Revista SE LIGA!

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BEM-VINDOS!

Escola Superior de Propaganda e Marketing Curso de Graduação em Design Turma DSG 3B 2021/1 Projeto Integrado do 3º Semestre Projeto III Marise de Chirico Produção Gráfica Marcos Mello Cor, Percepção e Tendências Paula Csillag Marketing Estratégico Leonardo Aureliano da Silva Finanças Aplicadas de Mercado Alexandre Ripamonti Ergonomia Auresnede Pires Stephan Matheus Alves Pássaro Projeto Editorial e Gráfico Gabriela Cavalcanti Castro Laura Siqueira Martins Stella Nagao Sendai

A se liga! existe para aguçar a visão dos educadores de modo a melhor reconhecer problemas ignorados pelo modelo tradicional da escola. Ela foi criada para guiar e informar sobre o mundo da diversidade e estimular a criação de um ambiente mais igual e harmônico na sala de aula onde todo e qualquer aluno possa adquirir conhecimento, começando pela mente do próprio professor. A revista abrange desde os estudantes de pedagogia até os professores já estabelecidos, pois nunca é tarde para se expor a uma visão nova de um mundo diverso e mudado. Queremos que cada profissional, de todas as séries seja capaz de trabalhar na melhor maneira possível. Por isso, cada edição terá foco em uma das fases do ensino básico – Pré-Escola, Ensino Fundamental e Ensino Médio – e discutirá dicas específicas para cada sala de aula. Assim, em nossa primeira edição, trataremos de assuntos exclusivos do Ensino Médio, além de conversas sobre discriminação, histórias inspiradoras e uma entrevista com a psicanalista Vera Iaconelli. Ademais, dentro da maior crise de saúde que nossa geração já viu, também traremos orientações para as aulas à distância e conselhos de como você pode se conectar com seus alunos no ambiente virtual. No entanto, também gostaríamos de complementar nosso conteúdo com atividades que podem ser trabalhadas fora do período de aula. Para isso, disponibilizamos resenhas de livros, filmes e séries, que podem proporcionar um momento de diversão, além de auxiliar no aprendizado do educador e dos próprios alunos. Esperamos que nosso projeto ajude a guiar a jornada do professor e futuros professores, dentro e fora da sala de aula. Boa leitura!

Gabriela

Laura

Stella



COLABORADORES

Helena Singer é doutora em Sociologia e líder da Estratégia de Juventude para a América Latina na Ashoka. Foi assessora especial do mec. Ela também é colunista aqui na se liga! e em várias outras plataformas.

Claudia Costin é professora universitária na fgv-rj e em Harvard, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da fgv e colunista na Folha sp e na se liga!

Leo Fraiman é psicoterapeuta, mestre em Psicologia Educacional e do Desenvolvimento Humano, escritor, colaborador da Rádio Jovem Pan e palestrante. Além disso, ele também escreve para a se liga! sobre educação, família e saúde mental.

Rodrigo Hübner Mendes é fundador e superintendente do Instituto Rodrigo Mendes, co-autor do livro “Artes Visuais na Educação Inclusiva”, membro do Young Global Leaders (World Economic Forum) e colunista em diversos veículos de comunicação, incluindo a se liga!. Rita Lisauskas é jornalista e escritora. Autora do “Mãe Sem Manual”, blogueira no Estadão, comentarista da cnn Brasil e colunista na Rádio Eldorado. Ela também é colunista da se liga! e nessa edição discute a vacinação dos professores.


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SE iNSPiRE! SE DiViRTA! SE iNFORME! COLUNAS

Dicas 10 Bons exemplos 12

Entrevista 36 Como ajudar 42

Livros 66 Filmes 68 Séries 70 Helena Singer 76 Claudia Costin 78 Leo Fraiman 80 Rodrigo Hübner Mendes 82 Rita Lisauskas 84 Poema visual 88


16 Racismo é assunto de grupos de debate

26 Quando a prática dialoga com a realidade

56 Escolas de elite querem

desnaturalizar o racismo

46 Educação sexual: precisamos falar sobre Romeo...


SE iNSPiRE! Dicas

COMO ENSINAR SOBRE DIVERSIDADE PARA SEUS ALUNOS A diversidade está em todos os lugares, mas pode ser um assunto difícil de ser abordado Ilustração Geoff McFetridge

Estamos vivendo um mundo novo, onde estamos aprendendo todos os dias a lidar com as diferenças. Não que a diversidade nunca tenha existido, mas hoje em dia ela está muito mais explícita, como por exemplo a diferença na tonalidade da pele, na orientação sexual e de gênero, além de outras como a escolha de religiões distintas e classe social. A diversidade deveria ser algo normal, já que todos somos pessoas diferentes umas das outras, porém nem sempre é fácil explicar isso às crianças, principalmente quando algum ensino vindo de casa e que fere o relacionamento com as diferenças aparece. Como explicar aos alunos o valor da diferença?

1. PRECONCEITO E DISCRIMINAÇÃO

Muita gente acredita que preconceito e discriminação são a mesma coisa mas não são. Preconceito é uma intolerância, um juízo que fazemos de forma precipitada, criando em nós um repúdio à pessoa e uma crítica a ela, mesmo sem conhecê-la direito. O preconceito faz com que evitemos as pessoas que julgamos diferentes de nós, a ponto de não aprendermos e nem nos relacionarmos com ela. A discriminação é a forma mais complexa do preconceito, pois se caracteriza na intolerância mas também segregação, ou seja, separação do outro, não só evitando mas ofendendo e humilhando a pessoa, acreditando ser uma ameaça a si mesmo e ao mundo.

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2. DIVERSIDADE NA HISTÓRIA DO MUNDO

Ao longo do tempo, vemos que o mundo sempre foi um lugar de grandes variações, com lugares mais frios em um determinado ponto, assim como lugares mais quentes e com grande diversidade de animais, alimento e água. Assim também é com as pessoas, cada qual com sua língua, cultura e raça pré-determinada pelo local onde vive. No Brasil, vivemos com uma grande miscigenação, ou seja, pessoas de várias partes do mundo, que ao longo da história se encontraram e geraram outras pessoas com características específicas desses locais. Por ser um país assim, chega a soar estranho que exista preconceito e discriminação, porém infelizmente, ainda nos deparamos com situações assim.

3. OS VARIADOS TIPOS DE DIVERSIDADE ATUAL

As famílias não são mais as mesmas. Hoje é fácil encontrar homens que vivem com parceiros e tem filhos, assim como mulheres que na mesma realidade. Vemos também famílias que são lideradas por mulheres e crianças que têm descoberto na infância que seu corpo não condiz com sua mente. Também existe a diversidade religiosa, já que muitas famílias creem em alguma divindade e possuem ritos e crenças próprias. Procure estimular em seus alunos o respeito a cada religião e mostre que esse assunto pode ser discutido, mas de forma harmônica.


Todos esses tipos de diversidades e O respeito também possui o poder de que ainda são encaradas como novida- conectar as pessoas. Quando você lida de, deve ser conversadas em sala de aula com outra pessoa de maneira respeitocom os alunos. Muitas vezes o professor sa, está criando um laço entre vocês. Isso encontrará alunos que vivem essas rea- ocorre especialmente quando a forma lidades, e explorar esse assunto com os positiva de lidar com o outro vem em outros que possuem uma vida mais co- um momento de tensão mum, pode ser o ponto de partida para incentivar o respeito entre o grupo.

4. RESPEITO E ACEITAÇÃO

É importante deixar claro que respeito e aceitação são coisas distintas, assim como preconceito e discriminação. Respeito significa consideração e por isso, quando tenho respeito a algo ou alguém, estou considerando isso, porém nem sempre posso aceitar. Aceitação é o ato de aceitar algo, de acolhimento. Se aceito, logo respeito também. Portanto se damos um exemplo a um aluno de que ele deve respeitar uma pessoa homossexual, isso não significa que ele aceita as condições de vida dessa pessoa, mas considera como um ser humano que merece ser bem tratado e querido.

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5. COMO LIDAR COM OS CONSERVADORES

Ainda que a aula seja dada e explicada, é possível que existam alunos mais resistentes a ideia da diversidade. Nem sempre as pessoas conseguem aceitar bem o diferente, principalmente quando esta foi ensinada assim. Em lares conservadores, é muito comum que diversidade seja encarada como algo ruim e nesse caso, é preciso trabalhar a interação e relacionamento desse aluno com as pessoas que ele julga diferente e inferiores.

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SE iNSPiRE! Bons Exemplos

ESTUDANTES CRIAM KIT PARA ENSINAR FÍSICA A COLEGA CEGO Alunos se dedicaram a construir objetos que exemplificam fenômenos físicos pelo tato Por BRUNO RICARDO PINTO DOS SANTOS

Grande é a preocupação do professor do ensino regular ao se deparar com um aluno com deficiência visual. Isso se dá pelo fato de o mesmo não estar preparado ou ainda, acostumado com as necessidades especiais que os mesmos demandam, daí a necessidade de haver um professor especializado para acompanhá-lo, bem como, de uma sala de recursos para auxiliá-lo, conforme já comentado. Porém, mesmo com a presença de um professor especializado, o professor da sala comum, onde o aluno com deficiência visual estuda, é o principal responsável por sua educação, uma vez que, este foi designado para ensinar a turma como um todo. Os professores especializados apenas darão o apoio necessário ao aluno, preparando materiais específicos e preenchendo as lacunas que, porventura, sejam deixadas nas ministrações das aulas. Alguns professores podem pensar que não estão preparados para educar um aluno com deficiência visual ou achar que estes merecem maior atenção, o que não é verdade. A eles deve ser dispensada a mesma atenção dada a um aluno normal, pois, em nada ele se diferencia das demais crianças, dispensando qualquer cuidado excessivo. Atitudes como, por exemplo, adotar formas de avaliação diferenciadas dos outros ou aprovar o aluno sem que ele tenha notas suficientes para tanto, não são bem vindas. Isso faz com que os alunos com deficiência visual se sintam menosprezados, subestimados e incapazes de aprender.

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Desse modo, todos devem ser tratados de igual forma, alunos deficientes visuais ou não, devem ser a todo tempo avaliados e sujeitos à reprovação de acordo com seu desempenho escolar, sem que haja privilégios. O professor é o responsável pelos primeiros passos rumo a essa conquista, por isso, está em suas mãos o início da socialização de pessoas que só buscam uma chance de mostrar que querem e podem aprender, ultrapassando todo e qualquer obstáculo que possa existir.

A chegada de André ao ensino médio, em 2015, marcou o início de um processo de transformação da minha prática pedagógica na escola Professor Nagib Coelho Matni, em Belém (pa). Cego de nascimento, o estudante passou a frequentar minhas aulas de física, o que me despertou para a questão: como garantir que uma pessoa com deficiência visual aprendesse a disciplina? Compartilhei a dúvida com toda a turma, provocando discussões sobre inclusão social, equidade e igualdade. Desse diálogo entre os adolescentes, tivemos a ideia de confeccionar materiais para que o colega pudesse compreender conceitos de óptica por meio do tato. Localizada no bairro do Coqueiro, periferia da capital paraense, a Nagib Coelho Matni oferece cerca de 1.500 vagas para alunos dos anos finais do ensino fundamental e do ensino médio. Sou professor de física na unidade. Durante


Fotos: reprodução Youtube Fundação Vivo

André conseguiu entender os fundamentos de ótica através da empatia dos colegas

o desenvolvimento do projeto, procurei fazer com que os estudantes fossem protagonistas de seu próprio processo de aprendizagem, incentivando-os a pesquisar e estudar por conta própria e a trabalhar em conjunto. Da concepção à confecção dos produtos educacionais, todo processo criativo foi conduzido por eles, com muita dedicação.

Como falar sobre luz, cores e formação de imagens para quem não enxerga? O primeiro passo diante desse desafio foi estudar a inclusão de pessoas com deficiência na educação. Para isso, toda a turma leu artigos e assistiu a reportagens. Para desafiá-los a buscar soluções, as aulas teóricas de óptica foram dadas com todos vendados. Sem contar com a visão, eles perceberam que a auseência de recursos sonoros e táteis tornava difícil a compreensão da matéria. Após esse contato com a disciplina a partir da perspectiva de uma pessoa que não vê, os alunos concluíram que eles poderiam criar mecanismos para que o colega aprendesse.

A criação dos materiais foi precedida por uma pesquisa sobre ensino de física e inclusão. Nessa etapa, o trabalho de Eder Pires de Camargo foi bastante explorado. Professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Camargo é referência no assunto e foi a primeira pessoa com deficiência visual a obter livre-docência no Brasil Site externo. A turma leu seus artigos e assistiu a vídeos onde o pesquisador faz uso de recursos não visuais. Outros especialistas foram consultados. Em visita à Universidade Federal do Pará (ufpa), a classe conversou com Jorge Adonai Coelho Brasil, professor cujo trabalho de conclusão de curso teve como tema “Propostas de ensino de física para alunos com deficiência visual”. Lá, eles também conheceram e receberam orientações de Simone da Graça de Castro Fraiha Site externo, outra grande referência na área. Foram os próprios adolescentes que encontraram o trabalho desses pesquisadores na internet.

