Nº6-2017
Brasília | maio | 2017 | ISSN 2359-0084
ISSN
Nº6-2017
EDITOR CHEFE CONSELHO EDITORIAL
Marcio Oliveira Aline Zim | Carolina da R. L. Borges
PROJETO GRÁFICO
Daniel C. Brito | Thiago P. Turchi
COLABORADORES
Foto capa: Ivan Canabrava | Editoração eletrônica: André Gruhn Melo | Perfil: Carolina Borges | Yara Regina | Bárbara Tavares | Pedro Henrique Gonçalves | Artigos: Luis Philippe Torelly | Marco Antonio Dias | Milena C. S. Lannoy | Stephanie Campos | Crônicas: Lucas Akira | Explicando: Carolina Borges | Relatos: Fernanda Moreira | Acontece no CAU: Valéria Campos | Juliana Matos | Daniela Caparelli | Gabriel Araújo | João Pedro Lau | Roberto Rodrigues | ArqCartoon: Daniel C. Brito | Thiago P. Turchi Brasília | maio | 2017 | ISSN 2359-0084
Revista CAU/UCB | 2017 | Editorial
PERFIL NICOLAS BEHR | POETA
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ARTIGOS 1- SHOPPING CENTERS E O DECLÍNIO URBANO: O CASO DO PLANO PILOTO DE BRASÍLIA 2- BRASÍLIA, O QUE É ESTA CIDADE: UM SONHO OU UM MITO? 3- CIDADE DE QUEM? HABITAÇÃO PARA MORADORES DE RUA
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CRÔNICAS CRUZAMENTOS
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EXPLICANDO ANTES DO GRAFITE
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RELATOS REGISTRO DE VIAGEM À MAPUTO, MOÇAMBIQUE
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ACONTECE NO CAU 1- EIXOS - IMPLANTANDO UM ESCRITÓRIO MODELO DE ARQUITETURA NA UCB 2- CENTRO COMUNITÁRIO SETOR P-SUL 3- TERMINAL DE ÔNIBUS - EIXOS 4- BIBLIOTECA PÚBLICA DO GAMA
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ARQCARTOON TEMA DO ARQCARTOON
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Revista CAU/UCB | 2017 | Sumário
PROF. CAROLINA BORGES (CAU/UCB): Em primeiro lugar, quero agradecer em nome do departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Católica de Brasília pela sua atenção e disponibilidade em nos conceder essa entrevista. Você mora em Brasília há muitos anos e muita coisa mudou desde os anos 70 para cá. Você reconhece hoje uma identidade brasiliense? Você se considera um brasiliense?
Carolina Borges | Yara Regina
Brasília é nova demais em termos históricos. Essa identidade começa a ser construída de uma forma cotidiana que vai levar séculos. Hoje nós temos no Brasil identidades que viraram estereótipos, um problema. O mineiro é aquele calado para dentro, o paulista, trabalhador, o carioca, malandro... Mas que Brasília é uma cidade nova instigante, ela é, e que algo novo vai se ver daqui, vai. É uma cidade nova, que vai gerar uma coisa nova, uma identidade cultural. O que a gente já sabe, que é muito obvio, é o caldeirão, uma grande mistura e é mistura boa, pois aqui tem
ENTREVISTA POETA NICOLAS BEHR
Fig 1 - Nicolas Behr
NICOLAS BEHR:
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gente do Brasil todo, do mundo inteiro. Então isso é uma coisa muito visível, são muitas informações cruzadas, muitas associações que você pode fazer. PROF. CAROLINA BORGES (CAU/UCB): O plano piloto tem um desenho marcado por uma geometria, grandes espaços vazios, uma setorização das funções, etc. Você acha que essa configuração torna a cidade mais fria, pouco espontânea e que distancia as pessoas, como muitos acusam? NICOLAS BEHR:
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Tem um poeminha meu, que diz assim: “se Brasília é uma cidade fria, eu não sou”. Brasília é um experimento, nós somos cobaias de um experimento modernista, fruto da cabeça, principalmente, do Corbusier: “aqui você vai trabalhar, aqui você vai estudar, aqui você vai se divertir”. Isso eu acho instigante, pois nós estamos dentro de um grande laboratório. O Plano Piloto, as super-quadras, que tem coisas positivas e negativas, como toda experiência. Mas eu tenho andado nas cidades satélites e vejo que a interação humana é muito maior que no plano piloto. A baixa densidade populacional no plano piloto fez com que as pessoas se desagregassem, apesar de ter uma qualidade de vida. Você pode ver a questão da qualidade de vida como sendo o relacionamento entre as pessoas, não só como a questão financeira. As pessoas podem viver materialmente melhor aqui no plano, mas às vezes penso que emocionalmente, se vive Revista CAU/UCB | 2017 | Perfil
melhor na cidade satélite, onde se conhece tudo, se visita tudo. Eu me orgulho de ser um cara que sempre morou no Plano e sei andar pelo DF, sei chegar, sei onde estou, e isso falta um pouco no brasiliense, pois as pessoas quase não saem da sua zona de conforto. O corpo é o todo, mas a alma de Brasília também pulsa. Aí é claro, as coisas repercutem mais no plano, onde estão as mídias. Mas onde as coisas acontecem, é nesse cinturão de Cidades Satélites. Mas eu morei em super-quadras muitos anos, moro em uma casa agora, mas não acharia ruim morar em uma cidade satélite como Taguatinga. Uma vez me falaram: “eu quero ver gente em Brasília”, eu pensei: “vou levar para rodoviária?” Não! eu levei para Praça do Bicalho em Taguatinga, no bar do Mané, Rei da Codorna. Se o traço uniu ou não... o traço não tem esse poder. As coisas acontecem meio que a revelia do traço. PROF. CAROLINA BORGES (CAU/UCB): Com relação aos vazios urbanos e o diálogo entre arte e cidade, você acha que poderíamos ocupar melhor os espaços vazios do plano piloto? Com intervenções artísticas temporárias, talvez? Ou não, deixa como está porque faz parte de uma composição de um traço? NICOLAS BEHR: Deixa como está, pois é a escala bucólica de Lúcio Costa. Brasília é um símbolo que deve ser protegido, pois um dia o brasileiro ainda vai redescobrir Brasília e ver o que
Brasília significou em termos de conquistas brasileiras. Uma coisa que eu deveria ter dito desde o começo, que eu sempre falo, Brasília é a maior conquista do brasileiro. O brasileiro não fez nada tão grandioso quanto Brasília. Eu sou muito militante por Brasília, pois no final dos anos 50, Brasília realmente foi uma coisa que o mundo se espantou. Então esses espaços, eu acho que tem que estar desocupados. Claro que o cuidado do planejamento do plano piloto foi muito maior do que nas cidades satélites, pois lá na cidade satélite havia uma urgência que atropelou o planejamento. As demandas por moradias eram tão grandes que não houve tempo e tanto interesse em fazer esse planejamento, pois a pressão humana era muito maior que qualquer capacidade do Estado de planejar. Os planejadores de Brasília foram surpreendidos, pois eles achavam que os trabalhadores que viessem pra cá, os candangos, um terço iria voltar para São Paulo, um terço voltaria para o Nordeste ou para o Goiás ou de sua região de origem e um terço ficaria em Brasília. Mas não, todos ficaram. Então essas cidades satélites estavam planejadas para serem construídas dez anos depois da inauguração, mas foram construídas dois anos antes. Mas essa questão do adensamento populacional nas cidades das regiões administrativas às vezes tem seu lado positivo. Eu vi uma rua em Taguatinga que os caras fecharam para jogar bete, fazer festa junina. Aqui no plano tem festa junina também, mas lá a interação é bem maior.
