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R$ 14,50 Edição #001 Ano 001 julho/agosto 2021






Pra você que tá cansado de se sentir invisível nessa bagunça que é São Paulo e precisa de um norte, te apresentamos a zona. Um zumbido no meio da cidade, um ruído que incomoda e estremece as bases e, ao mesmo tempo, uma inspiração cheia de histórias e experiências da galera que movimenta SP. Uma revista criada pra expandir os nossos espaços e amplificar as nossas vozes por todas as ruas da cidade. A zona é o meio onde você vai ficar ligado no que rola por aí. Então cola aqui que vamos te apresentar de tudo um pouco. A gente começa se jogando no eixo mil grau°, onde a cultura e arte são o centro. Você vai conhecer mais sobre a trajetória de personalidades periféricas que têm muito pra compartilhar, seja na arte, música, dança, audiovisual, moda ou literatura. Já no corre (!), a conversa fica um pouco mais séria. Vamos dar uma olhada na situação do nosso ambiente a partir dos temas ligados ao trabalho, à moradia, mobilidade, educação e ao ativismo, mostrando a realidade da galera. E pra finalizar, vamos apresentar algumas recomendações imperdíveis de séries, músicas, podcasts, livros e até projetos pra você se manter inspirado e ativo durante essa vida monótona de pandemia. A zona, então, é o encontro dos corres de todo dia e a celebração de tudo que é mil grau, e a gente curte. Aproveite!

IGOR

MARCEL

SOFIA

NAMIE

Escola Superior de Propaganda e Marketing Graduação em Design Turma DSG3A 2021.1 Projeto III Marise De Chirico Cor, Percepção e Tendências Paula Csillag Produção Gráfica Mara Martha Ergonomia Matheus Pássaro Finanças Alexandre Ripamonti Marketing Estratéico Leonardo Aureliano Projeto Editorial e Gráfico Igor Oliveira Medeiros Silva Marcel Puodzius Barbosa da Silva Namie Hideshima Arakawa Sofia Barros Doria


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COLABORADORES CARLA ARAKAKI @carlaarakaki Como fotógrafa, sua paixão pelas ruas lhe permite registrar a cena do rap, grafite e da pixação desde 2014. Como DJ e produtora, faz parte da dupla Ice Cream Girls e é DJ da rapper mineira Clara Lima.

JR FRANCH @jrfranch Do Pará, veio para São Paulo aos 21 anos, onde começou na publicidade e propaganda e mais à frente iniciou seus trabalhos em editoriais de moda. Com a fotografia, busca manifestar a beleza que as pessoas têm dentro LUCA MEOLA @lucameola1977 Sociólogo, desde 2014 tem vivido entre a Itália e o Brasil, onde se entrega à fotografia de rua e reportagem social, especialmente nos espaços da cidade de São Paulo.

GUI CHRIST @guichrist Dedica seu trabalho à documentar os problemas sociais do Brasil e da América do Sul. Através de suas fotografias, busca dar visibilidade às comunidades e culturas ameaçadas de forma criativa.

MARCOS MELLO @mellotipografo Designer, tipógrafo e letterpress printer, hoje é professor na ESPM e na FAAP, sócio diretor da Oficina Tipográfica São Paulo – OTSP, ONG voltada à pesquisa da memória tipográfica brasileira.


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ABRAM OS CAMINHOS

DEUS DO ÉBANO

POESIAS À MARGEM

22 FLOW

38 PASSINHO

56 VERBO

Milton Nascimento e Criolo: novo sentido de vazio de São Paulo

Juventudes ocupam as cidades com o hip hop

Winnieteca: leitura como ferramenta de combate ao racismo

24 ESTILEIRA

42 NA FITA

60 MÓ VISÚ

Tasha e Tracie: as gêmeas da moda acessível

Registros de uma quarentena na periferia

Mulheres pixadoras quebram a barreira de gênero nas ruas


corre (!)

68 92 TODO CORPO

POR QUE AGLOMERAM?

10 BRISA Das ruas pra zona

É POLÍTICO?

66 PEGA A VISÃO Carta ao presidente

110 ANOTA AÍ Recomendações

78 TÁ LIGADO

100 TRÂNSITO

Como fica o ativismo com a quarentena

A morte de Marina Harkot e o machismo das cidades

82 GOMA

104 TRAMPO

A espera de um lar no centro de São Paulo

Empreender não precisa ser difícil!

88 NÃO MOSCA Aprender finanças com as músicas dos Racionais


BRISA

VAXINA por Carol Naspitz

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AINDA DÁ PARA TRAZER BOAS NOTÍCIAS por M.M. Izidoro

Faz um tempo que eu falo para os meus amigos que nesses tempos de crise a gente tem de ser como os caranguejinhos que vivem no fundo do mar. Pode estar a maior tempestade lá em cima na superfície do oceano, daquelas de balançar navios com ondas gigantes, que lá embaixo o caranguejinho tá de boas procurando uma conchinha nova para usar de casa. O mundo tá um caos desde sempre. Faz tempo que o mundo tá nessa tempestade e sempre vai estar. As redes sociais e ciclos de notícias 24 horas fazem essa tempestade parecer ainda pior, pois ela não passa nunca. Ela pode estar acontecendo só em um cantinho do oceano, mas todas as câmeras, microfones, posts e stories vão focar ali, dando a impressão que não tem saída nunca. Mas se a gente olhar pro lado, se a gente olhar para o pequeno e o que está ao nosso alcance, tá tudo bem. Tá tudo certo. A gente pode estar no meio de uma pandemia, e de uma política genocida, mas ainda tem gente entrando na faculdade, gente conseguindo emprego, gente curando de câncer, gente tentando integrar a gente mais com a natureza e a natureza fazendo sua mágica todo dia bem na nossa frente. A gente está cercado de boas notícias o tempo todo. Mas às vezes parece que a gente não consegue parar para ver. Na grande tempestade que estamos vivendo, nos dar um tempinho para respirar é quase revolucionário. Nem que seja por 15 minutinhos lendo uma revista, ouvindo um podcast e sonhando um pouco, talvez fazer isso te inspire a ver sua própria notícia boa aí na sua família e no seu bairro, e quem sabe um dia alguém se inspire em você também e assim o ciclo virtuoso acontece. Então esquece do navio que está se debatendo lá em cima e se deixe levar lá pro fundo do mar onde o clima outonal está delicioso e ainda dá para passar um tempinho de boas, como caranguejinhos.

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ABRAM OS CAMIN Com sonoridade fresca e mostrando um funk sem interferências internacionais, Mc Tha conta como chegou até aqui se mantendo 100% fiel a si mesma texto Giuliana Mesquita fotografias JR Franch

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NHOS julho/agosto 2021

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chegou de mansinho na cena de música popular brasileira. Apesar da sigla em seu nome, a sonoridade que MC Tha entregou na sua segunda empreitada na música – a primeira foi aos 15 anos – já era bastante diferente do que conhecemos popularmente como funk, mais pop e comercial. Os singles “Bonde da Pantera”, “Olha Quem Chegou” e “Valente” ainda carregavam resquícios do estilo musical que moldou seu gosto quando começou a cantar com 15 anos nos bailes funk, da Cidade Tiradentes, na Zona Leste de São Paulo. Por conta de seu primeiro disco, no entanto, tudo mudou – sua história foi finalmente contada com todas as minúcias e particularidades que ela carrega. Em Rito de Passá, lançado em 2019 e produzido por Pedrowl, Mc Tha encontrou seu caminho e o apresentou para um público que ainda não entendia como seria um funk sem nenhuma interferência internacional. No mercado atual do funk, em que Rihanna e Beyoncé são referências tanto no som quanto na estética, Tha entrega um bem-vindo frescor ao cenário musical brasileiro. “Comecei a pensar como seria o funk e sua estética se a gente olhasse mais pro nosso país. A gente tá sempre pegando coisas de fora para que a gente caiba dentro”, pontua. Mc Tha conta quais planos de 2020 teve que deixar para este ano, o que pretende mudar no seu show e o processo de criação dos seus três clipes recém-lançados (“Onda”, “Oceano” e “Despedida”, o trio batizado de “Renascente”). Além disso, a cantora conta sobre o caminho que percorreu até encontrar sua verdade, misturando música, religião e estética 100% brasileira.

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Como você começou a cantar? Mc Tha_ Comecei quando tinha 15 anos, quando eu despertei meu interesse para me envolver com música. Sou da Cidade Tiradentes, na Zona Leste de São Paulo. Na época, a gente estava recebendo fortes influências do funk carioca, que veio pra São Paulo, primeiro para a Baixada Santista e depois pra capital. Comecei a me envolver com funk nessa época, as pessoas do meu bairro também – a maioria se tornou mcs e djs e começou a organizar as festas. Naquela época, existia uma cultura muito forte de ter bondes – todo jovem tinha um bonde pra participar e tinha que ter um mc representando. E eu comecei assim por acaso, porque eu rimava na hora, ainda na oitava série, mas eu nunca pensei em ser cantora. Foi aí que você começou a compor? Mc Tha_ Escrevi uma música que falava de todo mundo que pertencia ao nosso bonde, o Bonde Sinistro. Mostrei pra dois amigos meus, uma dupla, o Mc Gordo e Mc Marola, perguntei se eles tinham gostado e presenteei eles com a música, pra eles gravarem e cantarem nas festas. Nessa época, tudo era produzido em casa mesmo. Fui um dia na casa de um deles, baixamos uma base na internet e eles falaram pra eu cantar até eles aprenderem. Isso foi em 2008 ou 2009. Daí, eles acabaram produzindo a faixa com minha voz mesmo e soltaram na internet. Nossa principal forma de divulgação na época era o YouTube e o 4Shared – a gente subia o arquivo da música pra que as pessoas baixassem. Daí, começava a divulgar esses dois links no Orkut e no msn

COMECEI A PENSAR COMO SERIA O FUNK E SUA ESTÉTICA SE A GENTE OLHASSE MAIS PRO NOSSO PAÍS. A GENTE TÁ SEMPRE PEGANDO COISAS DE FORA PARA QUE A GENTE CAIBA DENTRO

e era muito importante ter muitos amigos nas redes nessa época. Eu tinha seis Orkuts e três msn, eu era muito bombada, era o auge (risos). Quando ele produziu essa música, ele não me falou, então eu comecei a ir pra escola e as pessoas me paravam para falar que tinham adorado. Mas, nesse momento, eu ainda não queria cantar, sou tímida. Como foi seu primeiro show? Mc Tha_ Esse mesmo amigo conseguiu arrumar um show para mim no lugar que ele também ia fazer. Falou que já tinha conversado com a casa de shows e que iria se queimar se eu não fosse. Aí eu fui e a coisa foi crescendo, todo mundo foi me incentivando. Eu já tinha outras músicas guardadas, porque sempre gostei de escrever. Tudo que eu escrevia era rimado, cartinhas rimadas, tudo. Aí eu pensei: “bom, já que todo mundo gostou, eu vou gravar”. Pedi dinheiro emprestado pra minha mãe e fui gravar no Power Song, estúdio que era tipo o Kondzilla da época. Com 15 anos, fiz amizade com os mcs da baixada, me meti em todo canto e comecei a gravar. Não sei nem como eu tô viva (risos). Gravei e participei do meio do funk produzido e feito na periferia até os 18 anos.

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Nesse momento, você fez uma pausa na carreira, certo? Mc Tha_ Sim, pois comecei a entender que eu estava colocando mais prioridade no funk do que no resto das minhas coisas, como meus estudos. Comecei a trabalhar num projeto social chamado Fábrica de Cultura e, ao mesmo tempo, fiz faculdade de Jornalismo. Fiquei um tempo sem cantar, porque estava estudando e trabalhava todo final de semana. Entrei na Fábrica como Como ser uma mulher no meio artístico te emmonitora, na equipe de promoção e purrou em direção a essa tomada de decisão? articulação, que fazia a ponte entre Mc Tha_ O tempo estava passando e, infelizmente, o espaço cultural e a periferia. As a mulher ainda só é validada quando está nova, Fábricas foram construídas em dez bonita, com o corpo de alguma forma dentro do locais de São Paulo que tem um alto padrão. Pensei muito nisso e decidi arriscar na índice de vulnerabilidade social. minha carreira musical. Com 23 anos, eu achava Nossa equipe aproximava a periferia que já era velha. Para as pessoas do lugar onde do projeto, nós íamos nas escolas, eu nasci, se eu não estivesse casada e com filhos, nas associações e organizava os tinha falhado na vida. Com 24 anos e ainda na eventos. Comecei a trabalhar em dúvida, fugi muito desse padrão. Entendi que uma das unidades e rodei todas da tinha que ser naquele momento, senão ia ficar Zona Leste, até ser promovida para pensando o resto da minha vida como teria sido. assistente de subgerente e depois Foi aí que lancei “Olha Quem Chegou”, depois para assistente de coordenação. Em “Bonde da Pantera” e “Valente”. Fui arriscando, 2017, percebi que não tinha mais tem- tentando… Mas eu ainda tinha o trabalho de respo pra fazer minhas coisas, sentia significar meu trabalho. Não via mais sentido em falta não exatamente de estar no cantar e fazer o funk que era feito na periferia. mundo artístico, mas de conseguir Por mais que eu ache incrível, eu não me identificava mais. Não queria falar de fluxo, de copão me expressar de alguma forma. de whisky, de bunda, não me via mais nisso. Só que eu também não me via no funk pop. Depois do funk ostentação, era o que tava bombando,

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Mc Tha cantava desde adolescente, mas com 23 anos decidiu se arriscar e se jogou na carreira musical

com Anitta e Ludmilla como os principais nomes. Não me via dentro desse meio porque, pra mim, seria sair de uma caixa e entrar em outra. Quando eu tava no meio do funk no meu bairro, eu curtia, mas já sentia muito desconforto. Na época, não entendia o que era. Hoje, entendo que era por ser uma mulher naquele ambiente, o tempo todo sendo hipersexualizada, tinha toda uma expectativa do que era ser uma funkeira, de vestidinho com salto que rebola no palco. Nunca me senti confortável nesse papel. Quando eu voltei a cantar, pensei em tudo isso. Como seria uma MC Tha que fosse confortável pra mim, com a música que eu gosto, com o cabelo que eu gosto, com a roupa que eu gosto… E como foi essa redescoberta? Mc Tha_ Quando saí do trabalho, peguei o dinheiro da rescisão e gravei o clipe de “Bonde da Pantera”. Já tinha entendido que era um trabalho de construir meu espaço. Na época, surgiu muito essa discussão sobre não tirar o MC do nome e eu entendi que não precisava, porque

era um trabalho de ressignificar o que pode ser considerado funk ou não. Entendi que, pra mim, o funk funciona como identidade – muito mais do que cantar uma música com a base do funk. Era meu trabalho mostrar para as pessoas do meu bairro e da periferia que existem outras possibilidades, que as pessoas não precisam sempre se encaixar na onda que tá rolando no momento. Depois disso, procurei reaproximar o funk da música percussiva e da música de terreiro. O deus da periferia é um deus evangélico. Os terreiros perderam espaço entre as pessoas pretas e periféricas e passou a ser rejeitado por conta das religiões evangélicas. Se você chega no baile funk e fala que Exu é rei, as pessoas te olham estranho. Mas a música que é tocada e que é produzida é uma música de matriz africana, que descende dela. Em algum momento, eu peguei pra mim esse papel de reaproximar as duas coisas, mas também de me perceber enquanto mulher brasileira, que não só ouve música brasileira, que não sabe de nada do que tá rolando lá fora. Comecei a pensar como seria o funk se a gente não tivesse interferências externas. Qual seria a estética desse funk se a gente olhasse mais pro nosso país. Tem

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A música de terreiro é uma forte referência de sua identidade, que incorpora a essência da cultura brasileira em suas produções

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O DEUS DA PERIFERIA É UM DEUS EVANGÉLICO. OS TERREIROS PERDERAM ESPAÇO ENTRE AS PESSOAS PRETAS E PERIFÉRICAS E PASSARAM A SER REJEITADOS


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muita cantora pop que é igual a Beyoncé, que o que rege a personalidade é a Rihanna, porque a Rihanna é assim, ela fuma maconha… (brinca) O que não é negativo, mas a gente tá sempre pegando coisas de fora pra que a gente caiba dentro. Entender a MC Tha foi entender isso. Minhas referências são todas daqui de dentro. Como foi lançar seu primeiro CD? Mc Tha_ Eu tinha o projeto de lançar um EP. Lançando músicas soltas, as pessoas não entendiam meu conceito. Daí chegavam no show e eu cantava Elza Soares numa base de funk e todo mundo ficava perdido. O funk tem a cultura de lançar single, não tem essa coisa de fazer CD e EP. Foi difícil eu entender que era isso que eu precisava fazer, era uma organização que não tinha no funk e está começando a chegar agora só. O Pedrowl foi o diretor do álbum e, com o tempo, a coisa foi crescendo. Era pra ser um EP e virou um álbum. Eu já tinha algumas músicas, a maioria já existia. “Clima Quente” é a mais antiga, fiz durante meu crescimento como cantora. Eu guardava algumas músicas em uma gavetinha. Compus três especialmente pro álbum, “Despedida”, “Oceano” e “Comigo Ninguém Pode”. Foi um ano e meio ou dois de gravação. Era uma fase em que eu estava mal financeiramente e não tinha dinheiro nenhum, foi tudo gravado na raça. Chamei amigos que estavam a fim de produzir pra mim, eles retornavam com um rascunho do que poderia ser a música e eu e o Pedro fomos finalizando.

