passando a incorporar segurado o uso do nome de preferência, não como usuários do processo transexualizador do SUS podendo ser identificado por número, nome os homens trans e as travestis, tendo em vista que ou código da doença ou outras 14 Conselho até então apenas mulheres trans eram assistidas Nacional de Saúde formas desrespeitosas ou pelo serviço. preconceituosas.”

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O cuidado com a população trans é estruturado por dois componentes: a Atenção Básica e a Atenção Especializada. A Básica refere-se à rede responsável pelo primeiro contato com o sistema de saúde, pelas avaliações médicas e encaminhamentos para tratamentos e áreas médicas mais específicas e individualizadas. A Especializada é dividida em duas modalidades: a ambulatorial (acompanhamento psicoterápico e hormonização) e a hospitalar (realização de cirurgias de modificação corporal e acompanhamento pré e pós-operatório). Para todas as pessoas, a idade mínima para procedimentos ambulatoriais é de 18 anos. Para os hospitalares, ela aumenta para 21 anos. Qualquer indivíduo pode procurar o sistema de saúde público e é seu direito receber atendimento humanizado, acolhedor e livre de discriminação. Até o momento, de acordo com o Ministério da Saúde, os únicos hospitais que podem realizar cirurgias de transgenitalização no Brasil pelo SUS são o Hospital das Clínicas de Porto Alegre, o HC da Universidade Federal de Goiás, em Goiânia, o HC da Universidade Federal de Pernambuco, em Recife, o HC da Universidade de São Paulo e o Hospital Universitário Pedro Ernesto, no Rio de Janeiro. Apenas três unidades fazem acompanhamento preventivo, com foco em crianças e adolescentes de 3 a 17 anos. Uma das unidades está na capital de São Paulo; outra, em Campinas; e a terceira, em Porto Alegre.

Para ter acesso aos serviços do processo transexualizador do SUS, é preciso solicitar encaminhamento na unidade básica de saúde mais próxima da sua residência. Os procedimentos mais procurados são a hormonização, seguidos de implantes de próteses mamárias e cirurgia genital em travestis e mulheres trans, assim como a mastecomia e histerectomia no caso dos homens trans. A faloplastia ainda é feita em caráter experimental no Brasil. Se atente para as filas de acesso – que hoje variam em mais de 10 anos para a redesignação sexual, e buscar informações sobre os procedimentos necessários para acesso a tratamento fora de domicílio (TFD) pelo SUS, para aquelas pessoas que moram em cidades onde não hajam serviços especializados. Requisitos básicos para acesso ao processo Transexualizador: ● Maior de 18 anos para iniciar processo terapêutico e realizar hormonização; ● Maior de 21 anos para cirurgias de redesignação sexual, com indicação médica; e ● Necessidade de avaliações psicológicas e psiquiátricas durante um período de 2 anos, com acompanhamentos e diagnóstico final que pode encaminhar ou não a paciente para a cirurgia tão aguardada. Desde junho de 2019, a transexualidade não está mais na lista de doenças da Organização Mundial de Saúde (OMS). Segundo a entidade, a transexualidade passa a integrar como “incongruência de gênero” a categoria denominada “condições relativas à saúde sexual”. Principais alterações na Resolução 2265/2019 do Conselho Federal de Medicina.

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FONTE: ANTRA


específico à pessoa transgênera: ● A adoção da nomenclatura médica da transexualidade como “incongruência de gênero” nos termos da atualização da CID feita pela OMS em junho de 2018; ● A previsão do Projeto Terapêutica Singular (PTS) que servirá para elaborar o conjunto de propostas terapêuticas articuladas do paciente, que deve ser objeto de discussão coletiva da equipe multiprofissional e interdisciplinar com participação de cada indivíduo e de seus responsáveis legais; . ● Para crianças e adolescentes na pré-puberdade: previsão somente do acolhimento e do acompanhamento por equipe multiprofissional e interdisciplinar; . ● Para crianças e adolescentes em puberdade: previsão da possibilidade de bloqueio hormonal que consiste na interrupção da produção de hormônios sexuais, impedindo o desenvolvimento de caracteres sexuais secundários do sexo biológico. Prática condicionada à anuência da equipe multiprofissional e do responsável legal do paciente; ● Para adolescentes a partir dos 16 anos: previsão da possibilidade da hormonoterapia cruzada que é a reposição hormonal na qual os hormônios sexuais e outros medicamentos são administrados nas pessoas trans para desenvolverem a feminização ou masculinização de acordo com a sua identidade de gênero. Prática condicionada à anuência da equipe multiprofissional e do responsável legal do paciente; • Previsão de realização de procedimento cirúrgico somente a partir dos 18 anos e com acompanhamento prévio mínimo de 01 ano por equipe multiprofissional e interdisciplinar; e . ● Avanço na cirurgia de metoidoplastia para homens trans que deixa de ter caráter experimental. Contudo a portaria do SUS ainda não foi atualizada, onde os requisitos permanecem os mesmos da Portaria vigente.

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Vamos seguir nessa luta pela despatologização da identidade Trans

Lembramos ainda sobre a necessidade de seguir atentas junto ao ministério da saúde, pois é lá que as recomendações precisam de fato ser homologadas para entrar em prática, e o cenário que temos naquele ministério é o pior possível. Visto os desmontes que temos acompanhado desde a Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos, que congelou o investimento nas políticas de saúde, alem dos retrocessos e constantes ataques ao SUS. Em busca da garantia do respeito a autonomia do sujeito, sua autodeterminação e o acesso à saúde sem um viés biologizante ou genitalista.

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Apesar de ser visto como um pensamento único, o feminismo se divide em vários nichos, com visões diferentes; um dos mais polêmicos é o pensamento radical, que cultiva posições críticas a vários pontos, entre eles não aceitar as mulheres trans como mulheres Texto por PAULO GRATÃO | Foto por SERGIO LIMA



line Rossi, estudiosa/ativista do tema e autora do blog Feminismo com Classe, diz que “Nós recusamos a ideia de que ser mulher seja uma identidade subjetiva, ao invés de uma discriminação objetiva com base no sexo [biológico]”. De acordo com ela, a ideia de que “qualquer um pode ser mulher” invalida a luta das mulheres cisgênero -que se identificam com o gênero designado no nascimento- que conquistaram direitos básicos e daquelas que ainda sofrem, ao redor do mundo, por não poderem votar, estudar, trabalhar, divorciar, dirigir, até mesmo andar na rua sozinhas, entre outras coisas, porque são do sexo feminino. A visão é rechaçada pelo movimento trans e também pelos outros núcleos do feminismo. Para entender os principais pontos de divergência e os argumentos, a reportagem ouviu Aline, representante do movimento radical, Lola Aronovich, professora de Literatura em Língua Inglesa na Universidade Federal do Ceará (UFC) e autora do blog feminista Escreva Lola Escreva, e Maitê Schneider, mulher trans, embaixadora da Rede Mulher Empreendedora (RME) e fundadora da consultoria Transempregos. Confira o posicionamento de cada uma sobre os principais temas apontados pelo feminismo radical: 1. Machismo na infância: Feminista radical: o movimento defende que as mulheres cis tornam-se o maior alvo de comportamentos e padrões machistas desde o nascimento, que querem torná-las inferiores aos homens. “Radical significa ‘raiz’, que é justamente porque as teóricas que foram consideradas como feministas radicais estavam centradas não em apenas apontar as desigualdades que mulheres sofriam, mas principalmente em buscar a raiz dessa desigualdade para poder erradicá-la”, explica Aline. Mulher trans: Maitê acredita que o sofrimento com o machismo estrutural independe de gênero ou sexualidade. “Na infância, isso é ainda mais cruel, pois vem revestido de censura, bullying e até mesmo violências físicas. Engessamos, desde cedo, pessoas diversas papéis sociais únicos e praticamente imutáveis”. wFeminista: Lola concorda com Maitê: “Eu acredito que até homens cis sofrem com machismo na infância, porque não podem chorar, não podem demonstrar afeto, aprendem a resolver conflitos através da violência, e precisam provar sua masculinidade o tempo todo”.

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2. Trans e o protagonismo do feminismo Feminista radical: Segundo Aline, não existe uma guerra ou uma pregação de ódio a nenhum grupo da sociedade. No entanto, elas defendem que a luta trans não tem a ver com o feminismo. “Mulheres trans sofrem com o machismo e a homofobia nesta sociedade, sem dúvidas, e defendemos com unhas e dentes que nenhuma pessoa deve ser discriminada ou sofrer violências pela forma que se veste, se comporta, se apresenta, com quem se relaciona ou o que seja. Mas não é isso que faz de nós mulheres. Isso é apenas a consequência com a qual lidamos por termos nascido do sexo feminino”, diz a ativista. Feminista: Lola defende que o feminismo deva ser discutido por toda a sociedade, e não apenas um grupo. “Para que o feminismo possa mudar o mundo, ele precisa abarcar a todos. Não vejo pessoas trans querendo roubar o protagonismo de ninguém. Vejo apenas que, como um grupo rotineiramente excluído, elas também querem ter lugar à mesa, fazer parte do movimento”. Mulher trans: Maitê também acredita que definir o gênero apenas pela condição biológica é limitador e inútil para a causa. “Mulheres são tão diversas quanto o número de pessoas no planeta. São diversas e únicas. O protagonismo deve estar em pensarmos na melhor qualidade de vida e equidade social para todos os humanos”. 3. Ser mulher Feminista Radical: ao nascer, uma menina já tem parte de seu destino imposto pela sociedade, como seguir o papel de dona do lar, usar roupas consideradas femininas, ser cuidadora e comportada, entre tantos outros comportamentos conhecidos como padrão de feminilidade. A adoção desses estigmas por mulheres trans é uma das maiores críticas do movimento radical. Mulher Trans: Maitê diz que a busca de uma individualidade deveria ser o caminho ideal. Mas ressalta que o erro de algumas pessoas não pode ser caracterizado como o comportamento de um grupo. “Eu mesma, quando mais nova, agia desta maneira, cobrando das mulheres à minha volta um ‘ideal de feminino’ e me ‘autoflagelando’ em busca deste mesmo objetivo”, comenta.

O erro de algumas pessoas não pode ser caracterizado como o comportamento de um grupo

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Mulheres são tão diversas quanto o número de pessoas no planeta. São diversas e únicas. O protagonismo deve estar em pensarmos na melhor qualidade de vida e equidade social para todos os humanos

Feminista: Lola acredita que a adoção desses padrões, em muitos casos, seja necessária para que a mulher trans seja respeitada. Ela utiliza a si mesma como exemplo: se deixar de utilizar salto alto e maquiagem, será criticada por não ser tão feminina, mas ainda assim será vista como mulher. “E é nesse ponto que eu reconheço que o privilégio cis existe. Já uma mulher trans que não seja ‘feminina’ terá sua identidade de gênero negada o tempo inteiro”, afirma.

Para que o feminismo possa mudar o mundo, ele deve abarcar a todos 38

4. Criminalização da transfobia Feminista Radical: da forma que está sendo votado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a criminalização da transfobia é considerada nociva para a causa radical, pois, segundo Aline, gênero é algo subjetivo, com margem para diversas interpretações. “Todas as leis que penalizam crimes e condutas de discriminação têm uma definição fechada e concreta: racismo, com base na cor da pele ou etnia; sexismo, com base no sexo; homofobia e lesbofobia, com base na orientação sexual. O projeto de lei sobre transfobia, entretanto, assenta num conceito inteiramente subjetivo e aberto: gênero”. Feminista: Lola discorda desse pensamento e acredita que toda trans deve ter o direito à segurança, de ser chamada pelo nome que se reconhece e ter acesso a estudo e emprego, algo que, na sua visão, só tem a ganhar com a criminalização da transfobia. “E o feminismo não pode se dar ao luxo de ser transfóbico. O feminismo deve ser uma luta contra todas as opressões, não só a opressão de gênero”, afirma. Mulher Trans: Maitê acredita que se gênero realmente fosse algo subjetivo, não haveria transfobia, porque as pessoas não seriam separadas entre cis e trans. “Somente assim essa afirmativa poderia ser verdadeira. Enquanto a maior parte das pessoas acreditar em gênero e tudo o que vem agregado --papel social, orientação, identidade etc--, teremos transfobia, pois não há respeito pelo direito de ser das pessoas transgêneras”.


Porque o feminismo precisa das mulheres trans? sob a perspectiva trans A primeira versão desse texto foi publicada em 2014, no Blog Feminismo Sem Demagogia. Desde lá, muitas mulheres transexuais e travestis já colocaram a cara no sol por reconhecimento e direitos, mas elas ainda estão muito pouco presentes no movimento feminista, que ainda deve parecer bastante hostil. Apesar de algumas mudanças textuais, o espírito do texto mantém-se. Vale dizer que uso mulheres trans, mas o debate inclui travestis. A relação dos homens trans e pessoas não binárias com o feminismo mereceria um debate a parte. Da posição – necessariamente limitada para esse debate – de uma mulher cis, venho refletir sobre a presença de mulheres trans nos espaços auto-organizados feministas. Por muitos anos essa participação tem sido um tabu e, embora cresçam o número de setores dentro e fora do feminismo que reconhecem e apoiam as pessoas trans em geral em suas lutas, ainda há poucas mulheres trans nos espaços feministas, e pouco esforço das feministas em trazê-las para a luta comum. Alguns argumento contra a participação dessas mulheres em nossos fóruns são lugar comum, usados diversas vezes por setores trans-excludentes do movimento e que, mesmo quando não defendidos plenamente, tendem a afastar as mulheres trans dos espaços. Um desses argumentos refere-se a uma suposta perda de foco que o movimento sofreria, ao ter que lidar com as pautas das mulheres trans. Na realidade, entre as mulheres cis há diversidade o suficiente para que tenhamos que ter múltiplos focos, e não à toa os últimos anos têm sido de crescimento de preocupações interseccionais no feminismo. Nesse sentido, o movimento feminista tem que lutar contra o racismo com as mulheres negras, contra a lesbofobia com as lésbicas e, por que não, contra a transfobia com as mulheres trans.

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Nesse ponto, ainda, cabe uma grande reflexão sobre o conceito de “privilégio cis”, particularmente sobre certa confusão que ronda essa ideia, uma vez que há duas acepções diferentes para a noção de “privilégio”. Uma delas, reivindicada muitas vezes para afirmar que não existe “privilégio cis”, é a de que privilégio exige que um grupo exerça poder sobre o outro, se favoreça diretamente da subordinação de outro grupo. Nesse caso as mulheres cis não teriam privilégio sobre as trans. Obviamente, porém, também não se poderia dizer que a socialização masculina é um privilégio das mulheres trans, como às vezes aparece nos discursos trans-excludentes. Superadas essas questões, ainda há mais uma argumentação disseminada contra à presença das mulheres trans no movimento feminista (esse texto não se preocupará, claro, em contrapor discursos de ódio biologizantes). Para algumas feministas, a presença de mulheres trans nos espaços auto-organizados reforça os estereótipos de gênero. Isso pressupõe que as trans vão querer defender os direitos de quando muitas vezes as mulheres cis sentem tudo isso como imposições. Em parte é possível dizer que esse argumento é apenas vazio, porque o movimento feminista não deve realizar ingerência sobre o corpo de ninguém, de forma que, se uma mulher cis quiser se maquiar, se depilar e por silicone, no máximo pode-se questionar se ela está submetendo suas escolhas ao desejo masculino. Por outro lado, o trecho abaixo, de outra mulher trans, indica como combater esse argumento é importante, não só para as mulheres trans, mas para o movimento feminista em geral.

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O patriarcado-capitalista tem efeitos diferentes sobre as mulheres cis e trans, brancas e negras, heterossexuais e não-heterosexuais, mas tem efeito sobre todas nós, enquanto mulheres

A história do feminismo é constituída por diferentes concepções sobre o que é “ser mulher”. Se num primeiro momento buscava-se pensar e lutar para que a mulher tivesse iguais direitos civis em relação ao homem, logo isso tornou-se insuficiente quando passou-se a entender que a desigualdade de gênero ultrapassa a falta de direitos civis, mas depende de todo um sistema de dominação masculina, do qual o capitalismo se aproveita para superexplorar o trabalho mulheres. Por isso, pensar o feminismo a partir de uma “identidade feminina” pode ser um problema justamente por não questionar as bases dessa identidade, fundada no sistema (binário) de gênero. Atualmente, há setores do feminismo que veem uma identidade positiva entre as todas as mulheres baseada em sua condição biológica, e veem a opressão ocorrendo principalmente nesse nível biológico. Em todos esses casos de defesa de uma identidade fechada, positiva, o feminismo não consegue responder à diversidade concreta das mulheres. Precisamos das mulheres trans, em primeiro lugar, porque precisamos das mulheres em geral, de cada uma delas, com suas experiências e diferenças. Mas não só isso, precisamos das mulheres trans especificamente para nunca esquecermos que ser mulher não é uma identidade definida positivamente, a partir características (biológicas ou não) que nos igualam. Na nossa sociedade, em geral, ser mulher significa antes de tudo que somos oprimidas diariamente pelo machismo. O patriarcado-capitalista tem efeitos diferentes sobre as mulheres cis e trans, brancas e negras, heterossexuais e não-heterosexuais, mas tem efeito sobre todas nós, enquanto mulheres. Ser mulher é uma “identidade negativa”, ou seja, que não se constitui por nossas características comuns, mas por nossa opressão em comum. Ser feminista, nesse sentido, é assumir que nossa própria existência enquanto mulheres desafia todo um sistema de exploração e opressão..