Após a etapa de pesquisa, os estudantes começaram a produzir os objetos de aprendizagem, usando materiais reutiEm seguida, os estudantes dividiram- lizáveis ou de baixo custo. Além de fa-se em grupos. Cada conjunto ficou zer parte de um dos grupos, André foi responsável por pensar na construção responsável pelos testes de qualidade de de um objeto que permitisse a um cego todos os produtos. Com isso, esteve em compreender um conceito da óptica. Os contato com toda a turma, avaliando se temas trabalhados foram: refração, re- os recursos criados atendiam à proposta flexão e dispersão da luz e formação de de ensinar fenômenos ópticos sem a neimagens em espelhos. cessidade de recorrer à visão. junho 21

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SE iNSPiRE! Bons Exemplos Os objetos de aprendizagem de, respectivamente, refração e dispersão, formação de imagem em espelhos côncavos e composição da luz branca

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Formação de imagens em espelhos planos: sobre uma base quadrangular de madeira, os alunos fixaram duas bonecas idênticas, uma de frente para a outra e em lados opostos. No centro da estrutura, uma placa de acrílico foi fixada verticalmente. Linhas de crochê foram usadas para “ligar” as duas bonecas, saindo da cabeça de uma até o mesmo ponto na cabeça da outra, por exemplo, passando por pequenos furos na lâmina transparente. Nesse artefato, uma das bonecas representa o objeto real e a outra, a imagem virtual formada no espelho plano (o acrílico transparente). Os fios são os raios de luz. Refração, dispersão da luz e formação das cores: Sobre uma base, os estudantes montaram um prisma, usando placas translúcidas. Como cada cor tem seu próprio comprimento de onda e frequência, linhas de diferentes texturas foram usadas para serem as cores. O vermelho, por exemplo, possui o maior comprimento de onda e, por isso, foi representado por um cordão grosso. Já o violeta, com comprimento menor, foi retratado por um fio fino. Antes de passar pela primeira lâmina de acrílico, as diversas linhas foram unidas e encapadas. Esse “fio” formado pela união das cores retrata a luz branca. Ao passar pelo prisma, ocorre o fenômeno da dispersão e as cores saem separadas do outro lado da estrutura. Composição da luz branca: um disco de Newton foi confeccionado para mostrar como a luz branca é composta por todas as cores. O objeto consiste em uma base de madeira, uma haste vertical e, na ponta, um disco que gira em torno de um eixo fixo. A circunferência foi dividida em sete “fatias”, onde foram colados sete fios diferentes. Com o disco parado, André reconhecia pelo tato as várias texturas, ou seja, as diferentes cores. Com o objeto em movimento, ele perdia essa noção e tinha a impressão de sentir uma única superfície, tal como ocorre com a luz branca. Formação de imagens no espelho côncavo: a turma montou uma estrutura de canos de pvc. Um tubo envergado foi usado para representar um espelho côncavo e, para destacá-lo, ele foi revestido com uma fita azul. Os outros tubos serviram para sustentar os demais elementos da peça. Em um eixo central, foram fixadas duas velas: uma sendo o objeto real

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e a outra, sua imagem. Com linhas de crochê distintas, os estudantes representaram os raios de luz, evidenciando a formação de uma imagem invertida menor ou maior que o objeto real, dependendo da distância da vela com relação ao centro de curvatura do espelho.

Quando os alunos foram colocados diante do desafio de ensinar óptica para alguém que não enxerga, eles começaram a compreender o que é inclusão social e qual sua importância. André, que chegou ao ensino médio tímido, se envolveu mais com a turma e se tornou mais participativo nas aulas. A pedido dos próprios colegas e professores, ele tomou a decisão de aprender braille. Enquanto educador, procurei ser provocador e entusiasta. Mediei todo o processo, dividi os grupos, mostrei os possíveis caminhos para a pesquisa e fui responsável por organizar os encontros com os especialistas da área. A experiência foi edificante e eu aprendi muito. A escola Nagib Coelho Matni, depois do projeto, passou à comunidade um kit de ensino de óptica através do tato. Há intenção de dar continuidade ao trabalho, produzindo materiais educacionais para ensinar outros temas de física e de outras disciplinas a deficientes visuais. Alunos com deficiência visual devem ser educados como todos os demais, freqüentando uma escola regular e convivendo com os mais variados alunos para que aprendam juntos a conviver com a limitação um do outro, considerando que todos nós temos algum tipo de “deficiência”, ou seja, dificuldade. É realmente um desafio abrigar alunos com deficiência visual na escola regular, porém, nada é impossível quando se tem educadores dispostos a fazer este trabalho, deixando de lado as opiniões já formadas como, por exemplo, “não vai dar certo” ou “não vou conseguir”, ou ainda, “ele não vai conseguir”. Tudo dependerá do empenho de ambos. Professor e aluno sempre terão que estar dialogando para saber o que é melhor, e assim os dois lados estando de acordo conseguirão traçar pontos de partida a cada novo tema, atividade, avaliação, e assim construir uma boa relação de aprendizado mútuo.

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RACISMO É ASSUNTO DE GRUPOS DE DEBATE

Bintou Baysmore na frente da sua escola Achievement First Brooklyn High School, em Nova York


Estudante estadunidense se tornou referência ao usar espaços de discussão para relatos da juventude negra Por BRIAN SETO MCGRAPH Fotografia MAKEDA SANDFORD


Moletom de Baysmore, que cita a frase de Lao Tzu “Uma jornada de 20 começa mil milhas com um só passo”


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a noite de 7 de junho, o segundo domingo após o assassinato de George Floyd em Minneapolis , Bintou Baysmore estava entre centenas de manifestantes na praça do lado de fora da arena do Barclays Center em Brooklyn, ny. A jovem de 17 anos não planejava falar no comício. Mas quando um dos organizadores ofereceu o microfone, ela o aceitou. No meio de um dia de semana, cerca de um ano antes, ela disse à multidão, ela estava caminhando com uma amiga em Crown Heights, um bairro predominantemente negro no Brooklyn, quando uma van da polícia parou no meio-fio e uma policial branca ordenou que as meninas entrassem. Elas explicaram que haviam saído para almoçar, o que era permitido pela escola, mas a policial insistiu. A polícia levou as meninas de volta à escola, mas Baysmore ficou abalada com o incidente. Falando à se liga!, Baysmore relembra: “Eu ficava pensando: ‘E se for isso para mim?’” Foi um discurso improvisado, mas Baysmore estava longe de ser uma oradora novata. Ela é presidente da equipe de discurso e debate da Achievement First Brooklyn High School e é especialista em um evento chamado Oratório Original, no qual os alunos escrevem e fazem seus próprios discursos. Para a multidão do Barclays Center, a história de Baysmore era familiar , uma mensagem como reflexo deles mesmos, mas - até recentemente, pelo menos – o dela não era o tipo de discurso ouvido com frequência em competições. Agora, no entanto, Baysmore e seus companheiros estão na vanguarda de uma mudança dentro da atividade. É uma mudança nos rostos que aparecem no palco, bem como na visão de quais tópicos devem ser discutidos e em quais termos. A outrora previsível oratória do ensino médio está começando a refletir uma mudança mais ampla na maneira como os americanos falam sobre raça, gênero e distribuição de poder nos Estados Unidos - mesmo que nem todos queiram ouvir o que esses jovens palestrantes têm a dizer. Para o primeiro torneio da equipe neste ano letivo, que será realizado virtualmente em janeiro pela Emory University (os torneios de debate do ensino médio são normalmente hospedados por faculdades), Baysmore está se preparando para seu discurso mais ousado até agora. A adolescente planeja falar sobre como as mulheres negras costumam ficar de fora da conversa quando se trata de saúde mental. “Eu sou uma mulher afro-americana. Olhe para mim ”, diz ela em uma versão do discurso que está ensaiando. “Quando você me vê aqui... o que você pensa? Forte. Independente. Interesseira. Pobre. Louca?” Isso não é típico da oratória, onde até mesmo discursos sobre os tópicos mais polêmicos são minuciosamente suaves. “Muitos discursos que ouço são bons, mas não parecem reais”, diz Baysmore. “Se vou dizer algo, vou dizer de coração. Se eu sou a única mulher negra naquela sala, o que eu digo importa. ” Essa poderia ser a ideia unificadora para a equipe de discurso da Achievement First. A escola de segundo grau Crown Heights é 90% negra, e quase 80% de seus alunos se qualificam para o almoço grátis ou a preço reduzido, o que muitas vezes torna suas companheiras de equipe, em sua maioria mulheres, exceções entre os vencedores em suas categorias de discurso. Seus relatos em primeira pessoa têm um imediatismo incomum em discursos em encontros nacionais, onde concorrentes cunhados em acampamentos de debate de verão tendem a abordar seus tópicos com distanciamento analítico. junho 21

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“Há alguns anos, houve discursos vencedores em nacionais sobre como não devemos procrastinar, ou sobre gatos”, disse km DiColandrea, que foi debatedor na Stuyvesant High School de Nova York e treinou o time Achievement First Brooklyn de 2011 a 2019. “Isso está começando a mudar. Você tem crianças em debate relatando casos de racismo. Você tem crianças em discurso interpretativo lendo poesia sobre Black Lives Matter. Você tem crianças escrevendo oratórios sobre seus pais indocumentados. Nossos filhos não têm medo de falar a verdade sobre o que está acontecendo. ”

Muitos discursos que eu ouço são bons, mas não parecem reais”

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De uma forma ou de outra, o reconhecimento do país com o racismo sistêmico teria chegado ao mundo da fala e do debate. Em junho, o conselho de diretores da National Speech & Debate Association (nsda), que organiza competições nacionais desde 1931, emitiu um comunicado sobre os assassinatos de George Floyd, Breonna Taylor e Ahmaud Arbery. O conselho exortou sua comunidade a “modelar e promover a importância de ouvir as perspectivas marginalizadas pelo racismo”. É por isso que os alunos da Achievement First vêm lutando há anos. E eles tiveram algum sucesso. A equipe de discurso, que DiColandrea adicionou ao programa em 2014, teve seu avanço apenas quatro anos depois, em 2018, quando a então membro da equipe Aliyah Mayers ficou em primeiro lugar no torneio da Universidade de Columbia no evento Declamation - para o qual os alunos interpretam discursos publicados - com a apresentação de “Why Black Lives Matter”, de Alicia Garza . No ano seguinte, Raani Olanlege venceu no Oratório Original de Harvard, com um discurso sobre racismo na educação. E na primavera de 2019, Sasha Bogan foi semifinalista no nsda Nationals com um discurso original sobre como viver com paralisia cerebral. Não foi fácil para nenhum deles. As placas Black Lives Matter são agora um acessório de gramados suburbanos, mas em 2018, Mayers foi advertido por companheiros de equipe para não pronunciar as palavras nas competições. “ Why Black Lives Matter ”, uma repreensão à supremacia branca e sua aplicação por meio da violência policial , parecia dizer tudo o que ela estava sentindo na época, mas às vezes, bem no meio do discurso, ela desejou ter recebido conselhos de seus companheiros de equipe. “Eu vi os olhos revirados, as pessoas se virando e eu só queria parar e sentar”, lembra ela. “Eu pensei que talvez eu estivesse fazendo o discurso errado. Talvez tenha sido minha culpa. ” Olanlege explica de outra maneira. “Em muitas rodadas, eu sou a única mulher negra lá, a única pessoa de cor lá, ponto final”, diz ela. Não há uma contagem oficial de alunos e treinadores negros no mundo do debate, mas “o que sabemos é que não parece o suficiente”, diz J. Scott Wunn, diretor executivo da nsda. Mesmo antes de sua declaração sobre o racismo, a nsda já havia feito esforços para promover a diversidade. Nos últimos seis anos, ela realizou uma “convenção política de treinadores” na competição nacional para encorajar discussões sobre raça e preconceito implícito. Avanços também foram feitos nos últimos anos para aumentar a diversidade de juízes na competição nacional, diz Wunn, e a nsda está trabalhando com organiza-


Em seu próximo discurso, Baysmore quer abordar o tema saúde mental

ções como a Associação Nacional de Ligas de Debate Urbano para promover a educação para o debate em escolas públicas urbanas, ao mesmo tempo introduzindo novos formatos que são mais acessíveis para treinadores e alunos não experientes. Mas, no que diz respeito às palavras faladas na competição, muito do que mudou vem dos próprios jovens. Wunn diz que notou pela primeira vez uma mudança em direção a discursos “pesados” no campeonato nacional de 2015 em Dallas, onde Kenon Brinkley, da Andover High School, em Kansas, ficou em primeiro lugar no Oratório Original com um discurso sobre racismo e vergonha da vítima. Então, em fevereiro de 2018, os protestos estudantis que se seguiram aos tiroteios na Marjory Stoneman Douglas High School em Parkland, Flórida, mostrou ao nsda como o cenário político estava mudando. Crianças que não tinham idade suficiente para votar estavam se dirigindo ao público e aos políticos diretamente pela mídia. “As lições que aprendemos nos últimos anos, sobre o poder de sua voz, não importa a idade, isso simplesmente nos deu um tapa na cabeça”, diz Wunn. “É claro que é um requisito central da organização promover isso.” Acertar é uma questão existencial para o nsda. Afinal, o discurso e o debate têm como objetivo ensinar aos jovens como abordar temas de importância pública com razão e civilidade. Mas de que adianta o debate público se exclui uma boa parte do público? A rodada final no Oratório Original é um grande evento nacional. Todos que comparecem às finais, cerca de 2.000 pessoas em um ano típico, acabam ouvindo apresentações de bravura aprimoradas ao longo de meses em encontros regionais. junho 21

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Nos últimos anos, os vencedores do Oratório Original têm sido estudantes negros de escolas preparatórias ou escolas secundárias suburbanas. De certa forma, os discursos são tão diferentes uns dos outros quanto seus oradores. Um começa com música e dança no estilo de Bollywood; outro ilustra um ponto com referência à rapper Cardi B. Mas eles tendem a se basear em temas semelhantes em seus argumentos, focando em como o discurso político americano, especialmente quando se trata de raça e identidade, é degradado pela simplificação excessiva - narrativas falsas, equivalências falsas , pensamento redutivo. Um componente-chave desses discursos é o testemunho em primeira mão da dor de ser o alvo do racismo. Em 2017, jj Kapur, que é sikh, lembrou-se de ter confundido uma imagem de Osama Bin Laden com turbante, sobreposta às torres gêmeas em queda, com seu pai. No ano seguinte, Halima Badri evocou a dor que sentiu quando um colega de classe comentando sobre seu hijab disse: “Ele realmente traz à tona o seu terrorista interior.” Em 2019, Haris Hosseini, que é muçulmano, descreveu ser chamado de “um dos bons” e se perguntou: “Os 50 muçulmanos massacrados em uma mesquita da Nova Zelândia três meses atrás foram bons ou maus?” Esses discursos são tecnicamente brilhantes e contrapõem a má-fé do debate político atual com lógica e humanidade. Eles também têm algo mais em comum: cada um oferece soluções não fáceis, mas soluções que confiam no público para enfrentar seus desafios “juntos”, como Kapur diz no final de seu trabalho. É fácil ver por que esses discursos vencem. Os discursos do Achievement First são diferentes. Veja o discurso da rodada semifinal de Sasha Bogan no campeonato na-

Muito do que mudou nos debates vem dos próprios jovens

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cional. Ela tenta perturbar seu público ao interrogar a escolha de não ceder um assento no metrô a uma pessoa com deficiência. Olanlege, que é nigeriana e sudanesa, usou uma estratégia semelhante em seu discurso vencedor em Harvard, desafiando diretamente seu público sobre as perguntas desinformadas que recebe sobre a África. Esses oratórios traçam limites claros entre o palestrante e o público, e suas soluções nem sempre convidam a um acordo fácil. Quando Mayers se concentra na violência policial contra os negros, e quando Olanlege chama professores brancos para evitar discussões sobre raça, cada um está dizendo ao seu público, em sua maioria branco: “Você é o problema”.