Só depois eu entendi a importância de ter lançado um álbum, pois chegamos em um conceito forte. Hoje, as pessoas conseguem entender mais qual a minha proposta. Eu quis explorar vários temas no álbum “Rito de Passá”. Não queria ficar conhecida com um título, uma mulher que só canta sobre sofrência ou sobre amor. Tem música que fala de sexualidade, religião, empoderamento, solidão… Quis passear em vários temas e dar uma misturada nos estilos, mas também queria criar uma unidade. É engraçado você falar que há músicas antigas e mais novas, porque parece que o álbum conta uma história muito linear… Mc Tha_ Quando estava no meio das produções, a gente percebeu que elas se ligavam de alguma forma e que podiam contar uma história. Daí resolvemos organizar as faixas para que realmente contasse. Depois do “Rito de Passá”, tem uma MC Tha falando da sua liberdade, depois fala de sexo, depois vai pra uma pequena paixão, em “Onda”. Em “Oceano”, ela quebrou a cara, em “Despedida” tá mandando ele embora e, em “Maria Bonita”, ela já tá empoderada. É uma história mesmo.

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Quanto você acha que o visual influencia na sua construção de identidade? Mc Tha_ Acho que o visual cria possibilidades. Já vi alguns trabalhos de meninas que estão começando e já percebo que elas bebem um pouco da minha fonte. Você ter confiança para acreditar no que acha que tem que ser, sem ficar apegada numa lógica comercial, é muito poderoso. Entender nossos limites e nossos tempos também é muito importante. Eu friso muito que eu não sou perfeita e que eu não vou ser. Se vocês esperam uma cantora que chega de bom humor dando bom dia todo dia, eu não sou essa pessoa. Quem não entender isso pode se retirar. Peguei pra mim a missão de desconstruir isso que foi imposto sobre o corpo e sobre como se comportar para cantores, artistas e, principalmente, mulheres. Eu não sou uma história bonitinha. Já faz doze anos desde os meus 15 e eu quero que as pessoas entendam que não é necessário só força de vontade. Você tem que saber se ler, confiar em você e trazer o seu melhor. Sou muito insegura – eu uso a tática de não ficar muito ligada no que está acontecendo externamente. Se eu fico no Instagram acompanhando todo mundo, isso afeta muito minha confiança no que eu estou fazendo. Prefiro voltar pra dentro de mim para entender o que é pra ser feito.

Como foi a pandemia pra você? Mc Tha_ A pandemia prejudicou muito a classe dos artistas independentes. Tá todo mundo fudido, sem grana, sem show, sem publicidade. A publicidade, que poderia ser um caminho legal, acaba não rolando porque você tem que ter milhares de seguidores e, ainda por cima, a gente tem que ficar vendendo a imagem de que tá todo mundo bem. Os fãs ficam pedindo álbum novo no meio da pandemia, pedindo pra lançar clipes melhores… Amado, com que dinheiro? Prefiro trazer a realidade. A gente só ganha dinheiro com show e, tudo que a gente ganha, é reinvestido na gente. Gosto de aterrar as coisas. A pandemia também foi um período muito confuso pra mim. Eu fui um talento interrompido precocemente (risos). Lancei o álbum e só fiz seis meses de show, tudo foi cancelado. Eu tinha uma turnê fechada na Europa, em três países diferentes, além do Lollapalooza. Tinha muita coisa pra acontecer em 2020. Só foi confortável pra mim porque eu comecei a guardar dinheiro desde que começou a rolar os shows. Tive muita paciência, talvez por estar nesse lugar confortável, para entender que quando tudo voltar, nada do que eu fiz será perdido. As coisas só vão continuar. Você morava na Cidade Tiradentes, mudou para o centro de São Paulo, e hoje mora na ZL de novo. Por que decidiu voltar? Mc Tha_ Foram muitos processos. No tempo em que eu comecei a fazer faculdade e trabalhar, eu me mudei pro centro, que foi quando eu morei com o Jaloo. Tive essa vivência, foi muito diferente, muito louco. Os costumes eram

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diferentes, as pessoas também. Foi um choque de realidade. Mas tudo isso foi muito bom para eu entender meu trabalho com arte. Na Cidade Tiradentes, eu ia pra escola e pro funk, vivia numa bolha. Eu nem imaginava que o mundo pudesse ser tão grande como hoje eu enxergo ele. Tive que me distanciar das minhas realidades para eu entender como ela era. Eu não me percebia como mulher negra. Foi só com esse distanciamento que eu me encontrei. Quando voltei pra ZL, estava tendo muitas crises de ansiedade e de pânico e percebi que era por causa do lugar que eu morava. Hoje, moro perto do meu terreiro, em um bairro de mais fácil acesso do que a Cidade Tiradentes, perto de Itaquera.

Como foi o processo de lançamento dos seus últimos três clipes? Mc Tha_ Decidi me movimentar para tentar trabalhar mais meu álbum apesar da pandemia. Os vídeos vão todos se interligar, mas não consegui lançar todos de uma vez. Fui fazendo aos poucos. Desde o início, a ideia era lançar clipe para todas as músicas do álbum. Fico feliz que consegui lançar os vídeos de “Onda”, “Oceano” e “Despedida”, uma trilogia que batizei de “Renascente”. Depois disso, os próximos passos são reestruturar a banda, fazer mais ensaios para ter um show novo quando tudo voltar e, em paralelo, pensar em um novo álbum. Mas tudo no seu tempo.

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milton e criolo Os cantores Milton Nascimento e Criolo fazem releitura de “Não Existe Amor em SP” e geram campanha solidária para a população vulnerável 22

Instagram @miltonbitucanascimento

FLOW


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Balada de espírito soul que há nove anos ajudou o rapper paulistano a atravessar as fronteiras do hip hop com álbum consagrador, “Nó na orelha” (2011), “Não existe amor em SP” consegue enternecer e ainda surpreender, quase uma década depois, em gravação que reúne Milton e Criolo. Feita seis anos após os artistas tendo juntado forças e vozes no show da turnê Linha de frente (2014), em registro minimalista, gravado em 4 e 5 de março em estúdio paulistano com produção de Daniel Ganjaman, Milton e Criolo adensam a canção do rapper com ênfase na melodia e sobretudo na letra de versos lapidares como “os bares estão cheios de almas vazias”. Além das vozes dos intérpretes – Milton canta toda a letra primeiro e, depois, Criolo repete os versos até o breve encontro final –, a gravação de quase seis minutos é pontuada unicamente pelo toque preciso do piano assombroso do músico pernambucano Amaro Freitas. Na imponente gravação de 2011, feita em molde orquestral, Criolo captou o vazio existencial da maior metrópole do Brasil. Em 2020, o vazio na cidade de São Paulo também é literal devido ao isolamento social necessário para o combate da pandemia do coronavírus. Essa mudança de cenário dá novo e pleno significado às imagens da cidade vazia que, no clipe dessa releitura de “Não existe amor em SP”, filmado sob direção de Beto Macedo e Denis Cisma, se alternam com takes da gravação em

estúdio onde se vê close de Criolo emocionado e flagrantes de Milton lendo a letra a que dá voz com sensibilidade. Contrariando o título do single, Criolo e Milton usam a gravação inédita como gancho para o lançamento do movimento solidário #existeamor, projeto batizado com o nome do EP e criado para arrecadar doações destinadas à população que vive em condições de vulnerabilidade social, exposta à covid-19. É possível que os ouvintes espectadores se mobilizem e ajudem, até porque não existe nada mais bonito nas plataformas de áudio e vídeo do que essa ressignificação de “Não existe amor em SP” com Criolo ao lado de Milton Nascimento.

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tracie e tasha

Expensive $hit

As gêmeas que viraram ícones de moda da favela e de todo o Brasil

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“ “A indústria da moda não me representa, porque até quando ela tenta não ser excludente, ela é”. Quem disse isso foi uma mulher de 22 anos, preta, da favela paulista do Jardim Peri e que trabalha, vejam só, com moda. Tasha Okereke é irmã gêmea de Tracie e, juntas, elas vêm ganhando o mundo com seu blog Expensive $hit e outros projetos focados em trazer autoestima para a mulher negra através da moda, da música e da cultura de maneira geral. “Os pretos do Brasil precisam de autoestima para poder se impor e desenvolver as coisas”, quem fala dessa vez é Tracie. E é com conhecimento de causa. Se seu currículo tem projetos já apoiados por marcas como Nike e Melissa e a dupla se considera It-Favela (referência de moda das comunidades), lá atrás não era bem assim. “Na adolescência, a gente era complexada. Achava que a mulher preta nunca seria a menina que namora, de que alguém gosta na escola, que todo mundo acha bonita”, lembra Tasha. “A gente chorava todo dia por causa do cabelo. Nessa época, roupa era pra gente se cobrir, porque não tinha grana, comprava uma vez por ano”. Mesmo neste período, o gosto pela moda já estava nelas – especialmente o gosto pela moda africana, que entrava em suas vidas através da influência do pai nigeriano. E, mesmo não se enxergando nos programas de tv que assistiam, buscavam inspiração na música, em nomes como Tupac, Snoop Dog e Diana Ross.

OS PRETOS DO BRASIL PRECISAM DE AUTOESTIMA PARA PODER SE IMPOR E DESENVOLVER AS COISAS

Até que, um dia, as duas ganham uma blusa de presente e decidem deixar a peça mais a sua cara: cortar embaixo, fazendo um cropped. “A gente não tinha nem o básico e só ganhava as coisas. Aí era natural customizar as roupas”, lembra Tasha. Brechós que vendiam peças por um ou dois reais eram a fonte primária da dupla, que transformava cada roupa para conseguir transmitir sua identidade. Para isso, cortar era a principal ferramenta, já que não tinha custo. “Quando queríamos uma estampa, a gente escrevia com caneta”. O hábito logo chamou a atenção de uma amiga, que deu a ideia de fazerem um blog. Nascia, em janeiro de 2014, o Expensive $hit. Sem internet em casa, elas usaram o computador de um tio para começar. Tasha passou a noite criando o blog e, de madrugada, acordou a irmã. “Colocamos um colchão na frente do fogão e fizemos as fotos ali”, conta. Para subir os arquivos, usavam lan houses e casas de amigos. A proposta: “mostrar que é possível se vestir escandalosamente bem com MUITO pouco (muito mesmo)!”

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Desde o começo, o blog fez sucesso entre jovens de periferia, que podiam encontrar ali editoriais de moda lindos, que nunca custavam mais de vinte reais. Logo, elas também passaram a promover festas e, em algum momento, conquistaram o reconhecimento. Foram procuradas por marcas, desenvolveram diversos projetos e a vida mudou. “O que mudou? Acho que o principal é que a gente não trampa mais de camelô, né? A gente tem dinheiro para fazer compra de mercado, se eu vou pro rolê, dá pra beber alguma coisa”, diz Tasha. O blog ainda existe, mas não é atualizado com muita frequência. Isso não quer dizer que as gêmeas estejam à toa. Em março, fizeram o primeiro desfile próprio, através do coletivo Mulheres Pretas Independentes da Favela (Mpif), com Aniele Ribeiro e Valérie Alves. Na passarela, só mulheres negras da favela. “Todo mundo ama nossa cultura, mas ninguém quer ver a gente vestindo a nossa cultura. Eles preferem pegar uma pessoa branca e pintar de preto do que chamar quem realmente criou”, explica Tasha e completa: “Quando a indústria convida a gente para participar de alguma coisa, querem higienizar a gente. Querem nossa influência (negra, da favela, de origem africana), mas não quem somos de verdade”. Além do coletivo, elas seguem fazendo festas, principalmente nas quebradas de São Paulo. As gêmeas não querem só levar cultura e moda para a periferia, mas também cursos profissionalizantes, aulas para

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as mulheres aprenderem a cuidar do próprio cabelo. Nos planos, também estão aulas de história. E qual é o próximo sonho à vista? Lançar uma marca própria. “Nossa! Tem muitos projetos, esses são os que a gente pode falar. A ideia é que o nosso dinheiro volte para a periferia. Que o dinheiro do preto volte para o preto e todo mundo enriqueça, é uma ambição bem grande”. E se em outras bocas isso poderia soar sonhador demais, olhando a trajetória da dupla, parece mesmo que é só uma questão de tempo.


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TODO MUNDO AMA NOSSA CULTURA, MAS NINGUÉM QUER VER A GENTE VESTINDO A NOSSA CULTURA

Tracie (à direita) e Tasha produzem os próprios looks c ostumizando roupas de brechó

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DEUS DO ÉBANO Ismael Ivo, bailarino brasileiro reconhecido internacionalmente nos palcos teve seu corpo como ferramenta na produção cultural texto Kauê Vieira e Gabriel Monteiro fotografias Marcos Villas Boas e Christian Benesch


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smael Ivo nos deixou. O célebre bailarino e coreógrafo saiu de cena, discretamente, aos 66 anos. O embaixador da dança no país onde a cultura ainda é, infelizmente, tratada como uma espécie de produto de segunda linha, faleceu vítima da covid-19. Ivo se junta ao panteão de cabeças pensantes arrancadas do convívio de um país cada vez mais carente de cultura. De Ismael Ivo. Foi assim com Aldir Blanc, com os atores João Acaiabe e Gésio Amadeu; Nicette Bruno e Ubirany Félix e tantos outros que sucumbem vítimas de um governo negacionista e que insiste em minimizar os efeitos de uma pandemia que já matou quase 400 mil pessoas.

A COR DA NOITE

Ismael Ivo tinha a cor da noite. Homem negro, com os músculos definidos pelo trabalho de mais de 30 anos de carreira apenas no exterior, Ivo era a definição perfeita de um Deus do Ébano, como bem cantou o Ilê Aiyê. Sua vida foi dura. Ismael Ivo nasceu na periferia da Zona Leste de São Paulo, Vila Ema, precisamente. Filho de empregada doméstica, foi criado apenas pela mãe e desde pequeno encarou as dificuldades impostas aos que nascem com a pele da cor da noite. O Brasil não conhecia Ismael Ivo. Assim como acontece com diversos representantes de variados segmentos artísticos, o bailarino teve seu talento reconhecido no exterior, para onde embarcou em 1984. Ismael Ivo desembarcou em Viena, onde fundou ao lado do diretor artístico Karl Regensburger, o

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festival de dança contemporânea ImPulsTanz, na capital da Áustria. O Brasil, enquanto isso, dava os primeiros passos para sair de uma ditadura sanguinária e que atingiu principalmente a arte. O exílio se tornou comum para expoentes da nossa cultura como Gilberto Gil e Geraldo Vandré. À frente de um dos maiores festivais de dança da Europa, Ismael Ivo viu sua vida se transformar por meio da dança. No início dos anos 2000, Ivo se tornou o diretor da Bienal de Veneza. “O Brasil já é uma Babilônia de raças e culturas. Não se pode viver aqui sem intuição; intuição a gente come com arroz e feijão”, declarou Ivo durante a entrevista. Os passos deste homem negro ao encontro da história seguiram. Ismael Ivo desembarcou na Alemanha, onde se tornou o primeiro negro e estrangeiro à frente do Teatro Nacional Alemão, na cidade de Weimar.

FOI UMA ASSOCIAÇÃO DE IDEIAS, E COMO ATÉ HOJE FAÇO COREOGRAFIA ASSOCIANDO DIFERENTES ELEMENTOS E IDEIAS CONVERGENTES, ENTÃO, NO DELÍRIO EU VEJO AO MEU REDOR, ONDE EU NASCI, O QUE EU ESTOU VENDO E VIVENDO

Ismael Ivo na cidade de Weimar, Alemanha, onde passou 12 anos de sua vida durante a carreira internacional

DELÍRIOS DE UMA INFÂNCIA

Ismael Ivo passou 12 anos de sua vida na Alemanha, mas sempre manteve conexão com a sua terra natal brasileira. Ele trouxe para São Paulo o espetáculo Othello, de William Shakespeare, e se apresentou ao lado do grupo de dança do Teatro Nacional da Alemanha. Para muitos, “Delírios de uma Infância” foi seu melhor trabalho. O espetáculo estreou em Berlim, em 1989 e reúne, por meio da dança, as impressões de uma criança negra nascida na periferia do Brasil. Ismael Ivo condensa memórias afetivas de sua vida pessoal como a ancestralidade negra e o impacto da escravidão na história de um dos países mais racistas do mundo. Ismael Ivo falou sobre “Delírios de uma Infância” em participação recente no programa Conversa com Bial, onde foi entrevistado pelo apresentador da TV Globo. “Foi uma associação de ideias, e como até hoje faço coreografia associando diferentes elementos e ideias convergentes, então, no delírio eu vejo ao meu redor, onde eu nasci, o que eu estou vendo e vivendo e ao mesmo tempo associando com a canção de Gustav Mahler, ‘Canções para uma criança morta.”