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SOLTA A VOZ!


TRANS FEMINICÍDIO: INFRAÇÃO AO CISTEMA O assassínio de travestis e transexuais em curso no Brasil não ocorre alheio à história da misoginia. Não é coincidência que além de ser o campeão em homicídios contra travestis e mulheres transexuais também esteja no ranking dos cinco a mais matar mulheres cisgêneras Texto por CAIA COELHO

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stabelecer um compromisso feminista com a vida de todas as mulheres deve significar, portanto,assumir o desafio de articular a noção de Feminicídio às singularidades transfóbicas de uma parcelasignificativa desse morticínio. Se a função do Feminicídio é garantir radicalmente a submissãofeminina à masculinidade, através de si enquanto pena capital prescrita contra o descumprimento a talsubordinação; e, ao mesmo passo, a função da transfobia é garantir à cisgeneridade sua coercitividadecaracterística, isto é, sustentar a criação de dois gêneros divergentes, designados ao nascer e ordenadoshierarquicamente;, pode-se definir “transfeminicídio” como um dispositivo violento capaz de simbolizare ritualizar - em formas barbaramente fúnebres - as economias da misoginia e da transfobia, que nãocessam de distribuir e concentrar o valor dado a cada vida. Tanto quanto a misoginia, a transfobia mata em todos os espaços onde opera: dos domésticosaos institucionais. Para Rita Segato, feminista decolonial argentina, a noção de “femigenocídio” deverá auxiliar a análise do assassinato de mulheres relativo

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ao gênero e sem implicação pessoal, ou seja,o femigenocídio deve ser diferenciado categoricamente do feminicídio por não ocorrer na esferadoméstica. Inspiradas pela sua inventividade conceitual, podemos pensar em transfemigenocídio comopensamos, enquanto transfeministas, em transfeminicídio. Quando uma mulher cisgênera quer sedivorciar e é morta, isso é feminicídio. Quando uma travesti prostituta é morta pelo seu cliente, isso é transfeminicídio. Quando uma mulher morre em decorrência da criminalização do aborto e depois temo seu cadáver incinerado, isso é femigenocídio. Quando uma mulher transexual morre em decorrênciade silicone industrial inflamado porque poucos hospitais públicos são capacitados para tratar o problema, isso é transfemigenocídio. Quando uma mulher morre em trabalho de parto por negligênciaou violência obstétrica, isso é femigenocídio. Quando uma menina morre em decorrência de trombose causada por hormonização desacompanhada porque poucos hospitais atendem jovens trans menores de 18 anos no Brasil, isso é transfemigenocídio. Outrossim, é grosseiramente reducionista

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SOLTA A VOZ!

despolitizar e individualizar as alarmantes taxas de suicídio de pessoas trans ao redor do mundo, que Contra a morte, também podem ser entendidas como parte intenosso único grante de certo encadeamento social, sistemático, bio/tanato/necropolítico. instrumento Quando uma mulher transexual morre em deserá a história corrência de silicone industrial inflamado porque poucos hospitais públicos são capacitados para tratar o problema, isso é transfemigenocídio. Quando uma mulher morre em trabalho de parto por negligênciaou violência obstétrica, isso é femigenocídio. Quando uma menina morre em decorrência de trombose causada por hormonização desacompanhada porque poucos hospitais atendem jovens trans menores de 18 anos no Brasil, isso é transfemigenocídio. Outrossim, é grosseiramente reducionista despolitizar e individualizar as alarmantes taxas de suicídio de pessoas trans ao redor do mundo, que também podem ser entendidas como parte integrante de pena de morte – e seu maior crime é ser ela mesma. certo encadeamento social, sistemático, bio/tanato/ Historicamente, muitos homens que assassinam necropolítico. mulheres foram classificados midiaticamente, soO transfeminicídio ou o transfemigenocídio partem cialmente e mesmo juridicamente como “criminosos de um mesmo núcleo, uma mesma ordem delibe- passionais”, “criminosos por amor”, “criminosos por radamente misógina, transmisógina, transfóbica, ciúme”. O que conhecemos por crime passional serve machista, patriarcal, atravessando o trabalho se- muito mais para a defesa do homem e atribuir culpa xual exercido em condições precárias, passando a vítima, seja ela mulher cis ou trans, somo se qualpela expulsão da casa, pelo isolamento social, pela quer fosse possível justificar e legitimar o assassinato, racialização, pelos mitos do amor romântico. Tudo especialmente aqueles motivados pela submissão nas normas binárias, heterossexistas e cisnormati- ou subjulgamento, presente nos crimes motivados vas de gênero culmina em mortes cerimonialmente por questões de gênero. Muitos foram defendidos violentas contra mulheres e travestis. e absolvidos porque assassinaram em nome da Ao observar o desejo funesto de deixar os corpos “legítima defesa da honra” após descobrirem relamortos, desfigurados, o empenho em abandonar os ções extraconjugais da vítima, ou em nome de uma corpos publicamente, sem parecer a essa altura que legítima defesa contra a suposta força masculina(pertenciam a mulheres vivas, e antes mesmo, sem sic) de travestis. Especialmente contra as travestis aparentar que – em tempo algum – pertenceram e mulheres transexuais negras, ainda é comum a sequer a um mamífero bípede de polegares desen- impunidade, subnotificação e, na esfera discursiva, volvidos. Ao observar os registros da ritualidade a falsa justificativa da “vergonha da relação”. assassina, para além dos mamilos, pênis, pescoço, Com a influência e a pressão de organizações fecabelo cortados, e para além do sangue derramado, ministas sobre os casos, convencionou-se finalmente com cuidado, perceberemos também a parte mais falar em termos de “feminicídio” e “ódio”, inclusive escandalosa do horror exposto a céu aberto: quem antes da tipificação penal brasileira. Em 2015, ao santem o domínio das tecnologias capazes de tornar o cionar a lei responsável por tornar o feminicídio um corpo mais ou menos reconhecível naquilo que é crime hediondo, a ex-Presidenta da República, Dilma percebido como “vida humana”. Na verdade, para Rousseff, após negociação com a bancada evangétravestis e mulheres transexuais, sempre existiu a lica do Congresso Nacional, substituiu “gênero” por “sexo” no texto da lei. Assim, excluíram-se travestis e mulheres transexuais do primeiro momento de sua vigência, negando proteção e contribuindo para a manutenção de que estas não seriam mulheres ou que os crimes contra elas não seriam motivados pelo gênero feminino que expressam.

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FONTE: ANTRA


Nesse dia, a quem restará na face os olhos para nos ver radiosamente renascer umas nas outras? Atualmente, já vemos algumas decisões e entendimento que incluem em suas decisões – limitadas pelas múltiplas problemáticas inerentes do sistema de justiça criminal, e considerando a vastidão de definições possíveis para o termo “sexo”, desde o território das ciências biológicas às discussões feministas, o reconhecimento de crimes contra mulheres transexuais como feminicídio. Certamente avançamos ao pararmos de nomear o feminicídio como “crime de amor” e passarmos a chamar de “ódio”. Da mesma forma, devemos avançar ao afastar o eufemismo da “vergonha” do nosso vocabulário feminista – sobretudo para pensar O gênero pode em si mesmo ser considerado o transfeminicídio. No entanto, é necessário outro uma forma de dominação colonial violenta contra passo adiante e tão urgente, abandonar os enten- os povos originários e, cronologicamente depois, dimentos meramente subjetivos das causas do femi- contra as mulheres. Padrões binários e hierárquicos nicídio e passar a situá-los politicamente, interpretar de coletividade, como vivemos e atualizamos hoje, sua intencionalidade relativa às normatividades de organizaram a nova sociedade desde o marco da gênero e interpelar as sociedades onde ele se torna colonização desse território, através de processos possível e naturalizado em largas escalas. genocidas de dominação extrativista. Portanto, espeTrata-se de buscar entender tais mortes como cialmente no Brasil, o gênero não pode ser pensado símbolos de uma demonstração de poder, lições de fora do seu contingente de violências e disputas, gênero, mitologias e, sobretudo, trata-se de superar tampouco definido de outra forma que não seja a a narrativa comum a respeito dos sentimentos dos partir das suas práticas reais e simbólicas. agressores como as principais justificativas dadas ao Gênero é lei e uma lei, por sua vez, pode ser definida (Trans)feminicídio. Afinal, é sobre reconhecer nessa por sua capacidade punitiva. Isso não deve resultar superação a única forma de ultrapassar seguramen- na culpabilização das vítimas, mas em entender te e objetivamente a violência de gênero ou, em si como a criação da vítima é vital e pedagógica para mesmo, o gênero como violência. o funcionamento de estruturas cissexistas, raciais, terrivelmente coloniais. Entenderemos os sofisticados mecanismos de cada engrenagem (Trans)misógina, nos nomearemos e nomearemos as violências às quais fomos submetidas, viveremos nossos lutos pela última vez e, finalmente, combinaremos de não morrer. A essa altura, em meio a uma cerimônia celebrada em Pajubá, pá a pá enterraremos a Transmisoginia em solo infértil.

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O QUE TA ROLANDO?


PESSOAS TRANS NA POLÍTICA A primeira candidata trans à prefeitura de Curitiba precisa ter direito a seu nome Texto por ROSIANE DE FREITAS

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esde 2018 a Justiça brasileira reconhece o direito de qualquer cidadão e cidadã de escolher a forma como quer ser chamado. Na ocasião, o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, reconheceu o direito à dignidade humana e os princípios da autodeterminação para decidir pela autorização da mudança do nome no registro civil por pessoas transgênero, mesmo sem a realização da cirurgia de readequação de gênero. Mas como acontece com todo movimento de mudança social, apesar da manifestação da mais importante Corte do país, setores retrógrados continuam a atuar para constranger e humilhar pessoas trans. Como esperado, infelizmente, esses esforços ganharam fôlego com a confirmação da primeira candidata trans à prefeitura de Curitiba, a psicanalista Letícia Lanz, do PSol. O partido divulgou nota de solidariedade à pré-candidata, denunciando “sucessivas demonstrações de transfobia que essa reconhecida militante dos direitos humanos vem sofrendo desde que o PSol anunciou a sua pré-candidatura a prefeita da cidade de Curitiba”.

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Entre as demonstrações de transfobia apontadas pelo partido está a lamentável insistência do jornal Gazeta do Povo em chamar a candidata pelo seu antigo nome e questionar se, apesar de ela legalmente tê-lo alterado para Letícia em seu registro civil, ele apareceria na urna. O registro está em entrevista feita com a pré-candidata e publicada em 26 de agosto. Não é preciso decisão judicial para ser respeitoso. Só é preciso a vontade de agir com humanidade. Pode-se resistir a novos conceitos. Pode-se se apegar a dogmas. Mas não dá para abrir mão do respeito e da civilidade, isso deve ser o mínimo. A presença de Letícia Lanz entre as candidatas e candidatos, bem como de outras mulheres é um bom momento para lembrarmos que nem sempre a eleição é só sobre quem vai se eleger. Como a democracia exige que exista espaço para todos, os gays, trans, negros, índios, mulheres, pobres estão aí e vão ter que ser ouvidos. Pode não ser muito. Pode não ter resultados concretos imediatos. Mas, no mínimo, expõe o quão mesquinho o mainstream pode ser ao resistir ao avanço inevitável da civilidade.

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O médico Joshua Safer, diretor executivo do Centro de Medicina Transgênero no Hospital Mount Sinai, em Nova York, é um super especialista quando o assunto são pessoas transgênero Texto por ELISA SOUPIN Foto por TYLER LINCOLN e DAVID CHESSKIN


le, que participa do documentário “Gender Revolution”, do NatGeo, conversou com Universa e veículos de outros cinco países para um diagnóstico sobre como é a vida das pessoas transgênero hoje. Ele fala da realidade norte-americana, bem distinta do Brasil, um dos países que mais mata pessoas transgênero no mundo. “Fico confuso pelos motivos pelos quais tornam essa discussão de cunho político, quando na verdade, é sobre ciência”, diz o médico. O documentário do qual ele participa volta a ser exibido às 14h05 deste domingo, Dia do Orgulho LGBT, pelo canal NatGeo. Da conversa, destacamos 8 pontos em que Joshua Safer esclarece dúvidas sobre o universo das pessoas trans.

As pessoas trans têm identidade de gênero diferente da do corpo que você enxerga

Tratamento para pessoas trans não deve ser questão política “Parece que eles acreditam que é assumir uma postura liberal cuidar das pessoas transgênero, como se fosse uma escolha política, como se as pessoas estivessem escolhendo uma identidade. E, por outro lado, é uma posição conservadora não prover cuidados médicos para pessoas transgênero, como se existissem apenas homens e mulheres, divididos nestas duas categorias. Fico confuso pelos motivos pelos quais tornam essa discussão de cunho político, quando na verdade, é sobre ciência. É verdade que na ciência, nós temos dois sexos, mas há múltiplas manifestações desses sexos, então, podemos falar de cromossomos, anatomia, hormônios e identidade sexual, que é parte da biologia do seu cérebro. Não há nada de político nisso e eu não sei porque em tantos países há resistência em oferecer tratamento médico.” Ser transgênero não é escolha, é biologia “É preciso compreender que pessoas transgênero, assim como todas as pessoas, têm a identidade de gênero programada em seus cérebros A forma como isso ocorre é variada, têm crianças que simplesmente contam que são transgênero, há crianças mais velhas que querem começar a tomar hormônios para bloquear o curso natural que aquele corpo tomaria, há pessoas que tomam hormônios depois da puberdade, para reverter os efeitos [no corpo com o qual não se identificam] e há pessoas que vão procurar por cirurgias.”

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Manifestação em prol das crianças trans Foto tirada por Boyle Rally

Há idade certa para fazer a transição? “Nos Estados Unidos, a terapia com bloqueadores de puberdade começa no início da puberdade. O tratamento não acontece de forma preventiva. O uso real de hormônios, para casos em que é muito claro que aquela pessoa é transgênero e que há uma situação estável envolvendo a família, às vezes começa com 14 anos, mas de maneira geral seria um pouco mais tarde, aos 16 anos. Para alguns meninos transgênero, a remoção dos seios pode ser feita aos 16 anos, se tudo for bastante estável naquele paciente. Mas a cirurgia de redesignação sexual deve esperar até os 18 anos para acontecer [pelas regras legais].” Há casos de pessoas que se arrependem da transição? “É muito raro lidar com pacientes que se arrependeram dos procedimentos, mas o número de casos não é zero. Em minha experiência pessoal, nunca houve um caso de uma pessoa que se arrependeu e disse: ‘Vi que não sou transgênero’. Quando esses casos acontecem, o que é raro, são casos em que as intervenções não funcionaram bem para aqueles pacientes. Por exemplo, eu tive um caso de uma paciente transgênero mais velha que tinha muitos traços masculinos antes de começar a usar os medicamentos, e os medicamentos não mudaram o suficiente seu rosto ou a forma como ela era tratada socialmente, mas mesmo esse tipo de caso é raro.”

Tentar convencer uma criança trans de que ela não é trans, só vai fazer com que ela tenha baixa autoestima

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Crianças transgênero, como ajudar? “A sociedade precisa entender que a identidade transgênero tem um componente biológico e que as pessoas são o que são e que não importa qual seja esse componente biológico: ele não pode ser convertido externamente. Ainda que a intenção seja a melhor, no sentido de tentar protegê-las, mesmo assim, isso irá enfraquecê-las. Se olharmos para isso como um fenômeno biológico, então não dá para convencer alguém que não é transgênero a ser transgênero. A sociedade e as pessoas não devem se preocupar que algo externo faça com que alguém que de outro modo não teria essa ideia vire transgênero. Não observamos nada que mostre que isso é real.

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Representatividade trans na mídia “A representação de pessoas transgênero na TV e no cinema certamente vem melhorando. Antes, elas eram motivo de piadas que não faziam nenhum sentido. Agora, começamos a ver pessoas transgênero interpretando pessoas transgênero em histórias, e isso é bom para que as crianças e adultos trans em geral saiam do armário e contem para as pessoas como se sentem. O próximo passo, eu acho, é que pessoas transgênero, enquanto parte da sociedade, interpretem papéis em que não sejam necessariamente transgêneros e sim apenas pessoas. Há o que melhorar, mas estamos em um lugar melhor do que já estivemos.”