O estilo de confronto tem seus riscos. Para alguns juízes, o confronto é mutuamente exclusivo com a argumentação fundamentada que o evento deve recompensar. Em 2017, Esther Reyes, então no último ano da Achievement First, chegou à rodada semifinal do torneio da Emory University com um discurso chamado “The Other Race”, que descreve os efeitos do viés implícito. Reyes disse em seu discurso que as suposições racistas sobre os mexicanos levaram à deportação de seu pai. Ian Turnipseed, um treinador de falar em público em Gulf Breeze, Flórida, foi um juiz naquela rodada. Ele diz que declarações como a de Reyes podem soar como generalizações exageradas ou, pior, como slogans - presumindo que o público concorda com o palestrante e não fornecendo evidências convincentes. “Ela não tinha o ônus da prova que precisava apresentar”, diz Turnipseed. “Acho isso descuidado.” Não apenas desleixado, mas possivelmente ofensivo, acrescenta Turnipseed. Você nunca conhece a política das pessoas na sala. Muitos concordariam que o que aconteceu com o pai de Reyes não é uma coisa boa, diz Turnipseed, mas assumir a atitude de que “qualquer um que discordar de mim é racista, está errado, é estúpido, é fanático”, diz ele, “não é mantendo-se no padrão do tópico que você está criando. ” Reyes, que agora é estudante em Yale, diz que não está surpresa com esses comentários. “A oratória original deve ser sobre um tópico com o qual o palestrante se preocupa profundamente, e eu me lembro de ser um dos poucos que deu um tópico muito pessoal. Eu sabia que haveria juízes que não gostariam do que eu tinha a dizer. ” O discurso que venceu Reyes para avançar para a rodada final foi intitulado “Vítima competitiva”. A palestrante, Emma Warnecke, estava no último ano do Saint Mary’s Hall, uma escola preparatória de faculdade particular em San Antonio, Texas. Tomando uma atitude auto-reflexiva, ela argumentou que a oratória do ensino médio havia se tornado uma corrida para competir com histórias pessoais cada vez mais angustiantes. “É uma espécie de regra na oratória, que você tem que compartilhar sua memória mais difícil, o momento mais difícil que você passou, seja racismo ou agressão sexual, ou qualquer outro tipo de sofrimento”, Warnecke disse na primavera de 2019. Warnecke diz que, desde então, repensou parte de sua posição. “É incrivelmente frustrante chegar a uma rodada final de um torneio e ver cinco juízes brancos olhando para você en junho 21

“Tudo o que você escondeu dentro de você agora está exposto, e você tem que enfrentar isso.

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quanto você abre seu coração sobre os problemas que afetam sua comunidade em particular”, diz ela. Esse discurso foi há muito tempo, acrescenta ela. “Aos 17 anos, eu nunca poderia imaginar o que meus colegas estudantes estavam passando.” Ainda assim, Warnecke diz que mantém a ideia de que os discursos se tornaram muito dependentes de traumas pessoais, com potencial dano para falantes adolescentes. A visão não é incomum em círculos de fala e debate, onde existe a preocupação de que os treinadores possam pressionar os alunos a expor vulnerabilidades para impressionar os juízes. “Ela tinha razão”, diz Turnipseed, relembrando o discurso de Warnecke. “Usamos a dor de outras pessoas para vencer.”

Mas para os alunos da Achievement First, vencer não é o principal motivo para se manifestar. DiColandrea afirma que, embora seja difícil contar as histórias, o custo do silêncio é ainda maior. “A única coisa que aprendi é que não ter espaço para falar sobre coisas traumáticas só piora as coisas”, diz o treinador. Depois que as Torres Gêmeas caíram a apenas alguns quarteirões de sua escola, ninguém parecia querer falar sobre isso. Foi o discurso e o debate que lhe deram uma saída. “Nossos alunos têm histórias para contar”, diz ele. “Não se trata de eles encontrarem sua voz. Trata-se de amplificar sua voz. ” Bogan estava cansada de ser ignorada. “As pessoas não me levam a sério ou não querem falar comigo”, disse ela no ano passado, sobre sua experiência com paralisia cerebral. A fala permitiu que ela trabalhasse com essa frustração. “É como esse fogo em mim, que venho segurando há tanto tempo. Eu posso finalmente dizer isso, e eles não têm escolha a não ser ouvir. ” Quanto a Baysmore, ela diz que seu protesto público nunca teria acontecido se não fosse pelo discurso e debate. “Eu costumava ter medo de falar abertamente”, diz ela. “Agora me fortalece. Não fico ali pensando: ‘E se eles começarem a me julgar porque sou negra?’ Estou pensando: ‘Eles têm sorte de estar na sala comigo’ ”. Por enquanto, ela está focada em preparar a si mesma e sua equipe para o torneio em Emory. Em uma recente sessão de prática do Zoom, ela fez comentários sobre a redação de seus discursos, as entonações, os gestos. Ela sabe o que significa para seus colegas de equipe falarem suas próprias palavras e como será a sensação de finalmente ser ouvida. “Isso tira um pouco a dor”, diz ela. “Tudo o que você escondeu dentro de você agora está exposto, e você tem que enfrentar isso. E depois de enfrentar isso, você pode superá-lo. ”

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O principal objetivo dos jovens é fazer com que 27 as pessoas ouçam suas narrativas


QUANDO A PRÁTICA DIALOGA COM A REALIDADE

Rutemara inspirou alunos a aolhar para as contribuições femininas na história local


Conheça os três projetos de Ensino Médio vencedores do Prêmio Educador Nota 10 Por BEATRIZ VICHESSI Fotografia BRUNA JUSTA


Mais do que treinar para a redação, alunos de Patrícia aprenderam a argumentar

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m três pontos do Brasil – Boa Vista (rr), Barra Mansa (rj) e Nova Cruz (rn) –, um trio de professores do 3º ano do Ensino Médio planejou trabalhos com propostas provocativas, considerando a realidade das turmas, ao mesmo tempo que elencaram conteúdos importantes e deram espaço para a moçada agir, questionar, trocar ideias e ter voz ativa. Ganhadores do Prêmio Educador Nota 10, Rutemara Florêncio, Rodrigo Seixas e Patrícia Barreto concretizaram algo muito falado hoje em dia – colocar os jovens no papel de protagonistas – sem descuidar do que queriam que as turmas aprendessem. Rutemara explorou as contribuições das mulheres para a história de Roraima. No Rio de Janeiro, Rodrigo estudou o tempo presente por meio da filosofia contemporânea. Já no Rio Grande do Norte, Patrícia fortaleceu a argumentação e o olhar crítico dos seus alunos.

Ao identificar que os alunos do 3º ano do Instituto Federal do Rio Grande do Norte, em Nova Cruz, discutiam de maneira genérica e superficial sobre as questões do local onde vivem e não tinham um vínculo com ele, a professora Patrícia Barreto usou esse cenário em um trabalho com o gênero artigo de opinião, levando os alunos a aprender a argumentar de forma sólida. Mas, ao contrário do que geralmente acontece em sala de aula, a docente não listou temas polêmicos e propôs que os alunos escrevessem exaustivamente sobre eles, até alcançar um bom resultado. Patrícia apostou justamente em fazer os alunos pensar sobre o entorno e ativar a voz de morador de cada um deles (além de Nova Cruz, muitos vivem em municípios vizinhos ao da escola, como Serrinha, Passa e Fica e Brejinhos). A professora desafiou os alunos a analisar fotos que representavam denúncias de problemáticas sociais, identificando oral e coletivamente a temática do texto. Tanto o posicionamento a respeito dos problemas sociais quanto as justificativas para pensar daquela forma eram bastante frágeis, observou a professora, que desafiou cada aluno a fotografar um problema do seu município e, depois, a ler e estudar artigos de opinião de estudantes extraídos da Olimpíada de Língua Portuguesa de 2016. Assim, os jovens puderam observar aspectos composicionais do gênero e, com a ajuda da professora, construir uma definição do que significa, afinal, saber argumentar. Patrícia também criou o jogo Argument(ação), para que os jovens aplicassem os conhecimentos adquiridos sobre tipos de argumentos e sobre os problemas dos municípios fotografados anteriormente. Eles foram convidados a preparar perguntas para ser respondidas por meio de pesquisa e exposição oral. Só depois disso tudo é que Patrícia encaminhou a produção da primeira versão do texto seguida da revisão e da autoavaliação. “O projeto de Patrícia foge do padrão de explicar primeiro e deixar os alunos produzirem de - pois”, analisa Claudio Bazzoni, coordenador do Ensino Médio da Educação de Jovens e Adultos (eja) do Colégio Santa Cruz, em São Paulo, e selecionador do Prêmio Educador Nota 10. Por fim, a turma preparou e gravou o podcast Minha Cidade, Meu Lugar, para divulgar as ideias dos estudantes a respeito dos lugares onde vivem. Ao deslocar o olhar dos alunos para as cidades que conhecem, Patrícia mobiliza a turma de forma genuína e aumenta a chance de construção de autoria por meio da proposta provocadora. junho 21

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“A tarefa transcende o lugar da velha redação escolar. Argumentar é a essência do exercício da cidadania e os jovens precisam aprender a fazer isso”, explica Maria José Nóbrega, professora da pós-graduação e do curso de formação de escritores do Instituto Vera Cruz. Para fortalecer o texto argumentativo dos alunos, Patrícia partiu de problemas locais. Mais do que abordar problemas distantes ou abstratos, o projeto fez os alunos pensarem sobre a realidade local e opinar sobre ela. O projeto mostrou a importância da pesquisa e da informação para sustentar argumentos mais consistentes. O projeto culminou em um podcast, trabalhando, assim, com a oralidade e a escrita argumentativa a favor das práticas sociais.

O uso de frases feitas em discussões e a superficialidade da turma ao argumentar sobre a sociedade atual inquietavam Rodrigo Seixas, professor de Sociologia do Ciep 493 – Profª Antonieta Salinas de Castro, em Barra Mansa (rj). O professor do 3º ano do Ensino Médio incomodava-se também com a ideia propagada pelos estudantes de que, antigamente, tudo era melhor. Então, resolveu provocar os estudantes de forma positiva: planejou um projeto sobre as ideias do sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017), famoso pelo conceito de modernidade líquida. “Aproximei a turma da Sociologia porque os jovens se enxergaram no processo reflexivo de um pensador da época deles”, comemora. Embora não faça parte do currículo da Educação Básica, o pensador é

Rodrigo, ao lado de Gleiciane, guiou alunos da escola técnica pelas ideias de Bauman

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muito citado na academia, e suas ideias podem contribuir com o pensar sobre o mundo atual. Mariângela Bueno, historiadora e selecionadora do Prêmio Educador Nota 10, explica que o trabalho consegue mostrar que a Sociologia é um componente curricular vivo – sem negar os autores clássicos ou difamar os atuais. Além disso, Bauman trata da superficialidade das relações e do individualismo exacerbado – contraproducente à vida ética, republicana, democrática, social. “Se sou individualista, não consigo colocar em primeira ordem o coletivo. Dou o mínimo possível de mim para o outro e apresento algo superficial – tal como nas redes sociais, quando reproduzimos a ideia de estar sempre bem”, conta Paulo Ribeiro, coordenador do núcleo de pesquisa da Fesp. O desenvolvimento de um projeto como o de Rodrigo, em coautoria com a professora de Língua Portuguesa Gleiciane Rocha, também chama atenção pelo contexto: acontece em uma escola técnica – onde tradicionalmente é desafiador conquistar a atenção dos estudantes para a Filosofia e a Sociologia. “Ele revela preocupação com a forma com que os alunos se posicionam e em que medida estão mergulhados numa alienação permanente”, comenta Paulo. Rodrigo mostrou à turma um episódio da série Black Mirror e propôs uma conversa sobre os novos modelos de relacionamento, baseados na objetificação do outro. Depois, a turma estudou e se aprofundou nas principais ideias de Bauman. Por fim, em grupos, os estudantes organizaram apresentações usando multilinguagens sobre microtemas e interagiram com a comunidade escolar. “Eles se valeram de estratégias interativas e elaboraram um mapa mental da educação, uma roleta de perguntas da fé, um quiz para medir o nível de egoísmo, entre outros trabalhos”, conta o professor. “Participar da mostra permitiu que os alunos aprendessem com o colega e ensinassem, interagindo. Rodrigo acerta ao sair do centro, sem deixar de apoiar o grupo”, conclui Mariângela. Projeto traz autor contemporâneo e instiga alunos a refletir sobre a modernidade. O projeto envolveu pesquisa, reflexão e culminou em uma mostra. Com isso, o professor saiu do papel central e convidou os alunos a ensinar. Ao escolher Zygmunt Bauman, a turma teve oportunidade de refletir sobre o que vivencia à luz de um pensador contemporâneo. Realizado em uma escola técnica, o trabalho aproximou a turma da Sociologia, apresentada como um campo em transformação. O projeto de Rodrigo convida os alunos a produzir apresentações híbridas sobre os temas estudados, valendo-se de multilinguagens para expor as ideias deles.

“Ele se preocupou com a forma com que os alunos se posicionam e em que medida estão mergulhados numa alienação permanente

Se alguém digitar no Google a frase “história da mulher em Roraima” e apertar o enter, provavelmente encontrará nas primeiras páginas da busca quase exclusivamente vídeos e notícias sobre casos de violência contra a mulher. Isso se deve aos índices epidêmicos de violência doméstica no estado, que é um dos mais letais para as meninas e mulheres no Brasil. Foi nesse contexto desafiador que a professora de História Rutemara Florêncio instigou, por meio da leitura de textos acadêmicos e do trabalho de pesquisa de campo, seus alunos do 3º ano da EE Presidente Tancredo Neves a enxergar as mulheres como sujeitos históricos, protagonistas de suas vidas e também da junho 21

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história local – e não apenas como vítimas passivas da violência. “Violência e mulheres não são temas novos na sala de aula. Mas Rutemara aborda os dois de modo sensível, sem ser panfletária”, elogia Mariângela Bueno, historiadora, pedagoga e selecionadora do Prêmio Educador Nota 10. Para desvelar o cotidiano, os estudantes leram História das Mulheres no Brasil, organizado por Mary Del Priore (Ed. Contexto). Outra novidade foi entrevistar 41 mulheres da cidade e registrar a história de cada uma delas em vídeo. “Usamos a história oral para trabalhar o tempo presente, algo muito valioso, porque a história de Roraima é recente e pouco se fala sobre as mulheres na sociedade local”, explica Rutemara. As entrevistas perguntaram sobre a infância, a vida escolar e profissional de juízas, educadoras e militares, bem como os feitos e obstáculos nas trajetórias delas. “A turma entrou em contato com a memória, conceito- -chave em História”, explica a docente, que acompanhou todas as entrevistas. “As atividades ajudam a desnaturalizar a ideia de que somente homens protagonizam a sociedade e a política”, explica Marta Bergamin, professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fesp-sp). Rutemara instigou os alunos a desassociar a figura feminina do papel de vítima e encará-la como relevante para a história local. O enfoque no papel das mulheres nos acontecimentos de Roraima dá visibilidade para os desafios enfrentados por elas na sociedade e reforça a ideia de equidade sem ser panfletária. O projeto convida os alunos a ampliar o conceito de sujeito histórico e desnaturaliza a ideia de que apenas os homens são protagonistas da história, da sociedade, da política etc. A professora confiou na capacidade dos estudantes de realizar 41 entrevistas biográficas com mulheres de Roraima. O projeto é também contraponto aos materiais disponíveis na internet, em geral relacionado só à violência. Rutemara não se limita ao livro didático e apresenta aos alunos textos mais complexos para conhecer outros aspectos da História do Brasil. Ela acompanhou a leitura de perto, para ajudar os jovens a interpretar o conteúdo mais acadêmico.