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A reaproximação com o Brasil aconteceu tarde, precisamente em 2017 quando, finalmente, assumiu a direção do Balé da Cidade de São Paulo. Ismael e a história se encontram novamente, já que ele se tornou o primeiro negro à frente de uma das companhias de dança mais importantes do país. País este com 54% de pretos e pretas, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A gestão de Ismael Ivo aproximou a cidade de São Paulo de um de seus símbolos. O Theatro Municipal, ícone de beleza e segregação. O bailarino dirigiu “Corpo Cidade”, que usou a dança para falar da relação entre a metrópole e as pessoas que nela vivem. Foi um sucesso, principalmente pelos ingressos a partir de R$20. O racismo estrutural, porém, esteve sempre na cola de Ismael Ivo. O bailarino acabou demitido do Balé da Cidade de São Paulo após acusações de assédio moral, negadas . “Minha carreira artística e profissional é imaculada. No mundo todo, por onde passei, sempre respeitei e fui respeitado como ser humano e

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MINHA CARREIRA ARTÍSTICA E PROFISSIONAL É IMACULADA. POR ONDE PASSEI, SEMPRE RESPEITEI E FUI RESPEITADO COMO SER HUMANO E COMO ARTISTA.

como artista. Manchar minha imagem tornou-se uma verdadeira obsessão. Tanto que mesmo após eu ter sido inocentado pela comissão especial continuo sendo atacado e impedido de retornar ao cargo que ocupava”, se manifestou em nota na época. O Brasil não conhecia Ismael Ivo, que nos deixou cedo demais. Sua obra, porém, impactou dezenas de milhares jovens negros com o sonho de fazer carreira na dança. Utilizou seu corpo como uma ferramenta de criação cultural e assim inspirou diversas pessoas.

VAMOS ENEGRECER OS PALCOS!

Caso de Ingrid Silva, primeira bailarina negra do Brasil a chegar do Dance Theatre of Harlem, em Nova York, nos Estados Unidos. “Eu comecei no balé em uma comunidade próxima da minha residência, na Vila Olímpica da Mangueira, em um projeto social chamado Dançando para não Dançar. Até então todos eram parecidos comigo e com o resto do mundo. Quando fui para outras escolas e ganhei bolsa estava na zona sul do Rio. Bem elitizada. Eu era minoria, nunca entendia e nem questionava sempre achei normal até chegar ao Dance Theatre of Harlem, onde todos se pareciam comigo”, disse em Ingrid entrevista. Que a memória e trajetória de Ismael Ivo sirvam para que o Brasil se inspire e compreenda que não há possibilidade evolutiva sem a arte. Mas a arte que inclui e luta contra preconceitos históricos, como o racismo. O resto, caros leitores e leitoras, é balela e tem compromisso com a opressão.


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Ismael é fotografado em Weimar enquanto encena alguns passos de ballet

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QUANDO ERA JOVEM E NÃO TINHA DINHEIRO PARA O INGRESSO, FICAVA ALI EMBAIXO, NO POLEIRO, PARA ASSISTIR AOS ESPETÁCULOS. ERA UM INFILTRADO, UM MORADOR DA ZONA LESTE DE SÃO PAULO QUE SE LOCOMOVIA PARA O CENTRO DA CIDADE PARA VER DANÇA


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“A cultura é um elemento transformador da vida”, Ismael Ivo. Seu corpo sempre foi usado como ferramenta. Talvez por isso preferia as escadas e os corredores labirínticos do Theatro Municipal do que acessar os elevadores, era incansável. “Quando era jovem e não tinha dinheiro para o ingresso, ficava ali embaixo, no poleiro, para assistir aos espetáculos. Era um infiltrado, um morador da zona leste de São Paulo que se locomovia para o centro da cidade para ver dança." Foi diretor do teatro e do Balé da cidade, após uma carreira como bailarino e coreógrafo no exterior.

Alguns objetos pessoais de Ismael que ajudam a contar sua trajetória pela carreira internacional

A GUIA DE SALVADOR

“O meu axé está na Bahia. Minha dança sempre reinterpretou a mitologia afro-brasileira, levando as raízes para movimentos contemporâneos”. Foi em Salvador, durante o primeiro festival de dança contemporânea da ufba, no final dos anos 1970, que o bailarino foi descoberto pelo norte-americano Alvin Ailey. Coreógrafo e ativista negro, Ailey foi um dos expoentes da dança moderna internacional e esteve no Brasil em alguns momentos com sua companhia. Desse encontro saiu o convite para que Ismael estudasse em Nova York. “O episódio em Salvador marcou minha carreira, quase como um conto de fadas, e nos dias em que eu estive lá tive outro momento memorável, símbolo de tudo. Fui ao Gantois, onde ainda vivia Mãe Menininha. Quando me aproximei de sua cama, ela falou em iorubá. Contaram que eu era brasileiro, não africano, mas ela mal ligou, insistiu em falar comigo em iorubá. Essa guia de lá representa toda essa história.”

CIDADÃO PAULISTANO

Em 2017, Ismael foi convidado a dirigir o Balé da Cidade e integrar a diretoria do Theatro Municipal. Na mesma época, recebeu propostas da Göteberg Ópera, Suécia. “Ponderei muito, mas agora estou aqui. Batalhei nesta cidade e depois de quase quatro décadas fora decidi estar aqui.” Nasceu e cresceu na Vila Ema, bairro da periferia da zona leste. Na cerimônia de posse do cargo, recebeu a medalha de mérito da cidade e falou sobre sua trajetória pessoal. “Pontuei que nasci pobre, em condições precárias, no fundo dos fundos dessa cidade e que realizei meu sonho por meio da dança. Falei como a sociedade não dá oportunidades e nem visibilidade para os seus habitantes em termos iguais e como é necessário abrir a janela dos sonhos. Sendo o primeiro diretor negro a assumir o Balé da Cidade em 50 anos de história.”

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hip hop no vagão Os metrôs de São Paulo se tornaram palco para os dançarinos de breaking

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João Estrella de Bettencourt

PASSINHO


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“ O Hip Hop no Vagão nasceu no início de 2018 quando Bboys – dançarinos de Breaking – da periferia da zona leste de São Paulo se organizaram para fazer shows de dança dentro dos vagões dos metrôs e trens da cidade, com o objetivo de melhorar a situação financeira através das contribuições do público ao ver os shows. Com o passar do tempo, os shows foram ficando cada vez mais elaborados e o grupo passou a receber muitos elogios do púbico dentro dos vagões e nas redes sociais. “Percebemos que nosso trabalho estava impactando as pessoas de forma grandiosa ao nos ver dançar. Conquistando atenções, sorrisos, elogios e agradecimentos por melhorar o humor e o dia de tanta gente”.

SER ARTISTA DE METRÔ/RUA NÃO É PRA QUALQUER UM/A!

Entrar em um vagão quieto, cheio de gente cansada, e por meio da dança, num curto tempo de apresentação, melhorar o humor das pessoas. Esse é o desafio do Hip Hop no Vagão: “Chegamos de repente num vagão aleatório, sem aviso prévio, anunciando que vai rolar o melhor espetáculo de dança de rua da vida dessas pessoas. Dando um breve salve antes do show de dança com informações sobre o show e sempre interagindo com o público, roubamos a atenção da galera, colocamos música, e BUM! A magia da dança começa a acontecer. Bem ali, no mínimo espaço, aos olhos do público”, descrevem.

ROUBAMOS A ATENÇÃO DA GALERA, COLOCAMOS MÚSICA, E BUM! A MAGIA DA DANÇA COMEÇA A ACONTECER

Os dançarinos fazem movimentos de alto grau de risco e dificuldade, em um palco instável, que balança a todo momento e que está sujeito a frear a qualquer segundo sem aviso prévio. “Já houve situações que fomos tirados da estação pela segurança. Mas isso não nos desanima, pois sabemos que estamos sujeitos a passar por isso. E nos motiva quando lembramos das palmas e dos sorrisos que recebemos após finalizar cada show. Por isso, sempre que passamos por qualquer tipo de confusão, tentamos manter o respeito e a humildade, e voltar a fazer show o mais breve possível”, contam.

E A PANDEMIA?

O grupo conta que antes da pandemia, o instagram do Hip Hop do Vagão estava próximo de atingir 20 mil seguidores no Instagram. “A maioria dessas pessoas assistiram nosso show pessoalmente. E ficamos ainda mais felizes por saber que já nos apresentamos para muito mais que 20 mil pessoas nesses dois anos e meio de trabalho em coletivo nos vagões”, ressaltam.

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Facebook: Hip Hop no Vagão

PASSINHO

Na quarentena, o coletivo ficou 5 meses distantes dos vagões. Alguns membros puderam estar de quarentena, outros seguiram trabalhando em outras ocupações. Aos poucos, o grupo voltou a se apresentar nos vagões tomando todos cuidados possíveis, como máscaras durante a apresentação, e passando álcool em gel nas mãos após finalizar cada show. “Os nossos encontros e ensaios estão acontecendo nas estações de metrô do centro da cidade, para facilitar a dinâmica para todos, já que moramos cada um em uma quebrada diferente”, destacam. Este ano, o grupo também passou a acessar alguns editais públicos, para que consigam realizar planos de trabalho, e levar ações para os bairros de cada integrante, além de aprimorar os conhecimentos, práticas, aulas e apresentações. “Esperamos que logo a importância da arte seja reconhecida e valorizada. Para que possamos viver melhor fazendo o que gostamos e usar esse apoio para melhorar o nosso trabalho, que é focado na educação e nas oportunidades trabalho”, concluem.

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De cima para baixo, os bboys Uiu, Pikenokebra e Lula fazendo seus passos e manobras de breaking dentro da estação e do metrô deSão Paulo


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NA FITA

Curtas abordam a solidão na periferia de São Paulo durante a pandemia

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zona

Heloísa Maria

solidão isolada


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A AGONIA DE VIVER NUMA PANDEMIA DESSA, COMO É A INSEGURANÇA, A FALTA DE PERSPECTIVA, FALTA DE PACIÊNCIA

A produtora audiovisual Heloísa Maria, 21, e a ver numa pandemia dessa, como é a técnica de som Juliana Santana, 25, encontraram insegurança, a falta de perspectiva, na arte uma maneira de retratar os sentimentos falta de paciência. Isso acaba mexende solidão, angústia e incertezas, em meio à pan- do com todo o nosso psicológico.” demia de Covid-19, com os filmes “Uma Fase” e Heloísa conta que muitos colegas “Alternativas felizes para quando o sol não vem”. também se reconheceram no filme. Ambas são moradoras da periferia da zona sul “Até falei para as minhas amigas que de São Paulo, Heloísa em Parelheiros e Juliana, a intenção não era gerar um gatilho”, na Vila Clara, e foram duas dos 200 selecionados afirma. “Tentei tocar outras pessoas.” pelo projeto Curta em Casa do Instituto Criar. Os O título do curta-metragem “Uma produtores receberam apoio de R$ 3.000 para Fase” é uma crítica para quem miprodução. Ao todo, mais de 900 se inscreveram. nimiza e considera passageiro os Com uma câmera, um tripé, anel de luz, uma problemas de saúde mental, que se tela preta que o padrasto Clóvis Albuquerque, mostraram mais evidentes após as 44, comprou para ela e um enfeite de aniversário medidas de isolamento social. “Está como rebatedor, Heloísa roteirizou, gravou, atuou, tudo bem, não é? Isso tudo não passa produziu e editou o próprio filme direto de casa. de uma frescura, uma fase, logo vai Ela utilizou o estilo cinema experimental (mais passar”, diz trecho do curta. abstrato, diferente de um filme comercial) para Seguindo na linha de emoções abordar a ansiedade e depressão em tempos de durante a quarentena, o curta meisolamento social. Heloísa conta que escolheu tragem de Juliana, “Alternativas esse estilo para sair das produções tradicionais felizes para quando o sol não vem”, e poder retratar mais fielmente o que se passa retrata a vida de uma idosa viúva que, no psicológico humano. isolada dos familiares e morando “Tudo o que tem no filme, os questionamentos sozinha, revive as memórias por ‘quando eu vou poder sair?’, ‘quando tudo isso meio das fotografias. vai melhorar?’, têm relação com o que a gente A mãe, Ivonete Alves Santana, vive hoje”, comentou ela. 63, é a personagem principal e, por Clóvis, que também está em quarentena, diz meio de diálogos e flashbacks, tenta ter se identificado com o filme da enteada. “O se reconectar consigo mesma para filme transpassa bem o que é essa agonia de vi- não ser afetada pela solidão. “Muitas

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Juliana Santana

NA FITA

pessoas vieram me falar que assistindo ao filme lembraram da mãe, lembraram das avós”, conta Juliana. Ela afirma que o objetivo foi fazer com que as pessoas se identificassem com a situação. “Acho que não é necessário [no filme] falar que ela é minha mãe”, conta. “Ela pode ser a mãe de todo mundo”. Ivonete, que atua no curta pela primeira vez, aprovou o resultado final da sua atuação. “Para o primeiro filme, está bom”, diz. “Até falei para ela [Juliana] ‘nossa, quero fazer mais’, gostei”. O título do curta é inspirado na quebrada em que a família vive. Juliana conta que em muitas casas da periferia, conseguir assistir ao pôr-do-sol sem interferências é complicado devido às construções altas. “As casas são como prédios, a galera sempre quer construir para cima, até porque não tem muito espaço geográfico, né? Todo mundo tem que caber”. Mas, no caso dela, a janela de sua casa tem uma visão privilegiada do horizonte, que sempre foi motivo de contemplação pelo pai, já falecido, e a mãe. “[Esse nome] ‘Alternativas felizes para quando o sol não vem’ é porque quando o sol vem, eu sei que a felicidade é certa.” Ambas as produções foram para votação popular e agora concorrem à exibição no Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo, o Kinoforum. Os lançamentos têm sido realizados em um período de relaxamento da quarentena e reabertura dos comércios no estado de São Paulo,

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Mãe de Juliana participa do curta, retratando o isolamento para uma mulher idosa

que registra 21,6 mil óbitos e mais de 400 mil casos de coronavírus. Só na Grande São Paulo, já são, em média, 14,5 mil. Os distritos de Parelheiros e Jabaquara, região da zona sul de São Paulo onde moram Heloísa e Juliana, já contabilizam 383 óbitos. Segundo a edição mais recente do Mapa da Desigualdade, divulgado pela Rede Nossa São Paulo, as periferias têm sido as áreas com mais vítimas fatais pelo novo coronavírus. A votação começou na última segunda-feira (20), e termina na quinta-feira (30), e bastar ir no YouTube. Os dez mais curtidos na plataforma serão premiados e a lista dos 200 concorrentes está no site do Instituto Criar.



POESIA À MARGE Conheça o Slam Marginália, grupo de poesia falada composto por pessoas trans e não bináries

texto Alexandre Makhlouf fotografias Luca Meola


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EM


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ão Paulo, 5 de setembro de 2018. Largo São Bento, em frente ao Mosteiro. Desde essa data, o endereço, conhecido do centro da capital paulista, não era apenas um ponto turístico. Pelo menos às primeiras quintas-feiras do mês, quando se reuniam ali os artistas do Slam Marginália, grupo de poesia falada composto por pessoas trans e não-bináries. Organizado atualmente por Abigail Campos Leal – a Bibi –, Carú de Paula, Uarê e Preto Theo, o coletivo fez mais do que espalhar rimas sobre as vivências de corpos dissidentes. O Marginália, como seus integrantes chamam a iniciativa, também criou uma rede de afetos, de amor, de referência e de oportunidades – inclusivo financeiras – para pessoas T. “No fim das contas, não era só de dispor nossa palavra, jogar nossa poesia para a coletividade que a gente tinha fome. Também tínhamos fome de trocar afeto, carinho, e de ganhar uma grana”, conta Bibi. A pandemia, claro, interrompeu as edições presenciais do Slam Marginália, que digitalizou parte dos seus encontros em lives e em outros projetos junto à Secretaria de Cultura de São Paulo, como o zine “Revidar”, que debate os limites e a importância do autocuidado e da saúde mental, especificamente das pessoas trans racializadas, em textos, colagens, fotos e outras intervenções artísticas. “O Marginália é uma questão de saúde também e esse fanzine dá pistas a partir das produções de cada um que se colocou ali. Como construir processos de cuidado para além do individual. Não é à toa que veio no momento que veio, inclusive abrindo novas possibilidades para a gente, porque não dá pra ficar fazendo slam online o tempo inteiro, é enlouquecedor.

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Se as pessoas brancas, cis, hétero se dispõem e tem corpo e saúde mental para fazer mil lives, isso não é uma realidade nossa. Fazer live pra gente implica em ter tempo e, tempo, pra nós, é mais do que tudo dinheiro, saúde, se manter vivo”, explica Carú. Bati um papo com Bibi e Carú sobre os próximos passos do Marginália, suas vivências durante a pandemia, a importância da conscientização e envolvimento das pessoas cis na luta trans e, claro, poesia. O resultado você confere aqui embaixo: Como surgiu o Slam Marginália? Carú_ A primeira edição do Marginália aconteceu no dia 5 de setembro de 2018. A gente escolheu o slam porque era uma possibilidade para a gente no contexto de poesia em que nos conhecemos, especificamente na batalha Dominação, que acontecia no mesmo lugar que acontecia o Marginália, em frente ao Metrô São Bento. Passamos a perceber as necessidades de fazer um espaço de encontro de corpos trans e de experimentação artística do que a gente pode – e o slam nos ofereceu tudo isso, também articulando com a potência da poesia, algo que atravessava todo mundo ali. Hoje, somos 4 – já fomos 7, mas não acho isso ruim, acho normal das coletividades.