O maior equívoco que as pessoas têm é que ser transgênero é um problema de saúde

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Sobre a abordagem médica para esses casos “A classe média entendeu melhor o componente biológico no fato das pessoas serem trans, e isso resultou em uma mudança total na maneira e na abordagem de tratamento. A questão deixou de ser vista como um problema de saúde mental e ganhou um entendimento biológico e sobre como nós, médicos, ajudamos essas pessoas a fazerem o que elas precisarem. Damos uma solução personalizada para cada circunstância, isso é o que chamo de revolucionário.” Entendeu melhor o componente biológico no fato das pessoas serem trans, e isso resultou em uma mudança total na maneira e na abordagem de tratamento. A questão deixou de ser vista como um problema de saúde mental e ganhou um entendimento biológico e sobre como nós, médicos, ajudamos essas pessoas a fazerem o que elas precisarem. Damos uma solução personalizada para cada circunstância, isso é o que chamo de revolucionário.” Os equívocos no olhar da sociedade sobre pessoas trans A melhor estratégia é ajudar as pessoas que querem a mudança de suas aparências e seus corpos para que se encaixem em suas identidades de gênero Mesmo entre as pessoas bem intencionadas, outro erro comum o é pensar que tudo se trata de genitais, que as pessoas querem cirurgias para mudar de sexo. Mas as características que os transexuais irão mudar não passam necessariamente tanto pela redesignação sexual quanto as pessoas pensam. Para uma mulher transgênero que tenha características masculinas em seu rosto, mudanças que a deixem perto de um visual mais considerado feminino será uma prioridade para que ela seja tratada como mulher e não o que está dentro de suas roupas e que ninguém está vendo.”

FONTE: UNIVERSA


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NÃO PARECE, MAS É


POR QUE E COMO NÃO SER TRANSFÓBICO A Assembléia Legislativa de São Paulo presenciou nesta semana um inaceitável discurso de ódio. Texto por CATRACA LIVRE

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rica Malunguinho é a primeira parlamentar transexual a ocupar uma cadeira na casa, e o que chama atenção em sua resposta ao discurso transfóbico do deputado estadual Douglas Garcia (PSL), do mesmo partido do presidente Jair Bolsonaro, é sobre como discursos de ódio como este causam violência e morte para a população transgênero. Para entender isso, primeiro é preciso saber que o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo, segundo dados da ONG Transgender Europe. Na pesquisa, foram registradas 167 mortes de transexuais entre 1º de outubro de 2017 e 30 de setembro de 2018. Outra associação europeia, a Transrespect, destaca em um levantamento realizado em 72 países, que de 2.600 assassinatos de transgêneros registrados nos últimos 10 anos, o Brasil seria responsável por 40% do total de mortes. Isso teria impacto direto na expectativa de vida dessa população no Brasil, que seria de 35 anos, menos da metade da média nacional, que é de 75 anos. Para a ONG Transgender Europe, o estigma e a discriminação contra pessoas transexuais e não-binárias

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também dificultam o acesso deste grupo a direitos básicos, incluindo aí a exclusão do mercado de trabalho. Segundo o Relatório da Violência Homofóbica no Brasil, publicado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, a transfobia faz com que esse grupo “acabe tendo como única opção de sobrevivência a prostituição”. Esse dado é reforçado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), que em uma estimativa aponte que 90% das pessoas trans recorrem a essa profissão ao menos em algum momento da vida. É resultado direto desta discriminação atrocidades como a que ocorreu em Campinas neste ano, quando um jovem de 20 anos matou e arrancou o coração da transexual Quelly da Silva, de 35 anos. Como forma de combater o estigma e a discriminação de pessoas transgêneros, a Catraca Livre criou um guia para não ser transfóbico, que pode ser acessado em seu próprio site. Isso não impede que você também denuncie quando este tipo de violência ocorrer, a deputada estadual Erica Malunguinho irá processar o deputado Douglas Garcia, por quebra de decoro parlamentar.

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NÃO PARECE, MAS É


NÃO PARECE MAS É TRANSFOBIA Uma pessoa transexual não é um objeto de curiosidade alheia, então preste muita atenção no que diz para não ofender e nem machucar quem é apenas diferente de você Texto por FELIPE CARVALHO

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ransgênero é a pessoa que nasceu “Olha ali o travecão” em um gênero diferente de seu sexo Eu não sei se as pessoas não sabem ou fingem que atribuído, justamente ao contrário do não entendem, mas eu não compreendo por que as cisgênero. Pessoas trans são mortas pessoas se referem a nós, mulheres trans e travestis, diariamente fruto de um preconceito sem qualquer fun- como ‘travecão’. É uma maneira pejorativa de se damento ou com base em que ser diferente é errado. referir a mulheres como eu. É ofensivo e desagradáO plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu vel! Meu nome está mudado no registro civil e ainda em sessão realizada no último dia 13 de junho pela continuam se referindo a mim no masculino. É uma criminalização da transfobia, deixando os transexu- das coisas que mais me machucam. Não quero que ais um pouco mais amparados e seguros. Por isso, ninguém me aceite, mas me respeite. que tal parar de dizer algumas frases ofensivas ou Luísa Marilac (@luisamarilacc), 41 anos, youtuber e perguntar o que não faz diferença alguma para você? digital influencer.

“O que você está fazendo aqui, sua mulher “Você parece mulher!” barbada?” Ouvi isso quando estava com meu namorado comOuvi isso quando tinha entrado há poucos dias em prando algo na Riachuelo. Coincidentemente o menium aplicativo de relacionamento, em 2016, logo no que nos atendeu era gay e, mesmo assim, estava depois de explicar para o cara que veio conversar sendo extremamente transfóbico. Virei para ele então comigo o que era ser homem trans. Fiquei mal por- e disse ‘eu sou mulher de verdade!’. Logo após essa que nesses lugares onde você pode ser anônimo, as situação, fui até outra pessoa que trabalhava na pessoas destilam toda a sua frustração e ódio tão loja, contei o que havia acontecido e pedi que confacilmente ao ponto de arrasar com a autoestima versassem com a pessoa que havia falado aquilo de alguém. Paulo Vaz (@popo_vaz), 33 anos, policial para mim. algo muito horrível e, quando acontece

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NÃO PARECE, MAS É

algo muito horrível e, quando acontece contigo, você percebe o quão importante é o movimento trans. Nós, pessoas trans, não parecemos homens e mulheres, nós somos. Lana Santucci (@poisonblonde), 23 anos, youtuber “Realmente ela é linda, pena que não é mulher de verdade” É péssimo ouvir isso porque eu sou mulher de verdade. Esta frase fere a minha luta por existir, quem eu sou em tantos níveis, me deslegitima como mulher por eu não ter nascido cisgênero. É o cúmulo da transfobia. Urias (@uriasss), 24 anos, modelo e cantora “Se você não me contasse, eu ia continuar achando que você é homem!” Uma garota cisgênera me falou isso e foi dificil porque ela reduziu a minha masculinidade a uma genital e a uma identidade que a sociedade me impôs. Nunca me senti representado. Ela traz vários sentimentos ruins, de que não importa o que as pessoas veem hoje, elas sempre vão nos ver como querem e geralmente é ao genero que nos foi dado de nascimento. O respeito não existe para a maioria de nós. O mais complicado foi ter ouvido isso depois de ter explicado “A Nany seria perfeita para o comercial mil coisas e ser uma pessoa que fez biomedicina na do cartão. É decidida, empoderada, simpática, USP e deveria saber muito mais. dona de si. Pena que é trans” Lorenzo Lang (@lorenzolangg) 24 anos, estudante Uma vez soube de um produtor que um patrocinador havia se encantado com uma apresentação minha “Nem parece que você é homem” e deixou escapar esta frase. Na verdade, ouvi várias Geralmente eu escuto essa frase escrota em balada, vezes. Claro que não me falaram diretamente, mas quando eles não percebem que sou transexual e me chegou até mim. Só lamento pensamentos assim abordam com tratamento todo especial. Eles são porque eu garanto que o produto dele teria sido delicados como um homem corteja uma mulher que muito mais feliz se tivesse sido associado à minha deseja agradar, mas depois que conto a minha real imagem. Eu faria acontecer de maneira mais glaidentidade de gênero, sou tratada de forma diferente mourosa, divertida, orgânica e criativa. como objeto sexual e sempre sai essa frase. Nany People (@nanypeople), 53 anos, atriz Lindsay Lohanne (@lindsaylohannelopez), 40 anos, atriz de teatro “Você é tão lindo, pena que não tem... [pênis]” Um órgão sexual não define o que a pessoa realmente é. Tem transexual que tem mais fibra no gênero do que um homem cis tem por todo o corpo. Sem falar que, na questão de prazer, quando alguém comenta sobre não ter um pênis, eu vejo mais pontos positivos do que negativos nisso. Brenda Oliveira (@broliveir_a), 23 anos, estudante

Eu me blindei tanto contra este tipo de pensamento que eu não me deixo abater mais

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FONTE: MARIE CLAIRE


Pessoas transexuais precisam ser mais respeitadas

“Você é transexual ou travesti?” Me ofende porque não pergunta meu nome primeiro. A identidade é minha e eu compartilho com quem quero. Meu nome vem antes de tudo e, quando digo que sou casada, parece que sou um ET. Parece até que não temos sentimentos. Quando falo que sou hétero, a maioria pergunta ‘como assim?’. Que chatice ter que ficar explicando! Brunna Valin (@brunna.valin), 44 anos, técnica especializada em articulação e advocacy “Tenho curiosidade de saber como é o seu genital… Manda nudes?” “Eu tenho que tentar conviver com essas ‘coisas’ porque, para mim, não é normal” Esta frase foi dita por uma pessoa que trabalha comigo e veio para tentar me diminuir como ser humano. Hoje sou professor, homem trans, pós graduado e respeitado pelos meus alunos que, inclusive, viram “Você nunca vai fazer o que um homem de minha mudança numa luta diária e constante. Ao verdade faz” dizer isso, ela me degrada como pessoa, subestima Estava sentado em um bar e ouvi esse comentário meu intelecto, se refere a mim como ‘coisa’ e, além de alguém que imaginava estar fazendo uma ‘piada’. de excludente, uma forma errônea de classificar o Qual seria o conceito sobre ser homem para essa que eu sou de verdade, apenas diferente, nem para pessoa? O que muda nos valores de um homem, melhor nem para pior. se ele nasce ou não com um órgão? ‘Se você acha Paulo Alves Caetano (@alvespaulocaetano), 37 anos. que ser homem está simplesmente relacionado ao que você tem em meio às pernas, prefiro mesmo não ser homem como você’, respondi em tom amigável. Quero ser pai, ter uma família e faço questão que meus filhos saibam que o pai deles lutou para conquistar quem ele é, dia após dia. Um homem de verdade busca evolução, não se sente ofendido por demonstrar fragilidade ou compaixão. Tarso Brant (@tarsobrant), 26 anos, ator

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PISA MENOS


CRIEI FORÇAS E NÃO ABAIXEI A CABEÇA Disse brasiliense Sam Porto, primeiro homem trans a desfilar na SPFW. Modelo desfilou para nove marcas e defendeu ‘causa trans’ Texto por NICOLE ANGEL

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esfilar nas passarelas do maior evento de moda do Brasil e ainda defender uma causa. Essa é a conquista celebrada pelo brasiliense Sam Porto, o primeiro homem transexual a desfilar na São Paulo Fashion Week (SPFW). Sam foi destaque durante a semana de moda, em outubro, na capital paulista. Ele desfilou para nove marcas e deu entrevistas para a imprensa do Brasil e do exterior. De volta ao DF, conversou com o G1 e falou da jornada até chegar nas passarelas. “O caminho não foi fácil, principalmente na infância. Foi mentalmente difícil”, afirma o modelo. O passado Antes de ser Sam Porto – o modelo festejado – o jovem de 25 anos se viu frente a frente com o desafio de assumir a condição de trans. O maior medo, segundo ele, era de que os pais não o entendessem. Este “se assumir” teve dois momentos, conta. Na primeira vez, ainda na adolescência, se assumiu como lésbica. No entanto, diz ele, “não era bem isso”.

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Sam revela que só teve “coragem” de conversar com os pais perto de completar 17 anos. “Eu tinha medo de eles não entenderem e eu queria evitar qualquer tipo de sofrimento a mais”, explica. A família ainda tem dificuldade em chamá-lo pelo nome masculino. Mas respeitam, diz o modelo. Sam acredita que esse respeito da família é “um privilégio” – e foi isso que o permitiu seguir adiante. De tatuador a modelo Em Brasília, Sam Porto trabalhava como tatuador, o mundo das passarelas é novo na vida dele. Em 2017, decidiu “se arriscar” no Brasília Trends Fashion – um evento que reúne moda, design, arquitetura e fotografia na capital. Sam passou, então, passou a receber convites de fotógrafos para fazer editoriais. Depois de um tempo, ele diz que aceitou algumas propostas e começou a postar as imagens. Uma coisa foi puxando a outra e ele foi ganhando mais e mais convites. Em junho deste ano, foi chamado para trabalhar na São Paulo Fashion Week, mas fez um pedido: só aceitaria a proposta se pudesse ser quem ele realmente é.

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PISA MENOS

A equipe apoiou e foi assim que Sam, há dois meses, largou tudo para se jogar no mundo da moda. Ele trocou Brasília por São Paulo, onde pretende investir na carreira. “Eu saí de Brasília com o intuito de buscar a representatividade, esse era o meu foco”. Para ele, seu papel é representar os homens trans no mundo da moda.

Só iria participar se eu pudesse ser eu e ser respeitado como uma pessoa trans

Antes e depois das passarelas Antes das passarelas, Sam conta que se sentia rejeitado. Mas o retorno que teve durante os desfiles da SPFW transformaram esse sentimento. Manifesto trans na passarela Durante o desfile da marca Cavalera, o modelo fez um protesto nas passarelas. Ele escreveu “respeito trans” no corpo e se ajoelhou para os fotógrafos. Sam diz que recebeu permissão para “fazer o que quisesse na passarela”. O modelo conta que nada foi programado. Ele falou da emoção de poder se manifestar. “A sensação que eu tive no momento foi de implorar por respeito, por isso me ajoelhei. Transexuais no Brasil A cada 23 horas, uma pessoa LGBT morre no Brasil. De janeiro a 15 de maio deste ano, foram registradas 141 mortes de lésbicas, gays, bissexuais e transexuais. No ano de 2018, esse número chegou a 163. Já em 2017 foram mais mortes, 179 pessoas assassinadas. Os dados estão no relatório do Grupo Gay da Bahia (GGB), que é feito com base em notícias publicadas em veículos de comunicação, informações de parentes das vítimas e registros policiais.

Transexuais no Brasil A cada 23 horas, uma pessoa LGBT morre no Brasil. De janeiro a 15 de maio deste ano, foram registradas 141 mortes de lésbicas, gays, bissexuais e transexuais.Segundo o levantamento, os estados com mais mortes em números absolutos foram: São Paulo (22), Bahia (14), Pará (11) e Rio de Janeiro (9). O número de vítimas assassinadas dentro de casa foi maior do que o em vias públicas, 36 contra 28. A principal causa da morte foi arma branca (39), seguida por arma de fogo (22), espancamento (13) e estrangulamento (8). O que é uma pessoa transgênero? O termo “transgênero” ou “trans” se refere a uma pessoa cuja identidade de gênero – o sentimento psicologicamente arraigado de ser um homem, uma mulher, ou nenhuma das duas categorias – não corresponde à do seu sexo de nascimento. Transgênero inclui as pessoas que foram operadas para redesignar seu sexo, assim como as que só receberam tratamento hormonal. Mas ser “trans” não implica necessariamente ter recebido um tratamento de tipo algum.