ples, mas o simples é o complexo resolvido, a simplicidade do traçado. Mas o problema todo é a questão da escala humana. O que assusta as pessoas em Brasília, é você estar muito pequeno. Mas às vezes ele queria isso, a escala monumental, e a escala humana talvez não tivesse interesse, o que já existe muito nas Cidades Satélites, pois lá não existe essa coisa monumental. Mas a Praça dos Três Poderes é a Praça Maior de Brasília, é um fruto de várias influências e confluências, que eu gosto e acho bonita. É monumental e o que é monumental é para ser monumental mesmo, tem sua função, é para ser impactante. É como Lúcio costa falou: “Eu não quero fazer uma cidadezinha qualquer, quero fazer a capital de um país”. Isso foi muito importante pois elevou muito a auto-estima do brasileiro e mostrou uma capacidade criativa de realização que o brasileiro nem desconfiava que tinha. A ousadia de Brasília. JK foi um homem muito ousado, além de ser louco, um pouco megalomaníaco, mas muito visionário. JK foi o homem certo, no lugar certo e o momento era certo, pois Brasília é o fruto de um Brasil democrático que deu uma respirada entre a ditadura de Vargas e a ditadura militar. Brasília foi realmente aquele momento único, e tinha que ter JK, ele foi a figura central aglutinadora de tudo, com aquele entusiasmo e a fé. Sou fã de JK.
Lúcio Costa avaliou o plano, que é sim-
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“Uma coisa que eu deveria ter dito desde o começo, que eu sempre falo, Brasília é a maior conquista do brasileiro.” Nicolas Behr
PROF. CAROLINA BORGES (CAU/UCB): Pelo fato de você ser um poeta, imagino que sua visão sobre a cidade, sobre arquitetura, tem muito a ver com aquela ideia de se ler a arquitetura como um texto. Tem um pouco disso? NICOLAS BEHR: Tem um poeminha meu que é assim: “ler a cidade a pé, mas de dentro de um carro”. É questão da alma da cidade, arquitetura, pois não é só engenharia, tem arquitetura que dá alma para a engenharia, e o Brasil tem muita alma. Tem uma coisa que é polêmica (me disseram para não dizer isso) mas que antes de Brasília, a arquitetura moderna era feia, era blocada. Porque que Brasília é esse sucesso em termos estéticos? Pois é possível fazer uma arquitetura moderna leve usando água, por exemplo, e os traços leves, aquela coisa dos edifícios suspensos, o Palácio do Planalto usando vidro, água em torno do Ministérios das relações exteriores, o Itamaraty, eu acho que Brasília tem o seu lugar. Uma coisa que acontece demais é a má vontade do mundo em relação a Brasília. Muitos repórteres da Suíça, da Polônia, dos Estados Unidos me perguntam sobre Brasília, e a pauta é o fracasso da cidade. E eu pergunto “há quantos dias você está aqui?” e eles respondem: “Cheguei antes de ontem”. E eu falo: “estou há 43 anos aqui, agora você vai me ouvir”. Porque Brasília não foi construída nos Estados Unidos e na Europa nem no Japão, foi no nosso cerradinho, por um povo agricultor, semi-alfabetizado, os candangos eram
agricultores semi-alfabetizados, que construíram essa cidade em 3 anos. Isso é uma coisa que o Brasil um dia ainda vai recuperar, está sendo recuperada aos poucos, mas ainda falta muito. A arquitetura tem o seu lugar na minha poesia, mas mais do que a arquitetura, é o poder. Brasília para um poeta é uma maravilha, porque ela é tão racional, a cidade mais racional de todas. E logo no país do jeitinho, foi feito uma cidade tão racional. É uma contradição né? E viva a contradição! Então essa racionalidade de Brasília proporciona muito a associação irracional, pois a poesia é racional, mas ela é irracional também. Ela é caótica. A criação não se pode enquadrar. A criação não tem regras, então essa racionalidade de Brasília, essas siglas, sul, norte, brincar com isso e subverter isso, eu descobri cedo e fui investindo. Eu fiz sete livros sobre Brasília e virou minha obsessão poética, pois todo poeta tem uma obsessão. Ou é a mulher amada, ou é a morte – a morte é muito importante – a pátria. Eu escolhi Brasília e acabei me auto-rotulando e me autolimitando, mas eu fiz já um livro de poesia erótica, fiz um outro sobre minha infância, estou fazendo outro de poesia erótica para fugir um pouco desse rótulo. Mas Brasília é instigante, é uma cidade difícil. É engraçado, quando a pessoa chega aqui, tem as várias fases. Primeiro vem o ódio, depois vem o estranhamento, depois vem a aceitação, aí depois vem o encanto, e depois vem a paixão. Eu estou nessa da paixão, pois a paixão é uma mistura de amor e ódio. Quando cheguei, achei estranho demais! Eu cheguei com quatorze ou quinze Revista CAU/UCB | 2017 | Perfil
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anos. Moleque de rua, vim com os pais de Cuiabá, e eu falei: “Meu Deus, essa cidade!”. Eu vim de uma cidade orgânica para essa cidade artificial, pois pode-se dizer que era artificial. Brasília hoje tem essa coisa mais orgânica, natural. Mas eu saí do mato pra cair em uma maquete, pois era uma maquete, e fui para as 400s da Asa sul, sempre fui um garoto classe média das 400s da asa sul. Lá que eu tive a fase mais criativa da minha vida, eu acho. PROF. CAROLINA BORGES (CAU/UCB): Você escreveu um texto sobre Brasília como sendo uma cidade utópica – a Braxília. NICOLAS BEHR:
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Eu criei uma cidade chamada Braxília. O problema todo se resume em uma palavra, poder. As pessoas associam Brasília com poder, e não associam Londres com capital, nem Paris com capital, nem Lisboa com capital, pois a cidade foi criada com o objetivo de ser sede do poder, e a nossa ideia que é uma tentativa de buscar uma identidade, a eterna busca de uma identidade de Brasília vai ser uma tentativa de dissociar Brasília com a ideia de poder. A primeira fagulha dessa ideia, que teve repercussão nacional, foi o rock. Eu acho que o Renato Russo e as bandas daqui tem um rock de qualidade, intenso. No imaginário brasileiro, no inconsciente coletivo do brasileiro, Brasília tem ligação com o poder. Eu fiz uma camiseta que diz “Sou de Brasília, mas juro que sou inocente”. Já esta sendo pirateada, tudo bem, Revista CAU/UCB | 2017 | Perfil