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. Aluna do professor Rodrigo Seixas exibe trabalho de Sociologia

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“ALGUMAS COISAS NÃO SÃO PARA SE DAR CONTA MESMO” A psicanalista Vera Iaconelli alerta que os professores estão em risco de sofrer com uma série de males Por SORAIA YOSHIDA Fotografia BRUNO SANTOS

Psicanalista, mestre e doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo (usp), Vera Iaconelli tem dado muitas entrevistas à imprensa falando sobre a importância de não encararmos o ano de 2020 como perdido por conta das mudanças que todos estamos tendo de encarar com o isolamento social provocado pela covid-19. Ela é diretora do Instituto Gerar, que oferece tratamento e desenvolve pesquisas na área de bem-estar mental. Autora de “O Mal-estar na Maternidade” e “Criar Filhos no Século xxi”, ela defende também que não há indícios e que é pouquíssimo provável que as aulas a distância substituam as presenciais - assunto que tem tirado o sono de muitos educadores. Diz ainda que ficou bem claro que o virtual não é desejável para ninguém, ainda que a Educação a Distância (ead) provavelmente apareça mais e ganhe mais formas. A presença dos professores , de acordo com ela, nunca foi tão valorizada quanto está sendo agora. Em relação ao estresse sentido pelos professores, cobrados para dar conta do ensino remoto, Vera concorda que o ensino e a aprendizagem dos conteúdos curriculares ficaram comprometidos e que é necessário pensar em formas de recuperá-los lá adiante e usar como meta o possível, não o idealizado. Mesmo antes de a pandemia se instalar no nosso cotidiano, os docentes já eram as pessoas mais propensas à Síndrome de Burnout, de acordo com a Organização Mundial do Trabalho (oit).

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Estamos vivendo um período excepcional com a pandemia, que afeta não apenas o trabalho, como a vida pessoal. Com tanta coisa em jogo, dá para afirmar que vamos voltar a ser felizes? É um erro muito grave supor que existe a felicidade como um platô ao qual você chega e é feliz. A felicidade é episódica, ocasional. Acontecem momentos de felicidade e vivemos momentos de infelicidade também. Se lembrarmos da história da humanidade – e é um bom momento para retomar essas questões em sala de aula –, já passamos por guerras mundiais e grandes tragédias, chegamos até aqui e voltamos a ser felizes muitas vezes. Depois da gripe espanhola, que matou muito mais gente do que o Covid-19 e gerou uma tremenda comoção, tivemos o maior Carnaval da história. Vamos conseguir nos reorganizar. O que mais se ouve dizer agora é “nada será como antes”. Isso é completamente negativo ou esse sentimento pode se transformar em algo positivo? Considero um tremendo exagero imaginar que nada será como antes. Talvez isso seja dito como uma esperança paraque modifiquemos uma série de coisas que não conseguimos fazer no dia a dia. Acredito que teremos novos desafios, novas conquistas com a virtualidade, mas logo, retomaremos aos poucos nossa vida, que vai se reorganizar de forma um pouco diferente, não totalmente. É um pouco fantasioso acreditar que tudo mudará depois da pandemia.


Por causa do isolamento social, os professores estão tendo aprender novas metodologias e lecionar online. Isso pode ter um efeito positivo, ser um desafio para evoluir na maneira de lecionar. Mas o que fazer com o medo e a frustração que aparecem junto com essas novidades? Os desafios enfrentados pelos educadores, principalmente da rede pública, têm sido gigantescos. Eles estão sobrecarregados, fazendo uma tarefa para a qual não se prontificaram num primeiro momento e com resultados muito questionáveis porque o virtual não é para todos os alunos, nem para todos os professores. O esforço deles tem de ser valorizado - desde que não se espere que o resultado seja comparável ao que temos na sala de aula presencial. Temos de baixar um pouco as expectativas, respeitar as limitações das crianças e de quem ensina e fazer o que é possível. Fazer aquilo que cada um reconhece como algo que pode ser feito sem adoecer a si próprio e aos demais. Se consigo me comprometer a dar dez aulas por dia e assim não adoeço e não me prejudico, não fico deprimida, esse então é o meu possível.

Quais são os maiores riscos para a saúde mental de um educador que tem de cuidar das próprias angústias, das angústias da sua família e, muitas vezes, das angústias dos estudantes? Ele precisa impor limites para se preservar? Os professores estão, sim, em risco de sofrer com depressão, angústia, alcoolismo e uma série de outros males na tentativa de dar conta do impossível: fazer com que a escola seja praticamente normal no período totalmente anormal que vivemos hoje. A pressão em geral é muito grande, então é preciso haver uma conversa entre educadores, pais, alunos e instituições para redução de danos psíquicos de todos os envolvidos na Educação. Os educadores precisam ter como e com quem conversar sobre o que estão sentindo e passando e usar como objetivo o possível, não o idealizado. Se você idealiza e fantasia, você desiste. Então, vamos ver o que é possível de se fazer durante esse período. Estamos vivendo um tempo atípico. Essa não vai ser a forma de se fazer Educação nos próximos anos, é só por um período: 2020 e 2021 serão anos que terão de ser recuperados ao longo dos próximos anos.

A psicanalista e diretora do Instituto Gerar, Vera Iaconelli

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Segundo Vera, é Entrevista importante abrir um espaço para que os estudantes falem de si mesmos

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serão virtuais com vantagens, outros não. No mais, não há indícios e é pouquíssimo provável que a Educação a distância substitua a modalidade presencial. Ela vai substituir pontualmente, mas nunca em absoluto. Para as crianças pequenas e para as que estão em fase de desenvolvimento até a adolescência, é imprescindível o contato presencial entre pares e com o professor. O fato de estarmos fazendo esse contato virtualmente dia e noite prova isso. Até temos a competência para o virtual, mas ficou bem claro que não é desejável para ninguém. É claro que a Educação nesses moldes teve um upgrade, vai aparecer mais e ganhar mais formas. Mas nunca irá substituir o modelo presencial pelo próprio aspecto do desenvolvimento subjetivo psíquico Muitas pessoas, inclusive educadores, humano, que contempla questões como têm dito que “nunca trabalharam tanto afetos, emoções, ideias sobre si, a aucomo agora, em casa”. Antes da pande- toimagem, as ideias sobre os outros. mia, as estatísticas já mostravam que muitos se afastavam do trabalho com A ansiedade de não dar conta das coisas de síndrome de Burnout e com depres- é algo de que muitos educadores têm se são. Estamos diante de um novo cenário queixado nas conversas com a se liga! de esgotamento profissional? e nas redes sociais. O que tem a dizer O trabalho em casa responde a uma fan- para ajudá-los? tasia neoliberal de produtividade, que Vamos pensar no que é exequível. Esses a gente sabe que é um risco para todas profissionais estão em casa com seus as profissões. Não tem hora para come- próprios filhos, que também têm aulas, çar, não tem hora para acabar, não tem enfrentando um estresse tremendo, têm hora do almoço, não tem fim de semana, que cuidar do serviço doméstico e das não tem feriado... É aquele pensamento, demandas profissionais. E tudo isso às “já que você está em casa mesmo...”. É vezes não tem hora para acabar, nunca importante, então respeitar ao máximo toca o sinal na casa de quem está dando possível os horários de trabalho porque aulas a distância. Não temos de dar conta o que a gente não cortar agora, vamos ter tudo porque algumas coisas não são para de cortar quando adoecermos. Tudo o se dar conta mesmo. A gente tem que paque não podemos parar de jeito nenhum, rar e pensar no que é possível de se fazer vamos parar ao adoecer. e no que não dá, e negociar com a escola, com os pais, com a criança e com a nossa A profissão docente é marcada pelo con- própria família. tato cara a cara diário. Isso não está ocorrendo e existe a probabilidade de que Como a ausência de abraços e de contademore para voltar. Alguns docentes te- to físico, coisas rotineiras no espaço esmem o esvaziamento da função, dizem colar impacta educadores e estudantes? se sentir despersonalizados, deslocados A falta de contato físico impacta todos do mundo já que não podem fazer o nós. Principalmente as crianças menores, que sabem fazer. Como lidar com isso? que têm muita dificuldade de aproveitar A presença dos educadores nunca foi tão a Educação totalmente virtual porque a valorizada como agora e cabe a nós resis- questão corporal é muito presente dutir a tudo o que for contrário. Eles têm de rante essa fase. Mas vamos sair disso exigir a valorização de seu trabalho como logo. Não podemos imaginar que serão sempre precisaram exigir, e a sociedade danos irreparáveis ou processos que lecomo um todo tem de apoiá-los. Nem os varão uma vida inteira. É um período – e pais querem aulas virtuais para sempre, a gente tem competência para superar muito menos as crianças. Alguns cursos períodos de crise. Como o professor deve lidar com estudantes que desabafam por não ter com quem falar sobre seus problemas? Qual a abordagem usar com eles e com os familiares? É muito importante abrir espaço para o estudante falar dele mesmo e do que está sentindo. Mas o educador não têm de dar conta de funcionar como um consultório psicológico nem de ocupar o espaço que é dos pais e de outros agentes sociais que fazem parte da vida de uma criança, de um adolescente. Um desabafo pode ser acolhido à medida em que o professor possa encaminhar o aluno para quem for responsável pelas questões que ele revela e também à medida que o profissional possa desabafar com alguém.

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SE iNFORME! Entrevista A resiliência talvez seja a característica mais exigida agora, durante o isolamento. É algo que se pode aprender? Como ensinar uma criança a ser resiliente? Os professores podem aproveitar esse momento para ensinar a elas lidar com frustração, espera, indeterminação e com seus próprios limites ao mesmo tempo que ensinam o conteúdo escolar, que deve ser passado na medida do possível, porque, de novo, repito, esse não é um ano normal. Os educadores têm que ajudar os alunos, gradualmente, a estabelecer a competência da resiliência, a lidar com o sofrimento e com privações sem ter de fazer coisas. Esse é um momento de reflexão. A sensação de 2020 ser um ano letivo perdido e a ansiedade gerada pelo desejo de volta às aulas também devem mexer com professores e com os estudantes que já estão bem fragilizados com o isolamento social e com as aulas remotas. Como o conduzir o retorno da melhor forma? Não diria “ano perdido” porque essa é uma fase em que muita coisa se apresentou e quando aprendemos muita coisa.

Ilustração de Geoff McFetridge

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Aliás, ainda podemos aprender bastante. O ensino e a aprendizagem dos conteúdos curriculares ficaram comprometidos – não podemos negar isso – e temos de pensar em formas de recuperá-los lá na frente. Mas não podemos deixar esse ano passar como algo irrefletido. Temos muita lição para tirar desse momento e podemos incluir as crianças nessa reflexão. A pandemia nos obrigou a exercitar uma série de competências sociais e reflexões sobre cidadania e sociedade que não podem ser desperdiçadas. Pais, educadores, alunos… As pessoas só querem que tudo volte ao normal. Mas esse normal de antes acabou, não é mesmo? A gente não volta para lugar nenhum. Temos de ir rumo a coisas melhores e coisas piores. As mudanças estão postas, temoa que aprender a lidar com isso. Fazemos parte de uma sociedade que preza o novo e está sempre procurando por novidades. Se não fosse a pandemia, seria outra coisa que nos confrontaria com o novo. Então, não temos para onde voltar. É para frente que se vai – em direção a uma nova realidade.


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VOCÊ SABE O QUE É CAPACITISMO? Confira dicas para não cair nessa armadilha ao lidar com seu aluno público-alvo da educação especial Por SILVIA FERRARESI

Paralisia Cerebral (PC): a deficiência mais comum na infância, é caracterizada por alterações neurológicas permanentes que afetam o desenvolvimento motor e cognitivo, envolvendo o movimento e a postura do corpo.

Uma mãe – a publicitária e escritora Laura Costa Patrón, de 31 anos – realizou o sonho de seu filho de 7 anos, João Vicente, que tem paralisia cerebral e desejava andar de skate, utilizando uma adaptação no brinquedo. A alegria do garoto foi registrada por ela em um vídeo que fez bastante sucesso nas redes sociais. Em entrevista ao programa Encontro, da Rede Globo, Lau contou que achou interessante que tantas pessoas tenham se interessado e compartilhado o momento. Mas, por outro lado, disse que se entristeceu, porque o fato do vídeo ter “viralizado” mostrava que ver uma criança com deficiência brincando não era uma coisa comum para a maioria das pessoas. As palavras da mãe de João Vicente refletem o que enxergo na educação inclusiva na atualidade: o aluno com deficiência até está dentro da escola, mas nem sempre se sente pertencente àquele lugar. Em geral, os brinquedos do parquinho não são adequados, as atividades da educação física são planejadas para estudantes com “desenvolvimento típico” e o intervalo não é um momento de interação e lazer entre todos. Tanto que meu compromisso com a inclusão escolar começou observando uma criança com deficiência no recreio – sem brincar, sem interagir e sem pertencer.

Durante a entrevista, Laura falou sobre o conceito de capacitismo. Você sabe o que é isso?

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Capacitismo é a discriminação contra as pessoas com deficiência. São atitudes preconceituosas que classificam as pessoas em função da adequação de seus corpos a um padrão estético e/ou de capacidade funcional. E o que isso quer dizer? Quando olho para uma criança com deficiência e não pergunto para ela qual brincadeira ela prefere ou quando defino o que vai no prato dela sem antes questionar se, de fato, ela quer aquele alimento, eu estou sendo capacitista. Ou seja, estou presumindo o que ela pode ou não pode fazer, o que ela gosta ou não gosta, segundo meu julgamento sobre o corpo dela, sem consultá-la. O capacitismo acontece quando se presume que a pessoa com deficiência não tem nenhuma habilidade ou potencial. Quando converso com os professores, percebo que, apesar da vontade de fazer o melhor pelo aluno, poucos sabem descrever as habilidades de seus estudantes. O que mostra que o lema “Nada sobre nós sem nós” – que é o mote do movimento político das pessoas com deficiência e que ganhou mais força e visibilidade no Brasil em 2007 – ainda é utopia na maioria das escolas. Eduardo Galeano diz que a utopia serve para continuar caminhando. Precisamos seguir em frente para romper com o capacitismo que impede o acesso da criança à aprendizagem, à brincadeira, aos parquinhos, à participação em noites do pijama e outros tantos pequenos prazeres comuns aos pequenos.