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PISA MENOS

Juliana Huxtable ĂŠ uma artista, escritora, performer, DJ e cofundadora americana do projeto de vida noturna Shock Value


CARTA AOS ARTISTAS LGBTI+, E ALIADOS. Carta aberta da Associação Nacional de travestis e transexuais (ANTRA) aos artistas, produtores de cultura e influencer LGBTI+, e aliados. Texto por KEILA SIMPSON e BRUNA BENEVIDES

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esde o início da pandemia temos documentação e vivem isoladas socialmente mesmo acompanhado com muita preo- antes da crise provocada pelo coronavírus. cupação a situação da população Neste momento vemos escancaradas velhas maLGBTI+ que se encontra em extrema zelas, já conhecidas, e estamos enfrentando novos vulnerabilidade. Em sua maioria são pessoas negras, desafios para ajudar estas pessoas. Vivemos num vivendo com HIV, idosas, moradoras de periferias e país LGBTIfobico, onde não temos uma cultura de territórios de favelas, pessoas em privação de liber- coletividade ou de ajuda à ações iniciativas em prol dade, profissionais do sexo travestis e transexuais dessas pessoas. Brasileiros tem muita dificuldade que não conseguem trabalhar neste momento, e em doar e contribuir para ajudar aquelas pessoas todas aquelas que se encontram subalternizadas ou que não tem nenhum tipo de apoio. Especialmente em subempregos na hierarquia capitalista. Temos quando falamos em populações vulneráveis. ainda aquelas que vivem de empregos precarizados Fazemos um apelo e convocamos artistas de ree tem sua força de trabalho sendo explorada até o nome LGBTI+, com grande alcance na mídia e quanúltimo esforço e com alto risco de serem demitidas. tidade gigantesca de seguidores, além de influencers, Uma situação que já era conhecida por todas portais de cultura queer e demais aliados de nossa nós, de pessoas expulsas de casas ou vivendo em causa, para que olhem para nossa luta, e conheçam situação de rua, que desde o início das ações de as iniciativas que estão hoje sendo responsáveis por enfrentamento ao COVID-19 passam a sofrer um pro- garantir alimento e alguma dignidade para estas cesso de recrudescimento da precarização de suas pessoas. Não soltem nossas mãos. existências. E que provavelmente a maioria dessas pessoas não terá acesso às ações emergenciais de Quantas pessoas transgênero você ajudou hoje? apoio propostas pelos governos. E por viverem em Precisamos de vocês! situação de vulnerabilidade muitas não tem sequer

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SERTRANSNEJA


MORTE E VIDA SER TRANS NEJA Por TERTULIANA LUSTOSA A SERTRANSNEJA EXPLICA A MÃE ROSANGELA SUA HISTÓRIA E PEDE AJUDA – A duras custas que venho aqui de muito longe tem uns dias que de casa eu parti sou de bandas do interior onde se multiplica pobreza mas sou trabalhadora e honro meu nome essa é minha proeza preciso de abrigo e emprego não tenho nada a oferecer mas tenho um sonho paz e sossego uma casa para minha mainha vossa senhoria poderia ajudar uma pobre filha? – Como chegou aqui pobre coitadinha… Poderia ter se ferido na mão dessas vadias muito cuidado você está em terra de tiro, malandragem e malicia bandido, puta e milícia as regras são duras aqui vacilou

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SERTRANSNEJA

se paga com vida me encantei pela seu olhar puro minha linda menina vou te dar um abrigo mas saiba: a pista é um caminho você pode se perder tenha cuidado… e axé que em minha casa a senhora vai se fazer uma linda mulher e vai ajudar sua mãe basta ouvir a mim muito cuidado com as monas elas estão perdidas e não vão te dar boas dicas – Nem sei como lhe agradecer você esta salvando a minha vida já estou apaixonada por essa cidade linda mas estava com medo de viver na rua sem caminho e perdida – Pode ir para seu quarto hoje começa seu dia coma alguma coisa entre no casarão e apronte na cozinha me comovi com sua historia também venho do interior sei que será travesti de respeito nós quem damos o nome meu amor agora coma alguma coisa e pede a Bruninha para te arrumar quero a senhora bonita para o nome da sua mãe honrar se alguém quiser saber diga que é filha de Mãe Rosangela quero que você honre meu nome e na pista faça o seu se revelar Não cobre menos que cem reais você é belíssima tem que se valorizar

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FONTE: TRANSFEMINISMO


A SERTRANSNEJA SE DESPEDE DA MAINHA COM CHORO, LAGRIMAS E BEIJO – Mainha, hoje estou partindo não pense que por ti nada eu sinto tive tudo o que você um dia pôde me dar Hoje preciso minhas coisas eu mesma conquistar – Meu filho que eu tanto amei só tive um e hoje ele me diz adeus não sei Deus no que errei Meu marido não ia querer te ver assim louco igual um traveco Meu Deus misericórdia de tanto sofrimento Mas mesmo assim te amo do jeitinho que você quiser ser seja um homem inteligente Mostre aos outros o porque eu ralei Você vai, mas ocê volta Só não sei se vai ser mais meu filho lindo, que tanto amei Perdoa sua mãe Das ignorâncias Saiba que te amo independente das circunstâncias Vai e volta como quiser Filho ou filha Homi ou muié Mas volta, me promete – Hei sim de voltar E a senhora hei de comprar uma casa chega de morar de favor A vida se passa E não temos nada apenas trabalho e mais trabalho, labor Agora preciso ir Na estrada estão me esperando não se esqueça pra sempre eu te amo mandarei uma carta assim que chegar para a casa de Dona Helena Fique com Deus És minha vida e meu melhor poema

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FOGO NO PARQUINHO!


LINGUAGEM NEUTRA DE GÊNERO: O QUE É E COMO APLICAR A linguagem neutra de gênero busca se livrar do binarismo imposto pelos gêneros tradicionalmente aceitos pela sociedade (masculino e feminino), visando uma comunicação mais inclusiva, respeitosa e abrangente. Texto por THAÍS COSTA

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ocê já parou para pensar na impor- Por que usar a linguagem neutra de gênero? tância de adotar uma linguagem mais A linguagem não pode ser um instrumento de poder. inclusiva em seus textos? O respeito à Não podemos entender uma pessoa como melhor pluralidade das pessoas e possibilida- ou pior que a outra porque ela lê mais ou escreve des que podem ser exploradas por cada indivíduo? melhor. Da mesma forma, ao escrever ou falar, não Seja o assunto cor da pele, classe social ou gênero, podemos excluir outras pessoas e nem fazer supoé preciso entender que existem muitas diferenças e sições que nem sempre são confirmadas.A língua que elas devem ser abraçadas pela sociedade. No portuguesa, assim como outras várias línguas, é entanto, isso nem sempre acontece. Pelo contrário: tradicionalmente excludente na questão de gênero. muitas vezes as diferenças são desprezadas e tendeAo escrever ou falar sem conhecer o interlocutor, mos a aceitar o que é entendido como belo ou padrão. naturalmente generalizamos e usamos o masculino. Sem perceber, podemos excluir outras pessoas. E O mesmo acontece quando é preciso usar o plural atenção: isso não é “frescura”. Por isso, Abordaremos para um número grande de pessoas, mesmo se neste texto o que é e como colocar em prática a houver apenas um homem e várias mulheres. linguagem neutra. No entanto, esse não é único problema quando o assunto é gênero. Na verdade, este é o menor dos O que é uma linguagem neutra de gênero? problemas. Simplesmente flexionar os adjetivos e A linguagem neutra de gênero busca se livrar do substantivos para os gêneros masculino e feminino binarismo imposto pelos gêneros tradicionalmen- não é suficiente. te aceitos pela sociedade (masculino e feminino), Não há um consenso acerca de um número preciso visando uma comunicação mais inclusiva, respei- de identidades de gênero possíveis, mas estudiosos tosa e abrangente. Ela leva em conta as diversas percebem dezenas de identificações, embora nem possibilidades de gênero que podem se identificar. todas sejam oficialmente reconhecidas.

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FOGO NO PARQUINHO!

Pensando nisso, nada mais óbvio do que a necessidade de livrar-se do binarismo na hora da escrita. Usando uma linguagem neutra, é possível contemplar todas as pessoas por meio da escrita, promovendo inclusão e respeito. Mas afinal, como escrever usando uma linguagem neutra de gênero? Bom, a resposta é que não existem diretrizes definitivas. Apesar disso, estamos aqui para mostrar possibilidades, o que pode ser feito, o que deve ser evitado e o que não pode ser feito de forma alguma. Não use “X” e nem “@” Muitas pessoas usam “X” ou “@”, pois acreditam que esses caracteres abarcam um grande espectro de variedades e que, por não serem definidores de nenhum gênero, abraçam todos. Embora a intenção seja boa, na prática o emprego desses caracteres não é positivo. Em primeiro lugar, o uso desses caracteres também exclui. Pessoas com dislexia têm maior dificuldade (ou até mesmo encontram impedimento) para ler, enquanto leitores para pessoas cegas não conseguem “entender e traduzir” o que está escrito. Em segundo lugar, não é possível pronunciar verbalmente esses caracteres. Assim, mesmo que a pessoa consiga ler, ela não conseguirá transpor para a fala aquele som. O emprego desses artigos, portanto, é extremamente limitado e perde a função em contextos mais amplos, não significando uma real mudança na linguagem.

Por fim, mas não menos importante: o “X” ou “@” não geram identificação. Eles deixam as coisas indefinidas no lugar de usar os recursos já possíveis na linguagem para promover mudanças reais e provocar a reflexão das pessoas em geral ao usar a língua. Assim, esses dois caracteres não devem ser empregados. No lugar, prefira uma das opções que mostraremos a seguir! É preciso adotar a neutralidade de gênero em tudo? Antes de começar, é importante esclarecer um ponto: não é preciso que tudo seja colocado de forma neutra. É claro que uma linguagem neutra de gênero deve ser sempre almejada, mas muitas vezes estamos nos referindo a objetos, lugares, animais etc. O que sempre deve ser o objetivo é adotar uma linguagem neutra de gênero para as pessoas. Isso não significa que você pode priorizar o uso sem gênero para todo o texto, quer dizer apenas que seu foco deve estar em gerar inclusão para qualquer um que o leia. A seguir mostraremos dicas práticas de como fazer isso.

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FONTE: ROCKET CONTENT


Adotando uma linguagem neutra de gênero Evite artigos e pronomes de gênero para substantivos uniformes Muitas vezes usamos “a”, “o” e suas variações sem necessidade. O mesmo acontece com pronomes como “nosso” e “nossa”. Sem perceber, acabamos já definindo o gênero sobre o qual estamos nos referindo. Assim, uma boa ideia é sempre evitá-los nos casos em que isso é possível, como quando utilizamos substantivos uniformes (aqueles que podem ser usados independente do gênero). Observe: ● “Os colegas ajudaram João a escrever o texto.”/ “Colegas ajudaram João a escrever o texto.” ● “As testemunhas afirmaram ter visto toda a cena.”/ “Testemunhas afirmaram ter visto toda a cena.” ● “Eu encontrei a Letícia no parque.”/ “Eu encontrei Letícia no parque.”

● “O leitor sente-se incluído com o uso de uma linguagem neutra de gênero.”/ “As pessoas que leem o texto sentem-se incluídas com o uso de uma linguagem neutra de gênero.” ● “Curiosos pararam para olhar o acidente de carro.”/ “A curiosidade levou várias pessoas a pararem para olhar o acidente de carro.”

Use artigo ou pronome indefinidos quando possível Nos casos em que você julgar necessário usar artigos ou pronomes, que tal optar pelos neutros? Assim, em casos possíveis, você continua adotando uma linguagem neutra de gênero. Veja dois exemplos: ● “Estou com saudades da Marina.”/ “Estou com Substitua sujeitos por “pessoas que” saudades de Marina.” Algumas substituições são especialmente úteis e ● “Algumas tarefas são de responsabilidade dos essa é uma das principais: você pode substituir o líderes.”/ “Algumas tarefas são de responsabili- sujeito por “pessoas que fazem algo”, por exemplo. dade de líderes.” Brincadeiras à parte, essa dica é valiosa. Lembrase de que mencionamos que sempre direcionamos Substitua adjetivos por alternativas neutras os plurais ou fazemos generalizações baseadas no Muitas vezes usamos elementos em nosso texto masculino? Veja exemplos: tão naturalizados que nem reparamos que eles são ● “Os cozinheiros desenvolvem muito o paladar substituíveis. Eu acabei de fazer isso, aliás. Observe e olfato.”/ “Pessoas que cozinham desenvolvem a diferença: muito o paladar e olfato.” ● “Usamos elementos que podem ser substituídos.” ● “As secretárias estão sempre ocupadas com ● “Usamos elementos que são substituíveis.” ligações e agendamentos.”/ “Pessoas que trabaIsso pode ser feito por meio de diversas substituilham na secretaria de consultórios estão sempre ções. Quase sempre o adjetivo pode ser substituído ocupadas com ligações e agendamentos.” por um outro adjetivo indefinido, substantivos ou objetos. Veja alguns exemplos: Use o nome do agrupamento em vez de sujeitos no plural Para contornar o mesmo problema do tópico anterior: a generalização que tende ao masculino, prefira usar o nome daquele agrupamento. Veja: ● “Os alunos organizaram um ciclo de palestras na universidade.”/ “O corpo discente organizou um ciclo de palestras na universidade.” ● “Os chefes precisam entender a importância de serem líderes.”/ “A chefia precisa entender a importância da liderança.”

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PÕE A CARA NO SOL


QUE CORPO ÉO SEU? Há pessoas que serão sempre lembradas dos corpos que têm. Pescoços que giram acompanhando seus movimentos pela rua, cotovelos chamando a atenção do vizinho Texto por AMARA MOIRA

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ingamentos, provocações. Uma metralhadora de olhares. Nem sempre hostis, verdade, às vezes maliciosos ou curiosos apenas, quem sabe até casuais, mas invariavelmente estranhando aquele corpo, fazendo com que ele não só se sinta um elemento intruso, estranho, mas também se dê conta de que é visto exatamente dessa forma. E o pior: ainda vão lhe dizer que é coisa da sua cabeça – o famoso gaslighting, 
essa prática enlouquecedora. Vão dizer para o menino que cresceu sendo a única criança negra na sala de aula, quiçá do colégio, com exceção do pessoal da limpeza e segurança. Para a mulher gorda existindo num mundo em que “você emagreceu” é um dos maiores elogios. Ainda hoje a palavra “gorda” é entendida como insulto, as pessoas preferem eufemismos como “gordinha”, “fortinha”, “cheinha”, diminutivos tão a cara da nossa hipocrisia gordofóbica. Para a pessoa com deficiência encarada ora com pena, ora como se fosse um peso, um estorvo. Para a travesti tratada em público como corpo abjeto, mas em sigilo como objeto de desejo, reles coisa em ambos os casos…Não é simples cultivar

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o amor próprio quando internalizamos o olhar que a sociedade dirige para nós. Mas, ao mesmo tempo, como não internalizar esse olhar quando nos criamos nessa mesma sociedade? Perceba-se, com isso, que o desconforto que sentimos é fruto não do corpo que, de fato, temos, mas da forma como nos ensinam a vê-lo, a significá-lo. Corpo-problema. Corpo que carregamos como um fardo. Corpo que temos e que, na maioria das vezes, queremos acreditar que não somos, no máximo estamos. Forma de apaziguarmos a ideia de que, se ele for transformado, a verdade sobre nós virá à tona e seremos, enfim, vistos da forma como nos vemos. A operação acaba se impondo como solução, às vezes a única que se imagina possível. A criança de 5 anos que chega para os pais e diz “sou menina”, e recebe como resposta “filho, você é menino, você tem pipi”, sai convencida de que é errada a forma como se entende? Não, mas, por essa resposta (e as tantas outras que recebe, mais sutis aqui, mais escancaradas ali), ela percebe que o genital com que nasceu é o que a impede de existir para o outro da forma como entende a si própria.

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PÕE A CARA NO SOL

Ninguém nasce querendo fazer cirurgia, mas quando se aprende, se internaliza desde muito cedo que o seu corpo é o problema Não é simples se livrar desse ensinamento, sobretudo quando não te deixam esquecer um só minuto do corpo que você tem. Daí o paradoxo em que vejo a luta das pessoas trans (com paralelos possíveis para diversos outros grupos). De um lado, lutar para que tenhamos direito a fazer as intervenções corporais que julgarmos necessárias, que nos ensinaram que precisam ser feitas, pois historicamente o reconhecimento do nosso gênero, do nosso direito de existir, tem sido assegurado quase que só por meio desse expediente (pessoas trans existem desde sempre; a popularização desses procedimentos, no entanto, é em boa medida a responsável por essa visibilidade que temos conquistado nas últimas décadas). De outro, lutar para que as expressões “mulher de pênis” e “homem de vagina” ganhem cada vez mais sentido, assim como o que decorre delas, pois dessa maneira veríamos surgir uma compreensão de “masculino” e de “feminino” mais próxima do que é naturalmente possível para os nossos corpos. Um feminino trans, um masculino trans, sem que essas intervenções (junto com seus gastos e seus tantos riscos) sejam necessárias para nos sentirmos bem ou vermos reconhecido o nosso gênero. O bonito é perceber que, à medida que vamos nos libertando desses padrões e conseguindo afirmar a beleza dos corpos que temos/somos, outras pessoas que também não se enquadram nesses moldes começam a se permitir repensar 
o próprio corpo – e, a partir daí, descobrem as réguas absurdas que lhes impuseram. Hora de 
nos livrarmos das réguas.

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FONTE:REVISTA TRIP


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Foram os anseios por liberdade que fizeram Erica Malunguinho deixar a casa e a família em Pernambuco para se mudar para São Paulo, aos 19 anos Texto por JULIANA GONÇALVES | Foto por PEDRO BORGES

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Ela é a figura à frente da Aparelha Luzia, um espaço de resistência negra em SP

oram os anseios por liberdade que fizeram Erica Malunguinho deixar a casa e a família em Pernambuco para se mudar para São Paulo, aos 19 anos. Hoje, aos 35 anos, reconhece que foi um processo de fuga: “Vim para conseguir minha emancipação identitária”, conta. Naquela época, já tinha sua orientação sexual assumida - eram outros conflitos que a inquietavam. “Mais do que tudo, eu precisava resolver a questão negra”. Quando terminou o ensino médio, período em que intensificou o enfrentamento à homofobia e ao racismo, Erica sentia que “precisava viver outra vida”. E teve o apoio da mãe, que a criou sozinha, sempre sonhou ter uma filha e escolheu seu novo nome. Já o sobrenome “Malunguinho” faz referência ao culto da Jurema Sagrada, uma entidade A possibilidade de se reinventar é o que Erica foi buscar em solo paulistano. Foi na capital que percebeu o amadurecimento de suas posições, inclusive reelaborando sua identidade de gênero silenciada por anos. “Eu acreditava que entender minha orientação sexual seria suficiente para me colocar no mundo. Aos poucos fui me dando conta de que haviam outros aspectos inexplorados da minha subjetividade e, nesse conjunto de termos que utilizamos para nos definir, me entendi como uma pessoa ‘T’, ou seja, uma mulher trans”, conta. Erica encarou o conflito de ser negra, mulher, transexual e nordestina em São Paulo. Aqui, relata que viu as facetas mais cruéis da discriminação. “Com suas grandes dimensões a cidade esconde sob suas vestes uma sofisticada perversidade que resulta em violências físicas e simbólicas, impedindo o desenvolvimento saudável das pessoas. Mas nunca senti medo, sempre tive substância para o afronte”, afirma.