deixa piratear, eu vejo na rua os caras e penso “poxa, tirou meu nome”. Caiu no gosto popular, mas tudo bem, essa é a gloria. Mas então, essa questão de associar, quando se fala “eu vou a Paris”, você pensa na torre Eiffel, na Champs-Élysées, no Louvre. E Brasília tem essa ideia de poder, e vai demorar para perder, pois Paris tem dois mil anos, Londres tem 2 mil anos, Lisboa tem mais de dois mil anos. A melhora da imagem de Brasília vem da melhora da nossa representação política, as duas coisas estão muito lincadas, muito próximas, mas eu acho que aqui a mudança já começou, já tem gente presa, é uma coisa lenta, mas já começou. E isso é algo que gera um conflito, e isso é bom, pois gera poesia. A poesia é sempre uma tentativa de resolução de um conflito. Então meu conflito com a cidade foi muito grande. Hoje é menor. Já estou mais adaptado. Mas quando eu cheguei eu falei: “Essa cidade não vai me matar. Não vai me devorar. Eu vou dialogar com ela.” E comecei a escrever, e hoje tenho um diálogo. Escrevo sobre a cidade. Fiz 600 livros sobre Brasília, sobre fauna, flora, arquitetura. Então ando muito pela cidade, observo. Cidade novíssima, estamos aqui no começo, então é uma cidade que tem sede de história, sede de mito. Eu escrevi um livro chamado Brasilíeda, onde eu transformei o lago Paranoá no mar mediterrâneo e trouxe a guerra de Troia para Brasília. Quando eu cheguei, as pessoas falavam: “Aqui você vai trabalhar, aqui você vai estudar”. Aquela setorização. E eu falei: “Não. Eu vou participar dessa história, também sou candango.” Somos to-
dos candangos, pois a construção de Brasília não parou. Nós estamos construindo a cidade. Se não fosse pelo tombamento, que está fazendo 30 anos, Brasília, o plano piloto, seria uma Aguas Claras, teria sido descaracterizado pela força da especulação imobiliária. As pessoas reclamam, querem o título, mas não querem pagar o preço. Única cidade construída no século passado que foi considerada patrimônio cultural da humanidade. Graças à luta do José Aparecido de Oliveira. O José Aparecido levou Oscar Niemeyer para Ceilândia. A única obra do Oscar Niemeyer fora do plano piloto foi a Casa do Cantador em Ceilândia. PROF. CAROLINA BORGES (CAU/UCB): Quais lugares de Brasília que não estão nos roteiros turísticos que você tem orgulho e gosta de frequentar? NICOLAS BEHR: Eu gosto da feira permanente de Ceilândia, de ir almoçar lá, pois Caruaru está muito longe. Da super-quadra, eu também gosto, que é turística. A super-quadra é uma invenção brasileira, a única construção coletiva no mundo que não virou cortiço, Em Cracóvia, fizeram um bloco para cinco mil pessoas, aquela coisa pesada, que virou um cortiço, decaiu. Então, porque que as nossas super-quadras são vivas? Pilotis, baixa densidade populacional e árvores, muitas arvores. Gosto da Água Mineral, vou à Torre, vou ao Beirute, à Igrejinha, Vale do amanhe-
cer, praça do DI, praça do Bicalho. Mas aqui o turístico tem o problema de não ter placa, não ter sinalização, lugar sujo fechado, abandonado, é triste. PROF. YARA REGINA (CAU/UCB): Você é uma das poucas pessoas que fez a ode da árvore torta do cerrado como elemento de beleza. Como você vê o desempenho do paisagismo hoje? NICOLAS BEHR: Eu vim do cerrado e fui pro cerrado. Eu nasci em Cuiabá, morei em uma região que antes era cerrado, hoje é destruído, é soja, e eu sempre me identifiquei com a beleza do cerrado, pois é uma beleza sofrida. Eu acho que as pessoas não gostam muito do cerrado, pois querem se identificar com uma árvore retilínea, uma palmeira imperial, um eucalipto. Essas árvores sofridas, eu sou muito atraído por elas, pois elas são um milagre, estão em um solo pobre e com esse regime de seca. Então eu fiz aquele poema do “Nem tudo que é torto é errado, veja as pernas do Garrincha as pernas do Cerrado”. O cerrado é o nosso ecossistema mais ameaçado depois da mata atlântica, caixa d’agua do Brasil. Poucas pessoas sabem, mas nossas hidrelétricas estão em bacias que nascem no cerrado. Todas nascem no cerrado – a do Prato, a da Amazônia e do São Francisco. E Brasília está onde está, pois é bem no centro das três nascentes, mas isso é outra história. Uma coisa que a gente vê e viu no paisagismo, no começo de Brasília, era muito tentativa e erro e demorou Revista CAU/UCB | 2017 | Perfil
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20 anos para chegar ao óbvio: “O que vai bem em Brasília? As plantas nativas do cerrado”. Então Brasília, aos poucos, vem se reconciliando com a flora nativa. É interessante como o paisagismo da cidade veio em ondas. Teve a onda da Sibipiruna, aí depois a onda do Cambuí. E hoje estamos em uma onda muito diluída, mas há uns 20/30 anos atrás, era a onda do ipê. O ipê foi uma onda, e com ele vieram várias outras plantas nativas, apesar de eu achar que planta não tem passaporte, tem muita planta exótica aqui que se deu muito bem, tem muita planta brasileira que foi para o exterior também. O uso de nativas no paisagismo ainda é bem pequeno, pois nós somos regidos por uma lei da oferta e procura, e tem muitas espécies do cerrado que tem um potencial enorme. Mas eu acho que aos poucos as nativas vão ocupando seu espaço, pois as nativas não precisam de tanta água, não precisam de tanto adubo, elas são adaptadas ao nosso clima seco, ao nosso solo. As pessoas aos poucos vão descobrindo o que a novacap demorou 20 anos pra descobrir, o que vai bem em Brasília, o que é de Brasília. PROF. YARA REGINA (CAU/UCB): Eu acho que tem um extrato herbáceo e arbóreo que ainda deve ser muito explorado. Como você vê a questão da crise hídrica? NICOLAS BEHR: A crise hídrica tem umas coisas muito interessantes. A consciência ecológica de verdade, não esse bla bla bla que tem Revista CAU/UCB | 2017 | Perfil