A PRINCIPAL MOTIVAÇÃO ERA TER UM ESPAÇO COLETIVO PARA DAR VAZÃO PRA NOSSA CRIAÇÃO ARTÍSTICA, POÉTICA, DA PALAVRA, JÁ QUE EM OUTROS ESPAÇOS E SLAMS NÃO SENTÍAMOS NOSSAS DEMANDAS ACOLHIDAS

Bibi_ A gente já atuava em uma cena artística da palavra que acontecia em São Paulo. Frequentava o TransSarau, alguns slams, algumas batalhas, mas esses espaços eram muito restritos. Às vezes, a gente rimava fora dos eventos porque sentia necessidade de escoar essa vazão poética. Quando entrávamos em alguns slams, sentíamos que faltava escuta de jurades, organizadores. Na Dominação, tinha muito mais acolhimento, mas sentíamos a necessidade de ter algo específico para as pessoas trans e desertoras de gênero no geral. A partir disso, começamos a nos articular para criar um slam com várias das nossas pessoas, e isso se tornou o Slam Marginália. A principal e primeira motivação era ter um espaço coletivo para dar vazão pra nossa criação artística, poética, da palavra, já que em outros espaços e slams não sentíamos nossas demandas acolhidas.

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E esse objetivo principal de vocês foi cumprido? Bibi_ Foi, mas a coisa cresceu e ficou muito maior. Percebemos, logo nas primeiras edições, que era além da dimensão artística. Vimos redes de afeto se construindo, redes de amor, tudo isso com o slam como pano de fundo. Redes inclusive econômicas se construindo, pessoas que vendiam produtos em banquinhas, comidas, que trazem suas artes para vender. O Marginália, no fim das contas, foi tomando uma outra dimensão porque não era só de dispor nossa palavra, jogar nossa poesia para a coletividade que a gente tinha fome. A gente também tinha fome de trocar afeto, carinho, e de ganhar uma grana. Carú_ Uma coisa que eu acho sempre muito importante dizer é que o Marginália surgiu em 2018, um cenário político horrendo – já era horrendo há séculos, mas ficou pior. O Marginália tomou outra proporção porque, primeiro, era um evento mensal: toda primeira quinta-feira do mês, as pessoas sabiam que estaríamos naquele espaço e que aquele espaço viabiliza muitas coisas. O Marginália não é só quem organiza, mas também quem vai, quem mantém aquilo vivo. O assunto redução de danos surgiu muito forte e fizemos parcerias com coletivos que se preocupam com isso. A maior sacada do Marginália foi viabilizar essas coisas em espaços em que elas já aconteciam de fato. Se você chega lá com seu brechó, seu zine, tem gente comprando e gente que você sabe que está interessada. Criou-se ali uma noção de comunidade. Começamos a conseguir fazer o dinheiro girar, que essas pessoas tivessem acessos a mais insumos pra usar seu pó, sua maconha, transar com segurança, beber água potável. Tudo isso são coisas que a gente entende que

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VIMOS REDES DE AFETO SE CONSTRUINDO, REDES DE AMOR, TUDO ISSO COM O SLAM COMO PANO DE FUNDO


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o Marginália não só vira um espaço de encontro para pessoas trans, mas também para que se fortaleçam. E, para se fortalecer, inevitavelmente a gente precisa atuar em várias coisas que levam nossa população aos lugares de marginalidade, entendo o Marginália também como um espaço de cuidado e de carinho. Para além de serem vários corpos trans se encontrando na frente do Mosteiro, a gente constitui ali junto outra noção de construir mundo – sendo bem otimista (risos).

Além de um ambiente de arte, o Marginália é um local de troca, fortalecimento, afeto sexualidade e luta para corpos marginais

Teve alguma motivação política ao incluir o “marginal” no nome do grupo? Bibi_ É sempre difícil batizar alguma coisa. O nome Marginália nos pareceu mais aberto, mas obviamente relacionado a esses corpos que habitam a margem da heterossexualidade compulsória e do binarismo de gênero, especificamente pessoas trans e não-bináries. Mas sem esquecer da fauna mais ampla que habita esse lugar: bichas afeminadas, sapatão caminhoneiras, drags, pessoas que também habitam a marginalização. Descobrimos depois que existe uma certa tradição de combate, talvez, mesmo que no campo literário, que passa pelo uso dessa palavra. Isso foi um grato encontro, que fez com que a gente se associasse a uma marginalidade histórica.

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“ A Secretaria de Cultura de São Paulo convidou vocês para fazer uma curadoria de shows e talks em fevereiro. Que outros projetos desenvolveram nos últimos tempos? Bibi_ Em função da quarentena, por mais que pareça pouco, estávamos tentando não enlouquecer e não morrer. Mas fizemos algumas outras coisas importantes: a convite da Bárbara Esmenia, uma programadora do sesc, criamos uma revista digital chamada Revidar, em que a ideia é debater os limites e a importância do autocuidado e da saúde mental, especificamente das pessoas trans racializadas. É uma revista digital com poesias, colagens, fotos, com várias pessoas trans, pretas, indígenas do Brasil, tudo disponível online. Também fizemos uma série de slams, todos digitais.

Carú_ A Revidar é uma das produções mais importantes do Marginália. Quando recebemos o convite, ele veio junto de uma pergunta: autoamor dá conta? O Marginália, não no âmbito da razão e da consciência, já surge por uma demanda que mostra que só o autoamor não dá conta. A

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SE AS PESSOAS BRANCAS, CIS, HÉTERO TÊM CORPO E SAÚDE MENTAL PARA FAZER MIL LIVES, ISSO NÃO É UMA REALIDADE NOSSA. FAZER LIVE IMPLICA EM TER TEMPO E, TEMPO, PRA NÓS, É MAIS DO QUE TUDO


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saúde mental e o cuidado no geral são pensados sempre a partir do indivíduo, e nossas corpas trans racializadas já denunciam que a coisa não funciona dessa forma. Não à toa, a gente vai construindo espaços para se fortalecer, porque sozinho realmente não dá, não é uma questão só do campo individual. O Marginália é uma questão de saúde também e esse fanzine dá pistas a partir das produções de cada um que se colocou ali. Como construir processos de cuidado para além do individual. Não é à toa que veio no momento que veio, inclusive abrindo novas possibilidades para a gente, porque não dá pra ficar fazendo slam online o tempo inteiro, é enlouquecedor. Se as pessoas brancas, cis, hétero se dispõem e tem corpo e saúde mental para fazer mil lives, isso não é uma realidade nossa. Fazer live implica em ter tempo e, tempo, pra nós, é mais do que tudo dinheiro, saúde, se manter vivo. O Marginália, nesse contexto, vem recriando possibilidades de estar também, dentro dos limites que podem os nossos corpos. Bibi_ A quarentena foi muito pesada pra gente. Ela não trouxe nada de novo, só radicalizou elementos que já existiam na vida das corpas trans. O isolamento social, não poder sair de casa, a dificuldade de encontrar empregos e outras fontes de renda, a consequência dos adoecimentos psíquicos e afetivos que decorrem disso… foi muito complicado. Logo no começo, perdemos um amigo muito próximo, o Demétrio Campos, por suicídio, e isso abalou muito a nossa comunidade. Aí a gente se focou no contexto de priorizar o nosso cuidado. Entendemos instintivamente que não tinha condições de manter um ritmo acelerado – inclusive porque a própria pandemia demandou da gente e do mundo um desaceleramento. Consequentemente, conforme as coisas foram melhorando um pouco, a gente foi se reabrindo para tentar fazer algumas atividades, até porque isso tinha que acontecer em algum momento, né? A gente não se rendeu a nenhuma demanda externa, looping de live ou ter periodicidade. Focamos mais na gente e em tentar atravessar esse fim do mundo.

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Quais vão ser os projetos que o vocês do Slam Marginália vão desenvolver daqui para a frente? Bibi_ Passamos num vai (Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais, da Secretaria de Cultura de São Paulo), e estamos para começar as atividades, e isso tá rolando. Ainda não podemos contar muita coisa, mas esse ano a gente tá vindo com muito mais energia para conseguir tocar as atividades e isso passa necessariamente por retomar esse lugar que a arte tem na nossa vida, no sentido de produzir, de ser algo que é parte da nossa existência. Mas passa também no sentindo de produção de uma materialidade de vida, conseguir um acué [dinheiro]. O Marginália sempre teve esse objetivo, todo mundo sabe que a população trans é excluída e sitiada do campo do trabalho – 90% dela está no tráfico ou na prostituição – e nós sempre tivemos esse caráter de, por meio da arte, produzirmos fonte de renda para pessoas trans, nem que sejam apenas as do nosso contexto mais próximo.

Carú_ Faço minhas as palavras da Bibi. E queria completar que: não há mais condições de o Marginália pensar estar nesse mundo sem que haja negociações com retorno financeiro de alguma ordem para os corpos. No sentido de fazer esse dinheiro chegar nesses corpos trans. É mais do que uma demanda, é uma necessidade. Pensando que a pandemia inviabiliza muitos trabalhos no campo externo, na esfera pública, aumentando a nossa vulnerabilidade, o Marginália vem para 2021 com essa perspectiva. O dinheiro da cultura gira majoritariamente entre corpos cis e brancos, então isso é mais um jeito de que isso seja desterritorializado e chegue na gente, gire entre a gente. O Marginália tem uma potência, no meu entendimento, de abrir esse espaço e torná-lo cada vez mais largo. E também de que o Marginália não seja só a linha de frente, mas que, dele, a gente consiga projetar cada vez mais corpos nesse contexto, que as pessoas conheçam esses poetas, que esses corpos ganhem visibilidade independentemente do Marginália. Que, além de um espaço de cuidado, possa ser também um espaço de projeção. É fundamental que as pessoas mudem a forma de ver essa questão financeira mesmo… Bibi_ Sobre essa necessidade material das pessoas trans, você que tá aí, lendo essa entrevista, se implique com a existência de corpas trans, especialmente as racializadas. Contratem a gente, divulguem o nosso trabalho, se impliquem e se afetem pelas coisas que a gente fala, escreve, pinta, com tudo que a gente produz. Cada vez mais, é necessário que a cisgeneridade se implique no apoio à vida das pessoas trans. Não basta mais que só as pessoas trans defendam suas vidas, a cisgeneridade precisa rever seus privilégios também. E valorizem a gente em vida. Quando tomba um, todo mundo adora compartilhar travesti morta e homem trans suicidado. A gente precisa desse apoio em vida.

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Todos os presentes neste encontro do Marginália, ocorrido no Largo São Bento

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VERBO

a menina que doava livros

Camila Tuon

Winnie Bueno cria ferramenta de incentivo a leitura e combate ao racismo através do twitter

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“ A casa de Winnie Bueno, de 31 anos, em Porto Alegre, sempre foi repleta de livros. Ela cresceu vendo a avó, que não chegou a completar o ensino fundamental, se jogar nos livros como forma de preencher a lacuna por não ter estudado. Na transição para adolescência, os livros viraram um refúgio para Winnie. “Na escola que eu estudava havia pouquíssimas crianças negras, me sentia isolada e ia para os livros. Passava muito tempo na biblioteca, tanto que minha festa de 15 anos foi dentro de uma. Tenho uma relação afetiva com os livros.” A história da Winnieteca, chamada inicialmente de “Tinder dos Livros”, teve início em novembro de 2018 quando Winnie, vendo a repercussão no Twitter por conta do Dia da Consciência Negra, sugeriu em um post que as pessoas brancas que diziam ser antirracistas, fizessem ações concretas para ajudar combater o racismo doando livros, por exemplo, ao invés de só se pronunciarem contra atos racistas nas redes sociais. Rapidamente surgiram interessados em adotar a ideia, e Winnie então tratou de achar pessoas negras que gostariam de receber os títulos. No período de um ano, de novembro de 2018 a novembro de 2019, Winnie viabilizou a doação de mil livros. Pelo Twitter, via mensagem direta, ela colocava em contato a pessoa que manifestava o desejo de doar um título com a que tinha interesse em receber (somente pessoas negras). Depois do match ambos combinavam a entrega.

SÃO BARREIRAS QUE O RACISMO ARTICULA PARA QUE ESSAS PESSOAS SEJAM IMPEDIDAS DE TER ACESSO

“A ideia surgiu de um pensamento simples, livro é algo bem caro e as pessoas negras estão localizadas em cinturões da pobreza. São barreiras que o racismo articula para que essas pessoas sejam impedidas de ter acesso”, afirma. Desde novembro de 2019, o projeto ganhou a parceria do Geledés-Instituto da Mulher Negra, e passou a ser chamado Winnieteca. O trabalho, de realizar a conexão entre as pessoas que querem os livros e as que desejam doá-los é feito por um robô. Até o último balanço, em fevereiro de 2020, 3 mil títulos haviam sido distribuídos. O contato inicial é feito pelo Twitter (@winnieteca). Ao entrar em contato com a página, você recebe a seguinte mensagem: “Olá! Seja bem-vinda à Winnieteca. Aqui a gente conecta pessoas que acreditam na mágica dos livros para combater injustiças sociais. A Winnieteca salva algumas das suas informações para conectar pessoas negras que precisam de livros com pessoas dispostas a presentear uma pessoa negra com um livro que ela precisa. Concorda com os termos?”

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Gama

VERBO

A partir daí a conversa se inicia. As pessoas beneficiadas continuam sendo somente negras, independente da renda salarial. Os doadores podem ser brancos. Em um mesmo mês é possível pedir até três livros que demoram, em média, 30 dias para chegar até a pessoa. Os autores mais solicitados são intelectuais negros como Angela Davis, Abdias do Nascimento, Djamila Ribeiro, Chimamanda Ngozi Adiche. As obras, porém, não precisam ser exclusivas deste universo. Winnie lembra que já viabilizou a doação de livros de anatomia para uma estudante de medicina que morava no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, e até toda a coleção dos livros do Harry Potter para um garoto que cumpria medida socioeducativa em Porto Alegre. Formada em direito e doutoranda em sociologia, Winnie comenta que apenas existem duas maneiras de compreender o racismo: com resistência ou ignorando-o completamente — “às vezes esta é a única maneira de sobreviver.” “Eu moro no Rio Grande do Sul, é impossível não ter passado por uma situação de racismo. Pode ser que você opte por ignorar, mas o racismo é um sistema de dominação que articula as relações de poder neste país. O mínimo que podemos fazer é falar sobre isso.” A ativista comemora a visibilidade do projeto–ela possui atualmente 65 mil seguidores no Twitter e a possibilidade de “fazer algo útil.” “Essa utilidade foi distribuir livros, fico feliz de saber quando chega o

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Winnie Bueno sempre foi muito próxima aos livros e criou a Winnieteca para que outras pessoas negras também pudessem ser

livro para uma pessoa, sei como é a sensação de receber um livro que você queria. A Winnieteca é uma rede de afeto e gente comprometida ao combate ao racismo, essa rede é mais importante do que eu. O meu sentimento é de gratidão pelas pessoas que se dispõem a fazer parte de uma mudança social.”

UM RELATO

A estudante de relações públicas Luana Protazio, de 23 anos, moradora de Bauru, ganhou três livros por meio do projeto de Winnie. Eram títulos que ela precisava ler durante o curso de graduação para fazer seu trabalho de conclusão, mas que na ocasião não podia adquirir.


@winniebueno

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TINHA MUITOS LIVROS EM MENTE QUE PODERIAM ME AJUDAR NAS PESQUISAS, MAS NÃO TINHA CONDIÇÕES DE COMPRÁ-LOS NAQUELE MOMENTO

“Sempre li muito e estudei relações raciais na comunicação desde o primeiro ano da graduação. Tinha muitos livros em mente que poderiam me ajudar nas pesquisas, mas não tinha condições de comprá-los naquele momento e também não tinha biblioteca da faculdade”, lembra. Em janeiro de 2019, Luana pediu, e recebeu, seu primeiro livro: “Mídia e Racismo”, de Rosana Borges. No meio do ano, recorreu de novo ao projeto e recebeu: “Assessorias de Comunicação”, de Ana Almansa; e “Olhares negros: raça e representação”, de bell hooks. “Os três livros contribuíram e ainda contribuem muito com minha formação e pesquisa e talvez eu não tivesse acesso a eles ainda se não fosse pelo próprio projeto.” Para Luana, a Winnieteca é uma forma “simples e transformadora que democratiza a leitura entre os negros.” “Eu acredito mesmo que a leitura, o conhecimento, são ferramentas potentes para negros e negras em uma sociedade estruturalmente racista. É uma forma de nos emancipar e instrumentalizar frente a isto.” Para quem quer participar doando ou recebendo livros, é preciso entrar em contato via Twitter, no perfil @winnieteca e seguir as instruções.