“Artivismo pela estética, pelo discurso, pelo encontro, pelo di cumê, pela festa… Pelos saberes vivenciados a partir das heterogêneas experiências corpoculturais negras”

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O objetivo era organizar encontros para difundir a produção artística e política da negritude. A Aparelha Luzia é um espaço de criação, mediação e circulação de artes negras, além de ser um ponto de sociabilidade e afetividade

Resistência negra Ativista, educadora e artista, trabalhou educando por muitos anos, atuando na formação de professores com temas ligados a arte, cultura e política. Produziu também trabalhos de fotografia, performance, escrita e desenhos. Sua vida acadêmica é descrita sem citar nomes de instituições, ato consciente. “Não cito nomes, pois não quero que elas roubem o bônus da minha existência. Não são elas que me certificam, mas as relações humanas me ensinaram a nessa sociedade”, dispara. A relação com os territórios marcam a personalidade dessa figura que transita por muitos espaços, e que por ter sua consciência racial e étnica no centro da sua existência, pariu um quilombo urbano. Assim, Erica transformou seu ateliê de arte, no bairro dos Campos Eliseos, no centro cultural e político Aparelha Luzia, entendido por seus frequentadores como um dos espaços de resistência negra mais importantes da cidade. Lá acontecem festas, cursos, formações, debates, aniversários, tornando-se um lugar onde “negras e negros se reconectam com seus iguais, reorganizam a coletividade em um contexto ampliado e aprendem a estar juntos”, explica. O objetivo era organizar encontros para difundir a produção artística e política da negritude. A Aparelha Luzia é um espaço de criação, mediação e circulação de artes negras, além de ser um ponto de sociabilidade e afetividade. A importância da Aparelha surge justamente pela multiplicidade do público que transita por ali. São trabalhadores da construção civil, moradores em situação de rua, intelectuais, artistas, ativistas, membros de comunidades de países africanos, profissionais das área de saúde, educação e moda, entre outros. Por lá já passaram grande nomes, como Leci Brandão, Samba de roda da Nega Duda, Samba da Marcha das Mulheres Negras, Adriana Moreira, Luedji Luna, Dena Hill, Lena Bahule, Pedro Guimarães e Filhos de Gandhi. Também já lançaram livros ou simplesmente foram curtir o espaço os escritores Cuti Silva, Akins Kintê, Alan da Rosa, Conceição Evaristo, Cidinha da Silva e Ricardo Aleixo. Facilmente dá para bater um papo com intelectuais como Rosane Borges, Saloma Salomão e Oswaldo Faustino. Além de esbarrar e dividir uma cerveja com artistas da nova geração, como Xênia França, Preta Rara, Tássia Reis, Liniker e Raquel Virginia. O lugar respira arte. Espalhados pelo ambiente há um quadro de mães pretas, uma peça que faz alusão aos orixás, tambores, bonecas negras, móveis antigos, luminárias, uma lamparina, um porta-joias.

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É importante que grande parte da construção da linguagem seja gerida por negras e negros

“Outro Lugar” Ouvir Erica falar sobre a Aparelha Luzia é revisitar a intelectual negra Lélia Gonzales, que escreveu sobre a divisão histórica e racial dos espaços dentro da sociedade brasileira e como aos brancos são destinados os lugares de poder, e, aos negros, os lugares marginalizados. Aparelha Luzia é um local de negros, pautado pela resistência cultural e pela política da negritude. “A Aparelha tira do campo do pejorativo e leva para o lugar devido a tal da magia negra, que é vida”, define, remetendo a Sérgio Vaz, que em um dos seus poemas cita grandes nomes negros da música, política e literatura como legítimos praticantes da tal “magia negra”. No centro cultural há uma cozinha com cardápio elaborado e executado pela chef Cícera Alves. São servidos drinks e a cervejas artesanais, como a cerveja Guerrilheira, produzida e pautada na luta feminista e racial. “Aqui a gente tenta romper esse histórico de servidão que tanto nos persegue. Então, depois de comer e beber, a pessoa leva os pratos, talheres e copos até o balcão”, explica Erica. O quilombo urbano é mantido de pé por uma equipe negra: Malu Avelar, Marcia Izzo, Alessandra Souza, Juliana Santos (Lilica), Fernanda Alves e Julio Cesar Ribeiro, Valéria Alves e Julia Souto. Erica faz pessoalmente a curadoria de todos os eventos da casa. Assim tem a possibilidade de apresentar “narrativas descolonizadoras”, como ela mesma diz. Além disso, o protagonismo negro é o ponto central. “É importante que grande parte da construção da linguagem seja gerida por negras e negros. Da criação à apresentação do trabalho”, conta. São mais de 20 eventos por mês. O público varia de acordo com a atividade, mas há um crescente número de frequentadores cativos que veem na Aparelha Luzia o refúgio certo. “Recebemos em média de 3 a 4 mil pessoas por mês”, contabiliza Erica. São mais de 20 eventos por mês. O público varia de acordo com a atividade, mas há um crescente número de frequentadores cativos que veem na Aparelha Luzia o refúgio certo. “Recebemos em média de 3 a 4 mil pessoas por mês”.

Artivismo pela estética, pelo discurso, pelo encontro, pelo di cumê, pela festa

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FONTE: REVISTA TRIP


Quilombo Urbano O nome “Aparelha Luzia” é uma mistura de homenagens e referências. Aos espaços chamados de “aparelhos”, onde aqueles que lutavam contra o regime militar se reuniam para pensar e resistir à ditadura nos anos 60 e 70; a todos os que desde o começo ajudam a fundadora a manter o lugar de pé e o transformam em um espaço de sociabilidade negra; à Luzia, a primeira brasileira, fóssil mais antigo encontrado na América, especificamente em Minas Gerais, de traços negros e datado de 12 mil anos atrás - e provaria a possibilidade de já existir pessoas de origem africana no Brasil antes mesmo do tráfico que sustentou a escravidão. “Além disso, há o Quilombo das Luzias, e todas as metáforas existentes por conter a palavra luz, luzir, lumiá”, completa Erica. “É o resultado de uma historicidade negra muito antes de mim, que remete aos povos Malês, o Teatro Experimental do Negro, a recente Ocupação Preta da Funarte, o quilombo dos Palmares, o Movimento Negro Unificado, os maracatus... Acredito que o sentimento que nos faz estar tão bem aqui diz respeito às nossas memórias e ancestralidade”

Estar ali é um processo de reintegração de posse para negras e negros

Negociar a presença A região da Barra Funda onde fica a Aparelha Luzia é berço do samba paulistano e da efervescência cultural negra. Em décadas passadas, figuras importantes como o escritor Oswaldo de Camargo e o poeta Solano Trindade habitavam os arredores, que no início do século 19 era uma das áreas com maior concentração de negros da cidade. “Recentemente recebemos a visita do Sr. Xavier, músico que nos anos 40 foi morador do imóvel ao lado da Aparelha. Ele ficou emocionado ao entrar no espaço e relatou sua experiência com o bairro, até ser expulso de lá pela especulação imobiliária”, conta Erica. Não raro quem frequenta o local ouve ela afirmar que estar ali é “um processo de reintegração de posse para negras e negros”. Erica conta que não é incomum que as pessoas brancas se assustem ao se depararem com um território negro, onde não somos vistos pelo lugar da vulnerabilidade, e sim pelo contrário, com autoestima e consciência das nossas pautas. “Todo mundo é bem-vindo, mas a pessoa branca ou não-negra deve negociar a sua presença aqui dentro, pois alguns desavisados tentam reproduzir comportamentos racistas”. Para as pessoas brancas que se dizem parceiras do espaço, Erica alerta que elas precisam começar a “produzir práticas anti-racistas”: “Ninguém é anti-racista porque samba, come feijoada ou frequenta a Aparelha, estamos falando de racismo institucional”. A Aparelha Luzia se assemelha a um quilombo pela quantidade de corpos negros, mas principalmente por ser um lugar de liberdade e sociabilidade que propicia encontros marcantes e pedagógicos. É um lugar de negro que trabalha para que um dia todos os lugares sejam assim também.

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PÕE A CARA NO SOL


COLANDO VELCRO COM SEGURANÇA Insatisfeita com a falta de informação sobre sexo seguro entre mulheres com vulva, Nicolle Sartor decidiu criar sua própria cartilha, a Velcro Seguro Texto por LETICIA PUGLIESI

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la decide se iniciar na vida sexual. Embora o primeiro trate de grupos minorizados, Chegou o momento. Mas precisa de todas as letras da sigla LGBT eram colocadas dentro orientações: O que fazer? Como se do mesmo contexto, dificultando que cada uma proteger? Falar com os pais, amigos? delas pudesse ser contemplada de maneira aproMelhor não. Estava completamente perdida, então priada, já que cada letra da sigla possui seus cuidadecide buscar por conta própria, mas os materiais dos específicos. Já a segunda cartilha, que aborda que encontra não poderiam ser mais genéricos e especificamente mulheres lésbicas e bissexuais, só acabou mais perdida ainda. Essa experiência é muito foi encontrada com muito esforço na biblioteca virrecorrente entre mulheres que mantêm relações tual do Ministério da Saúde. “Apesar de existir esse sexuais com outras mulheres, e foi pensando nis- material, é quase como se ele não existisse, porque so que a publicitária Nicolle Sartor criou o Velcro não atinge essas mulheres”, declara a publicitária. Seguro, guia de saúde sexual para minas lésbicas e A resposta que Nicolle encontrou para solucionar bissexuais com vulva. O trabalho foi todo feito com o problema foi disponibilizar sua cartilha para livre acompanhamento da médica Thais Machado Dias. acesso e impressão. “Quando você coloca um grupo O primeiro passo de Nicolle foi mapear pesquisas para protagonizar um material, não tira a necessidapor todo o Brasil que tratassem do tema. “Cheguei a de de diferentes produtos para outras comunidades”, uma conclusão bem insatisfatória: não tem mesmo explica, justificando a opção de abordar apenas o materiais didáticos com acesso facilitado”, conta sexo entre mulheres com vulva. Terapia hormonal e ela, que, dentre as pesquisas, achou dois materiais cirurgias de afirmação de gênero, por exemplo, são produzidos pelo Ministério da Saúde para se basear - especificidades que não caberiam no guia de forma “Política nacional de saúde integral de lésbicas, gays, contemplativa. Para esse tipo de informação, existe bissexuais, travestis e transexuais”, publicado em a cartilha “Saúde do homem trans e pessoas trans 2013, e “Chegou a hora de cuidar da Saúde”, de 2007. masculinas”, criada pela Rede Trans.

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PÕE A CARA NO SOL

Não é de hoje Na década de 80, a prevenção de ISTs entre a população LGBT+ começou a ganhar bastante espaço com a epidemia de HIV no Brasil. A partir de 1990, políticas de saúde sobre o tema foram incorporadas na agenda do governo. Mas e as mulheres lésbicas e bissexuais com vulva? Quase 40 anos depois, ainda é raro encontrar materiais e políticas públicas que contemplem de fato essa minoria. Afinal, sequer existem dados sobre saúde sexual deste grupo. O boletim epidemiológico de HIV/AIDS do Ministério da Saúde, por exemplo, é separado nas categorias de homens héteros, bissexuais e homossexuais, enquanto os dados de ocorrência entre mulheres são resumidos apenas em mulheres heterossexuais. Já o boletim epidemiológico de sífilis não traz nenhuma distinção sobre orientação sexual, somente de gênero. “As mulheres lésbicas e bissexuais têm um uso muito precário de preservativos por um motivo muito simples: não foram feitos para vaginas, nem para o sexo”, explica a médica Thais Machado Dias, do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde. O uso de camisinhas cortadas, dental dam (um quadradinho de látex que pode ser usado na hora do sexo oral para prevenir ISTs) e dedeiras, por exemplo, foram criados para usos totalmente diferentes dos que Nicolle sugere na cartilha. “Isso é sintomático de como as práticas sexuais das mulheres que transam com mulheres com vulva não são levadas em conta”.

Velcro Seguro é uma forma de democratizar o acesso à informação

A mudança de baixo para cima da medicina Ainda existem médicos e pesquisas que não consideram o sexo entre vulvas como uma prática de risco. Porém, os cursos de medicina atuais estão avançando nesse sentido. Apesar do tema ISTs entre LGBT+, em grande parte, não fazer parte da grade curricular formal, “os alunos têm buscado esse tipo de temática, principalmente nas atividades extracurriculares, simpósio, palestra, ligas acadêmicas e estágios”, conta Thais. Inclusive, ela percebe que os congressos das áreas de Ginecologia e Medicina Familiar que abordam temáticas como ISTs entre lésbicas e bissexuais e hormonioterapia trans, sempre tem salas bastante lotadas de novos alunos. “Como um bom movimento feminista, a cartilha Velcro Seguro é uma forma de democratizar o acesso à informação”, explica a médica. Afinal, o ganho de conhecimento sobre nosso corpo e nossa identidade só fortalece, sobretudo, a luta por direito de mulheres que amam outras mulheres. “Eu espero que esse guia sirva de inspiração para que sejam criados outros materiais para comunidade LGBT+”, relata, com esperança, Nicolle.

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TEM DE TUDO

DEFICIÊNCIA E PERIFERIA: O ISOLAMENTO CONTINUA O fotógrafo Lucca Messer foi às periferias registrar como a falta de acessibilidade e políticas públicas mantém as pessoas com deficiência socialmente isoladas desde muito antes da Covid-19 Texto por LUCCA MESSER | Foto por LUCCA MESSER

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isolamento social nas periferias antecede a Covid-19. A falta de políticas públicas e a de acessibilidade mantiveram as pessoas com deficiência às margens. Foi com essa premissa, e através do diálogo com diversas pessoas que moram nas regiões periféricas da cidade de São Paulo, que decidi retratar essa realidade através de um projeto de fotografia e entrevistas semanais. Com a repercussão do mini-documentário que fiz sobre a primeira cadeirante negra a atuar no Theatro Municipal de São Paulo, Mona Rikumbi, comecei a me aproximar à luta das pessoas com deficiência. A pessoa com deficiência é frequentemente estereotipada pela mídia e, nesse processo, a sua individualidade é condenada e reprimida. É importante fazermos um esforço coletivo para resgatar essas vozes e dar protagonismo à pessoa, não à deficiência. Foi isso que aprendi – e continuo aprendendo – com as pessoas que tive a sorte de conhecer durante a construção desse projeto.

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DEFICIÊNCIA E PERIFERIA: O ISOLAMENTO CONTINUA Eu não O fotógrafo Lucca Messer foi às consegui ser porque não periferias registrar como aalfabetizado falta haviam profissionais de acessibilidade e políticas públicas mantém as pessoas com especializados e preparados para me deficiência socialmente isoladas ajudar quando criança. desde muito antes da Covid-19 Texto por LUCCA MESSER | Foto por LUCCA MESSER

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isolamento social nas periferias antecede a Covid-19. A falta de políticas públicas e a de acessibilidade mantiveram as pessoas com deficiência às margens. Foi com essa premissa, e através do diálogo com diversas pessoas que moram nas regiões periféricas da cidade de São Paulo, que decidi retratar essa realidade através de um projeto de fotografia e entrevistas semanais. Com a repercussão do mini-documentário que fiz sobre a primeira cadeirante negra a atuar no Theatro Municipal de São Paulo, Mona Rikumbi, comecei a me aproximar à luta das pessoas com deficiência. A pessoa com deficiência é frequentemente estereotipada pela mídia e, nesse processo, a sua individualidade é condenada e reprimida. É importante fazermos um esforço coletivo para resgatar essas vozes e dar protagonismo à pessoa, não à deficiência. Foi isso que aprendi – e continuo aprendendo – com as pessoas que tive a sorte de conhecer durante a construção desse projeto.