por aí. Não temos um grande rio, e essas nascentes, com a urbanização, foram soterradas, então nossa disponibilidade de água caiu, mas eu acho que essa crise hídrica vai trazer uma consciência ecológica real. As pessoas vão economizar água, vão buscar proteger as nascentes, não poluir. Eu faço aqui um movimento ecológico que é o uso de matéria orgânica. Quanto mais matéria orgânica no seu solo, menos água, pois a matéria orgânica é uma esponja da terra, a disponibilidade de água ali vai ser muito maior por muito mais tempo. PROF. YARA REGINA (CAU/UCB): Fale um pouco sobre sua bibliografia. NICOLAS BEHR: Tenho 7 livros sobre Brasília, e está vindo mais, só que eu tenho medo de virar plagiador de mim mesmo. A coisa ficar muito diluída, pois tem que ter originalidade e criação, e apesar que Brasília é uma folha em branco. Se escreveu muito pouco sobre Brasília, quase nada. Em comparação com as outras cidades. E isso é muito bom, pois aqui não tem o peso da contradição poética. Brasília vem sempre me inspirando. Me perguntam: “o que te inspira?” Tudo! estou sempre andando pela cidade. Hoje a tarde vou ao setor comercial sul, vou ver se dá tempo de ir à rodoviária, tomar um caldo de cana e comer um pastel que eu gosto. Está havendo um movimento de redescobrimento de Brasília. O mercado sul é um exemplo clássico, de revitalização de uma área abandona-
da, marginalizada, por um pessoal que ocupa e revitaliza. Os livros são de edição minha, de autor. Eu escrevo e uma gráfica imprime, lá em Taguatinga, o que é bom, pois eu sempre tenho que ir em Taguatinga. Eu comercializo, eu não tenho problema nenhum em vender meus livros, e eles estão disponíveis no meu site, www.nicolasbehr.com. br , mas eu gosto muito do livro físico, pois essas coisas na net são deletáveis, o livro não tem como deletar. O blog, o site, se dá um “pau”, você perde tudo. Então eu sempre imprimo, eu ainda gosto do impresso, gosto do tátil e sensorial. O livro tem seu lugar, nunca vai se extinguir. Claro, que nós estamos produzindo tanta informação que não dá mais para fazer em livro, então se faz em virtual, como a revista de vocês. Eu tenho produções sobre Brasília, sobre a infância, Cuiabá onde eu cresci. Eu gosto de sair um pouco dessa coisa de Brasília, me descontaminar um pouco, mas eu sempre volto. As pessoas me perguntam porque eu escrevo tanto sobre Brasília, eu vou dizer, é uma resposta meio besta, mas é fácil, eu acho fácil, espontâneo, natural, pois eu vivo a cidade e gosto da cidade, quero compartilhar o que eu sinto, pois a cidade me rejeitou muito no começo, aí depois cidade acabou me aceitando, então é um movimento interessante esse, de rejeição e aceitação.
PROF. YARA REGINA (CAU/UCB): Se tivéssemos que imaginar uma vida, uma dinâmica, para irmos ocupando os espaços de Brasília, como poderíamos fazer isso através da poesia, do paisagismo? NICOLAS BEHR: Eu vou falar uma coisa que soa tão ingênua, mas é o amor né. No setor comercial sul, nós queremos fazer algo que envolva os comerciantes, os lojistas, os funcionários, que eles iriam cuidar, pois plantas, são desestressantes. Eu sou uma pessoa estressada, não parece, mas as plantas me educaram. Um lojista, no setor comercial plantou cinco palmeiras, e os funcionários disputavam quem iria lá molhar. Quando você cuida da planta, você desestressa, você se conecta com seu natural, sua essência. Eu tenho várias teorias, do porquê das plantas serem tão importantes na nossa vida. PROF. YARA REGINA (CAU/UCB): E enquanto viveirista e poeta, como é regar essa cidade com plantas? NICOLAS BEHR: Eu acho que humanizar essa maquete é o nosso grande objetivo. Que não é tão maquete ainda, mas ainda tem seu pedacinho de maquete. Eu acho que a arte, as plantas, as pessoas, as intervenções, vão tornando Brasília uma cidade orgânica, uma cidade habitável. As arvores tornam Brasília habitável. No início morriam Revista CAU/UCB | 2017 | Perfil
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muitas arvores exóticas, aí falavam: “Nem árvore vai para aquele lugar. Vamos voltar para a capital, pro rio de janeiro”. Aí alguém disse que nós teríamos as ruínas mais bonitas do mundo. Eu acho que esse movimento vai e volta, fluxo e refluxo. Tem gente querendo ocupar, tem gente querendo fazer coisas pontuais aqui e ali que vão dando certo. Mas eu acho que é isso, o amor, o cuidar, gostar do lugar que você mora. Pois plantas são qualidade de vida, você morando em um lugar mais bem cuidado, vai ficar menos agressivo, menos violento, menos frustrado, mais feliz, aí a convivência social melhora. A planta melhora a consciência social, pois o individuo fala “eu estou morando em um lugar bonito”. Por que as pessoas gostam de ter jardim? As pessoas precisam ter contato com o ambiente selvagem, nem que seja uma samabaiazinha na sua varanda. O verde, as plantas, estão muito presente para melhorar nossa psique, nosso equilíbrio. PROF. YARA REGINA (CAU/UCB): Que mensagem você deixaria para os futuros jardineiros e paisagistas? NICOLAS BEHR: Quando você faz um jardim, você privilegia umas espécies e substitui ecossistemas. Tira o cerrado e coloca outra coisa. Muitas vezes sua intervenção deve ser mínima ali. A natureza já fez seu jardim, então você só vai contribuir, não é melhorar. Se os paisagistas incorporarem o que já tem, seria melhor. Pois algumas vezes o Revista CAU/UCB | 2017 | Perfil