Fotos: arquivo pessoal

No vídeo, João aparece usando uma adaptação criada pelo skatista profissional Ricardo Porva

Esse recurso é um dos dispositivos utilizados no SkateAnima, projeto idealizado pelo fisioterapeuta Stevan Pinto, em Porto Alegre

estudantes gostam de se apresentar, mas participam para cumprir o “protocolo” da escola. A coreografia, a música e o tema são escolhidos pelos educadores, com pouca ou nenhuma participação das crianças. Assisti a diversas apresentações onde os alunos choravam, se jogavam no chão e se mostravam desconfortáveis com a exposição. Nessas horas, me perguntava: será que alguém perguntou a eles se gostariam de participar? Não existe um único jeito para incluir com qualidade. O que existem são possibilidades e só podemos conhecê-las se nossa escuta estiver ativa e sensível para nosso grupo de alunos e para cada estudante, individualmente. Você topa encarar o desafio de ouvir seu aluno e considerar os desejos dele?

Foto: Giselle Sauer

Seguem algumas dicas para incluir seus alunos com deficiência sem cair no perigo do capacitismo: Pergunte o que ele quer: na maioria das vezes, num comportamento automático, oferecemos ao estudante o que consideramos bom, mas nem sempre o que achamos benéfico, de fato, é. Crianças com deficiência têm desejos, vontades e expectativas como qualquer outra. Ouça o que ela tem para te dizer sobre o que ela faz e o que gosta. Lembre-se de que a comunicação vai muito além do verbal. Existem outras formas para se conectar com seu aluno, mesmo que ele não fale. Aceite o desejo e crie formas de torná-lo possível: momentos de comemoração e festa nas escolas são comuns. É importante considerar que nem todos

As crianças com deficiência são crianças como qualquer outra, e precisam ter seus direitos respeitados

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ENTENDA O QUE É UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA E COMO CONSTRUÍ-LA Não basta apenas abordar história afro-brasileira na sala de aula. Por LAURA RACHID

Em um país ainda marcado pelo abismo racial e de renda, entender e desenvolver uma educação antirracista é fundamental para que justiça e sociedade caminhem juntas. A saber, focando apenas na área educacional, enquanto 74% dos jovens brancos concluíram o ensino médio com até 19 anos, essa é a realidade para apenas 53,9% dos negros e 57,8% dos pardos, conforme revela levantamento divulgado ano passado pelo Todos Pela Educação. Já dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb/Inep) de 2017 tornam ainda mais nítida essa disparidade racial, uma vez que na época, 59,5% dos estudantes brancos cursando o 5º ano tiveram uma aprendizagem em matemática tida como adequada e somente 29,9% dos negros se encaixaram no mesmo quadro. Essa desigualdade racial é um desdobramento das diversas injustiças que negros (e indígenas) vivenciaram — e ainda vivenciam — desde a construção do Brasil. Falta de acesso à educação, saúde, saneamento básico e até um lar são questões estruturais. Apenas um exemplo é a Lei de Terras de 1850, que interrompe o direito à posse por meio do trabalho e determina que a terra só poderia ser adquirida mediante sua compra, acentuando ainda mais um distanciamento entre os latifundiários e os escravos.

básica a obrigatoriedade da temática história e cultura afro-brasileira e indígena. A lei é muito importante, mas é preciso reconhecer que o racismo estrutural existe, inclusive, no ambiente escolar. No caso da rede particular, vale a gestão refletir sobre a quantidade de negros nas turmas, criando debates entre famílias, comunidade e alunos. Afinal, a escravidão durou cerca de 300 anos, só que os brasileiros convivem oficialmente sem ela a apenas 132 anos. Historicamente é recente e os vestígios ainda são nítidos, conforme você confere a seguir. “O epistemicídio, que é a exclusão do pensamento negro dos currículos escolares e da academia é um dos sintomas desse racismo que tem sido questionado nas últimas décadas, mas não apenas ele. Nosso país naturaliza um cotidiano em que ser negro está intrinsecamente ligado ao ser pobre e precarizado. O racismo está em como naturalizamos todos esses elementos, os tornando parte da paisagem e os justificando como se fossem falta de sorte ou de caráter de uma população que historicamente foi empurrada à força para esse lugar”, critica Suzane Jardim, historiadora e mestranda em Ciências Humanas e Sociais com pesquisa sobre a influência do sistema penal e punitivo nas lutas dos movimentos negros do século xx. Indagada sobre o que é uma educação antirracista, Suzane define da seguinte forma: “é uma educação que entende Ou seja, a educação antirracista vai mui- que nosso país adotou sistematicamento além de aplicar a lei 11.645/2008, que te o projeto de calar e omitir do grande inclui no currículo oficial da educação público as discussões sobre relações ra-

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Foto: Facebook IBCCRIM

Suzane Jardim: nosso país naturaliza um cotidiano em que ser negro está intrinsecamente ligado ao ser pobre e precarizado

ciais que foram cunhadas no campo das ciências humanas, políticas e no seio do movimento negro. É tentar instruir sujeitos sobre relações raciais, não para que individualizem a questão, mas para que consigam perceber o quanto o racismo faz parte de nossa estrutura social e tenham a capacidade crítica para se colocar contra esse sistema”. Para a doutora em Educação Cléa Ferreira, cuja sua pesquisa está relacionada à uma formação docente étnico-racial, o brasileiro está começando a reconhecer que é racista. “O Brasil é o país do racismo sem racistas. Estamos desconstruindo essa ideia. Vivemos um momento importante de ruptura. Esse é um primeiro passo para uma educação antirracista”, destaca. Indo na mesma linha de Cléa, a historiadora Suzane completa que “o primeiro passo é o de treinar o olhar do educador para que ele se torne apto a perceber as hierarquias raciais de sua disciplina e meio. Dou ênfase de que o passo inicial é o de desnaturalizar o que o racismo naturalizou — sejam as lacunas da presença negra nas discussões, a visão embranquecida de sociedade ou a falta de negros nos ambientes”.

co europeu. Diante dessa realidade surgem movimentos no Brasil e mundo que pedem a descolonização dos currículos. “Acho que a lei foi um avanço, mas ainda estamos longe de conseguir com que ela oriente as práticas curriculares e as relações dentro das escolas, uma vez que o docente foi formado em uma lógica eurocêntrica e boa parte não participou dessas discussões no âmbito da universidade”, explica Cléa Ferreira. “Precisamos ampliar o nosso repertório, o nosso conhecimento para evidenciar a diversidade, as lógicas diversas. E há sim material disponível. Existe toda uma elaboração teórica pedagógica para essa descolonização. A que acredito é a pedagogia intercultural crítica, que pressupõe não uma substituição, mas uma ampliação que rompa com essa hierarquia, considerando em pé de igualdade e levando para a escola esses outros saberes. A nossa disputa e luta é para desconstruir essa hierarquia, e racismo é isso, é falar de poder”, completa a doutora em Educação. Para quem tem interesse em se aprofundar nesses assuntos, Cléa indica suas principais referências teóricas: Catherine Walsh, conhecida como pedagoga da decolonialidade, Vera Candau, professora da puc-Rio, Luiz Fernandes Oliveira, professor na ufrrj e Geranilde Costa e Em relação ao plano de aula, mesmo com Silva que fala sobre uma pretagogia para a determinação da lei sobre história e formação de professores. cultura afro-brasileira e indígen a, ainda é comum o professor abordar esses temas apenas quando o foco é a invasão do Brasil pelos portugueses e o período de escravidão — e ainda sob o olhar bran-

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PRECISAMOS FALAR SOBRE ROMEO...


...Iana, Roberta e Emilson. A escola trata com preconceito quem desafia as normas de papéis masculinos e femininos Por WELLINGTON SOARES Fotografia LUCAS LANDAU

Romeo foi banido do contraturno por preferir vestidos às roupas masculinas


O

Não há apenas uma forma de ser, mas tantas quantas são os seres humanos.”

pequeno Romeo Clarke, da foto nas páginas anteriores, tem 5 anos e adora usar seus mais de 100 vestidos para as atividades do dia a dia. “Eles são fofos, bonitos e têm muito brilho”, explicou ao tabloide britânico Daily Mirror. Clarke virou notícia em maio do ano passado. O projeto de contraturno que ele frequentava na cidade de Rugby, no Reino Unido, considerou as roupas impróprias. O menino ficou afastado até que decidisse - palavras da instituição - “se vestir de acordo com seu gênero”. O caso de Clarke não é único. Situações em que crianças e jovens que descumprem as regras socialmente aceitas sobre ser homem ou mulher - seja de forma intencional ou por não dominá-las - fazem parte da rotina escolar. Quando eclode o machismo, a homofobia ou o preconceito aos transgêneros, pais e professores agem rápido para pôr panos quentes e, sempre que possível, fazer de conta que nada ocorreu. “A escola, que deveria abraçar as diferenças, pode ser o ambiente mais opressivo que existe”, defende Iana Mallmann, 18 anos, ativista contra a homofobia. “Muitos ainda abandonam as salas de aula por não se sentirem bem nesse espaço”, completa Beto de Jesus, secretário para América Latina e Caribe da Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, pessoas Trans e Intersex (Ilga, na sigla em inglês). Paradoxalmente, quem tem ensinado a escola a agir no respeito à diversidade são os próprios estudantes. “Na contemporaneidade, multiplicaram-se os grupos, os sujeitos e os movimentos, as maneiras de se identificar com gêneros e de viver a sexualidade”, afirma Guacira Lopes Louro, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (ufrgs) e uma das principais referências na área de estudos de gênero. É o que mostram os corajosos depoimentos de Iana, Roberta e Emilson. Eles nos convidam a uma reflexão sobre nossas próprias ideias de masculino e feminino, hétero, homo ou bi, coisas de menino e coisas de menina. Precisamos falar sobre sexo, sexualidade e, sobretudo, gênero.

Vale desfazer a confusão entre esses conceitos. O sexo é definido biologicamente. Nascemos machos ou fêmeas, de acordo com a informação genética levada pelo espermatozoide ao óvulo. Já a sexualidade está relacionada às pessoas por quem nos sentimos atraídos. E o gênero está ligado a características atribuidas socialmente a cada sexo. O que se sabe hoje em dia é que o dualismo heterossexual/ homossexual não é capaz de abarcar todas as formas de desejo humanas. Os estudos sobre esse tema dizem que a orientação sexual se distribui num amplo espectro entre esses dois polos. É provável que a definição da orientação sexual se dê pela interação entre fatores biológicos (predisposição genética, níveis hormonais) e ambientais (experiências ao longo da vida). Mas não há certezas. O guia Sexual Orientation, Homossexuality and Bissexuality, da Associação Americana de Psicologia, resume: “Não foram feitas, por enquanto, descobertas conclusivas sobre a determinação da sexualidade por qualquer fator em particular”. É surpreendente notar como determinados comportamentos são mais aceitos em uma fase da história e reprimidos na seguinte. Os moradores da Grécia Antiga, por exemplo, se rela-

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cionavam com pessoas de ambos os sexos. Já na Idade Média, comportamentos que se desviassem da norma socialmente definida eram punidos com a fogueira. Hoje, não há mais chamas, mas o sofrimento assume a forma de piadas, humilhações, agressões físicas e psicológicas, exclusão. Por que ainda agimos assim? Como se construiu uma sociedade que se choca e entra em pânico ao ver um menino se vestindo de menina? A resposta está no conceito de gênero. Ele diz respeito ao que se atribui como características típicas dos sexos masculino e feminino. Meninas precisam sentar-se de pernas fechadas, meninos podem abri-las. Meninos não podem chorar, meninas são mais sensíveis. Meninos gostam de azul, meninas preferem o rosa. Enfim, uma série de aspectos que, com o tempo, ganham força e se convertem em regras. Por quê? Porque cada um de nós interioriza as estruturas do universo social e transforma-as em jeitos de ver o mundo que orientam nossas condutas. Diversas instâncias atuam para que essas normas sejam transmitidas dos mais velhos aos mais jovens: a família, os grupos de amigos, as religiões - e, claro, as escolas. No caso do gênero, a associação com elementos preexistentes, como tradições culturais, preceitos religiosos e costumes familiares, vai definindo quais elementos pertencem ao universo masculino ou ao feminino. Por exemplo: ao provar do fruto proibido e convencer Adão a também comê-lo, Eva teria mostrado o lado irracional e sentimental da mulher. Por isso, sedimentou-se a ideia de que ela deveria estar submissa ao homem - naturalmente, um ser racional e cerebral, como explica a pesquisadora Clarisse Ismério no artigo Construções e Representações do Universo Feminino (1920-1945). Mais exemplos: a associação de carros e motos como “coisa de macho” foi herdada da ideia vigente até o início do século 20 de que o espaço público deveria ser ocupado pelos homens, enquanto as mulheres deveriam se dedicar à vida doméstica, como faziam suas mães. Já a atribuição das cores rosa e azul, respectivamente, a meninas e meninos... Bem, essa aí parece não ter justificativa. Nenhuma surpresa: a investigação sócio-histórica revela que na gênese de muitos hábitos, costumes e regras impera a mais pura arbitrariedade. Tudo isso se complica em razão de outra característica da mentalidade moderna: a tendência de pensar por oposições. Segundo o filósofo francês Jacques Derrida (1930-2004), a lógica ocidental opera por meio de binarismos: feio/belo, puro/ impuro, espírito/corpo etc. “Um termo é sempre considerado superior, e o oposto seu subordinado”, explica Guacira. Assim, o homem heterossexual conquistou o lugar de maior prestígio na sociedade. Um degrau abaixo, a mulher. E na penumbra, os que não se encaixam no esquema binário: gays, lésbicas, bissexuais, travestis... Até meados do século 20, esse discurso circulou quase sem contestações. A partir dos anos 1950, movimentos feministas, guiados pelos estudos da filósofa francesa Simone de Beauvoir (1908-1986), engrossados na década seguinte pelos hippies e outros levantes da contracultura, começaram a colocar em xeque os papéis atribuídos às mulheres na sociedade, no trabalho e na família. Seguiram-se a eles as lutas pelos direitos de homens gays, lésbicas, travestis, transexuais e assim por diante entre 1970 e os anos 2000. Atualmente, correntes contestatórias ampliam as possibilidades identitárias, defendendo que há muitos jeitos de ser homem e mulher. junho 21