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CLEBERSON

FONTE:REVISTA TRIP


MONA RIKUMBI

De que normal as pessoas estão falando? Esse vírus escancarou as diferenças sociais, raciais, de gênero, etarismo e tantas outras discriminações correlatas FURTACOR

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TEM DE TUDO

DEFICIÊNCIA E PERIFERIA: O ISOLAMENTO CONTINUA FRYDDA EMANUELLY

O fotógrafo Lucca Messer foi às periferias registrar como a falta de acessibilidade e políticas públicas mantém as pessoas com deficiência socialmente isoladas desde muito antes da Covid-19

Texto por LUCCA MESSER | Foto por LUCCA MESSER

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isolamento social nas periferias antecede a Covid-19. A falta de políticas públicas e a de acessibilidade mantiveram as pessoas com deficiência às margens. Foi com essa premissa, e através do diálogo com diversas pessoas que moram nas regiões periféricas da cidade de São Paulo, que decidi retratar essa realidade através de um projeto de fotografia e entrevistas semanais. Com a repercussão do mini-documentário que fiz sobre a primeira cadeirante negra a atuar no Theatro Municipal de São Paulo, Mona Rikumbi, comecei a me aproximar à luta das pessoas com deficiência. A pessoa com deficiência é frequentemente estereotipada pela mídia e, nesse processo, a sua indiviPercebi no isolamento dualidade é condenada e reprimida. É importante fazermos um esforço coletivo para resgatar nós essassomos o quanto vozes e dar protagonismo à pessoa,inocentes,ou não à deficiência. fingimos, Foi isso que aprendi – e continuo aprendendo – com que não somos capazes as pessoas que tive a sorte de conhecer durante a de admitir e reconhecer construção desse projeto.

que o mal que vivemos foi provocado por nós mesmos!

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FONTE:REVISTA TRIP


O peso da invisibilidade e a negação de direitos às pessoas com deficiência persistem, com ou sem pandemia

SUELY REZENDE FURTACOR

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DEFICIÊNCIA E PERIFERIA: O ISOLAMENTO CONTINUA O fotógrafo Lucca Messer foi Eu às fui forte e consegui periferias registrar como ame falta tornar uma atleta de acessibilidade e políticas públicas tenho várias paralímpica, mantém as pessoas com medalhas de ouro, deficiência socialmente isoladas porém tive que lutar desde muito antes da Covid-19 contra muito preconceito para conquistar isso Texto por LUCCA MESSER | Foto por LUCCA MESSER

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isolamento social nas periferias antecede a Covid-19. A falta de políticas públicas e a de acessibilidade mantiveram as pessoas com deficiência às margens. Foi com essa premissa, e através do diálogo com diversas pessoas que moram nas regiões periféricas da cidade de São Paulo, que decidi retratar essa realidade através de um projeto de fotografia e entrevistas semanais. Com a repercussão do mini-documentário que fiz sobre a primeira cadeirante negra a atuar no Theatro Municipal de São Paulo, Mona Rikumbi, comecei a me aproximar à luta das pessoas com deficiência. A pessoa com deficiência é frequentemente estereotipada pela mídia e, nesse processo, a sua individualidade é condenada e reprimida. É importante fazermos um esforço coletivo para resgatar essas vozes e dar protagonismo à pessoa, não à deficiência. Foi isso que aprendi – e continuo aprendendo – com as pessoas que tive a sorte de conhecer durante a construção desse projeto.

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NILDA

FONTE:REVISTA TRIP


FABIANA DOS SANTOS

As leis e as políticas não estão do nosso lado, precisamos de um braço direito para implantar melhorias físicas para nós, deficientes, termos maior autonomia e leis a nosso favor FURTACOR

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DEFICIÊNCIA E PERIFERIA: O ISOLAMENTO CONTINUA O fotógrafo Lucca Messer foi às periferias registrar como a falta de acessibilidade e políticas públicas mantém as pessoas com deficiência socialmente isoladas desde muito antes da Covid-19 Texto por LUCCA MESSER | Foto por LUCCA MESSER

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isolamento social nas periferias antecede a Covid-19. A falta de políticas públicas e a de acessibilidade mantiveram as pessoas com deficiência às margens. Foi com essa premissa, e através do diálogo com diversas pessoas que moram nas regiões periféricas da cidade de São Paulo, que decidi retratar essa realidade através de um projeto de fotografia e entrevistas semanais. Com a repercussão do mini-documentário que fiz sobre a primeira cadeirante negra a atuar no Theatro Municipal de São Paulo, Mona Rikumbi, comecei a me aproximar à luta das pessoas com deficiência. A pessoa com deficiência é frequentemente estereotipada pela mídia e, nesse processo, a sua individualidade é condenada e reprimida. É importante fazermos um esforço coletivo para resgatar essas vozes e dar protagonismo à pessoa, não à deficiência. Foi isso que aprendi – e continuo aprendendo – com as pessoas que tive a sorte de conhecer durante a construção desse projeto.

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MUITO ALÉM DO LACRE De onde vêm as raízes históricas do pajubá, o dialeto LGBT+ que já foi usado como linguagem em código e instrumento de resistência Texto por PAULA REIF | Foto por RICARDO CORREA

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onhecido como o dialeto LGBT+, o pajubá (ou bajubá) é muito mais que um punhado de gírias divertidas, como “lacre”, “bafo” ou “uó”. Cada vez mais ele é incorporado ao vocabulário de muitos brasileiros, especialmente ao dos jovens, mas possui raízes históricas e, o mais importante, de resistência. O pajubá tem origem na fusão de termos da língua portuguesa com termos extraídos dos grupos étnico-linguísticos nagô e iorubá – que chegaram ao Brasil com os africanos escravizados originários da África Ocidental – e reproduzidos nas práticas de religiões afro-brasileiras. Os terreiros de candomblé sempre foram espaços de acolhimento para as minorias, incluindo a comunidade LGBT+, que passou a adaptar os termos africanos em outros contextos. Neon Cunha, 46, mulher trans e fluente no pajubá, explica que os terreiros – onde os idiomas de matriz africana se mantém vivos ao longo de nossa história – sempre foram espaços de acolhimento para as minorias, tanto para os negros quanto para os LGBTs. “Mona erê aquenda os ojus, se os alibans cosicarem/aquendarem no corre cosica as endacas pras

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monas acá deaquendarem.” A frase é pronunciada facilmente pela designer quando perguntada sobre qual a expressão mais marcante do dialeto em sua vida. As palavras na voz dela soam como música, mas o significado não é tão bonito assim. “Novinha, fica de olho. Se os policiais entrarem no ônibus, avise para a gente sumir”, traduz Neon. “Esse sumir era se esconder. Colocavam a cabeça entre os joelhos, assim ficavam ocultas atrás do banco [do ônibus]”, explica ela. Neon refere-se ao diálogo entre as travestis durante o período da Operação Tarântula, na capital de São Paulo. Era comum escutar o aviso no ônibus que ia de São Bernardo do Campo (Grande São Paulo) à capital paulista durante a noite. Aos 15 anos, testemunhou os efeitos da operação da Polícia Civil que legalizou a prisão arbitrária de travestis na capital paulista. No curto período de duração, entre fevereiro de 1987 e março do mesmo ano, a ação perseguiu cerca de 300 travestis e mulheres trans. “Eu estava lá. A gente corria do carro pipa, da polícia, da sociedade civil e de todo mundo”, relata Neon, que reforça a importância do pajubá como forma de comunicação

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em código. “Era a única maneira de garantir a sobrevivência”, afirma. A operação usava o “combate à aids” como justificativa para a perseguição à comunidade LGBT+, principalmente as travestis. O dançarino Flip Couto, 35, traça a relação dos terreiros com essa parcela da população e o papel das religiões de matriz africana para disseminar o pajubá por meio do acolhimento das minorias. Ele, que é soropositivo, gay e negro, defende que, pelo fato do candomblé enfrentar a intolerância religiosa no Brasil, nada mais natural que abrigar aqueles que são excluídos na sociedade. Flip cita especialmente a relação dessas religiões com os soropositivos a partir do fim dos anos 80. “Não tem isso historicamente documentado, mas a gente pode falar que o terreiro acolheu de várias formas as lutas da comunidade LGBT e não é à toa que o pajubá vem com toda essa linguagem de terreiro, de dialetos africanos, com a intenção de proteger”, conta. O terreiro acolheu de várias formas as lutas da comunidade LGBT. Pajubá como resistência Tanto Flip quanto Neon descrevem o pajubá como forma não só de resistência, mas de existência. “Essa comunidade criou ferramentas para, através da linguagem, criar um senso de pertencimento. É um campo para dizer que é nosso. A gente pode conversar sobre o que quiser no metrô, no ônibus, na rua e vamos se entender. É criar um mundo dentro do mundo”, explica ele.

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O sentimento de pertencimento através da cultura é urgente

Professora do Departamento de Antropologia da USP, Silvana Nascimento reforça que o dialeto cria uma noção de cultura. “De um lado, pode ser usado como proteção por meio de inspirações das religiões de matriz africana, que são uma das poucas que incluem pessoas trans e travestis”, explica. “De outro, é uma forma de afirmação identitária entre coletivos que são continuamente marginalizados”. O dialeto, que foi tema de questão no Enem em 2018, também está cada vez mais presente em letras de música. “O pensamento de pertencimento através da cultura é urgente. Na cultura LGBT, fico muito feliz que artistas como a Liniker, a MC Linn da Quebrada [que lançou álbum batizado de Pajubá] e Rico Dalasam estão ganhando voz e criando empatia, algo necessário para o movimento”, diz Flip. A questão da travestilidade e da transexualidade atravessa as classes sociais, assim como a violência de gênero. “Há muitas artistas, atrizes e cantoras travestis que não têm sua produção valorizada. Grande parte delas está fora do mercado de trabalho mesmo com excelentes formações, talentos, projetos e experiências. Estão excluídas somente porque se afirmam como travestis ou mulheres trans”, defende a professora Silvana Nascimento.

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Jesuíta Barbosa deu seus primeiros passos como ator no coletivo As Travestidas e parte desse universo do transformismo para questionar as restrições de gênero: ” É a desconstrução disso que interessa” Texto por BRUNA BITTENCOURT



aquele início, ouviu elogios de Wagner Moura a Regina Duarte e não parou mais de atuar, selecionando com cuidado seus trabalhos. No cinema, viveu o garimpeiro gay de Serra Pelada (2013), de Heitor Dhalia; o caçula que vai atrás do seu irmão mais velho em Berlim de Praia do Futuro (2014), de Karim Aïnouz; e o rapaz que sequestra a garota por quem é apaixonado em Jonas (2016), de Lô Politi. Experimentou produções maiores, como Trash (2014), Reza a lenda (2016), e efeitos especiais em Malasartes e o duelo com a morte (2017). Estreou na TV como o amigo do protagonista vivido por Cauã Reymond em Amores roubados (2014). Jesuíta estava em casa: é filho daquele sertão onde a trama se desenrolava. Seguiu com Rebu (2014), Ligações perigosas, Justiça e Nada será como antes (2016) – algumas das produções mais interessantes da TV dos últimos anos. O pernambucano de 26 anos segue no ar com a supersérie Onde nascem os fortes, interpretando Ramirinho/Shakira do Sertão, um menino “cheio de questões sexuais e familiares, que tem um pai preconceituoso e agressivo”, resume. O personagem se traveste para cantar na noite, escondido do pai, um juiz com quem tem uma difícil relação. Por uma estranha coincidência, o enredo lembra a relação de Jesuíta com o próprio pai, um delegado de polícia. Esse universo transformista da série é um velho conhecido do pernambucano. Jesuíta encontrou no teatro a liberdade que não tinha em casa e deu seus primeiros passos como ator em Fortaleza com o coletivo As Travestidas, “um lugar de possibilidades mil, de liberdade, libertinagem, descoberta sexual”. O ator viajou com o grupo, de Petrolina (PE) a Juazeiro (CE), encarando de frente o estereótipo do macho nordestino – ali também nasceu seu alter ego, Monique. Jesuíta parte dali para discutir o masculino, o feminino e suas limitações, um tema que ele faz questão de colocar em pauta. Para este ensaio da Tpm, brincou com gêneros: “Me percebi nesse lugar delicado, andrógino, em que sempre estive e que por muitas vezes neguei, porque a família, a religião e a sociedade impõem”. Entre o fim das gravações da série este mês e a estreia em setembro no cinema de O Grande Circo Místico, filme de Cacá Diegues, ele planeja ficar um pouco quieto. Mas, na entrevista a seguir, Jesuíta solta o verbo: não foge a nenhuma questão, fala abertamente sobre sua sexualidade, sem deixar de resguardar sua vida privada.

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Acho que essa liberdade foi muito importante, de poder sair de casa e andar, sem precisar dar notícia e não ficar trancafiado

Você cresceu bem livre no sertão de Pernambuco, não? Jesuíta Barbosa. Cresci. Com todo aquele sistema social, mas, sim, minha infância foi ótima, aberta, em um lugar propício a isso. Parnamirim é uma cidade muito pequena. Cresci com muito primo, tenho uma família enorme lá. Acho que essa liberdade foi muito importante, de poder sair de casa e andar, sem precisar dar notícia e não ficar trancafiado. A família do seu pai é de Fortaleza? Jesuíta Barbosa. Meu pai é do interior do Ceará. Painho prestou concurso, mudou pra Fortaleza com a gente pra estudar Direito. Uma hora ele decidiu ser delegado da Polícia Civil. Funcionário público. Você tem artistas na sua família? Jesuíta Barbosa. Meu vô era violonista, dedilhava um violão como ninguém. Era um cara que viajava, participou do programa do Chacrinha. Vivia no Rio de Janeiro querendo criar uma vida para ele, mas não era fácil, né? Cresci tendo ele como minha referência de artista. Tenho um tio que é cantor, o filho dele é também. Acho que Pernambuco, por ser minha infância primeira, um despudor, é bem mais emotivo pra mim, mais apaziguador. Do que Fortaleza? Jesuíta Barbosa. Que é esse outro lado da moeda, a coisa paterna, um pouco mais rígida, uma cidade grande, violenta. É engraçado porque tem muita gente que está numa cidade pequena e anseia pela cidade grande. Jesuíta Barbosa. Naquela época, não ansiava por essa cidade grande, não. Chorava porque não queria ir embora. A gente entrava no carro e eu ficava: “Ahhhhhhh, nããão, não quero ir pra Fortaleza”. Porque realmente era um lugar em que a gente se trancava em casa. Você tem artistas na sua família? Jesuíta Barbosa. Meu vô era violonista, dedilhava um violão como ninguém. Era um cara que viajava, participou do programa do Chacrinha. Vivia no Rio de Janeiro querendo criar uma vida para ele, mas não era fácil, né? Cresci tendo ele como minha referência de artista. Tenho um tio que é cantor, o filho dele é também. Acho que Pernambuco, por ser minha infância primeira, um despudor, é bem mais emotivo pra mim, mais apaziguador. Do que Fortaleza? Jesuíta Barbosa. Que é esse outro lado da moeda, a coisa paterna, um pouco mais rígida, uma cidade grande, violenta. A igreja foi seu primeiro palco? Jesuíta Barbosa. Sem dúvida. Minha mãe incentivava muito: “Vai fazer a primeira leitura, menino, sobe ali. Dona Menina tá te chamando, vai lá!”. Fiz um anjo quando tinha uns 7 anos. Errei todas as falas. Minha mãe era a pessoa que me montava, que me vestia de Chaves, criava personagens no São João. Mainha é uma artista.

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Mas você gostou? Jesuíta Barbosa. Não, foi péssimo! Minha avó puxou minha orelha e disse: “Por que você foi fazer?”. Disse: “Mas, vovó, meu Deus”. O padre ficava dando as falas para mim. Não lembrei. Como foi sua adolescência em Fortaleza? Jesuíta Barbosa. No colégio, entendi que podia ser mais criativo do que na minha casa. Acho que às vezes [a adolescência] se torna uma fase muito hostil, muito difícil, em que você fica em função de escola, de dizer quem você vai ser quando for mais velho. No colégio, achei uma beiradinha em que pude fugir, que era o teatro. E você já se deu conta ali de que queria ser ator? Jesuíta Barbosa. Difícil dizer o que queria ser, mas aquilo era o que me fazia bem, para minha saúde. Quando entrava naquela aula de teatro e as pessoas trabalhavam o corpo, se alongavam, conseguia respirar melhor. O teatro me renovava. Era só o que queria fazer, tinha uma liberdade dentro daquele lugar que não tinha em casa. Mas ainda que o colégio deixasse essa aula acontecer, também segurava. Nunca fui bom em matemática e, quando tirava nota baixa, era: “Então você não vai mais fazer teatro”. Seu pai era um delegado, mas sua mãe tinha essa veia artística. Você tinha esse acolhimento dela? Jesuíta Barbosa. Sim, ela dizia: “Você quer fazer teatro? Vá fazer teatro”. Minha mãe era muito chegada, e ainda é, a gente tem uma ligação incrível. E aí você foi prestar vestibular em artes dramáticas? Jesuíta Barbosa. Foi. Prestei pedagogia, publicidade e licenciatura em teatro. Aos 17, você não sabe direito o que quer fazer e tem que dar conta do que as pessoas querem que você faça, do dinheiro que precisa ganhar. Passei em pedagogia e em licenciatura em teatro. Encarei e disse: “Pai, vou fazer teatro”. Você já tinha encontrado As Travestidas? Jesuíta Barbosa. Já. Tinha feito curso preparatório em Fortaleza, várias oficinas, já estava mais ambientado. Era um universo possível, minha turma, com a qual me sentia bem em ficar perto. Foi ali no teatro que fui descobrindo minha passagem para a vida adulta e só me fez bem. A premissa d’As Travestidas é se vestir como mulher? Como nasceu o grupo? Jesuíta Barbosa. Nasceu de Silvero Pereira, um pesquisador de teatro [que interpretou a travesti Elis Miranda na novela A força do querer]. Ele fez essa pesquisa em cima de um texto de Caio Fernando Abreu, Dama da noite [sobre o universo da prostituição]. Começou a abrir isso para outras atrizes e atores, e a gente foi se chegando. Criouse esse coletivo naturalmente. Um lugar de possibilidades mil, de liberdade, libertinagem, descoberta sexual, tudo isso era muito importante pra gente na época. Esse ambiente era facilitador.