cara passa o trator direto. Mas isso está mudando, as pessoas estão considerando. Então o que eu diria é aproveitar o que a natureza já nos deu e acoplar com a natureza. Pois você adquire uma área e ai plantas flores exóticas, que muitas vezes nem vai nascer bem. Mas isso já começou, muito timidamente, essa reconciliação do homem com a natureza, por necessidade mesmo. Tem aquela história, “natureza não se defende, ela se vinga”, então é a mudança climática, etc. Nós temos que repensar nossos hábitos de consumo, nossa presença no planeta. Essa coisa da agua é uma forma de pensar. O que aconteceu com a água? O que aconteceu com as matas ciliares? O que aconteceu com as nascentes? É um movimento que está começando de fato, não aquele bla bla bla, do politicamente correto. PROF. YARA REGINA (CAU/UCB): E para os nossos alunos? O que você tem a dizer? NICOLAS BEHR: Arquitetos em geral, nós vamos viver em um planeta mais quente. Então é hora de pensar muito em conforto ambiental. Pois somos seres adaptados a essas condições. A preservação da vida na terra vai depender muito das nossas ações, e os arquitetos têm um papel fundamental, pois as pessoas querem morar em um local ambientalmente confortável, então como usar a criatividade para se adaptar ao planeta mais quente?
“Eu acho que a arte, as plantas, as pessoas, as intervenções, vão tornando Brasília uma cidade orgânica, uma cidade habitável.” Nicolas Behr
Luis Philippe Torelly | Arquiteto e Urbanista - FAU/UnB
SHOPPING CENTERS E O DECLÍNIO URBANO: O CASO DO PLANO PILOTO DE BRASÍLIA
Fig 2 - Comércio em Brasília na década de 70.
Seria muita ousadia de nossa parte tentar analisar no espaço de um artigo, tema tão complexo como o que o título enuncia. É nossa intenção tão somente, realizar uma rápida análise e sugerir ideias para estudo e debate. No Brasil, a gestão permanece a parte do que vulgarmente se chama planejamento, embora as advertências quanto ao equívoco já venham sendo feitas há décadas. A formulação de situações, cenários e projetos, para que obtenham êxito requerem acompanhamento, revisão e correção de rumos permanentes. As consequências estão presentes em quase todos os grandes e médios centros urbanos. Tida como cidade planejada, exatamente como no escopo referido, Brasília não fugiu a regra. Apesar de seu desenho forte e estruturante o suficiente para assegurar sua fidelidade aos preceitos originais de Lúcio Costa - especialmente no que diz respeito às escalas monumental e residencial - apresenta um acentuado declínio e desqualificação de suas áreas de serviços, especialmente as da região central, denominadas de setores; comercial, bancário, de autarquias e de rádio e televisão. Acrescente-se a elas as avenidas W-3 Norte e W-3 Sul e os denominados comércios locais, com algumas exceções.
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O plano original elaborado há 60 anos, sofreu alterações e acréscimos especialmente em sua dimensão transversal, ainda em sua fase inicial de implantação. Foram adicionadas as quadras 500,700 e 900 a oeste do eixo rodoviário e as 400, 600 e 800 a leste. Com essas alterações a cidade perdeu suas características de linearidade, mais do que dobrando a dimensão transversal, com impacto considerável nas atividades e funções urbanas, como por exemplo, na circulação de pessoas e bens e no transporte coletivo, um de seus principais problemas na atualidade. Embora projetada na 2ª metade do século XX, e tendo incorporado técnicas urbanísticas típicas do modernismo, ainda não se previa a escalada de consumo de bens e de espaço que iria ocorrer nas décadas subsequentes, tampouco a intensidade da urbanização, da especulação imobiliária e de sua financeirização. Quando do tombamento e do reconhecimento do Plano Piloto como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO – Organização das Nações Unidas para Ciência, Educação e Cultura -, em 1987, ele ainda estava incompleto, - situação que perdura na atualidade - pontilhado de vazios e já apresentava claramente a necessidade de revisões, dado a evidência de que algumas premissas do projeto original não haviam se realizado e algumas áreas apresentavam uma obsolescência precoce. O receio fundado de que poderia haver intervenções descaracterizadoras, foi determinante para que a Portaria nº 314 do Instituto do Patrimônio Histórico
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e Artístico Nacional - Iphan, de 1992, que contava com apenas 13 artigos, tivesse uma concepção restritiva, avessa a eventuais mudanças necessárias para acompanhar a dinâmica das funções urbanas e o fato de que o Plano Piloto passou a ser o centro de uma região metropolitana que se espraia por três unidades federativas, cuja população é de cerca de 4,3 milhões de habitantes. Esta situação foi em boa parte revista pela edição da Portaria Iphan nº166/2016 de 11/05/2016. O escopo normativo é bem mais detalhado. Estabelece um zoneamento onde os níveis de restrição são gradativos, regula a intensidade de usos do solo, sua configuração tridimensional e as atividades possíveis. Sem dúvidas, um avanço significativo na compreensão de que o tombamento não congela ou museifica, mas pode e deve ser adequado a novas dinâmicas, preservando os princípios e valores fundamentais. Importante destacar o esforço para se estruturar uma gestão permanente da área tombada, de maneira a resguardar suas características, compartilhado entre o Iphan e o Governo do Distrito Federal.
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Fig 3 - Plano Piloto – Lucio Costa.