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Iana Mallmann, 18 anos, ex-aluna das redes pública e privada de Brasília


Você deve estar se perguntando onde é que a escola entra nessa discussão. Para que ela respeite a diversidade, as formações de professores precisam abordar o assunto. É o melhor caminho para disseminar o que as pesquisas já descobriram sobre a construção dos gêneros e sua relação com o sexo e a sexualidade. Mas as iniciativas sofrem forte resistência. O caso mais notório aconteceu em 2011. Como parte do programa Brasil sem Homofobia, especialistas produziram para o governo federal cadernos com conteúdo pedagógico que colocavam o tema em discussão. A intenção era que o material fosse distribuído a escolas de todo o país. Antes da impressão, entretanto, congressistas ligados a entidades religiosas se opuseram ao projeto. Apelidado de “kit gay”, o conteúdo foi acusado de estimular “a promiscuidade e o homossexualismo” - termo em desuso por remeter a doença (hoje, fala-se em homossexualidade). A União cedeu às pressões e vetou a circulação dos cadernos. Por enquanto, episódios como o do menino Romeo seguem envoltos pela vergonha. Mesmo em casos de crianças muito pequenas, em que não há relação entre o comportamento da criança e sua sexualidade (meninos mais sensíveis ou meninas que prefiram o futebol às bonecas), o expediente-padrão é convocar os pais para uma conversa sobre o suposto problema e encontrar maneiras de “corrigi-lo”. “Muitas vezes, essas crianças e jovens apanham dos pais, são proibidos de voltar às aulas ou mesmo fogem”, relata Constantina Xavier, professora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (ufms). É papel da escola agir com profissionalismo. O que, nesse caso, significa tratar o tema com naturalidade e não reportá-lo aos pais. Um menino quer se vestir de princesa. Se há algum problema, é com os olhos de quem vê. Como ensina Georgina Clarke, a mãe do pequeno Romeo: “Não me importo. Faz parte de quem ele é. Se usar os vestidos faz com que ele seja feliz, então está tudo bem para mim”. Os docentes precisam ficar de olho nessas situações para começar a agir. Paulo Rennes Marçal Ribeiro, coordenador do Mestrado em Educação Sexual da Unesp, sugere que as aulas sejam usadas como instrumento para combate à discriminação. “A escola pode desenvolver programas de educação sexual que seja embasado na questão da cidadania para realizar um trabalho que erradique o preconceito. Quando valorizamos os direitos humanos em sala de aula, geramos reflexão, pensamento crítico e quebras de tabu”, defende o especialista.

Transformar a escola em um ambiente acolhedor requer um planejamento que envolve diversas ações, mas é possível também tomar pequenas ações para garantir que esses jovens se sintam confortáveis na escola. “Nunca tive uma postura feminina, nunca gostei de usar vestido, assessórios no cabelo. Por causa dos meus trejeitos, da maneira como eu me vestia, fui alvo de comentários na escola particular em que estudava. Muitos colegas apontavam para mim, riam, me chamavam de menina-macho. Na aula de Educação Física, eu não queria usar short-saia e, por isso, minha mãe foi chamada até a escola várias vezes. Fui repreendida por não me sentar com as pernas cruzadas ou os joelhos encostados, como uma menina deveria. junho 21

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Comecei a entender o que estava acontecendo comigo durante os anos finais do Ensino Fundamental, quando me apaixonei por uma colega. Entrei em depressão e tentei me matar três vezes. Decidi contar para a minha mãe. Ela me apoiou muito e aí nada mais me importava. Cortei meu cabelo, joguei fora as roupas de menina que eu não gostava, me libertei. Passei a falar abertamente sobre a minha sexualidade, mesmo dentro da escola. Nesse momento, fui abordada várias vezes por professores e pela coordenação. Eles diziam coisas como “tudo bem você ser homossexual, mas não fale disso na escola”. Descobri depois que havia outros jovens homossexuais na escola, mas eles tinham de ficar calados. No fim das contas, mudei para uma escola pública em que a sexualidade não era um problema. Havia vários projetos para discutir o assunto, inclusive uma semana de combate à homofobia, para questionar a postura dos alunos e da sociedade com o assunto.” Como a escola poderia agir: A instituição deve ser um ambiente em que todos os alunos se sintam acolhidos. Para isso acontecer, é importante que a sexualidade seja discutida constantemente, mostrando que não há uma única maneira possível de explorá-la. Também é preciso apoiar alunos que busquem os educadores para discutir sua sexualidade. Ofereça espaços de escuta em que os estudantes se sintam seguros. Como a sexualidade é um assunto particular, ela deve ser tratada pelo próprio adolescente com suas famílias, no momento em que julgar mais adequado. Não interfira e nem “denuncie” a orientação sexual dos jovens às famílias. Nas regras de convivência e nas ações concretas de gestores e professores, deve estar claro que situações de homofobia e piadinhas são intoleráveis

“Eu estava voltando de um passeio promovido pela escola. Tinha andado o dia inteiro e resolvi tirar a blusa de moletom. Quatro meninos me encurralaram em um canto do ônibus e tentaram tocar meus seios. O professor me viu chorando e, indignado, ligou para o orientador pedagógico. Minha mãe foi à escola diversas vezes cobrar providências. O orientador conversava com ela e depois me chamava sozinha à sala dele para falar o oposto. Tive de ouvir frases como: “Você precisa encarar isso como uma brincadeira”, “Talvez você tenha provocado” e “É normal que isso aconteça com meninos dessa idade”. Era como se eu – e não os meninos que tentaram me tocar – tivesse feito algo errado. Numa reunião com minha mãe, o coordenador chegou a dizer que para me mudar de sala teria de inventar uma história, porque esse procedimento só era tomado quando algo grave acontecia. Como se o que eu passei não fosse um tipo de violência. Me senti culpada. Só consegui superar esse sentimento porque tive o apoio da minha família, de alguns amigos e da minha irmã mais velha, Nathalya. Engajada em discussões sobre o feminismo, ela me ajudou a ver que situações parecidas com a minha acontecem todos os dias com muitas e muitas mulheres e a reação é sempre a mesma: a vítima é responsabilizada.” Como a escola poderia agir: É preciso deixar de naturalizar esse tipo de episódio. Meninos precisam respeitar o corpo da mulher. Cantadas desrespeitosas e situações de assédio podem ser comuns, mas não são aceitáveis. Não se deve, ainda, usar

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Roberta Lomonaco Macchia (sentada), 13 anos, aluna da rede particular em São Paulo, contou com o apoio da irmã Nathalya e venceu a culpa por ser atacada

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Nathália, Matheus e Daian protestaram pelo direito de Emilson (blusa bege) usar saia

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critérios diferentes para o comportamento de meninos e meninas, como se apenas garotos demonstrassem interesse sexual e indisciplina. Outro tema da pauta é a responsabilização da vítima. Em casos como o de Roberta, é comum que se escutem questões como: “Você não provocou?” e “Como você estava vestida?”. Atitudes e tipos de roupas, quaisquer que sejam, não justificam ataques. Assédio e atos violentos são sempre culpa do agressor. Discuta sexualidade de maneira aberta. Deixe claro os limites entre a paquera e o assédio (não vale tocar ou insistir em alguém que não demonstrou interesse). Paute a discussão pelo valor do respeito ao corpo dos colegas, independente de seu gênero ou orientação sexual. Também limite o que é apropriado para o ambiente escolar, mesmo quando houver consentimento: andar de mãos dadas pode ser válido, mas carícias exageradas devem ficar para o ambiente privado. As regras também precisam valer para todos os casais, tanto heterossexuais quanto homossexuais.

“Não acredito nas divisões entre o masculino e o feminino e, por isso, me considero agênero. Um dia, uma amiga deixou comigo uma saia do uniforme. Decidi ir à escola com ela. Ouvi uma piadinha ou outra, mas meus colegas de classe não se importaram. Na última aula, fui chamado à sala da gestão, onde estavam o coordenador pedagógico e a diretora adjunta. Ela começou dizendo que tinha contato com as discussões de gênero desde a faculdade. Também argumentou que, na Escócia, era normal que homens usassem saia, mas aqui no Brasil não. No fim das contas, eles queriam que eu tirasse a saia. Não fui obrigado, mas a presença dos dois me fez pensar: ou eu tiro ou pode haver consequências ruins para mim. Na instituição em que estudo, uma escola pública tradicional do Rio de Janeiro, as organizações estudantis são muito fortes. Além do grêmio, também há uma frente liderada pelos alunos para fazer com que todos se sintam aceitos como são. Nós sempre realizamos atividades, palestras e atos para discutir temas ligados ao gênero e à sexualidade. Como protesto ao que tinha acontecido, promovemos um ?saiato? duas semanas depois. Mais de 30 alunos, homens e mulheres, foram de saia à escola no dia marcado. O caso repercutiu e saiu em diversos jornais. Infelizmente, a gestão da escola decidiu não tocar no assunto. Apesar de uma nota divulgada a um jornal, não houve nenhum tipo de discussão organizada pela escola.” Como a escola poderia agir: Questionar desde a Educação Infantil as normas e os padrões associados a cada um dos gêneros é um passo inicial. A definição do que é roupa de menina e o que é roupa de menino também é feita por convenções que variam de acordo com a cultura e o local. Assim, não há porque proibir que um menino vista saia, se ela fizer parte do uniforme definido pela instituição. Se o uso causar comoção na escola, a situação pode ser utilizada para debater como se construíram as regras que diferenciam homens e mulheres. Crie ações que discutam o tema também com a equipe. Funcionários e educadores devem também passar por formação para compreender melhor as questões de sexualidade e servir como pontos de apoio aos alunos que possam estar sofrendo situações ruins. junho 21

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Foto: Pedro Vannucchi

ESCOLAS DE ELITE QUEREM DESNATURALIZAR O RACISMO

Alunos no pátio do Alunos no pátio do colégio Santa Cruz, colégio Santa Cruz, em São Paulo em São Paulo


Responsáveis querem um currículo longe de estereótipos e pedem mais negros na equipe escolar e no número de alunos Por LAURA RACHID


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acismo e negação sempre estiveram presentes na construção do Brasil. Primeiro com os povos indígenas — a maioria exterminados — e depois com os africanos forçados à escravidão. O fato é que o contexto de muitas leis já aplicadas no país é repleto de privilégios e preconceitos, impedindo o reconhecimento de uma população plural e mais ainda, diminui o acesso a oportunidades de um povo que carrega um histórico de injustiça. Essa situação chegou a um ponto de criarem uma lei que prendia quem estivesse de pés descalços, com o claro intuito de criminalizar indígenas e escravos. Até a capoeira já foi proibida. Para Oswaldo de Oliveira Santos, mestre em ciências da religião, pesquisador sobre direitos humanos e professor universitário, o racismo tem por função a exploração do homem sobre o homem. A filósofa feminista Djamila Ribeiro, em seu livro O que é lugar de fala (ed. Letramento), diz: “Numa sociedade como a brasileira, de herança escravocrata, pessoas negras vão experienciar racismo do lugar de quem é objeto dessa opressão, do lugar que restringe oportunidades por conta desse sistema de opressão. Pessoas brancas vão experienciar do lugar de quem se beneficia dessa mesma opressão. Logo, ambos os grupos podem e devem discutir essas questões, mas falarão de lugares distintos”.

São bolsas totais e parciais, sendo que 50% vêm de um fundo aberto pela Associação Travessias, composta de pais e 50% da escola. A escola bancará 50% dessas bolsas”

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O racismo estrutural está enraizado na sociedade. E se é papel da educação preparar os meninos e meninas para o mundo, discutir privilégios e desigualdades está entre as questões urgentes. Pelo menos é o ponto de vista de famílias que estão praticamente exigindo que as escolas reconheçam essas e outras tantas injustiças e que façam algo para reverter a situação. “Numa sociedade racista, não basta não ser racista, é preciso ser antirracista.” A fala que se tornou referência ao se tratar desse tema é de Angela Davis, intelectual, ativista e uma das principais vozes mundiais sobre feminismo negro. É desse princípio que muitos pais, mães e responsáveis estão partindo. O cenário é a cidade de São Paulo — cidade mais populosa e uma das mais ricas do país —, em que algumas escolas de classe média alta, cuja mensalidade varia de R$ 2.000,00 a pouco mais de R$ 4.000,00 estão vivenciando um processo de políticas afirmativas. Fundada em 1963, a Escola Vera Cruz, localizada na zona oeste de São Paulo, entendeu que para adotar o antirracismo como um de seus nortes é preciso inserir ações contínuas no ambiente escolar. No caso, aplicar apenas a necessária lei 11.645 de 2008, que inclui no currículo oficial da educação básica a obrigatoriedade da temática história e cultura afro-brasileira e indígena, é tratar do problema em sua superficialidade É preciso ir além. No final do segundo semestre de 2020, por exemplo, o Vera lançou por tempo indeterminado o Projeto Travessias, em que uma das missões é matricular anualmente 18 crianças de cinco anos que estejam na última etapa da educação infantil e garantir bolsa a todas elas até a conclusão do ensino médio. A ideia é começar este ano. “São várias frentes. Tem essa de bolsas para alunos negros e indígenas. ”, explica a diretora pedagógica Regina Scarpa e cuja ajuda para esse fundo também poderá vir através de ex-alunos e empresas.


Foto: arquivo pessoal

Aliás, outro compromisso do projeto é ampliar o quadro de profissionais negros na docência e gestão. Segundo a diretora, já há contratação para o início deste ano. “Temos o Instituto Vera Cruz que tem graduação em pedagogia e outras, cursos de extensão e núcleo de pesquisa e nesse núcleo estamos desenhando projetos de como se dá essa interação entre crianças negras que vão chegar para a gente ir aprendendo por meio do olhar delas o que é racismo, preconceito, discriminação, se essas coisas já aparecem e enquanto escola como vamos colocar isso em pauta para não ser um tema silenciado, colocado embaixo do tapete”, explica. “Com a chegada dessas crianças aumenta ainda mais a importância da representatividade. É a primeira vez que a escola faz uma política afirmativa”, acrescenta Regina Scarpa. Pais e alguns professores da Escola Nossa Senhora das Graças, o Gracinha, localizada no Itaim Bibi, São Paulo, criaram em 2020 um grupo de ações antirracistas composto de um núcleo geral e que também é dividido em três frentes. Uma é a de letramento e sensibilização da comunidade, a qual enviou no final do ano passado para todo o corpo escolar um material antirracista com dicas de livros e filmes. Para este ano a ideia é lançar um clube de leitura. “Entendemos que, por mais letrada que a pessoa seja, não dá para discutir racismo somente a partir do nosso achismo. Temos que discutir em cima do conhecimento já acumulado e que coloca por cima o que a gente acha”, alerta Mildred Aparecida Sotero, mãe e professora de educação física no Gracinha e docente também no Colégio Santa Cruz.