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Um lugar de possibilidades mil, de liberdade, libertinagem, descoberta sexual, tudo isso era muito importante pra gente na época


Deve ter sido muito importante para abrir a cabeça. Jesuíta Barbosa. Era uma brincadeira de se montar, de criar esse universo trans, de transição mesmo, de entender o que era feminino, onde é que estava o masculino, o que era eu no meio disso, o que a gente era no meio disso.

Foi um ambiente para entender que existiam quebras necessárias para continuar vivendo

E o que você aprendeu dessa época? Jesuíta Barbosa. O coletivo foi a base de uma transformação, de entender que poderiam haver rupturas, que as coisas não precisavam estar dentro de caixas. Foi um ambiente para entender que existiam quebras necessárias para continuar vivendo, porque senão ia ser mais difícil. Depois, a gente começa a entender outras funções enquanto artista, a partir da sexualidade e do transformismo. É um universo que não acontece só em função do feminino, acontece desde o teatro grego. Não é só se travestir e se perceber como mulher, é muito maior que isso. No fim das contas, acho que o feminino e o masculino, esse lugar do macho e da fêmea, são arquétipos que a gente criou e defende como os dois únicos caminhos. Não é isso, a gente começa a entender que é a desconstrução disso que interessa. É complicado dizer isso aqui, mas um trans homem e uma trans mulher são sempre uma imitação do que é o feminino ou o masculino, a gente tenta se igualar. Reproduzimos esses arquétipos. Jesuíta Barbosa. É uma reprodução, há muitos estudos que começam a desconstruir esse lugar. Muitas vezes, amigos, pessoas próximas, dizem: “Pô, mas você fica colocando esse lugar de sexualidade, não diz que é gay, não diz que é hétero, como é isso?”. As pessoas têm necessidade de representatividade. O universo gay precisa que as pessoas se juntem em uma massa que defenda o gay, o universo trans, também. E, às vezes, eles ficam díspares, se confrontam. A gente precisa começar a pautar isso e ir além dessas estipulações. É desmistificar. Você é cobrado? Jesuíta Barbosa. Um amigo falou: “Cara, entendo seu lugar porque você fala além de tudo isso, mas as pessoas precisam de representatividade”. Disse: “Poxa, não consigo me enquadrar em nenhum desses lugares”. Acho eles limitadores. Mas quando você disse que podia ficar com homens e mulheres, as pessoas repercutiram muito. Jesuíta Barbosa. Achei engraçado. As pessoas têm pudor, tabu em relação ao sexo. Talvez seja necessário criar um pudor para que o sexo aconteça, para que exista tesão, mas acho bom a gente dizer que não é realmente assim. Fico com quem eu quiser e também não fico com quem não quiser. Seja homem, seja mulher. Jesuíta Barbosa. Não é sobre homem ou mulher, acho que é sobre corpo falante. Se tenho você na minha frente, e a gente se comunica, poxa, isso é um negócio que transcende, não sei para onde a gente pode ir, né?

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Poucos atores discutem isso hoje, ainda mais quando estão na Rede Globo. Isso é uma conversa que você tem com seus colegas? Jesuíta Barbosa. Acho que essa discussão talvez seja uma das mais importantes hoje. A gente conseguiu que uma geração que vem agora, por exemplo, da minha irmã, que tem 19 anos, tenha uma mentalidade completamente diferente. Mais aberta, mais liberta. Acho isso tão bom, são jovens mais disponíveis para quem chega, para o diálogo. Você acha que é algo geracional? Jesuíta Barbosa. Talvez, talvez sejam ciclos. Um inicia, cria a discussão, o outro resolve, e outro fica no desbunde e vive o momento. Te confesso que essa discussão era mais presente quando eu estava em Fortaleza. A Shakira, de Onde nascem os fortes, foi criada para você? Você a levou para a história, para o roteirista George Moura ou para o diretor José Luiz Villamarim? Jesuíta Barbosa. Não tinha Shakira na história. Era um rapaz que era filho de um juiz, mas eles disseram: “É Jesuíta quem vai fazer, ele tem aquela história com As Travestidas…”. Estava muito a fim de trabalhar isso na televisão e no cinema. Você se preparou para o papel, subiu no salto. Jesuíta Barbosa. Mas acho que a minha preparação foi lá n’As Travestidas, foi na rua, foi ter saído de salto, foi ter experimentado a reação das pessoas. Como alguém se vestir de uma forma diferente, se colocar com uma atitude diferente, muda o ambiente social. Tem um desrespeito muito grande, preconceito, perigo, mas, ao mesmo tempo, é uma afronta, é uma necessidade nossa sair, ver como o rosto das pessoas se desconstrói. Ainda hoje elas não sabem lidar com isso. Vocês iam para cidades como Petrolina e Juazeiro apresentar as peças? Jesuíta Barbosa. A gente ia para o interior. Juazeiro, por exemplo, é a terra de Padre Cícero, de beatas, de gente muito religiosa. Mas um lugar que recebia a gente muito bem – olha que contraste. E qual era a reação das pessoas? Jesuíta Barbosa. boa e ruim. Você fica à mercê da sociedade, né? Mas é importante essa afronta, essa coragem das meninas de sair, de colocar a cara no sol e dizer: “Tô aqui, eu existo e resisto”. E ir pra uma esquina, porque é um lugar que as colocam. Ela é marginal porque fica à mercê. Uma travesti se prostitui porque não consegue ser caixa de supermercado, não consegue trabalhar numa loja. Acho que hoje em dia tem alguns lugares que estão começando a se abrir, mas ainda é muito complicado, a mentalidade é muito, muito pequena. Então, admiro elas, acho que são deusas. São pessoas que a partir da coragem – que é o que mais admiro no ser humano – conseguem transformar a sociedade.

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Um inicia, cria a discussão, o outro resolve, e outro fica no desbunde e vive o momento


Voltando a Fortaleza: como apareceu o teste para seu primeiro filme, Cine Holliúdy (2013)? Jesuíta Barbosa. Vinha fazendo teatro e todo tipo de teste para peça; criava grupos. A gente começou um trabalho autoral, mas, sempre que abria uma possibilidade, íamos lá fazer testes, que eram pouquíssimos. O diretor disse que só me chamou [para o filme] porque eu era muito magro [risos]: “Queria colocar você ao lado de um gordo para fazer O Gordo e o Magro”. E eu: “Obrigado pela parte”. Mas foi minha primeira experiência, foi boa, porque eu era daquele lugar, desse cearense falado. Acho um filme muito divertido. O soldado de Tatuagem é até hoje um dos seus papéis mais fortes. Em algum momento essa história assustou você? Como foi a reação dos seu pais? Jesuíta Barbosa. [Não me assustei] nem um pouco. Esse filme foi muito especial na minha vida, muito delicado e muito respeitoso o tempo todo. Minha mãe disse: “Poxa, que lindo, meu filho”. O retorno do meu pai é sempre mais difícil, tenho que perguntar, mas tenho certeza de que ele gostou, ele adora cinema. Era a pessoa que me levava para ver filmes. Quais são as suas primeiras lembranças de cinema? Jesuíta Barbosa. Rei leão [1994], Fantasia 2000 [1999], Zoando na TV [1999], da Angélica. E como você foi parar na TV, em Amores roubados? Jesuíta Barbosa. Fiz um teste em Recife. Aí me chamaram para um outro dentro do estúdio. Depois, fiquei sabendo que ia fazer, mas acho que foi pelos filmes, né? Disse: “Vou fazer isso muito bem”. E foi bom! E no sertão, né? Já estava naquele universo, me faz bem… Eu estava em casa, recebendo aqueles atores que não sabiam lidar muito bem com aquele lugar. Você conta que a equipe de Onde nascem os fortes passa mal com o clima, enquanto você está ambientado. Jesuíta Barbosa. É, e é bom receber! As pessoas ficam de galocha, vestindo coisas como se estivessem indo para um safári. E entendo, não julgo. Mas digo: “Não precisa, não, bota aí um chinelo”. E perceber como são esses corpos ali, se descontruindo. Desde Amores roubados você não parou, emendou um filme atrás do outro. O que foi mais difícil até aqui? Jesuíta Barbosa. No começo, me joguei de um jeito que depois até recuei. Essa coisa juvenil, fazia tudo com muita garra, força, vontade e, quando terminava, ficava muito cansado, doente. Depois de Praia do Futuro, passei duas semanas acamado, por não saber dosar e botar limites. As pessoas se aproveitam da sua juventude. Mas parei de trabalhar um tempo. Fiquei um ano meio parado. Quando foi isso? Jesuíta Barbosa. Foi tipo há dois anos. Fiquei muito caseiro, decidi ficar quieto mesmo, me perceber, morando só, numa cidade diferente, no RJ.

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E como foi esse sabático? Jesuíta Barbosa. Foi bom de início, depois comecei a ficar apreensivo. Mas acho que foi uma experiência interessante para mim. Estava precisando dar uma baixada, uma respirada, tanta coisa aconteceu, foi tudo tão turbulento e bom também. Naturalmente, precisei dar uma pausa. Acalmou? Jesuíta Barbosa. Tô mais calmo. Eu era assim antes, [com o olho] arregalado, dilatado. Eram lugares, pessoas, culturas novas, gente que falava de um jeito diferente do meu. Demorei para acostumar com isso. Acho que minha personalidade é assim, leva um tempo para eu saber lidar. Sou um pouco arisco, confesso, desconfio e tal, mas agora estou aprendendo que não preciso. Você atuou em algumas das produções mais interessantes da TV dos últimos anos. Houve um momento em que você abriu mão de um contrato longo para escolher o trabalho que quer fazer? Você nunca fez novela, por exemplo. Jesuíta Barbosa. Pois é, mas não me chamam [risos]. Agora que apareceu alguém dizendo: “Vamos fazer?”. Disse: “Talvez, vamos conversar”. De jeito nenhum vou fazer um trabalho que não queira, que não seja importante para mim, que não acho que vai valer a pena, nem que seja como experiência de vida, um processo pelo qual talvez precise passar. Não acho que você tem que fazer o que não quer. Mas às vezes você abre mão de um contrato maior, de ganhos. Isso é tranquilo para você? Jesuíta Barbosa. Sem dúvidas. Não acho que dinheiro pode estar à frente de sua necessidade artística. Se você escolhe ser artista, não pode colocar o dinheiro em primeiro lugar, porque aí você se anula. O norte não é o dinheiro, não, minha gente. Sempre tive essa consciência, desde que me percebi nesse ambiente. Você entende que não vai ter dinheiro, então acho que se esforça para fazer seu trabalho bem, para ter satisfação, pela beleza que acontece nele, pelo que é apresentado, pelo retorno, quando as pessoas chegam para falar com você, para dizer como aquilo mexeu [com elas]. Isso é muito importante, mas não quero parecer piegas, dinheiro é uma necessidade. Estamos discutindo nesta edição uma nova masculinidade, que abandona o estereótipo de virilidade. Você vê isso entre os homens que te cercam, uma nova construção masculina? Jesuíta Barbosa. Eu queria ver mais. Não sei se é sobre abandonar a virilidade, acho que é sobre a gente começar a experimentar outros lugares. Posso ter uma virilidade e, ao mesmo tempo, experimentar um outro lugar, porque é uma experiência do corpo. A gente coloca nomes nas coisas: chama de bicha, de machudo, de boy magia, de sapatão. Na performatividade queer, você subverte isso. É dizer: “Sou sapatão. Sou bicha, sim. E aí?”. Isso vira um potencial. Acho que é mais subverter, não abandonar as coisas. Quero que as pessoas se modifiquem, esse é meu papel aqui, minha vida muito íntima se abrindo. Neste ensaio, por exemplo, me percebi nesse lugar delicado, andrógino, que sempre estive e que por muitas vezes neguei, porque a família, a religião e a sociedade impõem. Agora, digo: “Por que preciso fazer isso?”. Não!

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De jeito nenhum vou fazer um trabalho que não queira, que não seja importante para mim, que não acho que vai valer a pena FONTE:REVISTA TRIP


Olha como é bonito, como é grande me perceber assim. Me senti muito, muito livre e muito feliz, de poder falar isso aqui, de que isso me faz bem. Sei como isso é necessário para as pessoas lerem e entenderem que não é tão difícil assim, que é só uma atitude. A gente se anula, não é pra anular, é pra agir. Precisamos de coragem e atitude. Você está se colocando, mas preserva sua vida pessoal. Em uma coletiva de imprensa, perguntaram se você estava namorando um ator e você preferiu não responder. Jesuíta Barbosa. Porque o que acontece na mídia é isso. Fica numa pequenez absurda. Não é sobre quem está comigo, é sobre mim, sobre um lugar muito profundo meu. Se você quiser me perguntar e quiser que eu fale alguma coisa, vou falar da minha parte mais íntima, e não de quem está comigo, de relações diretas que acontecem. É sobre outra coisa e é muito melhor falar sobre isso, né? Acho que aprendi a encontrar o melhor lugar de me colocar, devagarinho. Que lugar é esse, Jesuíta? Jesuíta Barbosa. Acho que é isso de me preservar, de preservar quem está comigo, talvez. Ensinar também a mídia, a imprensa, que não é por aí, senão vira esse floreio, essa brincadeirinha de “você tá com fulano, com sicrano”. Não, fuxico, não, meu povo, pelo amor de Deus. Fico me perguntando: “Como dá pra ser essa pessoa interessante pra se colocar? Do que posso falar que vai valer a pena?”. A gente precisa escolher. Às vezes, você precisa dizer: “Isso aqui não dá”. A relação de pai e filho que você vive com o personagem de Fábio Assunção em Onde nascem os fortes te ajudou a rever sua relação paterna? Jesuíta Barbosa. Nossa… Ontem, mandei uma mensagem para Fábio, uma foto minha: eu, muito pequenininho, à frente de um viveiro de pássaros. Meu pai, numa época da vida dele, pegava pássaros do sertão, colocava nesses viveiros, misturava coisas. Às vezes, tinha cobra; às vezes, tinha coruja, gavião. De repente, entrei num estúdio que tinha como cenário um viveiro enorme, que era do pai do meu personagem. Que coincidência. Muita. Mandei essa foto para Fábio e disse: “Jesus, esse trabalho que a gente faz…”. Às vezes, ele nos envolve de uma maneira, tem uma psicologia intrínseca, um negócio surreal que acontece, é um trabalho cada vez mais difícil. Porque se mistura muito com a tua vida… Me espantou porque também é uma relação paterna violenta. Tem muita semelhança: um pai que diz o que o filho tem que fazer e acha que aquilo que está fazendo é bom para ele. Tem os valores de uma época e ele não conseguir entender que as coisas vão se modificando. Isso que está acontecendo com essa personagem aconteceu também na minha vida. Fico contente com esse trabalho, mostrar essa transição, de a personagem entender que ela pode sair desse ambiente difícil, impositivo e ganhar liberdade e, ainda mais importante, pela arte, porque ela é uma artista, uma performer, uma cantora. Tem muitas semelhanças. Cresci num ambiente muito machista. Segurava o caderno assim [imita], mas não podia, vinha alguém e dizia: “Segura com o braço lá embaixo”. Corria, e alguém dizia: “Você não pode correr assim!”. Hoje em dia acho engraçado.