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Entretanto, ainda há muito a se caminhar. Três concepções urbanísticas surgidas exatamente no final do século XIX e inicio do século XX, terão importância fundamental nos princípios modernistas e no projeto de Brasília, embora muitas vezes sem o devido crédito. Carpintero¹ assinala especialmente a influência da cidade linear proposta por Soria y Mata, em 1882, e a ela atribui: “a base conceitual sobre a qual se assenta toda a estrutura física de Brasília e a qual se apõem os demais esquemas teóricos” e a cidade jardim de Ebenezer Howard a quem designa ser: “a principal responsável pelo aspecto visual da cidade de Brasília”. Carpintero mesmo reconhece que: “Qualquer estudante de arquitetura pode fazer tal afirmação e muitos arquitetos a fazem”, explicitando que a constatação da influência da cidade jardim é lugar comum. As duas concepções já citadas, soma-se a cidade industrial de Tony Garnier, que antecipa em alguns anos, princípios da Carta de Atenas de 1933, como a separação das funções urbanas, utilização de tecnologias de ponta e a padronização das formas e elementos construtivos. As influências dessas proposições serão um marco da produção de todo urbanismo subsequente, embora muitas vezes sua importância seja ignorada ou diminuída por urbanistas que delas se valeram em seus projetos, como por exemplo, Le Corbusier e Lucio Costa. A cidade jardim tem parte significativa de seus princípios, presentes no urbanismo ecológico americano de Clarence Perry,
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que deu feição moderna à “unidade de vizinhança”, e no esquema “Radburn” de Clarence Stein, conceitos também estruturadores de Brasília. Seu esquema de expansão urbana, após a saturação da cidade central, originou o planejamento regional das “novas cidades inglesas” e das nossas “cidades satélites”. Não tendo se subordinado diretamente aos padrões e processos econômicos, culturais, sociais e geográficos, que quase sempre caracterizam o surgimento das cidades através dos tempos, Brasília foi concebida sob o signo da racionalidade e do progresso técnico, trazendo consigo uma mística do novo e um discurso de ruptura com o passado, característico do urbanismo dos CIAM – Congresso Internacional da Arquitetura Moderna - e em especial da Carta de Atenas. Na verdade, a par de inovações de natureza estética e formal, o que se observa e a assimilação de elementos estruturais presentes em modelos anteriores. Modelos de organização social, vanguardismo estético, inovações tecnológicas, objetivos socializantes, setorização de funções e segregação dos fluxos de circulação de pedestres e veículos, são elementos que estão presentes em diversas propostas, modelos e realizações urbanísticas que
antecedem Brasília, como já anteriormente mencionado.
alguns deles deixa patente o contraste e a contradição.
A implantação de Shoppings iniciou-se no país no final dos anos 50, timidamente no Rio de Janeiro e São Paulo. Brasília teve seu primeiro em meados da década de 70, com direito a elefante do Jumbo (antecessor da rede Pão de Açúcar) e tudo mais: a 1ª etapa do Conjunto Nacional, lindeiro a Estação Rodoviária em um arremedo do que se imaginou para a escala gregária, “mistura em termos adequados de Piccadilly Circus, Times Square e Champs Elysées.”² A novidade atraiu as grandes lojas, magazines, o comércio mais sofisticado, lanchonetes e cinemas e ensejou com relativa rapidez a construção das duas etapas subsequentes. A localização e a acessibilidade aos transportes coletivos bem como o êxito de vendas com a economia de aglomeração fomentou novos empreendimentos, com forte impacto na espacialização do comércio varejista. Especialmente a W-3 sul sofreu o impacto dessa polarização e entrou em esvaziamento crescente, com o fechamento de restaurantes, bares, lojas de eletrodomésticos e de outros ramos comerciais. A concepção urbanística do Plano Piloto segmentada e caracterizada por grandes espaços e descontinuidades, possibilitou que se instalassem na área central um conjunto de shoppings e centro empresariais, que intensificariam a já reduzida relação entre moradores e o espaço público. Uma imagem de glamour e facilidades para uma contrapartida de perda da qualidade da vida e controle social. A visita a
Ao longo das décadas de 80 e 90 surgem novos Shoppings e edifícios comerciais, com destaque para o Park Shopping, que seguindo o crescimento de Taguatinga, Guará e Ceilândia, se instala na EPIA - Estrada Parque Indústria e Abastecimento -, entre o Plano Piloto e as cidades mencionadas, dando início a uma nova centralidade, hoje consolidada em decorrência da implantação do Metrô. Seguindo a tendência já conhecida da lógica especulativa do solo urbano, novos setores e áreas urbanas são implantadas antes que se consolidem as já existentes. Gabaritos e normas urbanísticas são alteradas, para atender a um mercado mais exigente, reforçando a concepção rodoviária calcada no uso intensivo do automóvel. Os shoppings se instalaram principalmente na área central da cidade: Conjunto Nacional, Brasília Shopping, Pátio Brasil, Liberty Mall, Venâncio 2000 e Brasília Rádio Center. Afora vários Centros Empresariais nos setores de Rádio e Televisão, Comercial Norte e Hoteleiros, criando verdadeiras cidadelas com reduzido relacionamento com o entorno e com a cidade. Tal concentração com maior acessibilidade aos transportes coletivos e de massa, estacionamento, segurança e controle social, farta oferta de bens e serviços, especialmente de alimentação, vestuário, diversão e lazer, promoveram o declínio de outros setores mais antigos como o Comercial e o Bancário Sul e as já citadas W-3 Norte e Sul, especialRevista CAU/UCB | 2017 | Artigos
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mente a última. O que se observa hoje é um grande número de lojas e até edifícios subutilizados ou fechados como o do Banco do Brasil e da CAIXA no Setor Bancário Sul, calçadas em péssimo estado de conservação, acumulo de lixo e sujeira, falta de iluminação, altíssima poluição visual em áreas com boa infraestrutura e localização. Lugares que por três décadas foram referências de centralidade, e onde havia maior interação entre cidadãos e o espaço público estão literalmente abandonados requerendo há bastante tempo à intervenção do poder público. Há outras causas para esta situação que não apenas a polarização exercida pelos Shoppings. Um estoque de novos empreendimentos comerciais e de serviços com maior comodidade e o uso comercial exclusivo. A flexibilização de usos não excludentes, especialmente o habitacional, será um importante instrumento para a reversão da atual situação. A título de informação relevante convém registrar, que muitas metrópoles não permitem a instalação de Shoppings em suas zonas centrais e históricas. Paris, Londres, Nova York, Roma, Buenos Aires são algumas delas. No Brasil tal cuidado que evita a decadência do comércio de rua e é responsável pela animação urbana, tem sido negligenciado. Rio de Janeiro e São Paulo são dois exemplos onde os efeitos da concentração se fazem sentir claramente, com o desaparecimento do pequeno comércio.