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MÓ VISÚ

as minas no pixo Irene Avramelos e Carol SUSTO”S falam sobre arte, feminismo, assédio e maternidade imagens Carla Arakaki

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zona


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Após fazer um mapeamento dos edifícios que deseja deixar sua marca, Irene Avramelos, conhecida como Eneri, sai para pixar São Paulo. Quando chega ao local escolhido, geralmente por volta da meia noite, espera a rua ficar quase vazia. Com 24 anos de idade e quase 30 mil seguidores no Instagram, Irene faz parte da nova geração de pixadoras que têm como objetivo retomar o espaço público e a quebrar as barreiras de gênero na arte urbana. Suas ações significam o rompimento com o Estado ao contestar os limites da arte, além de funcionar como uma resposta ao machismo e à colonização da cultura nacional que, segundo ela, é pouco ensinada nas escolas e apreciada pela população do país. Esse resgate da identidade fez com que o pixo entrasse em sua vida. “É um tipo de arte muito brasileiro e autêntico, precisamos valorizá-lo”, afirma. “Nosso pixo tem referências daqui mesmo, e não de fora, o que causa uma rejeição grande, assim como acontece com o funk e o samba até hoje. Isso se deve ao fato de sermos condicionados a estudar nossa história pelo ponto de vista de quem nos colonizou, o que contribui para uma falta de identidade cultural”, completa. Faz sete anos que Irene iniciou sua trajetória como pixadora: “Comecei com a tag por ser mais fácil de aprender e de realizar durante o dia. Fiquei estudando por um tempo as letras e, aos poucos, comprando os sprays”. Equilibrando-se em marquises e janelas, ela já atingiu o 12º andar

de um prédio no bairro do Belém, o qual se orgulha de ter escalado. A modalidade que pratica, chamada de “escalada”, é a mais perigosa por não envolver nenhum tipo de equipamento de segurança. Apesar disso, a visibilidade e o aproveitamento do espaço são maiores. “São Paulo é referência em escalada para outros lugares do Brasil. É perigoso, mas eu consigo vivenciar a cidade de vários pontos de vista e ter outra percepção dos lugares que passo no cotidiano”, diz. Ao mesmo tempo, seguir por esse caminho não foi uma escolha fácil, já que Irene precisou desistir de um sonho: o curso de licenciatura em Artes Visuais. Essa decisão veio depois de uma série de processos judiciais somados à dificuldade financeira, que dificultou o pagamento das mensalidades durante a pandemia de covid-19. “Eu queria dar aula de artes mas, após os processos, sei que não vai ser possível. Que escola me contrataria? Então acabei abrindo mão da faculdade". Os problemas judiciais aos que ela se refere são comuns para quem faz parte da comunidade pixadora já

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MÓ VISÚ

que, no Brasil, o ato é considerado vandalismo e se enquadra na Lei de Crime Ambiental, a qual estipula pena de detenção de três meses a um ano e uma multa aos interventores. “Quando o João Doria assumiu o governo e instaurou a política da Cidade Limpa, o valor das multas aumentou muito. Enquadrar a gente nessa lei é contraditório porque crime ambiental, para mim, é o próprio governo que não proporciona saneamento básico para grande parte da população, além das empresas que desmatam e poluem a cidade”. Um obstáculo que enfrenta por ser mulher é o machismo, que é agressivo com as mulheres que transgridem a lei. “Enfrentamos isso em todos os lugares. Para mim, um dos maiores desafios é ir nos rolês sozinha. Eu tomo os cuidados que qualquer mulher toma quando sai, como compartilhar a localização com alguém, coisa que eu sei que homens não precisam fazer”, revela. “Dentro do próprio grupo, o que acaba acontecendo é uma sexualização dos corpos por terem poucas de nós ocupando o espaço. Já na internet, às vezes recebo comentários como ‘que tal fazer uma escalada nua?’, o que é muito desagradável”. Ainda que isso cause desconforto e angústia, a violência maior chega por parte de quem deveria proteger: a polícia. Segundo Irene, o confronto é imprevisível e a abordagem depende de quem está conduzindo. “Alguns policiais deixaram de me bater e de me dar banho de tinta por eu ser mulher, mas já aconteceram situações em que eu apanhei tanto

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DENTRO DO PRÓPRIO GRUPO, O QUE ACABA ACONTECENDO É UMA SEXUALIZAÇÃO DOS CORPOS POR TEREM POUCAS DE NÓS OCUPANDO O ESPAÇO

quanto um homem”, declara. “Certa vez, meu companheiro e eu fomos saímos com marcas nos mesmos lugares”. Ela conta que, por vezes, o discurso desvia para o sentido de convites e caronas para casa. “Essa é uma situação muito assustadora, que me deixa acuada e com medo”. Mesmo com as dificuldades, acredita que o pixo transformou sua vida e trouxe o empoderamento feminino que tanto procurava. “Eu achava que, por ser mulher, não teria força para subir os andares como um homem. Mas, na verdade, é uma habilidade que exige apenas técnica e esforço. Qualquer mulher consegue aprender. No fim, é muito gratificante mostrar que eu consigo ser boa no que faço e incentivar outras mulheres”.


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A maternidade é outro tema que ronda o grupo de pixadoras, pois é algo que as impede de continuar nas ruas. “Na minha primeira gravidez, parei de pixar quando completei cinco meses. Isso porque, como eu pintava topos de prédios, não conAcima, Irene, a baixo, Carol seguia deitar no chão com a barriga SUSTO"S durante a grande”, revela. “Também mudei de produção de mais estado para dar uma qualidade de um de seus pixos vida melhor para a minha filha. No início, foi bem complicado aceitar que tinha que parar”. No entanto, há um ano e meio, a pixadora sentiu que precisava voltar a vivenciar o spray e o concreto: NO LADO SUL “Quando a minha filha menor fez Assim como Eneri, Carol SUSTO”S tem seu mundo cinco anos, eu tinha muita insôrodeado pela tinta. Porém, Carol, que tem 36 anos nia de madrugada e saía para fazer hoje, faz parte da geração dos anos 2000 – que se alguns pixos no bairro. Como modestacou com ações como o mutirão do pixo no ro com a minha família, não tinha Centro Universitário Belas Artes e a invasão na problema em deixá-la dormindo. Bienal de Arte Contemporânea. A pixadora, que Quando percebi, já estava ativa noagora pinta em Porto Alegre, percebeu que, com o vamente”. Assim como a mãe, a filha passar do tempo, as garotas reivindicaram maior mais nova é apaixonada pelas cores. participação nos rolês. “Antes, muitas meninas Ainda assim, o hobby não pode ser que frequentavam os points não eram ativas, divulgado a todos. “Eu expliquei geralmente estavam como companheiras. Hoje, para ela o que é o pixo e que ele é elas têm o nome reconhecido pela qualidade um segredo, pois a sociedade não de seus trabalhos”, afirma. “A diferença entre está habituada a aceitar uma mãe as gerações é que, agora, as meninas também de família que é pixadora”. estão se arriscando mais. Muitas chegam para Diferente de São Paulo, a cena mostrar que, até na pixação, não são só os ho- de Porto Alegre não tem points esmens que são bons”. pecíficos com dias e horários para Para Carol, o feminismo permitiu que a ideia de acontecer. Porém, Carol está tenigualdade de direitos potencializasse a presença tando fortalecer 0 movimento. “A das artistas na rua e a demanda por respeito. “Eu gente precisa incentivar para que não vou dizer que não sofri machismo porque esses encontros aconteçam semasofri, mas não tinha consciência, a gente tinha nalmente. Por isso, todas as quartas o costume de ser menosprezada o tempo todo e e quintas-feiras à noite, fazemos aceitar. Agora, entendemos que podemos fazer divulgação com um texto e fotos nas exatamente as mesmas coisas que os homens redes sociais para que as pessoas e que somos iguais a eles”. se interessem a participar”, explica.

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PEGA A VISÃO

CARTA AO PRESIDENTE por Bianca Santana ilustração Luiza Leiva

Querido presidente, Sua condenação na justiça, por ter me acusado falsamente de escrever fake news, foi um lampejo de esperança no judiciário brasileiro e em nossas instituições democráticas. Mas, principalmente, reafirmou a importância da luta coletiva. Mas não escrevo em comemoração. Com mais de 400 mil mortes por COVID-19, não há nada a comemorar. Escrevo para compartilhar algumas reflexões e recomendações. Espero não ser invasiva. Eu conheço pouco do senhor e da sua história. Mas sinto que sua raiva da esquerda podem ter uma genealogia em incoerências que de fato existem. Quando entrei pela primeira vez em casas de classe média alta, de pessoas que se diziam feministas e lutadoras por justiça social, e vi um Brasil escravocrata, fiquei chocada. Revoltada. Mas compreendi que as contradições sociais e raciais do país se manifestam também na vida das pessoas. E em vez de responder com ódio, podemos denunciar as contradições, cobrar e agir pelas mudanças. Não existem categorias de bem e mal totalmente separadas, com comunistas fixados no mal, entende? Assim como o senhor, mesmo abandonando mais de 400 mil pessoas à morte no Brasil, não é a encarnação do mal O senhor já deve ter ouvido falar de ubuntu, “eu sou porque nós somos”, nas palavras de Marielle Franco. Somos todas e todos partes de um todo. De algum modo, eu sou porque o senhor é e vice-versa. Somos expressões de uma mesma sociedade racista, machista, heterocispatriarcal,

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desigual e injusta. Por isso me parece importante que nos olhemos. Peço licença para recomendar que o senhor busque apoio psicológico e espiritual para lidar com frustrações e traumas em profundidade, como eu também faço. Pode ser um caminho importante, apesar de doloroso, para se abrir a escutar e a respeitar a diversidade de pessoas que compõem o Brasil, perceber o mal que suas ações têm provocado a milhares de pessoas. E a partir daí, quem sabe, reavaliar as amizades com milicianos, compreender que nem a polícia nem a inteligência brasileira estão aí para proteger sua família e seus amigos. Reconhecer que o Estado brasileiro deve estar a serviço do povo, formado também por mulheres negras, pessoas periféricas, lgbtqia+, pretos com distintas confissões de fé, povos do campo e da floresta, trabalhadores explorados, informais e desempregados. O senhor tem muito a contribuir com o Brasil! Tem informações sobre os cheques depositados na conta da sua esposa, sobre possíveis contravenções de seus filhos, quem sabe até sobre o assassinato de Marielle Franco, já que é tão próximo de acusados do crime. Autocuidado, ajuda profissional e contribuição com a justiça serão importantes para o senhor se fortalecer, deixar de se portar como um genocida, e passar com dignidade pelo processo de impeachment que deve estar chegando. Tchau, querido!


corre (!)


TODO C


Renato Stockler

CORPO texto Daniel Vila Nova


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ano de 2020 foi um momento em que a relação com o corpo, seja o próprio ou do outro, foi colocado em xeque. O isolamento social e a quarentena impuseram limites físicos à rotina de bilhões de pessoas, fazendo com que toda a realidade do planeta se alterasse do dia para a noite. O ano passado, entretanto, também foi marcado por protestos de rua que exigiam o fim da violência contra grupos minoritários. Black Lives Matter tomou as cidades dos Estados Unidos e a Argentina foi às ruas lutar pelo direito ao aborto. Com a pandemia afetando desproporcionalmente grupos raciais como negros, asiáticos e latinos, a movimentação pela segurança de corpos marginalizados é cada vez mais comum. Nas últimas décadas, movimentos sociais têm pautado a desigualdade com que seus corpos são tratados pelo Estado e pela sociedade. A natureza política do corpo nunca foi tão evidente. Mas afinal, o que é um corpo político? E qual o seu papel no mundo em que vivemos?

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Participante da manifestação ocorrida em 2013 do 4º Ato contra o aumento das passagens em São Paulo

O CORPO QUE HABITO A história de crianças selvagens, criadas na natureza sem qualquer tipo de educação, assustam e fascinam na mesma proporção. Isoladas do mundo, essas crianças crescem sem contato com a humanidade e, ao serem descobertas, apresentam um desafio enorme para a ciência. Para Heloisa Buarque de Almeida, professora de Antropologia da usp e integrante do Numas (Núcleo de Estudos Sobre Marcadores Sociais da Diferença), o exemplo dos meninos lobos é perfeito para demonstrar como a cultura molda um corpo. “Pesquisadores observaram que o desenvolvimento da sua bacia e coluna não permitia que ficassem eretas e andassem de pé. O ser bípede é um aprendizado cultural e elas não tiveram uma sociedade que as ensinasse isso.”


Renato Stockler

corre (!)

Ação de intervenção policial realizada durante o protesto contra o aumento das passagens de 2013

A antropóloga aponta a importân- que branco é assim e negro é assacia do lado biológico de um corpo, do”, afirma a filósofa. Em seu canal no YouTube “Filomas ressalta a relevância que o fator social tem. “O corpo vai sendo mol- sofia em Movimento“, Fernanda dado na vida em sociedade, o nosso questiona: “O que é ser mulher de modo de andar, de dormir, de falar. verdade? Para muita gente, é a natuSe ele é socialmente e culturalmente ralização de uma condição machista moldado, é também politicamente” que a sociedade impôs.” Para Fernanda Borges, filósofa, psicoterapeuta corporal e autora do OS ESPAÇOS QUE OCUPO livro “A Filosofia do Jeito – Um modo Se no ano de 1789 a Declaração dos brasileiro de pensar com o corpo” Direitos do Homem e do Cidadão (Summus, 2006), o ser humano cria afirmava que “Os Homens nascem instituições culturais que regulam e são livres e iguais em direitos”, o como os corpos devem sobreviver, passar dos séculos fez a origem dos agir e se comportar em sociedade. direitos humanos ser questionada. “Essas instituições regulam o nas- “Tudo começou com uma premissa cimento, a morte, o casamento e os básica, mas que foi se alargando ao papéis que cada corpo tem naquela longo do tempo. É um processo de sociedade. Mas nem todos perce- questionar quem seria o ‘humano bem essa regulamentação, muitos universal’ da revolução francesa”. acreditam que ela é natural, que “A legislação brasileira já permitiu homem é assim e mulher é assado, a violência contra mulheres com o

pátrio poder, assim como era favorável a escravidão. Esses corpos não eram vistos como gente.” Para Heloisa, a compreensão de que o corpo é também um agente político é fundamental para qualquer tipo de mudança. “Corpos são politicamente moldados, mas eles também podem moldar a política”. A percepção do poder que o corpo tem quando ele ocupa espaços vem de movimentos políticos urbanos como Maio de 68. “É o argumento que a Judith Butler – filósofa americana e uma das principais teóricas da teoria de gênero e queer – faz, uma força que vem da vulnerabilidade. É o fato de você estar vulnerável na rua, correndo o risco de sofrer diversos tipos de violência, que traz a potência necessária para ocupar esses espaços. Trata-se de uma afirmação de existência.”

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Skander Khlif

Protesto realizado em Munique, após o assinato de George Floyd em Minnesota no ano de 2020

Fernanda considera que essa ocu- CORPOS POLÍTICOS pação é fundamental em todas as Agora, foram separadas diferentes lutas sociais. “Diversos movimentos instâncias – nas artes, nos movimensó foram levados a sério quando tos sociais, no dia a dia – em que ocuparam espaços importantes corpos políticos mudaram o mundo. na sociedade vigente. Quando um artista ou protesto se colocam em LETÍCIA PARENTE (1930-1991) evidência, questionam essas cons- A artista e pesquisadora baiana truções de corpos ditas ‘naturais’.” é pioneira na videoarte no Brasil. “Corpos marginais são treinados “Marca Registrada” (1975), que ilustra a entender que não são bem-vindos a abertura desta matéria (acima), é em determinados espaços”, afirma um vídeo de dez minutos em que a filósofa. “Nós somos formatados ela costura na sola de seu pé a frase em algumas disposições que criam Made in Brazil. O trabalho segue um limite de expressão, de atuação, a prática comum em sua obra, de de trânsito ou de poder nas relações colocar o corpo como protagonista. sociais. É preciso desenvolver po- Surge aí a questão política ao colocar tências em tais corpos para que eles o corpo como produto justamente possam ir além dos limites impostos.” em um período em que o país atravesssa a ditatura militar.

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Ao lado: mulheres argentinas saem às ruas contra o feminicídio. Abaixo: as mulheres polonesas marcham contra a decisão do tribunal acerca da realização do aborto

Blasting News

Airton Pereira

BLACK LIVES MATTER

SIT IN

Classificado como o maior movimento político da história dos EUA pelo New York Times, o Black Lives Matter tomou as ruas do país no ano de 2020. Após o brutal assassinato de George Floyd, negros e brancos ocuparam as cidades americanas e protestaram contra a violência policial que atinge a população preta de maneira desproporcional. Os protestos encontraram ecos ao redor do mundo e foram apoiados por esportistas, atores, políticos e até mesmo companhias como Disney, Apple e Facebook. Se a carne mais barata do mercado é a carne negra, os protestos mostraram que esses dias estão contados.

Ocupar espaços é uma das formas “O estuprador é você!” elas gritavam mais contundentes de se protestar. milhares de mulheres em praças Quando esses espaços são ocupados públicas ao redor da América Latina. por corpos que não são bem-vindos Os protestos, que se iniciaram no naquele lugar, a reivindicação se Chile, tomaram conta do continente torna ainda mais poderosa. Foi o latino americano em um grito pelo que aconteceu na década de 60, no fim da violência sexual que atinge mulheres ao redor do mundo. movimento dos direitos civis. Buscando uma forma não-violenEm paralelo, as argentinas saíam ta de protesto, estudantes negros às ruas do país exigindo o aborto passaram a realizar o Sit In, onde gratuito e legal. O movimento, que se sentavam em espaços segrega- ficou conhecido pelo uso dos lendos buscando atrair a atenção para ços verdes, foi bem-sucedido e fez a injustiça racial. No Brasil, esse com que a Argentina se tornasse o tipo de protesto foi recentemente primeiro país da região a aprovar usado pelo grupo “Presença Negra”, o direito das mulheres decidirem que visita vernissages em grupo em sobre o aborto. galerias paulistanas. Os “rolêzinhos” chocavam o público e os organizadores dos eventos, que não estavam acostumados a receber tantas pessoas negras nos recintos.

MARCHAS PRÓ-ABORTO

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Ben Hopper

AXILAS PELUDAS Projeto Natural Beauty do fotógrafo britânico Ben Hopper, que captura imagens de mulheres as quais deixaram os pelos nas axilas crescerem, quebrando os padrões

#FREETHENIPPLE

Se mamilos masculinos não são censurados e podem ser postados livremente em redes sociais, por que mamilos femininos não podem? O movimento, que ganhou força nas redes sociais, procura combater a sexualização de corpos femininos e provar de uma vez por todas que não deve haver diferença no tratamento de peitorais femininos e nem de masculinos.