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ELA FAZ O CORRE DELA

Grupo de organizadores do evento PerifaCon


QUEBRADA NERD Perifacon celebra a cena periférica de quadrinhos, games, cosplay e audiovisual, no Capão Redondo, extremo sul paulistano Texto por CAROL ITO

O

evento terá conteúdos ligados a quaAlém de quebrar estereótipos, outro objetivo do drinhos, cosplay, games e audiovisual, evento é conectar a cena periférica com marcas, com formato próximo ao do megae- editoras, produtoras e profissionais já consolidados vento Comic Con Experience (CCXP), no mercado. que ocorre em São Paulo e, em 2018, reuniu mais de Para a primeira edição, os organizadores espe260 mil pessoas em quatro dias de programação. ram entre mil e dois mil visitantes. A programação Andreza Delgado, 23 anos, é uma das organi- inclui bate-papos com Marcelo D’Salete (quadrinista zadoras da primeira edição do Perifacon, evento vencedor do prêmio Eisner, em 2018), Rafael Calça e apelidado de “a Comic Con da favela”, que rola no Jefferson Costa (criadores da HQ Jeremias - Pele, uma próximo domingo, 24 de março, em São Paulo. releitura envolvendo o primeiro personagem negro Na contramão da CCXP, cujos ingressos chegam da Turma da Mônica), Adriana Melo (ilustradora a custar até R$ 160 por dia, toda a programação da da Marvel), KL Jay (DJ dos Racionais MC’s), e Rashid Perifacon será gratuita e realizada durante um dia (rapper paulistano). Os visitantes também poderão no Capão Redondo, bairro da periferia de São Paulo. ver a réplica oficial do Trono de Ferro, que aparece “Os eventos de cultura pop, em geral, costumam rolar na série Game of Thrones e conhecer games com em lugares centrais da cidade, o que dificulta nosso temáticas ligadas à cultura indígena. Outro destaque acesso, sem contar a questão financeira”, explica é a exposição Rap em quadrinhos, projeto criado Igor Nogueira, 24, o mais velho da equipe de sete pelo ilustrador Wagner Loud e o youtuber LØAD, pessoas que organiza o Perifacon. “É muito doido que retrata rappers brasileiros como super-heróis. pensar que o Capão, que é o berço do rap e dos Tudo aconteceu muito rápido desde dezembro Racionais MC’s, vai receber um evento de cultura de 2018, quando os amigos Matheus Polito e Mateus nerd. A gente rompe a ideia de que a periferia só Ramos decidiram juntar uma galera para fazer uma produz rap, funk e sarau”, observa Andreza. feira de HQs, financiada pelo coletivo de pessoas.

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ELA FAZ O CORRE DELA

O interesse foi tanto que eles bateram a meta em apenas uma semana e receberam centenas de comentários positivos sobre a iniciativa nas redes sociais, o que motivou a ampliar o projeto. A ideia atraiu patrocinadores e uma agência de publicidade tentou comprar o evento, mas a equipe declinou. “Somos sete jovens oriundos de periferia e queremos produzir nosso próprio sonho. Ia perder um pouco o sentido”, conta Andreza. “Estamos virando noites, eu perdi meu emprego [como designer, por conta da produção do evento], mas tá valendo a pena”, relata Igor. O motivo de tanto interesse, na visão dos idealizadores, é simples: havia uma demanda que não estava sendo atendida. “As pessoas estão produzindo um universo dentro das periferias, publicando HQs por crowdfunding ou por leis de incentivo. Mas sair da quebrada para expor num evento sai caro”, diz Igor. Na CCXP, por exemplo, uma pessoa que queira vender trabalhos no Artists’ Alley (área onde ficam as mesas para venda de HQs, ilustrações e outras produções gráficas) desembolsa, no mínimo, R$ 450 para expor durante os quatro dias do evento, fora os custos de impressão com os quais deve arcar.

A cultura pop nos apresenta a maioria de personagens brancos. Então, o jeito da gente se ver é produzir nossa própria história A Perifacon vai abrir espaço para artistas que costumam abordar o cotidiano das periferias em seus trabalhos, como é o caso do roteirista e editor Daniel Esteves, 36, que tem uma pequena escola de quadrinhos na zona leste de São Paulo. Durante o evento, ele vai lançar a HQ de ficção Último assalto (com desenhos de Alex Rodrigues), que narra a história de um morador de periferia que sonha em ser um grande lutador de boxe. “Os quadrinhos estão presentes na periferia há algum tempo, em pequenas iniciativas, mas uma empreitada do tipo da Perifacon ainda não era uma realidade em São Paulo. Falta investimento público e interesse comercial de organizadores de eventos”, avalia Os quadrinhos criados e protagonizados por negros também terão destaque. “A cultura pop nos apresenta a maioria de personagens brancos. Então, o jeito da gente se ver é produzir nossa própria história”, diz a quadrinista paulistana Marília Marz, 27, que vai participar de um debate sobre representatividade negra nos quadrinhos durante o evento. O paulistano Robson Moura, 40, que também fará parte da mesa, acredita que a universo dos quadrinhos ainda é dominado por narrativas brancas e por isso é importante discutir o assunto. “Hoje vemos mais autores negros e protagonistas negros nas HQs, mas estamos apenas no começo. Quanto autores conhecemos que possuem vínculo com alguma editora?”, questiona.

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FONTE:REVISTA TRIP


LILA CRUZ @colorlilas

Jornalista, quadrinista, ilustradora e editora

Alguns destaques do Perifacon, com programação pensada para abranger mulheres, pessoas negras e LGBTQs nos bate-papos e oficinas

LØAD COMICS @loadcomics

Youtuber e quadrinista LYA NAZURA @lyanzr Pesquisadora sobre a afro anscestralidade dos quadrinhos

MARCELO D’SALETE @marcelo.dsalete

MARÍLIA MARZ

Ilustrador, quadrinista e professor

@mariliamarz

Ilustradora, quadrinista e colagista

RASHID @mcrashid

Rapper, produtor e empresário ANDREZA DELGADO @andrezadelgado_

Quadrinista, ilustradora e fundadora do Perifagamer

THAÍS HERN @thaishern

Apresentadora, roteirista e produtora

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SOCIEDADE PARA A MULHER NEGRA No Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, reflito sobre a importância do feminismo negro Ilustração por CAMILA ROSA

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DJAMILA RIBEIRO Djamila é uma filósofa, feminista negra, escritora e acadêmica brasileira; é pesquisadora e mestra em Filosofia Política pela Universidade Federal de São Paulo e tornou-se conhecida no país por seu ativismo na Internet

Olá pessoal tudo bem? Já estava com saudades de necessariamente precisa ser antirracista, necessavocês, desse pessoal aqui da FurtaCor. Hoje vou falar riamente anticapitalista e necessariamente precisa sobre o dia 25 de julho, que é o Dia Internacional da ser anti-LGBTfóbico. Entender essas questões é funMulher Negra Latino-Americana e Caribenha, um damental, como dizem autoras como Audre Lorde dia muito importante que foi quando aconteceu o e Lélia Gonzalez. primeiro encontro latino-americano de mulheres Ao contrário do que as pessoas pensam, falando negras em Santo Domingo, na República Dominicana, do feminismo negro — e nem todo o movimento em 1992. E, no Brasil, também porque marca o dia de mulheres negras é feminista —, mas falando a Tereza de Benguela, que foi instituído na época pela partir do feminismo negro porque sou feminista presidenta Dilma. Tereza de Benguela, líder quilom- negra, quando se pensou, por exemplo, o conceito bola do Quariterê, no século 18, região onde fica de intersexualidade, foi justamente para falar desa atual fronteira da Bolívia com o estado do Mato ses sujeitos que ficam nesta encruzilhada: que são Grosso, e onde ela era coroada rainha quilombola mulheres, mas não são brancas, que são negras, pela comunidade de negros indígenas. mas não são homens. Elas são atravessadas por Esse dia é muito importante porque ele marca as diversas identidades e é necessário nomear essas lutas históricas travadas pelas mulheres negras no realidades. Se a gente não nomeia, a gente sequer Brasil e na América Latina. A gente tem a Marcha das vai pensar solução para algo que não foi nomeado, Mulheres Negras, que faz um trabalho importantíssi- e a invisibilidade mata. mo, um movimento que todo dia 25 de julho sai às ruas A importância de pensar a partir das ferramentas para falar sobre o bem viver das mulheres negras e metodológicas que o feminismo negro nos traz é sobre a importância desse debate na nossa sociedade. entender que não é separar, é ampliar. É o contráMas, quando a gente fala das mulheres negras, rio do que as pessoas pensam. É mostrar que não é muito importante que a gente entenda que histo- tem como a gente legitimar o discurso do poder ao ricamente as mulheres negras estão travando uma escolher quem será representado. Nós precisamos luta antirracista, anticapitalista e antisexista, e que as pensar mecanismos que tragam luz a todas essas mulheres negras, como diz muito bem Sueli Carneiro, identidades, a esses sujeitos atravessados por diveruma grande referência do feminismo negro, estão sas identidades. Se não, a gente, mais uma vez, está pensando um novo projeto de sociedade. Assim hierarquizando as vidas, escolhendo quem deve ser como dizia Lélia Gonzalez, grande Lélia Gonzalez, representado ou não, quem deve ter direito à humamulheres negras estão pensando um modelo alter- nidade ou não. Por isso, acho que o feminismo negro nativo de sociedade, e não somente nas opressões é muitíssimo potente por trazer essa importância de que lhe dizem respeito. que não tem como a gente lutar contra o machismo Então, por exemplo, no feminismo hegemônico, e alimentar o racismo, por exemplo, porque seria alidurante muito tempo se universalizou a categoria mentar a mesma estrutura. Então precisamos pensar "mulheres" dizendo "somos todas mulheres", es- em enfrentamentos a essas diversas opressões. Acho quecendo-se que há diversas possibilidades de ser que neste dia 25 de julho e, repetindo, nem todo o mulher. Que mulheres partem de pontos de partida movimento de mulheres negras é feminista negro, diferentes e, ao fazer isso, se invisibiliza uma série mas entender essa importância de trazer essas dide outras identidades que atravessam as mulheres. versas perspectivas das mulheres negras que estão Então, se existem mulheres negras, se existem mu- pensando o bem viver e um modelo alternativo de lheres pobres, mulheres trans, o movimento feminista sociedade. Espero vocês na nossa próxima coluna.

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ESCOLA ESPECIAL NÃO É INCLUSIVA Em repúdio ao decreto 10.502/20 faço meu relato de lutas e conquistas por uma educação inclusiva hoje e sempre Ilustração por RICARDO FERRAZ

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LEANDRA M. CERTEZA Leandra é Bacharel em Comunicação Social, estuda Jornalismo Literário e Escrita Criativa, além de ser consultora e palestrante em Inclusão e Direitos Humanos das Pessoas com Deficiência

Muitas pessoas com deficiência ainda não conse- com investimentos na acessibilidade dos espaços guem ter acesso à escola! Quando eu comecei a da escola, em transporte, em tecnologias, na formavida escolar, em 1982, o número era ainda bem me- ção, qualificação e salário dos docentes, na gestão nor. Hoje o Brasil tem cerca de 1,2 milhão de alunos democrática e no estímulo a projetos pedagógicos na educação básica com deficiência, transtornos nos quais a educação especial seja uma premissa globais do desenvolvimento ou altas habilidades, de fato e de direito complementar ao ensino regular. segundo dados do Censo Escolar 2019. Desse total, As dificuldades ou barreiras referentes à inclusão 87% estão em classes comuns, o que representa uma precisam ser enfrentadas por todos! O direito que vitória da educação inclusiva. se nega ao aluno ou aluna com deficiência de estar Em 2006, por exemplo, esse grupo somava ape- na escola regular é um direito que se tira de muitos. nas 700 mil alunos, dos quais menos da metade É uma ameaça que se faz a todos nós”. (46,4%) estava nas turmas regulares, convivendo Saiba mais e assine a petição pública para recom colegas sem deficiência, e a maioria (53,6%) vogação do decreto. E escute os depoimentos de frequentava classes especiais ou escolas especiali- diretores e professores de escolas inclusivas, além zadas, consideradas menos inclusivas. de pais de alunos que comprova a necessidade de Portanto, após mais de 30 anos de batalhas por continuar com todas as escolas de portas abertas um ensino que não discrimine a diversidade inata para receber alunos com e sem deficiência juntos. a todos os seres humanos – não será um governo Sem alunos com deficiência nas escolas, elas nunca federal retrógrado, ditatorial, assistencialista e dis- se tornarão totalmente inclusiva. criminatório que irá abalar um tijolinho sequer que Aos seis anos de idade, após diversas tentativas construímos com tanto suor, garra e determinação! de minha mãe em me matricular na primeira série, Afinal, este decreto que prega a diferenciação cur- em um colégio com alunos sem e com deficiência, ricular, segrega o ensino e as pessoas da sala de acabei indo parar dentro de uma verdadeira jaula! aula, não encontra respaldo jurídico nas diretrizes E vivi a triste experiência de ser segregada a uma da Lei Brasileira de Inclusão de 2015, na Convenção escola “especial”, conveniada a uma instituição asInternacional de Direitos das Pessoas com Deficiência sistencialista. O fato mais marcante era a existência de 2007 e nem na Constituição Federal de 1988. de uma grade que nos separava do ‘outro mundo’ Faço minhas as sábias palavras, dos movimentos – o das crianças sem deficiência. Isso foi um horror. sociais das pessoas com deficiência, do Ministério Hoje eu creio que o sistema de educação brasileira Público (pela Coordenadoria de Promoção da evoluiu em relação à inclusão de alunos com alguma Igualdade de Oportunidades e Eliminação da deficiência uma dose de mudança de paradigma por Discriminação no Trabalho), da Ordem dos parte da sociedade, sobre a diversidade humana e Advogados do Brasil, do Conselho Federal de todo seu potencial. Porém, ainda estamos começando Psicologia e de outras instituições e órgãos públicos a caminhar na estrada da educação. sobre a inconstitucionalidade do decreto 10.502/20: Cabe a cada um fazer a sua parte com coragem “Aprendemos a respeitar singularidades, diferen- e determinação, conscientes da realidade em que ças, diversidades a partir da convivência e não se vivemos, mas nunca tirando um dos pés do terreno apartando dela. O Governo Federal, através do dos sonhos. Transformando-os em objetivos conMEC, deveria ampliar as possibilidades de supera- cretos e acessíveis: hoje, amanhã e sempre. Afinal, ção das dificuldades e das barreiras à inclusão, a todos somos e estamos no mundo da forma que nos partir do fomento de políticas públicas de Estado, foi apresentada: humana.

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POR UMA POLÍTICA MAIS DIVERSA Com as eleições americanas encerradas e as eleições municipais brasileiras em andamento, sentimos a necessidade de nos posicionarmos quanto ao assunto Ilustração retirada em FREEPIK

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EQUIPE FURTACOR A equipe FurtaCor é composta pelas integrantes Bruna, Beatriz, Luisa e Sarah, estudantes de Design com ênfase em marketing, na ESPM de São Paulo.

O atual contexto político e econômico do Brasil fomentou, principalmente através das redes sociais, debates e movimentos sociais em prol dos direitos das minorias. Entre as pautas discutidas, estão o feminismo, racismo e homofobia, que permeiam casos como o de Maju Coutinho, jornalista da Rede Globo que sofreu racismo online, o caso da menina de 10 anos, que realizou aborto legal após ter sido violentada e o movimento Black Lives Matter. Entretanto, apesar de existir um aumento no interesse da população quanto à esses tópicos, só será possível efetivar os direitos fundamentais das minorias a partir da mudança da base política de nosso país, responsável por administrar e criar todas as leis que regem nossa sociedade. Isso se dá pelo fato de que o plenário, atualmente, pode ser considerado um ambiente extremamente patriarcal, levando em conta que é constituído majoritariamente por homens brancos da mesma classe social. A falta de representatividade das minorias na política é latente. Tema esse que necessita, urgentemente, ser discutido. Devemos pensar que nós, por exemplo, como mulheres brancas, precisamos utilizar dos nossos privilégios para levar debates importantes para os nossos espaços, visando dar efetividade a representação política. Apesar do número de mulheres eleitas ainda ser baixo, pode-se perceber um aumento na participação das mulheres durante as eleições. Recentemente, em Novembro de 2020, Kamala Harris foi anunciada como a próxima Vice Presidente dos Estados Unidos da América, a primeira mulher e negra a ocupar o cargo desde sua criação em 1789. Este foi considerado um feito histórico e representa uma vitória na luta feminina por espaço na política. E, em tempos de eleição, não é demais lembrar, que nosso voto seja consciente. De nada adianta aderir ao movimento feminista ou ao #BlackLivesMatter e votar em homem branco.

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RAPIDINHA

ACHADOS DA SEMANA

Respeita as Mina

Todxs Putxs

TEM QUE LER!

O mito da beleza Naomi Wolf Editora : Rosa dos Tempos Clássico que redefiniu nossa visão a respeito da relação entre beleza e identidade feminina. Em O mito da beleza, a jornalista Naomi Wolf afirma existir um culto à beleza e à juventude. As leitoras e os leitores encontrarão expostas a tirania do mito da beleza ao longo dos tempos, sua função opressora e as manifestações atuais no lar e no trabalho, na literatura e na mídia, nas relações entre homens e mulheres e entre mulheres e mulheres. Naomi Wolf confronta a indústria da beleza, tocando em assuntos difíceis.

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INFLUENCIANDO PARA O BEM

@lela.brandao

Lela Brandão

Capricorniana com ascendente em libra, filha mais nova, arquiteta em formação, paulistana em relação de amor e ódio com a cidade, sonho em conhecer o mundo inteiro e apaixonada por qualquer forma de expressão da existência feminina nesse mundão maravilhoso. Minha forma de existência é através da arte, viajo entre plataformas e estilos conforme vou crescendo e aprendendo mais sobre o mundo e sobre mim. INFLUENCIANDO PARA O BEM

What the Health

What the Health é um documentário de 2017 que critica o impacto do consumo de carne, peixe, ovos e laticínios na saúde e questiona as práticas das principais organizações de saúde e farmacêuticas. Seu objetivo principal é defender uma dieta baseada em vegetais.

FURTACOR

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