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Em recente artigo denominado “Arquiteturas do Vazio”³, publicado no portal Vitruvius – www.vitruvius.com.br, em fevereiro último, o Arquiteto, Urbanista e Professor da Universidade de Brasília, Paulo Bicca, apoiado em extensa pesquisa bibliográfica, onde podemos citar autores como Jane Jacobs, Gordon Cullen, Richard Sennet entre outros não menos importantes, analisa a questão dos “vazios urbanos” edificados e inseridos na malha urbana, que por sua concepção arquitetônica e urbanística tem um caráter excludente e de confinamento em relação à rua, a cidade e a uma parcela significativa de seus habitantes. Para melhor definir seu conceito, Paulo Bicca se utiliza da seguinte afirmativa da socióloga holandesa Saskia Sassen: “Os espaços públicos continuam a ser uma característica fundamental das cidades. Sem eles, o terreno apenas denso e altamente construído não é uma cidade. Podemos ver isso quando há uma vasta faixa de edifícios residenciais ou comerciais altos – esses espaços não são cidades, é apenas um terreno densamente construído. E isso acontece mais e mais, é uma tendência que ajuda a desurbanizar as cidades...” Outra abordagem essencial que nos oferece o artigo, é a ausência de diversidade humana e consequentemente cultural. Ela se expressa na desqualificação do espaço público e no permanente esforço de racionalizar a arquitetura, na busca da simetria e da padronização, herança do modernismo que se alastrou por vastas áreas do planeta produzindo cidades cada vez mais iguais, independente de seu clima e cultura. Uma
cidade precisa refletir o tempo que passa, as suas distintas épocas, sua cultura. Precisa contar sua história. Nossa intenção vai além de denunciar este quadro de abandono e deseconomia. Tem o objetivo de propor a sociedade, as instituições públicas e privadas, responsáveis pela administração, proteção e gestão da maior área urbana tombada no mundo, um debate que é urgente. Este ano Brasília completa 30 anos de seu reconhecimento pela UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - como patrimônio da humanidade. O título orgulha a quase todos, mas o enfrentamento da questão é tímido, o que acaba por aprofundar um quadro que se consolida mais e mais. Um dos grandes problemas das intervenções urbanas e arquitetônicas em áreas tombadas é a escassa participação social. Ela é a garantia de que várias alternativas serão estudadas e que as melhores técnicas de preservação e restauro serão utilizadas. Além disso, e o mais importante, é que as intervenções terão o respaldo e legitimidade necessários para evitar descaracterizações e incompatibilidades com os diversos agentes intervenientes, entre eles a UNESCO e seus órgãos assessores.
O primeiro passo é despertar nas esferas públicas responsáveis pela gestão do tombamento, Iphan e GDF – Governo do Distrito Federal -, a necessidade de elaborar um diagnóstico e realizar seminários e oficinas temáticas, para melhor conhecer a magnitude do problema e indicar possíveis alternativas para superar a situação. Muitas delas são conhecidas e já foram objeto de concursos públicos e estudos governamentais e acadêmicos. Seria impossível realiza-las simultaneamente face aos impactos e recursos envolvidos. Uma estratégia incremental se faz necessária, envolvendo os gestores públicos e os diversos agentes intervenientes. A participação da Câmara Distrital é indispensável, pois várias medidas legais deverão ser adotadas, de caráter urbanístico, jurídico e financeiro, como a outorga onerosa do direito de construir e de uso; estudos de impacto de vizinhança; transferência do direito de construir, preempção, operações urbanas consorciadas e incentivos fiscais e creditícios entre outros. Muitas ações podem ser imediatas ou de curto prazo, com resultados sensíveis. Recuperação e implantação de calçadas; urbanização de praças e pequenos logradouros; sinalização, controle da poluição visual com a padronização dos elementos de propaganda; assistência social à moradores de rua e dependentes químicos; limpeza urbana, incentivo a atividades culturais e esportivas e a ocupação de lojas e edifícios vazios.
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Em uma segunda etapa deve-se adotar as medidas de caráter normativo e tributário que podem ser de grande valia para a requalificação sem gentrificação. Dentre elas podemos citar a adoção dos dispositivos previstos na Portaria nº166/2016 do Iphan, especialmente no que diz respeito à diversificação de usos com prioridade para o habitacional; moratória na construção e funcionamento de novos Shoppings nos setores centrais; adoção de incentivos fiscais e creditícios para incentivar a reocupação; instituição de responsabilidades a título de contribuição de melhoria para que os Shoppings e grandes condomínios fechados contribuam para a qualificação urbana, especialmente no fomento a cultura e dos esportes em suas áreas de influência.
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Situações como as das avenidas W-3 norte e W-3 sul exigem intervenções mais abrangentes. Vários estudos e projetos já apontaram a necessidade de adensamento da ocupação, principalmente com o uso habitacional, hoje muito baixo para as dimensões das avenidas que cortam longitudinalmente o Plano Piloto de norte a sul. As tipologias atualmente adotadas são obsoletas e não asseguram, seja do ponto de vista arquitetônico, urbanístico e funcional, condições para que se possa obter uma qualidade ambiental compatível com a que se observa em outras áreas da cidade. A situação é de esvaziamento e abandono para uma localização onde há farta infraestrutura e alto potencial para a qualificação urbana, devido principalmente ao excesso de área
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comercial, voltado para uma demanda que não mais existe. Sugere-se em princípio que as edificações possam ter até quatro pavimentos (térreo+3) com uso comercial e de serviços no térreo e habitacional, educacional e institucional nos demais, nas quadras 500 sul. No caso das 700 norte, embora o comércio seja mais dinâmico, repetem-se os mesmos problemas do lado sul, agravados pela existência de vielas inadequadas entre os dois renques de edificações. A mesma solução para as quadras 500 sul pode ser adotada, resguardadas as diferentes dimensões dos lotes e outros condicionantes. Quando ao lado das 700 sul exclusivamente residencial, resquício das propostas acrescidas ao plano original, devem-se elaborar estudos e alternativas face ao seu caráter específico. Sabe-se das dificuldades para se implementar na atualidade um sistema de planejamento minimamente compreensivo e estratégico. Todavia, se não o tivermos como horizonte e perspectiva, não teremos sequer parâmetros para contrapor a indigência e descaso da gestão urbana na atualidade.