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VIVIANY BELEBONI

Cada vez mais, mulheres ao redor Na parada LGBTQI++ de 2015, a atriz do mundo têm combatido o padrão Viviany Beleboni foi crucificada em estético de depilar as axilas. O mo- um protesto contra a violência convimento vem crescendo e até cores tra trans. A performance buscava mais chamativas, como azul e rosa, “representar a agressão e a dor que vem ganhando popularidade. A prá- a comunidade LGBT tem passado”. tica busca devolver às mulheres a Evangélica, Viviany atraiu a ira da autonomia do próprio corpo. Associação das Igrejas Evangélicas, que moveu uma ação contra ela.

SECOS & MOLHADOS Ney Matrogrosso foi rockstar, símbolo de uma geração, ícone LGBTQI+ e ferrenho desafiante das normas de gênero impostas. Em um país atormentado pela ditadura, não só desafiou as regras impostas pelo Estado e pela sociedade, como foi amado por isso. Sua imagem andrógina trouxe discussões sobre o papel de gênero, quando esses termos não existiam no vocabulário popular.


Reprodução

Spencer Tunik

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Em 2019, como protesto contra a política de nudez do Facebook, 125 mulheres se reuniram em frente ao escritório com fotos de mamilos masculinos para cobrir suas partes íntimas Secos & Molhados: o trio que desafiou os padrões dos anos 70

PINTURA CORPORAL INDÍGENA

BERNA REALE

A identidade cultural de um povo indígena pode ser encontrada na pele de seu povo. Dos Maoris aos Pataxós, cada povo tem a sua própria tradição e identidade. Em 1987, em meio a Assembleia Constituinte, o líder indígena, ambientalista e escritor Ailton Krenak subiu na tribuna e protestou contra as políticas anti-indígenas que estavam sendo aprovadas pelo Congresso Nacional. Em um poderoso discurso, Krenak pintou o seu rosto de preto enquanto defendia a proteção de direitos indígenas na nova Constituição Federal. O ato foi decisivo para que artigos referentes ao povo indígena fossem aprovados na Constituição de 88.

A grande violência contra corpos humanos é um assunto muito complexo e delicado, mas extremamente necessário nos dias de hoje. Para Berna Reale, o tema não é só o seu trabalho como também a sua arte. Perita criminal e artista visual, Berna trafega entre os dois mundos produzindo um resultado único sobre corpos marginais e a violência que eles sofrem.

VALIE EXPORT Valie Export é uma artista austríaca conhecida por suas performances corporais, por seu cinema expandido e por suas instalações de vídeos. Sua performance mais famosa se chama Action Pants: Genital Panic, onde Valie percorreu por uma exposição artística vestindo calças sem virilhas, uma jaqueta de couro

justa e o cabelo bagunçado. A artista buscava desafiar o público a se engajar com uma “mulher de verdade” ao invés de imagem em uma tela.

RHYTHM 5 Marina Abramovi é conhecida por suas performances envolvendo seu corpo. Em uma das suas obras mais famosas, Rhythm 5, a artista se deitou no interior de uma grande estrela de madeira e ateou fogo na estrutura. A performance, que buscava testar os limites físico e mentais de Marina, teve de ser interrompida após a artista perder a consciência.

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ativismo digital funciona? Como fica a militância online quando sair às ruas não é recomendado

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Amanda Peropelli

TÁ LIGADO?


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Projetemos

Mensagem projetada na fachada de um prédio durante a pandemia em 2020

Bem antes da privação do convívio e das ruas, o ímpeto de se fazer escutar vem sendo canalizado para as redes. A pandemia intensificou a polarização que domina as ruas e o ambiente virtual nos últimos anos. O ativismo digital da quarentena está imerso em um binarismo que vem sendo redesenhado desde o início do isolamento e da queda de popularidade do atual presidente Jair Bolsonaro. Mas e na vida offline? Quando o ativismo digital é capaz de trazer resultados? Quem acredita em sua efetividade aposta na capacidade das novas tecnologias de horizontalizar o acesso à informação e ao debate. Por outro lado, há o empobrecimento da discussão, poucas fontes confiáveis, a polarização e o comprometimento da privacidade e segurança dos usuários. Mas críticos e defensores do ativismo de sofá concordam em uma coisa: sem planejamento e uma base clara e concreta de objetivos não será possível conquistar grande coisa. As redes sociais têm sido uma grande ferramenta do antirracismo. Muitos jovens e organizações se valeram delas nas suas formas mais diversas: blogs, Facebook, youtubers, sites que trazem denúncias de discriminação racial. “Tem sido um grande salto qualitativo e quantitativo para as lutas antirracistas no mundo inteiro. Pela capacidade de tornar o indivíduo um agente, alguém que pode relatar, compartilhar, reagir e difundir suas indignações”, diz Flavia Rios. “Há uma distinção entre o ativismo raso, que afaga seu ego mas não faz diferença, e o ativismo baseado em algo que realmente tem significado, estratégia e poder de impacto” As hashtags, que carregam o estigma do ativismo amador, já se provaram capazes de atingir mais gente e ampliar vozes no debate público. Um estudo baseado nas manifestações no Parque Gezi, na Turquia, em 2013, mostra que a chamada “periferia digital” — numerosos internautas que acompanham e comentam as ações somente pela internet — tinha seu papel tanto quanto os que protestavam fisicamente para alcançar mais gente. A atividade política no mundo digital se diversificou muito desde que as medidas de distanciamento social foram adotadas. Não só pela crise inédita na história do país, mas porque as pontes entre sociedade civil e o poder público tiveram de ser reconstruídas online.

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Há menos maneiras físicas de chegar a um parlamentar. Neste momento é tudo por Whatsapp, Zoom e e-mail. “O hábito de bater na porta de um parlamentar agora só é reproduzível no Whatsapp ou em um telefonema mais pessoal. E isso é um problema porque limita a participação”, explica Pedro Telles, chefe de gabinete da Bancada Ativista e cofundador do Advocacy Hub. “O adequado para a democracia é que qualquer cidadão possa ter acesso a discussões parlamentares, mesmo com a limitação física que temos hoje. Então estamos em um debate muito grande agora para construir procedimentos adequados de participação digital para as pessoas”. Segundo Pedro Telles, ativismo de sofá não é mais um termo adequado para a ação política que tomamos de nossas casas, por menor que ela seja. Até porque, hoje em dia, boa parte do ativismo precisa ser feito dessa maneira. “Eu diria que há uma distinção entre o ativismo raso e sem estratégia, que afaga o seu ego mas não faz uma diferença concreta, e o ativismo baseado em algo que realmente tem um significado, uma estratégia e um poder de impacto. Convencionou-se chamar ativismo de sofá o clique em um botão e [a sensação de] ‘pronto você é ativista, simples assim’. Se esse clique no botão fizer parte de uma estratégia bem pensada, ele pode fazer a diferença”, explica.

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O ativismo digital é mais um campo de disputa, uma ferramenta que precisa ser equilibrada com a política feita fora da internet para que a incidência seja de fato efetiva. Do contrário, contamos muito com as mobilizações fugazes, que acabam caindo no que entendemos por ativismo de sofá. Uma petição na internet, trocar um filtro de celular ou corroborar uma hashtag pode não funcionar se não tiver estratégia, eco e perenidade. Não adianta apenas levar uma mensagem mais longe se há carência de substância e especificidade. A ação digital também é mais fácil de ser ignorada quando não é feita em grande escala. E as causas são tantas que se pulverizam na imensidão da rede. “É cada vez mais necessário trabalhar em coalizões, construir esforços de campanha e mobilização, um conjunto de atores que unidos conseguem dialogar, mobilizar ou serem vistos como legítimos por base significativa da população”, explica Telles. O que muitas vezes acontece é que, descolada do universo fora das redes, a pauta se esvazia. “Há uma mobilização e uma comoção de momento, principalmente essa parcela da sociedade civil branca, classe média alta, que se mobiliza, compartilha coisas, mas ontem um adolescente morreu na Zona Sul e ninguém aparece”, diz a jornalista e ativista Mariana Belmont, que

@trunabonial

TÁ LIGADO?


Oficinapopular

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Paródia da obra "Operários" de Tarsila do Amaral imaginando os tais operários durante a pandemia

colabora com a Rede Jornalistas das Periferias e a Uneafro Brasil. “Na raiz do problema [esse tipo de atitude] não transforma as pessoas. É preciso rever o que você está fazendo no dia a dia, dentro da sua casa, do seu trabalho.” “Não romantizemos o sofá, mas também não joguemos o sofá fora. É também nele que se produz implicação, movimento, identificação, solidariedade e onde encontramos nossos pares” Ao mesmo tempo, a expressão de solidariedade ao movimento antirracista no Brasil e nos Estados Unidos despertou uma discussão política dentro da pauta: a superficialidade na adesão de causas via hashtags. Muitas postagens viralizaram sugerindo que o levante antirracista cibernético não ficasse circunscrito às postagens, e apresentando até medidas – muitas delas também possíveis de se fazer remotamente, é importante frisar – para efetivamente gerar reflexos práticos para além do momento crítico de ação. Grandes marcas e empresas americanas captaram a movimentação em torno da hashtag e fizeram também suas essas indignações. O que, aos olhos de muitos, configurou mero oportunismo. “O papel do mundo corporativo é muito decisivo, mas de fato não pode ficar numa hashtag. É preciso adotar medidas institucionais que garantam a diversidade no interior das empresas, desde a

entrada dos trainees até as escalas de ascensão e mobilidade no interior das empresas e instituições”. Enquanto perdurar a quarentena, a militância digital desempenha um segundo papel no cotidiano dos isolados, de expressão e pertencimento. “As redes sociais são o nosso espaço, as nossas ruas. É onde produzimos sentido, encontramos prazer, raiva. É o espaço das emoções. Não há como rolar o feed sem se afetar”, comenta Beatriz Borges Brambilla, professora do curso de psicologia da puc-sp. Segundo a pesquisadora, a conjuntura brasileira tem feito com que as pessoas se posicionem mais, repensem, olhem para suas próprias histórias e decisões passadas. Outro aspecto apontado por Brambilla é a dimensão que se expressar publicamente ganha em um momento de insegurança política e desassistência social. As manifestações também produzem sensação de pertencimento. “O nosso posicionamento é a nossa voz. As pessoas interagem, concordam, discordam. Isso produz novas experiências para o sujeito”, explica. E as ações são capazes de extrapolar a dimensão virtual. “Não romantizemos o sofá, mas também não joguemos o sofá fora. É também nele que se produz implicação, movimento, identificação, solidariedade e onde encontramos nossos pares. O único problema é que a gente não pode ficar só no sofá.”

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GOMA

Nas ocupações do Centro de São Paulo, moradores contam como é a vida esperando a chance de terem um lar

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Gui Christ

o sonho da casa própria


corre (!)

Está na Constituição brasileira e também na Declaração Universal dos Direitos Humanos: todas as pessoas têm direito a terem uma moradia digna, um teto para se acolherem quando a jornada diária de trabalho acaba. Mas, sabemos que, na prática, não é assim. É só olhar para as ruas de nossas cidades e perceber quantas pessoas vivem em condições de sem-teto, ou que estão em áreas ilegais, precarizadas. Em São Paulo, desde que a pandemia do covid-19 começou, serviços de entrega de comida para moradores de rua contabilizam cerca de 5 mil refeições por dia, de acordo com dados divulgados no último mês de maio. Não se sabe exatamente o número de pessoas nessa situação de risco, afinal é um dado que nenhum governante gosta de ter em seu currículo, mas é de se imaginar que a situação não seja boa. Em grandes metrópoles como a capital paulista, há um movimento de reintegração de conjuntos habitacionais e comerciais abandonados, que se tornam ocupações. Através de organizações proeminentes, como o mstc (Movimento Sem-Teto do Centro), pessoas de todas as idades, cores e nacionalidades vêm recuperando a esperança de um dia ter uma casa própria. Há o estigma da ocupação e de seus moradores, que muitas vezes são tratados como invasores. A mídia em geral não ajuda e, quando há uma reintegração de posse, as cenas não são de famílias em necessidade, mas de locais destruídos, usuários de drogas e criminosos. Mas, no mstc, a seleção de quem vai morar em uma das suas ocupações é criteriosa, e começa com as chamadas reuniões de base: “É um movimento por meio do qual damos toda a formação sobre como lutamos junto com as pessoas para a garantia de direitos. Essa base, primeiramente, vem para formações: explicar que existem três níveis de governo, que cada instância de governo tem seus programas e seus projetos destinados a vários setores (para nós, especificamente, na moradia) e também como é imprescindível a nossa participação nas conferências”, diz Carmen Silva, uma das lideranças do mstc. “Além disso, explicamos o que é uma conferência pública de moradia, onde vão ter as determinações e iremos apontar as deficiências de cada setor. Toda essa formação não deveria vir da gente, mas sim, dos próprios governantes. Por exemplo, explicar que é necessário ter toda

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FABIANE DE FÁTIMA ARAÚJO DOS SANTOS, 23 ANOS

documentação em dia, que o título de eleitor não serve só para você votar e que a certidão de nascimento ou de casamento são documentos muito importantes para a garantia de direitos. Todo esse papel o movimento faz, que é a importância dos grupos de base.” Comandando cinco das ocupações mais organizadas da cidade de São Paulo, Carmen diz também que “antes de tomarmos qualquer atitude, como uma nova ocupação, apresentamos toda essa necessidade ao poder público e aos órgãos competentes. Quando temos uma reunião com o secretário de Habitação, explicamos a ele: ‘Nós temos tantas famílias demandadas de despejo ou em área de risco, que necessitam de moradia, pois não têm mais condições de pagarem aluguel’. Muitas vezes, elas estão vivendo na beira dos córregos, em situação vulnerável. Os moradores de cortiço também estão em uma área muito vulnerável da região central. É degradante você viver nessas habitações e ainda pagar um aluguel caríssimo. As famílias não aguentam: com um salário mínimo, como que pagam R$ 900 para morar com sete pessoas, dividindo a mesma pia e o banheiro com outras pessoas? Essas coabitações são extremamente vulneráveis.” Nós visitamos a Ocupação São Francisco, localizada no cruzamento das ruas do Ouvidor e São Francisco, na região do Anhangabaú, para conhecer alguns de seus 24 moradores, divididos nos cinco andares do prédio. Confira:

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“Moro aqui faz sete meses. Vim para cá porque tive meu filho mais novo, e fiquei sem condições de pagar aluguel. Minha mãe já morava em uma outra ocupação do Movimento Sem-Teto do Centro, então consegui vir também. Só vi pontos positivos até agora. Consegui dar outra estrutura de vida para meus filhos. " “Sempre vivi sozinha com meus filhos, e aqui todo mundo ajuda um ao outro . Um vizinho que tem alguma coisa diferente compartilha com os outros, e nós recebemos doações. Aqui, são muitas pessoas como eu, que passaram por complicações no casamento, que tiveram algo que não deu certo na vida.” “Não tinha um pingo de consciência antes de entrar aqui. Era uma visão completamente errada de tudo. Agora, aprendi a viver no coletivo e a lutar pelos meus direitos. Porque, mesmo sendo pobre, tenho direito à moradia, assistência social, saúde de qualidade. Aprendi a ter mais força, levantar a cabeça, não deixar ninguém me humilhar por conta de classe social.”

Gui Christ

GOMA

Abaixo vemos Fabiane e acima Josineide, ambas moradoras da ocupação


corre (!)

“Meu ex-marido não gostava que eu trabalhasse. Larguei o ensino no fundamental. Agora estou fazendo supletivo, estou trabalhando. Quando minha filha via a gente brigando, dizia para separar. Na minha cabeça, como eu iria viver, se eu dependia dele? Agora sei que é muito melhor estar solteira com meus filhos do que ficar escutando as coisas de homem, vivendo mal.”

LOUIS FEKY, 35 ANOS JOSINEIDE SANTOS, 37 AN0S “Meu ex-marido e eu éramos caseiros em um sítio, em São Roque, antes de vir para cá, há um ano e meio. Antes, eu já tinha morado em uma ocupação, na Rua José Bonifácio. Foi por isso que consegui voltar. Não quis ficar no interior porque é mais difícil de arranjar serviço, não te aceitam como caseira sem o homem. Sozinha, com as crianças, acaba sendo impossível. Agora, sou auxiliar de limpeza.” “Gosto de morar no Centro. Eu já vivi na Zona Leste, em São Miguel Paulista, e lá era longe de tudo. Aqui tem padaria, farmácia, mercado, o Poupa Tempo é do lado, em 25 minutos estou no serviço.” “Meus vizinhos são tranquilos, passam os dias trabalhando, é raro que eu os veja. Sentia falta de estar perto das pessoas, quando morava no sítio. Mas, aqui é um coletivo, todo mundo se junta para lavar o prédio, cada um tem o dia de fazer a limpeza. Quando fiquei sem trabalhar, tive ajuda, recebi cestas básicas, frutas, verduras e alguns produtos de higiene.” “Quando a gente mora em outro lugar, acha que isso aqui é outro mundo. O pessoal tem muito preconceito com quem mora em ocupação. Mas, aqui dentro, você percebe que as pessoas têm um objetivo.”