Colagem feita por alunos do Gracinha com a proposta de refletir sobre a sociedade através da arte

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Dar bolsa não vai resolver o problema. Queremos incluir esse grupo, mas isso exige mudança de atitude de muita gente e de toda a instituição”

A segunda frente é a do currículo, que tem presença maior dos educadores do Gracinha, mas de cuja direção pais e mães também participam. Quando essa frente se estruturou, o grêmio estudantil e outros coletivos foram convidados a colaborar. “A frente de currículo vai mexer no que é feito em sala de aula. No Gracinha e Santa já existe um trabalho nesse sentido, mas a ideia é potencializar e tirar equívocos que podemos cometer. Por exemplo, o que a gente faz com Monteiro Lobato, que é reconhecido como racista só que também não podemos negar o valor e alcance de suas obras? Continua falando dele, mas problematiza, busca encontrar onde está o racismo, falar de contexto”, detalha Mildred Aparecida. Contratação de profissionais negros é a terceira frente. Para isso, o grupo antirracista do Gracinha entrou em contato com empresas que atuam com diversidade no mundo corporativo. “Fizemos reuniões e selecionamos três que passamos para a direção, que vai contar com serviços que tratem de tornar o Gracinha um ambiente atrativo para negros. Atrativo é ambiente confortável, lugar em que essa diversidade não seja incômoda para ninguém, tanto professores negros que possam vir a trabalhar no Gracinha quanto famílias que queiram matricular os filhos”. Nesse processo, o grupo descobriu que faltam empresas que atuem nessa linha de contratação para escolas. Diante disso, o Gracinha e o Santa Cruz se uniram na criação de um banco de currículos negros e indígenas. “Estamos com mais de 300 currículos de professores, bibliotecários, auxiliares, coordenadores pedagógicos”, conta Mildred Aparecida. Para essa ação foi criada a página no Facebook Currículos negrxs e indígenas. No Gracinha há bolsas filantrópicas, mas não afirmativas. Indagado se a escola pretende lançar bolsas raciais, o diretor Wagner Cafagani defende que uma iniciativa como essa precisa ser tratada de forma responsável, acolhedora e sincera. Não é do dia para a noite. A mesma coisa com a contratação de profissionais negros. Para ele é necessário um preparo rumo a uma construção efetivamente antirracista, que é o que se pretende com o Projeto Travessias no Vera Cruz. Mildred Aparecida tem um menino de 23 anos e uma menina de 17 anos. Eles sempre estudaram em escola particular, muitas vezes sendo os únicos negros. Sua filha já teve vontade de operar o nariz por achá-lo largo e feio e chegou a alisar o cabelo três vezes. “Essa falta de alguém que pareça com eles nesse ciclo passa a sensação de que são exceção ou de que o negro não é capaz de estar lá, seja por questão econômica, cultural ou social. E não é verdade. A falta de negros nesse ambiente de classe média é um fato. O baixíssimo número de negros é um fato que não pode ser olhado como impossibilidade, isso marcou muito a vida dos meus filhos. Para eles se reconhecerem como negros foi um processo no qual eu e meu ex-marido tivemos que trabalhar. E se você parar para pensar, uma família branca não tem que reafirmar que seu filho é branco”, desabafa.

A comissão antirracista de pais, mães e responsáveis do Colégio Equipe, em Higienópolis, surgiu há seis meses e conta com cerca de 100 membros. A primeira ação foi com a ocupação por uma semana das redes sociais do colégio, em novembro do ano passado. A comissão divulgou conteúdos voltados à conscien-

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Foto: divulgação

Engênio Lima tem dois filhos: Aurora e Jorge. Ele sabe que combater o racismo estrutural é mexer em privilégios, no caso, dos brancos

tização sobre racismo estrutural. Além disso, alguns dias de aula foram focados em histórias e mitos de criações africanos, hip hop e participação negra nas eleições. Para essa ação, além dos professores residentes, educadores negros de fora também participaram. Live com a portuguesa, artista e especialista em pós-colonialismo, Grada Kilomba, que provoca sobre o racismo dizendo ser uma problemática branca, também foi outro momento marcante para o colégio. Discussões sobre o tema do ponto de vista institucional ocorrem desde 2019, segundo a diretora do Equipe, Luciana Fevorini. O colégio pensa em oferecer bolsas para negros mas, assim como no Gracinha, também falta um projeto estruturado, uma agenda antirracista. “Talvez criar um fundo em que ex-alunos possam apoiar financeiramente. E também estamos procurando fazer ações e parcerias com escolas públicas para trocas educacionais, pedagógicas, culturais, e aproximar as duas realidades”, conta. Sendo assim, a diretora enxerga como positivo esse tipo de ação dos pais e também dos movimentos sociais em prol de justiça e igualdade com equidade. “Acho muito rico e, de fato, estão apontando para situações que eram e são pouco percebidas. Não é bom naturalizar situações de desigualdades, preconceitos, discriminações. Acredito que com esses movimentos todo mundo aprende e amplia o saber histórico, social e cultural”, defende Fevorini. Eugênio Lima é pai no Equipe, dj e ator-mc (intérprete que mistura aspectos do ator-narrador do teatro épico com o mc da cultura hip-hop). Ele enfatiza que o objetivo da comissão foge de uma proposta romântica e salvacionista. O intuito é mudar a estrutura, realizar uma grande reformulação curricular e de representatividade, incluindo mais alunos negros, professores, coordenadores e pessoas negras na equipe da direção escolar. O dj também sabe que, durante o processo, pode surgir algum problema com famílias com visão contrária. “Estamos mexendo com privilégios e o enfrentamento é natural, porque as pessoas brancas, de maneira geral, não enxergam os seus próprios preconceitos. Elas acham normal.” junho 21

“Há uma diferença entre representatividade e diversidade. Não basta, por exemplo, aumentar a presença negra e o currículo continuar eurocentrado

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Foto: site Escola Nossa Senhora das Graças

No documentário lançado pela Netflix recentemente, AmarElo, do diretor Fred Ouro Preto, cujo rapper e compositor Emicida dá uma aula de história, identidade e referências de resistência negra, há um momento em que ele lembra de quando estava em um museu da escravidão em Angola, em frente a uma pia e “tava escrito um texto na parede que era mais ou menos assim: ‘foi nessa pia que os negros foram batizados e através de uma ideia distorcida do cristianismo, eles foram levados a acreditar que eles não tinham alma’. Eu olhei pro meu parceiro e naquele dia eu entendi qual era a minha missão. A minha missão cada vez que eu pegar uma caneta e um microfone é devolver a alma de cada um dos meus irmãos e das minhas irmãs que sentiram que um dia não teve uma”, diz o rapper. Processo similar viveram os indígenas no período da invasão do Brasil, com a igreja autorizando a morte deles por crer que não possuíam alma, uma vez que os indígenas não acreditavam no Deus dela. É importante destacar que esses movimentos nas escolas não negam a história, mas entendem que há uma visão única de mundo que naturaliza o racismo e exclui os saberes e costumes indígenas, negros, ciganos e tantos outros grupos ainda marginalizados. O objetivo é ampliar, respeitar e dar oportunidade.

Alunos no auditório da escola Nossa Senhora das Graças, ou “Gracinha”

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SE DiViRTA! com livros

5 LIVROS PARA COMEÇAR A FALAR DE INCLUSÃO

Fotos: divulgação

Hoje o tema é bastante comentado, mas não existem muitos materiais de qualidade sobre o assunto

01. Ensaios Pedagógicos:

Como construir uma escola para todos? Lino de Macedo, 168 págs., 59 reais

Este é, de fato, um livro maravilhoso. Vale a pena ler do começo ao fim, com destaque para o capítulo “Fundamentos para uma Educação inclusiva”. Lino aborda a questão da inclusão de um viés que considera a ética e as relações entre as pessoas como ponto de partida para pensar na questão. É uma proposta de reflexão que nos coloca como sujeitos responsáveis e envolvidos por princípio com este tema.

02. Educação Impossível

Maud Mannoni, 317 págs., indisponível para compra

Referência no tratamento e Educação de crianças autistas e psicóticas, Maud Mannoni, psicanalista belga, tem como uma de suas principais contribuições o trabalho desenvolvido na Escola Experimental de Bonneuil, que tinha como objetivo a reinserção desses pequenos sujeitos na sociedade.

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03. Educação Inclusiva:

Contextos Sociais

Peter Mittler, 264 págs., 87 reais

Autor atual, o inglês Peter Mittler apresenta uma reflexão abrangente sobre a urgência da implementação de políticas públicas que viabilizem a Educação inclusiva e com qualidade para todos. Essa é a condição para a construção plena de uma nação justa e verdadeiramente desenvolvida.

04. A Pedagogia na Escola das Diferenças

Philippe Perrenoud, 230 págs., 75 reais Considerando as desigualdades sociais vigentes como corresponsáveis pelo fracasso escolar de muitos alunos, Perrenoud nos oferece uma pensata sobre a escola e a necessidade de ver as diferenças de qualquer natureza como pressupostos a serem considerados para a efetivação de um projeto escolar eficiente. O apoio aos alunos, a individualização dos percursos e a consideração dos contextos sociais e culturais são ferramentas de trabalho valiosas para professores e alunos.

05. Educação para o Futuro: Psicanálise e Educação

Maria Cristina Kupfer, 160 págs., 58 reais Tendo como fundamento a prática desenvolvida na Pré-escola Terapêutica Lugar de Vida, do Instituto de Psicologia da usp, esse livro relata a experiência de uma Educação que leva em conta o desejo e seu sujeito. Reconhecer o ímpeto e os limites que lhe são impostos constitui uma subjetividade e essa é uma das tarefas fundamentais da Educação no mundo em que vivemos. Cristina Kupfer é psicanalista, educadora e diretora do centro de excelência Lugar de Vida.

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SE DiViRTA! com filmes

5 FILMES INSPIRADORES SOBRE INCLUSÃO

Fotos: divulgação

Filmes sobre educação inclusiva que farão você olhar alunos especiais de outra maneira.

01. Extraordinário

2017, diretor Stephen Chbosky Auggie Pullman (Jacob Tremblay) tem apenas 10 anos, mas por ter nascido com uma deformação facial já passou por 27 cirurgias plásticas. Agora, pela primeira vez, ele frequentará uma escola regular, como as demais crianças de sua idade. No ambiente escolar Auggie terá a sensação constate de ser avaliado e observado e precisará lidar com isso.

02. Cordas

2013, diretor Pedro Solís García Nesse curta metragem somos apresentados à Maria e Nicolás, o novo colega de classe de Maria, que possui paralisia cerebral. A garota, percebendo algumas das dificuldades do amigo vai em busca de maneiras para que ele consiga brincar e se divertir. Ela reconfigura e desenvolve jogos e atividades, adaptando-os às condições de Nicolás.

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03. O Filho Eterno

2016, diretor Paulo Machline

História do escritor brasileiro Cristovão Tezza e seu filho Felipe, com síndrome de Down. Retrata os sentimentos, inseguranças e angústias de um pai ao descobrir a deficiência de seu filho.

04. Nada que eu Ouça 2008, diretor Joseph Sargent

Este filme conta a história de um garoto que fica surdo na infância e da luta entre seus pais, sobre a possibilidade de um implante coclear. Os pais, Laura e Dan, são felizes no casamento mas a sua relação começa a mudar quando seu único filho, Adam, tem a oportunidade de realizar um implante para ouvir novamente. A disputa judicial pela guarda de um filho surdo torna-se pano de fundo para uma sensível discussão sobre implantes cocleares, orgulho surdo, entre outros temas.

05. Como Estrelas na Terra

2007, diretores Aamir Khan e Amole Gupte

Ishaan é um jovem que tem muitas dificuldades em relação ao estudo. Após várias reclamações da escola, o pai de Ishaan, acreditando que garoto não faz as atividades por falta de responsabilidade, o coloca em um internato. Lá o professor Nikumbh, não demora a perceber o real problema de Ishaan, a dislexia, e desenvolve um plano para que Ishaan tenha novamente vontade de aprender.

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SE DiViRTA! com séries

5 SERIADOS PARA FALARMOS DE EDUCAÇÃO E INCLUSÃO

Fotos: divulgação

Para refletir e aprender com pipoca na mão

01. Atypical

2017 | 3 temporadas | Comédia Dramática Produtor: Jennifer Jason Leigh Diretor: Seth Gordon

Talvez você até conheça a vida de algum adolescente autista e que queria arrumar uma namorada. Mas o que chama mais atenção é poder olhar também para sua família e a dinâmica que vivem pensando em Sam. Quando ele muda, todos são obrigados a mudar e se redescobrem nessa jornada.

02. Merlí

2015 | 3 temporadas | Comédia Dramática Produtor: Héctor Lozano Desenvolvedor: Eduard Cortés Uma série que se passa na Catalunha e vai fazer qualquer professor pensar e repensar sua prática. Um professor de Filosofia do Ensino Médio causa confusão por onde passa e serve de inspiração para todos os seus alunos,

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03. The Good Doctor

2017 | 4 temporadas | Drama Médico Produtores: Ron French, Freddie Highmor, Konshik Yu, Min Soo Kee, Shawn Williamson Desenvolvedor: David Shore

Freddie Highmore encarna um jovem estudante de medicina que, portador de autismo, demonstra talento único e incomparável. A genialidade do personagem anda de mãos dadas com suas problemáticas, e a série emociona ao mostrá-lo em todas as suas facetas.

04. The A Word

2016 | 3 temporadas | Drama Autores: Peter Bowker, Keren Margalit Diretores: Peter Cattaneo, Dominic Leclerc, Susan Tully, Luke Snellin, John Hardwick, Sasha Ransome Drama familiar focado em um jovem diagnosticado com autismo. A supremamente sensível The A Word mostra a vida de uma família virando de cabeça para baixo quando o diagnóstico chega, e inclui excelentes atuações de Christopher Eccleston, Lee Ingleby e do jovem Max Vento, que interpreta o protagonista.

05. Special

2019| 1 temporada | Comédia Televisiva Criador: Ryan O’Connell Produtores: Anna Dokoza, Eric Norsoph, Ryan O’Connell, Todd Spiewak, Jim Parsons Uma série distinta e motivadora sobre um homem gay, Ryan, que tem paralisia cerebral e decide reescrever sua identidade para ir atrás da vida que sempre quis. Após anos de internatos, trabalhar de pijama como blogueiro e se comunicar apenas por mensagens de texto, Ryan descobre como transformar sua vida.

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COLUNAS

A INCLUSÃO EXIGE MUDANÇA A celebração da diferença rompe com a cultura escolar que busca moldar todos a um modelo único texto HELENA SINGER ilustração ESTÚDIO KIWI

Uma das maiores conquistas da Educação nos últimos anos foi a instituição de uma política nacional que declarou como direito de todas as crianças e adolescentes estudar nas escolas regulares. Na prática, a lei garantiu às pessoas com e sem deficiência o direito de conviverem e aprenderem com a diferença. Evidentemente, esses direitos encontram grandes obstáculos à sua efetivação em organizações orientadas para a homogeneização, como a escola. Só as instituições que criam novas formas de se organizar costumam acolher e efetivamente incluir nos processos de aprendizagem as pessoas das mais diversas capacidades, desejos e estilos de aprender. Para isso, são necessárias uma nova estrutura e uma nova cultura, nas quais a diferença seja celebrada. É preciso garantir que todos se sintam parte daquela realidade, com suas diferentes capacidades mentais e físicas, culturas e hábitos. E também que todos se sintam responsáveis pelos cuidados com o espaço e o bem comum de acordo com suas possibilidades. Para que todos possam efetivamente aprender, é preciso que o currículo, as metodologias e a avaliação sejam organizados pela lógica da singularidade. Os estudantes precisam ter voz ativa na decisão sobre o que vai ser estudado, podendo expressar seus interesses e curiosidades, acessando métodos que consideram suas facilidades e dificuldades. A avaliação sobre quanto o aluno aprendeu considerará os percursos individuais, de onde ele partiu e até onde chegou no período analisado.

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Em geral, os debates sobre esse assunto se centram nos conteúdos a serem ensinados. Os que buscam superar esse estado de coisas reivindicam que os currículos escolares tratem dos temas ligados à tolerância religiosa e à superação dos preconceitos e, sem dúvida, este aspecto tem sua importância. O obscurantismo cresce em relação direta à ignorância. É muito importante conhecer a história, principalmente as tragédias humanas, para que elas não se repitam. Todos os cidadãos precisam conhecer os conflitos que levaram à morte milhares de povos indígenas, os processos da escravidão, a ascensão do fascismo, o holocausto, as ditaduras, o aquecimento global, todos os temas, enfim, que grupos específicos tentam negar para poder repetir. O espaço compartimentado em salas de aula e carteiras enfileiradas, o tempo segmentado em aulas, o conhecimento fragmentado em disciplinas e a evolução pela seriação não favorecem a inclusão das pessoas com deficiência, ou até de quem vem de outras culturas. É por isso que a política de inclusão é uma conquista para todos, uma vez que, para se efetivar, ela precisa que as escolas rompam com essa estrutura homogeneizadora que, na prática, busca moldar todos a um modelo único. Não há dúvida que a tarefa é grande. O que está descrito acima é, como sabemos, bastante distante da maior parte dos ambientes escolares hoje. Mas é também tarefa urgente, uma vez que o risco da destruição e da barbárie são iminentes.


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COLUNAS

REALENGO, A VIDA DE CADA CRIANÇA CONTA A educação é a saída para que casos como esse não aconteçam novamente Texto CLAUDIA COSTIM Ilustração ESTÚDIO KIWI

No dia em que escrevo esta coluna, 7 de abril de 2021, completam-se dez anos do chamado massacre de Realengo, em que 12 adolescentes, entre 13 e 15 anos, foram mortos e mais 12 feridos na Escola Tasso da Silveira, no Rio de Janeiro, por um ex-aluno que lá entrara para se oferecer para dar uma palestra. Wellington de Oliveira, então com 23 anos, acumulava, segundo relatos, frustrações e ressentimentos por ter sofrido bullying de seus contemporâneos naquela mesma escola e teria querido se vingar numa nova geração de alunos. Acompanhei de perto o triste episódio, como secretária de Educação da cidade. Estava, infelizmente, fora do Brasil, para fazer uma palestra em Washington e buscar recursos para a transformação da educação no município, quando recebi a notícia. Não podia acreditar, mas corri para o aeroporto para tentar antecipar meu voo de volta. Ao chegar ao Brasil, já estava me esperando no aeroporto o então ministro da Educação, Fernando Haddad, e juntos fomos até a escola. Parecia que não apenas a família dos que morreram, mas toda a educação da cidade e do país estava de luto. Como poderia alguém entrar numa escola e assassinar crianças? As instituições de ensino deveriam ser sacrários onde alunos se sintam protegidos da violência, e não mortas, era o que não saía da minha cabeça. Ao fazer contato com os professores da escola e com os familiares dos alunos, essa sensação ficou ainda mais forte.

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Algo pôde ser feito para tentar lidar com os aspectos mais externos do sofrimento de todos, inclusive a reconstrução da escola, com participação dos próprios alunos na definição de características desejadas no ambiente, mas a sensação de perda não foi, certamente, atenuada. O núcleo de psicólogos e psicopedagogos da secretaria também foi mobilizado para dar atenção aos professores, eles mesmos emocionalmente muito machucados com tudo o que se passou. Mas nada apaga o sofrimento vivido e a perda repentina de vidas tão jovens. Para além do esforço para garantir maior segurança no acesso às escolas da rede e da inauguração de 12 creches, cada uma com o nome de uma das crianças que morreram, ficou uma pergunta difícil: como evitar que alunos afetados por bullying possam acumular feridas que se traduzam depois em desejo de vingança? E aqui, também, a resposta está na educação. Afinal, as instituições de ensino não são espaços para ensinar apenas português e matemática. Elas podem e devem educar para uma convivência pacífica e respeitosa das diferenças que, infelizmente, nós adultos ainda não aprendemos a ter. Porque a vida de cada criança e sua promessa de futuro contam!


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COLUNAS

COMO EDUCAR NA CULTURA DA VALIDAÇÃO Educar crianças e jovens inseridos na cultura da validação pode ser um belo desafio Texto LEO FRAIMAN Ilustração ESTÚDIO KIWI

Hoje em dia, com o ápice das redes sociais, é muito comum nos jovens e, inclusive nos adultos, a necessidade de validação. Ser elogiado por cada foto postada, roupa comprada, maquiagem feita, piada dita, entre muitas outras coisas, se torna essencial para a sobrevivência da autoestima. Afinal, na cultura da validação, o pior castigo é não ser notado. Por exemplo, quando é criada na escola uma cultura de validação, é incentivado o costume dos alunos de ficarem se provando e exibindo o tempo todo. Mais do que isso, a necessidade de serem aprovados e reconhecidos. Eu já tive amigo que me perguntou se eu gostei da foto que ele postou, eu disse que sim, mas ele ainda me pediu para dar o “like” lá no meu Facebook. Existe um limite que, quando ultrapassado, a vontade de parecer sempre feliz e descolado passa a ser vício. Quando a pessoa deixa de ser ela para ser o que está na moda, o que todo mundo vai gostar ou aquilo que todo mundo vai achar bacana. Ironicamente, as pessoas que tem mais sucesso, carisma e felicidade são aquelas que são elas mesmas. Gilles Deleuze, um filósofo francês, fala da escravidão intelectual. Por meio de frases como “se eu fosse mulher”, “se eu fosse mais nova”, “se eu fosse mais magra”, as pessoas terceirizam muito a vida e a rede social ajuda muito nisso. Isto é, em vez de fazer suas próprias escolhas, opta, mesmo sem perceber, por permitir que as pessoas à sua volta façam em seu lugar. Se eu posto uma foto com tal roupa e as pessoas dão um “like”, é com ela que vou sair de

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casa; se uso o perfume da moda, vou me sentir mais sedutor. Para ser feliz, você tem que ser você mesmo e, claro, assumir as decisões tomadas. No ambiente escolar, um caminho para auxiliar os alunos a não irem pelo caminho do vício na autopromoção é dar mais peso aos elogios do que às broncas. De fato, parece um contrassenso focar no enaltecimento em vez da repreensão para não incentivar as crianças e jovens a mergulharem na cultura da validação, mas focar nos elogios é diferente de não dar as broncas merecidas. Até porque alguns alunos, caso percebam que estão mais evidência se repreendidos, podem comportar-se propositalmente mal para terem destaque perante a sala. O exemplo também faz parte disso, pois não existe o educar sem educar-se. Como é possível orientar pessoas sem sequer saber quem somos? Para desejar e exigir de nossos alunos valores, é essencial termos a percepção de que esses valores surgirão justamente de nossa relação com os alunos. Por outro lado, mais importante ainda é cuidar da autogestão do professor. O que isso quer dizer? Antes de tudo, significa se conhecer e, a partir disso, tomar uma postura proativa em relação às áreas de sua vida. Seus alunos fazem de tudo para chamar a atenção dos colegas? Entendê-los para ter ações efetivas que possam ajuda-los a se tornarem a melhor versão de si mesmos é uma forma de ter mostrar a pro atividade que eles necessitam do educador.


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COLUNAS

AINDA PODEMOS SINGULARIZAR RECURSOS PEDAGÓGICOS Precisamos pensar nas técnicas pedagógicas que tiveram melhor desempenho e inclusão texto RODRIGO HÜBNER MENDES ilustração ESTÚDIO KIWI

Desde 2017, o Instituto Rodrigo Mendes, com o apoio da abadhs, at&t, Fundação Grupo Volkswagen, Instituto Credit Suisse Hedging-Griffo e do Instituto Península, desenvolve um programa de formação de educadores que tem como objetivo ampliar as oportunidades de aprendizagem por meio da criação de materiais pedagógicos acessíveis. Em suas primeiras edições, o projeto foi realizado no formato presencial, em que profissionais das redes públicas de ensino (professores, coordenadores pedagógicos e representantes de secretarias da educação) participavam de encontros para a discussão de situações desafiadoras das salas de aula. As conversas eram iniciadas a partir de casos de estudantes que estavam enfrentando dificuldades em virtude de barreiras presentes nos ambientes de ensino e aprendizagem. Na sequência, o próprio grupo recebia apoio para a criação de materiais que transcendessem os recursos convencionais adotados pelas escolas (lousa, livro didático impresso, etc) e favorecessem o desenvolvimento de todos os estudantes. Já estávamos iniciando a edição 2020, da qual participaram profissionais das escolas de Cruzeiro, Nova Odessa e Peruíbe, quando fomos surpreendidos pela pandemia e o consequente fechamento dos espaços em que esse curso era realizado (escolas e laboratórios maker). Apesar das incertezas sobre quais seriam os resultados, dado que o projeto pressupunha a manipulação de recursos tecnológicos do universo maker (impressoras 3D, cortadoras laser, arduinos, etc),

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o curso foi redesenhado para o formato remoto. Nesse sentido, os participantes receberam kits de equipamentos e componentes em suas casas e as aulas foram conduzidas por meio de plataformas de videoconferência de maneira síncrona, preservando a identidade dos encontros. O desfecho foi surpreendente. Além de terem criado materiais multissensoriais extremamente inovadores e que alcançaram com primazia os objetivos de aprendizagem planejados, os educadores desenvolveram fortes laços de colaboração. Bons exemplos são o tabuleiro de rpg para aulas de língua portuguesa e literatura, uma versão acessível do jogo africano da Mancala para uso em atividades lógico-matemáticas e a caixa de instrumentos musicais, que permite jogos de reconhecimento de sons e tons, a partir de simples acionamentos de botões. Estamos agora iniciando a edição 2021, e o êxito da migração para o mundo virtual vai permitir, dessa vez, a participação de representantes de municípios de todas as regiões do Brasil. Sejam quais forem os desafios que ainda teremos pela frente, apostar na capacidade criativa, no potencial de protagonismo e na força do trabalho colaborativo parece ser uma estratégia poderosa para que preservemos o insubstituível e precioso percurso de aprendizagem de cada estudante, sem deixar ninguém para trás.


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COLUNA!

QUANDO OS PROFESSORES SERÃO VACINADOS? Não existe escola sem professor; e não existe ambiente seguro para eles sem imunização texto RITA LISAUSKAS ilustração ESTÚDIO KIWI

Já se passou mais de um ano, mas ainda não está claro como e quando as crianças e os adolescentes brasileiros poderão retornar às escolas, mesmo depois de já terem passado tanto tempo afastados das salas de aula por causa da pandemia do coronavírus. O cenário é catastrófico. Os estudantes das escolas públicas foram os que mais sofreram pela falta de conexão à internet e meios para poder acompanhar as aulas online, e o perigo de um aumento na evasão escolar entre esse grupo é real – esses jovens estão cada vez mais longe dos livros, dos cadernos e de qualquer tipo de motivação para prosseguir. Os filhos da escola particular também padeceram, claro. Mesmo tendo, em tese, internet mais rápida e acesso mais facilitado a tablets ou computadores, as crianças e os adolescentes estão solitários, deprimidos, com saudades da vida de antes – e também sem perspectivas. Parece fora do tom reclamar da ausência de um plano educacional ou de um conjunto mínimo de procedimentos para esse ano letivo quando ainda estamos lutando pela liberação de vacinas, pela compra de agulhas e implorando por um plano de vacinação mais bem-estruturado. Mas essa discussão está completamente fora da pauta, e com a anuência de grande parte da sociedade brasileira e do Ministério da Educação, que lavou as mãos e jogou no colo de estados e municípios todas decisões sobre um assunto tão complexo. Enquanto qualquer tentativa de fechamento de comércio, academia, bares e restaurantes gera revolta na opinião pública, a possibilidade

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que crianças e adolescentes possam ficar mais seis meses (ou até mais um ano!) fora das escolas é aceita passivamente. A filha da minha comadre estava aprendendo a ler e escrever e o processo de conhecer os sons, letras e palavras foi interrompido de forma abrupta, e tem sido difícil manter essa trajetória tão bonita no formato online, sem uma professora ajudando a pegar no lápis, segurando na sua mão. Daria para passar um dia inteiro aqui elencando as pequenas e grandes tragédias enfrentadas por cada uma das faixas etárias que esta longe da escola e dos amigos durante essa pandemia. É desolador. A solução colocada à mesa é a volta das aulas presenciais. Os professores têm sido pressionados a topar esse retorno sob o argumento de que as crianças geralmente enfrentam casos mais leves de coronavírus ou são assintomáticas (embora sejam transmissoras do Sars-Cov 2 em ambos os casos), segundo as pesquisas científicas. Mas eles não são crianças. Os educadores são adultos, que muitas vezes moram com pais idosos e têm comorbidades como hipertensão, diabetes e obesidade que, comprovadamente, aumentam o risco de casos graves do coronavírus. Não existe escola sem professor. E não existe ambiente totalmente seguro para eles se não houver vacinação. O nosso plano de imunização não coloca os educadores na lista de prioridades, e nós estamos em silêncio no que diz respeito a isso. Também estamos calados em relação a uma série de absurdos que tem acontecido nos últimos tempos.


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