“Eu morava na Liberdade, e depois de três meses vim para cá. Sou do Haiti, mas gosto de viajar. Passei pela República Dominicana, depois em Cuba, estava morando no Equador quando arranjei um visto brasileiro, e aí vim pra cá. São seis anos e meio fora do meu país.” “Nossa cultura é bem diferente da vossa. Meus familiares não querem vir, mas apenas pela questão cultural mesmo. Hoje, sou cozinheiro, trabalho em um restaurante português aqui na cidade.” “Acho muito legal estar no Brasil e entrar nessa luta por moradia, tentar conquistar a mesma coisa que vocês. Sou bem esperto, estava morando em uma república, fiquei sabendo das ocupações e ligeiro fiz minhas coisas também. Porque quem não luta está morto, e eu estou vivo. Quem não ocupa, é ocupado.”

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finanças com os Racionais Gabriela Chaves fala de finanças com ajuda de músicas dos Racionais

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Klaus Mitteldorf

NÃO MOSCA


corre (!)

Aos 10 anos de idade, Gabriela Mendes Chaves conseguiu uma bolsa de estudos em um colégio particular onde a mãe trabalhava. A oportunidade foi crucial para que ela começasse a se interessar pela matemática e se tornasse economista. “O dia mais marcante para mim foi a primeira aula que tive nessa escola, que foi uma aula de matemática e a professora estava ensinando operação com fração”, relembra. “Eu nunca tinha visto uma fração na minha vida.” Ela conta que, neste dia, voltou chorando para casa, no bairro Jardim Trianon, em Taboão da Serra, na Grande São Paulo. O contraste entre o que ela vinha aprendendo em escola pública e a nova escola era enorme para a pequena Gabriela. Mas ela sempre contou com o incentivo da mãe. “Minha mãe falou: ‘Você não tem escolha, você vai ter que estudar e você vai se virar’. Lembro até hoje da sensação de ver a professora desenhando frações na lousa e eu não entender o que significava aquilo.” Gabriela se formou em economia pela puc (Pontifícia Universidade Católica) São Paulo, pelo Prouni (Programa Universidade Para Todos), é mestre em Economia Política Mundial pela ufabc (Universidade Federal do abc) e colunista do Uol Economia. Também é fundadora da “NoFront Empoderamento”, escola de educação financeira que ensina economia a partir de letras do grupo de rap Racionais MC’s. “Os Racionais tem uma potência muito grande para falar dessas questões econômicas, ainda que não estivessem elaboradas num discurso acadêmico. Falam da economia concreta”, afirma Gabriela, citando trecho da música Vida Loka Parte 2: “Não é questão de luxo, não é questão de cor, a questão é que fartura alegra o sofredor.” A intenção dela era a de popularizar o conhecimento e trazer ferramentas para que trabalhadores e pessoas das periferias pudessem tomar melhores decisões financeiramente. “Se de um lado existe todo um universo onde as pessoas lucram muito com investimentos financeiros, do outro vejo muita gente endividada quando eu volto pra casa”. Com essa metodologia, Gabriela já formou cerca de 3.000 alunos. Mas o caminho até ‘chegar lá’ não foi fácil. “Fiz muita coisa nessa vida”, conta. “Vendi tupperware, lingerie, cosmético, doce, comida. Formalmente,

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comecei a trabalhar como jovem aprendiz aos 14 anos, mas foi quando eu estava na faculdade que percebi o quanto a vida pode ser diferente, que existem outras perspectivas.” Entre os 18 e 19 anos, Gabriela descobriu o universo do capital ao ingressar no mercado financeiro. Foi a partir daí que a percepção sobre o que é economia começou a se transformar. “[Comecei a] entender que existe toda uma forma de acumulação [monetária] que não chega ao conhecimento das pessoas que vinham de onde vim. Comecei a pensar como que poderia traduzir isso para as pessoas”, diz. “O emprego é uma questão que vai muito além da vontade individual das pessoas de acordar mais cedo, entregar currículo”, diz se referindo à análise econômica nacional como um todo. A primeira viagem internacional dela foi aos 21 anos, com destino à África do Sul. Ela havia acabado de se formar na faculdade e tinha economizado dinheiro por dois anos para realizar esse sonho. “Tem uma juventude aí que está sedenta por conhecimento. E como

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Agência Mural

NÃO MOSCA

diz a canção do Ilê-Aiyê, se o poder é bom, eu quero poder também.” Hoje, Gabriela enxerga um crescimento de iniciativas semelhantes a sua, que buscam educar pessoas de baixa renda para que possam investir no mercado financeiro de forma responsável. “Tem muita gente na periferia que tem condições concretas de fazer um investimento de longo prazo, só precisam de formação.” Além disso, há uma grande aposta na juventude, que agora se desenvolve com um grande aliado, o acesso à informação. “Uma coisa maravilhosa dessa geração é que agora a gente tem ferramentas de comunicação que não se tinha 20 anos atrás”, afirma, mencionando os tutoriais disponíveis no YouTube. Também faz uma conexão com funk ostentação. “São os moleques falando que a gente não quer mais falar de pobreza”, diz. “A gente não está [aqui] para cultuar a pobreza, para cultuar a miséria. Gosta de cultuar a miséria quem nunca passou fome. A periferia está interessada sim em pensar em projeto de futuro e pensar em como isso é possível.”

Criada em Taboão da Serra, Gabriela Chaves é fundadora da NoFront Empoderamento



POR QU


Agência Estado

UE

texto Ana Beatriz Felicio, Eduardo Silva e Lucas Veloso


Fernando Cavalcanti

M

esmo em meio à pandemia do Coronavírus, festas e aglomerações frequentadas por adolescentes têm ocorrido em bairros periféricos e centrais de São Paulo. Se, por um lado, os jovens das periferias são criticados, por outro, rebatem com outros problemas, como : “no busão cheio eu não vou pegar covid-19, mas no baile, sim?” Depois das 22h de sábado, um movimento de jovens começa a ser visto em Guaianases, na zona leste de São Paulo. Os pequenos grupos se reúnem em busca de alguma festa. A situação era comum antes da pandemia de covid-19, com aglomeEle comenta que ‘a vida não pode rações que duravam a noite inteira, parar’ e que as pessoas ricas se isomas, com o vírus, as orientações lam porque têm condições de ficar médicas passaram a ser o distan- em espaços com opções de lazer. ciamento social. Porém, para muitos, “E a gente aqui? Se isola e fica num as festas continuam. cômodo com a família toda. Acho Um dos jovens que admite sair de que é mancada com os pobres”. casa é o estagiário em engenharia J.C. As aglomerações que ele e outras [ocultado a pedido do entrevistado], dezenas de jovens fazem nas ruas 22. Ele conta que os rolês servem do bairro vão contra as principais para ‘esfriar a cabeça’ depois de recomendações de segurança e uma semana cheia de coisas. combate à covid-19. Sem o uso de “Aqui na periferia a gente não tem máscaras e o distanciamento social, nada o que fazer sempre. Ficar só o ambiente se torna propício para o em casa é ruim porque não tem contágio do coronavírus. A doença muito espaço e fica todo mundo já infectou mais 565 mil paulistanos junto. Quando eu saio, me divirto até o fim de janeiro, segundo dados da Prefeitura e matou ao menos 30 e dou uma respirada”, diz. O estagiário explica que, nos pri- mil na Grande São Paulo. A fiscalização de estabelecimenmeiros três meses de pandemia, tos que estejam descumprindo as seguiu as recomendações de isolamento até onde deu. Mas, depois fases da quarentena é realizada pela disso, cansou. Secretaria Municipal das Subpre-

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José Patrocio

corre (!)

Baile Funk 2263

feituras com o apoio da gcm. Até 22 de janeiro, foram interditados 1.429 estabelecimentos em toda a cidade. Destes, 70% são bares, restaurantes, lanchonetes e cafeterias, baladas e danceterias. Na Subprefeitura de Guaianases, 75 locais foram interditados no mesmo período. Em relação às festas, a pasta diz que a atribuição legal para a fiscalização é da polícia. Mas por que seguir indo às baladas mesmo com a pandemia? Assim como J.C., outros jovens ouvidos pela relataram os motivos que vão desde já estarem expostos durante a semana no transporte público quanto os que não acreditam nos perigos do coronavírus.

O BAILE MAIS ESPERADO outras pessoas – o que o deixou O operador de telemarketing F.S., ‘mais confortável’. 21, frequenta anualmente um “baile “No começo da pandemia, quando funk de natal” que ocorre perto de a gente começou a trabalhar e estuonde mora, no Itaim Paulista, tam- dar em casa, eu tinha muito medo. bém na zona leste da capital. No Só que, com o passar do tempo, não natal de 2020, não foi diferente. Na houve relatos de moradores aqui da madrugada do dia 25 de dezembro, quebrada que tiveram covid, nem centenas de jovens lotaram uma rua suspeita, então as pessoas começaram a sair mais. Eu via muita gente do bairro com carros de som. “É o baile mais esperado do ano. E, na rua e isso me deixou mais conprincipalmente no ano passado em fortável pra sair também”. O Itaim Paulista, que tem 233 mil que a gente não saiu o ano inteiro, estava todo mundo muito ansioso habitantes em uma área de 12 km², por ele”, conta. “Tiveram até grupos teve 7.891 casos leves e 1.313 casos no WhatsApp pra gente combinar de graves da doença até 2 de fevereiro ir. E várias pessoas de outras que- (aproximadamente 3,9% da popubradas vieram para o baile também.” lação). O Hospital Geral do Itaim O jovem diz que começou a sair Paulista, de competência do governo mais de casa após perceber um cli- estadual, atualmente opera com 26 ma de normalidade no seu bairro. leitos destinados ao tratamento a Além disso, a sua família também pacientes com Covid-19, sendo 10 passou a sair e a ter contato com de uti e 16 de enfermaria. julho/agosto 2021

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Baile da Dz7, em Paraisópolis

DESINFORMAÇÃO E DIFICULDADE DE ISOLAMENTO Para Tiaraju Pablo D’Andrea, professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), campus da zona leste, diversos motivos podem fazer com que uma parcela dos moradores das quebradas, principalmente os mais jovens, estejam normalizando a pandemia. “Por um lado, tem uma desinformação generalizada, que é histórica nas periferias, além de uma desinformação levada a cabo pelo governo desse país que acabou confundindo ainda mais as periferias”, analisa D’Andrea, que desenvolve estudos voltados para a análise das periferias. Além disso, ele avalia que a crise enfrentada pelo país nos últimos anos, agravada com a pandemia, tem tornado as periferias territórios deprimidos, nos quais há dificuldade

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de se acreditar nas instituições e também projetar o futuro. “A juventude das periferias não tem muito projeto de futuro por viverem em um país que não possibilita planejamentos a longo prazo. Ela quer viver o agora, quer viver o presente e ela não vai deixar de viver por conta da ameaça da Covid-19. É triste, mas é real”. O professor também destaca as principais questões que dificultaram o isolamento para os moradores das periferias. A infraestrutura dos bairros, como casas muito próximas umas das outras, ruas estreitas e muitas pessoas vivendo juntas na mesma casa são algumas delas. Outra questão ainda é a necessidade de continuar trabalhando fora como única forma de sobrevivência.“Nos bairros de classe média, a gente viu todo tipo de decisão


Fernando Cavalcanti

Reuters File Photo

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Pessoas andam com sacolas em uma rua comercial popular durante a pandemia em SP, 19 de junho de 2020

para cuidar dessa população logo Para ela, antes de exigir que os no começo da pandemia: foram fe- jovens não se reunissem, o poder chadas universidades, academias público deveria evitar aglomerações e shoppings. Porém, moradoras e nas lotações durante a pandemia. moradores das periferias estavam “Os caras vêm me falar pra ir para caobrigatoriamente se aglomerando sa para ter proteção do vírus, certo? no transporte público”. Mas de segunda a sábado, eu estou exposta à covid-19 porque tenho AGLOMERAÇÃO NO TRABALHO que sair pra trabalhar”, comenta. X NO LAZER “Quer dizer que no busão cheio eu Se, por um lado, as aglomerações não vou pegar, mas no baile, sim?” nas periferias são criticadas, por Segundo a SPTrans, a frota de ônioutro, os frequentadores rebatem bus circulando nas ruas da capital com outros problemas. A secretá- paulista está em 88,25%, totalizando ria C.S., 29, mora em Guaianases 11.308 veículos. A demanda de passae trabalha na avenida Paulista, no geiros está em 62% em comparação centro da capital. ao mesmo período do ano passado. Todos os dias ela sai de casa por Em nota, a pasta informa que manvolta das 7h, rumo ao trabalho, e diz teve a frota de ônibus operando em que não viu mudanças no transpor- níveis acima da demanda apresentate público. “Todo dia é cheio. Basta da durante a quarentena e que, nas você pegar um trem ou um busão. regiões mais afastadas do centro, a O que mudou?”, questiona. operação em dias úteis conta com

93,34% da frota de veículos em relação ao período anterior à pandemia. “Cabe esclarecer que o inquérito sorológico realizado pela Prefeitura de São Paulo mostra que a proporção de pessoas infectadas no transporte público é a mesma de quem não o utiliza. Por isso, não há relação entre usar o transporte público e ser infectado”, afirma a SPTrans.

ALTERNATIVA AO DESEMPREGO As aglomerações não se restringem apenas aos bairros periféricos da cidade. O dj e morador de Guaianases T.F., 31, trabalha aos fins de semana em festas de música eletrônica que ocorrem em bares de diferentes regiões, inclusive no centro de São Paulo. Ele toca uma vez por semana e, quinzenalmente, frequenta os mesmos locais como cliente.

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José Barbosa Yan Carpenter

Enquanto muitos jovens aglomeram em festas clandestinas, muitos trabalhadores enfrentam o risco de contaminação no dia a dia

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“O bar é menor mas reúne algumas dezenas de pessoas. A maioria não usa máscara, apenas para se locomover no espaço, mas não é regra”, comenta. “Também acabam criando uma ‘pista de dança’ onde deveriam existir apenas mesas. Em alguns momentos, nem parece que estamos praticando o distanciamento.” O DJ, que estava cumprindo o isolamento em casa desde o começo da pandemia, voltou a trabalhar em setembro do ano passado e, consequentemente, a frequentar esses espaços após o período de flexibilização permitido pelo governo estadual. Mas outro ponto foi crucial para a decisão: a falta de renda. “No início da quarentena, eu fui um dos que perdeu o emprego CLT. Começou a doer no bolso, principalmente por não ter um suporte do governo para o setor de eventos. Eu

fiquei sem sair até meados de setembro e voltei a fazer alguns jobs após o fim do seguro-desemprego, que recebia até então”, conta. “Esse foi um dos motivos cruciais para voltar a tocar aqui e ali. Era preciso gerar renda de alguma forma”. Segundo dados do Seade e do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), cerca de 351 mil pessoas perderam o emprego no estado de São Paulo entre o segundo e o terceiro trimestre de 2020.

CHOQUE DE REALIDADE O barbeiro M.G., 21, parou de frequentar aglomerações por receio de infectar algum membro da família. Ele mora com os pais e a irmã mais nova, no Itaim Paulista, e divide o quintal com uma tia gestante. “Depois de um tempo saindo, eu tomei um choque de realidade e pensei:


corre (!)

Baile Funk Dz7 na comunidade de Paraisópolis, zona sul de São Paulo

‘e se eu for assintomático e levar o vírus pra casa?”, conta. Antes da decisão, porém, ele esteve em um show que ocorreu no mês de dezembro em uma balada no bairro. “Não valeu a pena porque estava muito lotado, você não conseguia andar direito e ninguém estava usando máscara”, diz o jovem, que também frequentava lounges e tabacarias na região. O barbeiro, que também tem saído de casa durante a semana para trabalhar, aponta que um dos motivos para que aglomerações estejam ocorrendo é a descrença da população com o poder público no combate ao coronavírus. “Muitas das coisas se tornaram mais um embate político do que uma preocupação com a gente. Acho que muitas coisas eles escondiam e, com o tempo, a cidade foi perdendo

o medo ao ver as marmeladas que o governo estava fazendo.” Ele cita, como exemplo, a viagem que o governador de São Paulo João Doria (PSDB) fez a Miami, nos Estados Unidos, em dezembro, após ter colocado o estado na fase vermelha do Plano São Paulo. A fase é a mais restritiva da quarentena e só permite o funcionamento de serviços e atividades essenciais à população. O governador pediu desculpas, posteriormente.

MORTES POR COVID-19 NAS PERIFERIAS

com maioria da população negra. Segundo dados da Secretaria Municipal de Saúde, no início do ano, os distritos com mais mortes por coronavírus são Sapopemba (725 óbitos), na zona leste, Brasilândia (586), na zona norte, Grajaú (560), Cidade Ademar (527) e Jardim São Luís (521), na zona sul. Além disso, a ocupação dos leitos hospitalares chegou a 70% nas últimas semanas. Ou seja, pode faltar vaga se os casos continuarem aumentando.

A preocupação com as aglomerações continua, pois os casos de Covid-19 seguem em alta. Desde o início da pandemia, as periferias de São Paulo foram as regiões mais afetadas por casos e óbitos causados pela doença, principalmente bairros

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TRÂNSITO

Morte de Marina Harkot levanta debate sobre masculinidade que alimenta a violência no trânsito

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Thais Viyuela

machismo sobre rodas


corre (!)

Vanessa Ferrari

Paula Santoro era orientadora de doutorado de Marina na faculdade

Em novembro de 2020, a morte da cicloativista e pesquisadora Marina Harkot, de 28 anos, mobilizou manifestações em diversas capitais brasileiras. Ela pedalava para voltar da casa de uma amiga, no bairro do Sumaré, zona oeste de São Paulo, quando foi atropelada por um carro. O motorista, que não prestou socorro, responde por homicídio doloso em liberdade. A morte da jovem, conhecida por seus estudos sobre mobilidade feminina, levanta o debate sobre o machismo estrutural que afeta a vivência de mulheres nos grandes centros urbanos. “Ela estudava as condições que mulheres enfrentam para sair à noite na rua, conhecia as rotas, tinha consciência de seu caminho, literalmente falando. Ela estava fora da ciclofaixa, como algumas pessoas criticaram, mas o lugar do ciclista é na rua, a gente tem que aprender a compartilhar esse espaço”, diz Paula Santoro, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da usp, que era orientadora de doutorado de Marina. “A morte dela foi muito simbólica, uma tragédia sem proporções. Todo mundo que é envolvido com bicicleta no Recife ficou devastado”, conta a cicloativista pernambucana Ju Dolores. “Essas mortes mostram o quanto a gente precisa lutar para uma lógica diferente em relação ao trânsito, para que as pessoas tenham a mínima consciência de que o compartilhamento é necessário”, acrescenta. Para Paula, a jovem foi vítima de um modelo em que o carro e a masculinidade associada a ele são protagonistas: “O atropelamento não foi acidente, porque existe uma ideia de que velocidade é uma coisa que os homens devem performar, enquanto motoristas de carro. Isso é parte da sociedade, é uma característica subjetiva que precisa ser desconstruída”, explica Paula. “Quando baixou a velocidade das marginais em São Paulo, houve diminuição do número de mortos. Quem mais morre no trânsito são homens jovens, então, essa ideia de masculinidade está matando eles mesmos”, comenta, em referência à retomada da velocidade mais alta, em 2017. Paula Santoro, que é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da usp, foi professora do doutorado de Marina Harkot. “Não é o carro que mata, mas a escolha do motorista de dirigir com violência. Existe a ideia de que estar dentro de um carro é estar protegido, de que seu tempo é mais importante do que o

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Thais Viyuela

TRÂNSITO

dos outros. É uma mentalidade individualista e hierárquica: ‘sou maior, sou mais poderoso’”, comenta Ju Dolores. “Acho que a gente tá vivendo um processo de construção de novas ideias de masculinidades associadas a modos ativos [não-motorizados], ao homem assumindo tarefas do cuidado, isso é muito importante”, reflete Paula.

MULHERES E ESPAÇO PÚBLICO

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zona

Thais Viyuela

Se o homem é ensinado a ter uma postura individualista e até violenta no trânsito, é comum que as mulheres sejam desencorajadas a frequentar o espaço público desde a infância. “Desde muito cedo, nós, mulheres, recebemos muitos ‘nãos’: você não vai para a rua sozinha porque é perigoso, porque ainda não tem idade, porque pode sofrer violência”, observa Jô Pereira, diretora geral da Ciclocidade (Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo) e fundadora do Pedal na Quebrada, projeto que ensina mulheres periféricas a andarem de bike, em São Paulo. “Para o gênero feminino, oferecem brinquedos estáticos, que ficam nos mesmos lugares. Para os

Amigos e conhecidos espalham imagens da ciclista junto a mensagens de ativismo e luta

meninos, oferecem brinquedos dinâmicos, que permitem ocupar as ruas, como andar de bicicleta, soltar pipa. No caso das meninas negras, é comum não aprenderem a pedalar porque já são responsabilizadas pela casa e pelo cuidado dos irmãos desde muito cedo.” “Vivemos o medo de formas diferentes. Pesquisas apontam que mulheres têm, entre outras preocupações, medo da violência sexual e, homens, medo da perda patrimonial; pessoas lgbtqs têm medo da violência física. Estamos num momento de perguntar: o que podemos fazer para mudar nossa forma de estar na cidade?”, questiona Paula, que, para além da necessidade de melhorar a infraestrutura oferecida para pessoas que andam de bicicleta ou a pé, é necessário estimular a ocupação das ruas e a educação para o compartilhamento: “Se tiver muita gente de bicicleta, os carros vão ter que recuar, vão ter que andar mais devagar. Ao invés de manter nosso comportamento moldado pelas relações morais e de segurança, é ocupar, ir pra rua”.



TRAMPO

Quais as características de um empreendedor? Elas não têm a ver necessariamente com formação e são mais subjetivas do que parece. 104

Perimpacto

como empreender


corre (!)

Sabe aquele momento de crise pessoal ou econômica, por desemprego, queda na renda ou o convívio com aquele chefe tóxico que desagrega e torna insuportável a permanência na empresa? São nestes momentos em que muitos decidem empreender, não como um objetivo com meta e direção definidas, mas como saída para uma situação incômoda. Começa assim boa parte das histórias de insucesso de quem dá os primeiros passos no mundo do empreendedorismo. Outro erro comum é considerar que o domínio de ferramentas técnicas como conhecimento gerencial, de contabilidade ou vendas sejam suficientes para se lançar como empreendedor. Aspectos mais subjetivos que definem quem tem perfil empreendedor, ligados ao comportamento, visão de mundo e expectativas pessoais são considerados por especialistas indispensáveis em uma jornada empreendedora de sucesso. A própria definição do que é empreendedorismo já dá dicas do peso que aspectos subjetivos a serem considerados e desenvolvidos têm na iniciativa. Robert D. Hisrich, em seu livro “Empreendedorismo”, definiu como “processo de criar algo diferente e com valor, dedicando tempo e o esforço necessários, assumindo os riscos financeiros, psicológicos e sociais correspondentes e recebendo as consequentes recompensas da satisfação econômica e pessoal”. Para Ênio Pinto, especialista no tema e gerente de relacionamento com o cliente do Sebrae, determinadas características individuais são mais importantes quando o assunto é empreender. “É uma ideia pobre, reducionista pensar que conhecer ferramentas de gestão qualificam alguém para empreender. Qualidades comportamentais são essenciais e ajudam a definir quem tem ou não um perfil empreendedor.” Não é à toa que uma das principais referências no mundo do empreendedorismo é um psicólogo da Universidade de Harvard, David McClelland, autor da “Teoria das necessidades adquiridas”. Ele aplicou um estudo que até hoje impacta nos programas de estímulo ao empreendedorismo ao definir as 10 características comportamentais do empreendedor (cces). A mais importante delas, na visão do professor do Sebrae, é a capacidade de estabelecer metas, ser focado e persegui-las. “Ele precisa permanecer aderente àquela ideia e meta estabelecidas no início do projeto. Gostar do que faz ajuda neste processo”, afirma o

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TRAMPO

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necessidade de comprometimento com a proposta. "Esta é a vida do empreendedor, de compromisso e entrega total.” No mercado financeiro, os investidores são divididos em perfil conservador, moderado e arrojado e não pelo volume de recursos disponível no bolso, mas sim pelos riscos que aceitam correr – uma característica mais ligada a questões emocionais. O mesmo ocorre no mundo do empreendedorismo, mas com um agravante: não tem a opção conservador. “Por mais que ele avalie, meça as chances de erro não dá para zerar o risco, que é inerente a quem quer empreender. Ele tem de se perguntar se está disposto a assumir este risco e gerenciá-lo quando possível”, afirma Ênio Pinto, especialista do Sebrae. Persuasão e empatia são qualidades comportamentais que estão diretamente ligadas ao sucesso do negócio e passam longe da ideia de que uma imagem de “cara bacana” vai ajudar o empreendedor. Para o professor da fia ter empatia é essencial para lidar não apenas com os clientes, mas com todos os

A Feira Preta é um empreendimento que chegou a movimentar 200 mil visitantes e 5 milhões de reais ao longo de suas 17 edições

Jef Delgado

especialista acrescentando que na escolha da área em que vai atuar, o empreendedor comece elencando tudo o que gosta de fazer. Dentro do elencado, o segundo filtro é escolher no que tem competências. “Só depois ele deve olhar o mercado e ver se tem demanda e qual problema tem para ser resolvido.” Tanto na identificação de oportunidades como na efetiva gestão do empreendimento, outra competência exigida dos candidatos é a capacidade de buscar informações. “Não precisa reinventar a roda, mas olhar no detalhe pequenas mudanças em um produto ou serviço que resolvam problemas e para isto ele precisa de informação”, explica Antônio Paulo Terassovich, professor do Programa de Capacitação da Empresa em Desenvolvimento da Fundação Instituto de Administração (fia). “Tem de ser um sujeito perspicaz e curioso por natureza, porque o trabalho de encontrar um espaço para atuar como empreendedor não é tarefa fácil.” Entre as 10 competências empreendedoras de McClelland, uma das mais citadas pelos consultores é a persistência, ou a resiliência, para enfrentar dificuldades ao longo da jornada. Não se trata, contudo, de resistir apenas às dificuldades financeiras e de mercado que surgem, mas às expectativas que são, em muitos momentos, frustradas. “Ele precisa absorver impactos sem permitir que os objetivos sejam alterados. Ter resistência emocional para suportar revés”, afirma Terassovich que acrescenta também a


Monica Silva

corre (!)

envolvidos na cadeia que dá sustentação ao negócio, incluindo sócio, fornecedor e funcionários. “Tem que saber o que todos desejam e lidar com estes públicos diferentes.", explica Terassovich, acrescentando ainda que alguns executivos, que entregam resultado embora sem qualquer empatia, estar disposto a mudar o mindset contam com uma rede de proteção, – ou mentalidade. “Para muitos é com o fia resolvendo problemas de difícil porque somos julgados por diferentes áreas e da equipe, por todos, pela família, pela sociedade, exemplo. “Nada disto vale para o mas precisa estar disposto a isto empreendedor. Se ele não souber ou nenhum coach, professor ou lidar com um fornecedor é trocado curso conseguirá fazer com que com facilidade, se não respeitar a ele aprenda as competências de diversidade não engaja a equipe.” um empreendedor.” Esse cita como Todas as chamadas soft skills, ter- exemplo a importância de lidar com mo usado para definir habilidades a diversidade. “Ele não pode moncomportamentais e competências tar uma equipe só porque gosta de subjetivas e emocionais de um em- alguém, que pensa ou se parece preendedor, que incluem também com ele. Tem de ter diversidade. No capacidade de construção de bons ambiente de trabalho não pode mais relacionamentos, independência e usar certos termos preconceituosos autoconfiança, podem ser forjadas e isso é parte do negócio porque por quem deseja empreender. Há engaja a todos.” Aqueles que desejam fazer uma vários programas que fornecem ferramentas para que o candidato a se transição de carreiras e passar a emtornar empreendedor busque esta preender, a melhor forma, na visão qualificação. No entanto, como des- dos consultores é fazer pequenos taca Terassovich, da fia, ele precisa testes ou uma espécie de prototipagem como define Ênio Pinto, do Sebrae. “Empreender juntamente ao trabalho é muito interessante porque é seguro e principalmente porque é possível ir tocando em pequena escala para ver se funciona.” O especialista alerta, contudo, que esta estratégia tem um limite. “Se a ideia der certo em algum momento o empreendimento colocará uma faca no pescoço do profissional e ele terá de escolher. Caso contrário o empreendimento morre.” Bernhoeft Adriana Barbosa é concorda: “sair da empresa e virar presidente da Feira empreendedor pode ser muito radiPreta, especialista em cal, até porque ele precisa ter tempo empreendedorismo e para desenvolver as competências considerada uma das mulheres negras mais empreendedoras. Começar a jornainfluentes do mundo, da empreendedora em paralelo ao segundo o MIPAD trabalho é sempre a melhor opção.”

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ANOTA AÍ

MÚSICAS

AMARELO

TE AMO LÁ FORA

NÓ NA ORELHA

Artista: Emicida Produção: Laboratório Fantasma Lançamento: 2019 Disponível: Youtube e Spotify Contando com 11 músicas, o álbum “Amarelo” do cantor Emicida une Fernanda Montenegro, Zeca Pagodinho e até uma banda do Japão para falar de algo universal: o amor

Artista: Duda Beat Produção: Lux & Troia Lançamento: 2021 Disponível: Youtube e Spotify No álbum “Te amo lá fora”, as 11 músicas burilam a fusão de brega com o universo da música eletrônica, mas abre o leque rítmico para seguir tendências do mercado fonográfico.

Artista: Criolo Produção: Oloko Records Lançamento: 2011 Disponível: Youtube, Deezer, Spotify Contando também com 11 músicas, o álbum “Nó na Orelha” mostra como o cantor Criolo diversificou os ritmos de rap, mesclando com MPB, samba, reggae, funk, soul e blues

LIVROS

RICARDO E VÂNIA

ARRUAÇAS

CAPITÃES DA AREIA

Autor: Chico Felliti Editora: Todavia Lançamento: 2019 Disponível: Amazon, Saraiva A história surge a partir de uma reportagem onde o jornalista narra a história de Ricardo Correa da Silva, um artista de rua conhecido pelo apelido de “Fofão da Augusta”

Autores: Luiz Antonio Simas, Luiz Rufino e Rafael Haddock-Lobo Editora: Bazar do Tempo Lançamento: 2019 Disponível: Amazon, Submarino O livro parte dos saberes presentes nas ruas e suas encruzilhadas para defender a existência de uma autêntica filosofia popular brasileira

Autores: Jorge Amado Editora: Companhia de Bolso Lançamento: 1937 Disponível: Amazon, Estante Virtual O romance, retrata o cotidiano de um grupo de meninos de rua na cidade de Salvador, BA, que vivem de assaltos e violência, mas também cultivam sonhos e aspirações

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PODCASTS

AMARELO PRISMA

INFILTRADOS NO CAST

RESPONDENDO EM VOZ ALTA

Apresentador: Emicida Produção: Laboratório Fantasma Lançamento: 2020 Disponível: Spotify Uma plataforma de conteúdo e informação feita colaborativamente através de vários olhares, que se organizam para se projetar no mundo um raio de luz

Apresentador: Ale Santos Produção: Ale Santos Lançamento: 2020 Disponível: Spotify, Youtube Podcast informativo, que traz convidados especiais para discutir os temas mais polêmicos e relevantes da atualidade através da perspectiva negra-brasileira

Apresentador: Laurinha Lero Produção: Laurinha Lero Lançamento: 2019 Disponível: Spotify Uma espécia de monólogo com dicas e percepções da própria Laurinha Lero que, toda quinzena, responde em voz alta as melhores perguntas dos ouvintes

SÉRIES

SINTONIA

THE GET DOWN

CIDADE INVISÍVEL

Direção: Kondzilla e Johnny Araújo Atores: Bruna Mascarenhas, Mc Jottapê e Christian Malheiros Lançamento: 2019 Disponível: Netflix Traz as histórias de moradores da favela de São Paulo que descobriram o mundo do tráfico de drogas, da religião, mas também da música

Direção: Baz Luhrmann Atores: Justice Smith, Shameik Moore, Herizen Guardiola Lançamento: 2016 Disponível: Netflix Passada no ano de 1977, a série conta como, à beira das ruínas, um novo grupo musical surgiu no Bronx, ligado a jovens negros marginalizados

Direção: Carlos Saldanha Atores: Alessandra Negrini, Marco Pigossi, Jessica Córes Lançamento: 2021 Disponível: Netflix A série brasileira se baseia na história sobre um policial ambiental que descobre um mundo oculto de seres mitológicos do folclore brasileiro

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ANOTA AÍ

PROJETOS G10 FAVELAS Fundador: GIlson Rodrigues Atuação: Grande São Paulo, Interior de São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco, Maranhão, Brasília, Pará, Amazonas, Espírito Santo e Rio de Janeiro Site: www.g10favelas.org Instagram: @g10favelas Bloco de Líderes e Empreendedores de Impacto Social das Favelas que, assim como os países ricos do G-7, uniu forças em prol do desenvolvimento econômico e protagonismo das Comunidades, visando o desenvolvimento econômico e social dessas áreas urbanas

GERANDO FALCÕES Fundador: Edu Lyra Atuação: Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo Site: www.gerandofalcoes.com Instagram: @gerandofalcoes Organização social que atua dentro de estratégia de rede, nas favelas. Focando em projetos mais ligados ao esporte, à cultura e à qualificação profissional, o Instituto nasceu com o objetivo de incentivar os jovens da periferia a lutar por um destino melhor e conseguir mudar sua realidade, para se tornarem um motor de geração de renda às suas famílias

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SARAU COOPERIFA Fundador: Sergio Vaz Atuação: Zona Sul de São Paulo Site: www.cooperifa.com.br Instagram: @cooperifa.oficial O sarau da Cooperativa Cultural da Periferia (Cooperifa) tem como objetivo reunir artistas da periferia e desenvolver atividades culturais, como teatro e exposição de fotografia em praças, bares, galpões e diversos lugares para reforçar o comprometimento de cidadania, abordando temas que refletem dificuldadesdiárias vividas por quem mora por lá

COZINHA OCUPAÇÃO 9 DE JULHO Fundador: Movimento Sem-Teto do Centro Atuação: Centro de São Paulo Site: www.movimentosemtetodocentro.com.br Instagram: @cozinhaocupacao9dejulho Pensada inicialmente para ser uma plataforma de troca de conhecimentos e ferramenta de capacitação para novos empreendedores, a cozinha passou a realizar almoços abertos ao público, com uma programação cultural, e agora, durante a pandemia, também oferece comida delivery e distribui alimentos aos necessitados

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