A título de resgate das formulações de Lucio Costa5 para uma complementação e preservação do Plano Piloto, cito a seguinte passagem do documento Brasília Revisitada, 1987: 4 – “Reexaminar os projetos dos setores centrais, sobretudo os ainda pouco edificados, no sentido de propiciar a efetiva existência da escala gregária — além da Rodoviária e dos dois Setores de Diversões — prevendo percursos contínuos e animados para pedestres e circulação de veículos dentro dos vários quarteirões, cuja ocupação deve, em princípio, voltar-se mais para as vias internas do que para as periféricas. Neste mesmo sentido, não insistir na excessiva setorização de usos no centro urbano — aliás, de um modo geral, nas áreas não residenciais da cidade, excetuando o centro cívico. O que o plano propôs foi apenas a predominância de certos usos, como ocorre naturalmente nas cidades espontâneas.”.
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Fig 4 - W3 sul nos anos 70.
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Intervenções em espaços urbanos consolidados são complexas. Especialmente em áreas tombadas e no caso do Plano Piloto, reconhecidas como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. É necessário a elaboração de muitos estudos e alternativas e um amplo debate com a sociedade, como já mencionamos anteriormente. O Brasil foi e tem sido alvo de grandes perdas em seu patrimônio cultural urbano. O que restou da São Paulo, do Rio de Janeiro, de Salvador do início do século XX? Quantas reformas desastrosas para a qualidade de vida urbana foram realizadas? Quanto se perdeu de nossa história, de nossa cultura de nossas vivências. Uma cidade é, sobretudo, um bem cultural acumulo de várias gerações. Esse registro é que confere as cidades um caráter eclético, embora em alguns casos devemos guardar testemunhos específicos de um dado momento. Ouro Preto deve ter uma gestão de seu patrimônio adequada as suas características. Brasília por suas dimensões e complexidade outra. Na medida em que a cultura é dinâmica e mutante, o conceito de patrimônio também o será. Difícil estabelecer fronteiras para o que é permanentemente concebido, criado, recriado, ampliado. Como o conceito de cultura, o de patrimônio é um conceito aberto, decorrente de longo processo acumulativo, independente de ser passível de construções ideológicas casuísticas – o que de forma alguma quer dizer que todo bem cultural deva ser patrimonializado ou protegido. O reconhecimento de um bem ou
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manifestação cultural por parte do Estado é feito com base em critérios, que por mais objetivos e democráticos que sejam, sempre serão passiveis de subjetividade e discricionariedade. Contudo, é importante salientar que quanto mais abrangente for o conceito de patrimônio, maior será a diversidade e riqueza cultural. Daí a relevância da substituição do conceito de excepcionalidade, elitista e propenso a estabelecer uma hegemonia cultural, pelo de representatividade, capaz de assegurar aos diferentes segmentos socioculturais seu referenciamento. O debate franco e aberto, enfim, a democracia nas propostas e decisões é que nos levará as melhores escolhas.
NOTAS
BIBLIOGRAFIA
1) CARPINTERO, Antônio Carlos. Brasília: prática e teoria urbanística no Brasil, 1956-1998. (Tese de Doutorado). FAU/ USP, São Paulo,1998.
BICCA, Paulo. Arquiteturas do Vazio. São Paulo. www.vitruvius.com.br , 2017.
2) COSTA, Lucio. Relatório do Plano Piloto de Brasília. Governo do Distrito Federal, 1991, p.24.
CARPINTERO, Antônio Carlos. Brasília: prática e teoria urbanística no Brasil, 1956-1998. (Tese de Doutorado). FAU/ USP, São Paulo,1998.
3) BICCA, Paulo. Arquiteturas do Vazio. São Paulo. www.vitruvius.com.br , 2017.
COSTA, Lucio. Relatório do Plano Piloto de Brasília. Governo do Distrito Federal, 1991.
4) BICCA, Paulo. Arquiteturas do Vazio. São Paulo. www.vitruvius.com.br . 2017, p.18
COSTA, Lucio. Brasília Revisitada, 1987. Governo do Distrito Federal, 1985 -1987. Anexo I, Decreto 10.829.
5) COSTA, Lucio. Brasília Revisitada, 1987. Governo do Distrito Federal, 1985 -1987. Anexo I, Decreto 10.829, p.8.
TORELLY, Luiz Philippe. Memória e Patrimônio. Crônicas e outros escritos. Brasília: Verbena,2016. TORELLY, Luiz Philippe. Notas sobre a evolução do conceito de patrimônio cultural. São Paulo: www.vitruvius.com.br , 2012.
Luiz Philippe Torelly é arquiteto e urbanista pela Universidade de Brasília, 1979. Entre outras funções publicas foi Presidente do Instituto de Planejamento Territorial e Urbanos do DF, Secretário de Habitação e Desenvolvimento Urbano e Diretor do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Revista CAU/UCB | 2017 | Artigos
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Aluísio Paiva
Fig 5 - Rodoviária de Brasília na década de 70.
Seminário: “Regards sur Brasilia – Olhares sobre Brasília” - Maison de l’Amérique Latine – Paris, 19 de Janeiro de 2015
1 O original deste texto “C’est quoi cette ville: um rêve ou un mythe?”, em francês, foi elaborado para apresentação no Seminário “Regards su Brasilia – Olhares sobre Brasília” realizado na Maison d’Amérique Latine, em Paris, no dia 19 de janeiro de 2015. O original em francês foi revisado por Michel Hospital, diretor da Aliança Francesa em Brasília, nos anos setenta. A tradução em português é de Aluísio Paiva.
Marco Antonio Rodrigues Dias | Professor aposentado da UnB e ex-diretor da Divisão do Ensino Superior da UNESCO, em Paris (1981-1999)
- Original em francês, versão para o português por
BRASÍLIA, O QUE É ESTA CIDADE: UM SONHO OU UM MITO?
- Um depoimento sobre a vida nos primórdios de Brasília - 1
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INTRODUÇÃO Para falar de Brasília na Maison d’Amérique latine, em Paris, os organizadores do seminário “Regards sur Brasilia” queriam ouvir alguém que tivesse vivido na capital brasileira inaugurada em 1962, em seus primeiros anos de existência. Na ausência de melhor opção, recorreram a mim, não sem antes me advertirem de que não desejavam em absoluto um estudo sociológico repleto de números e de dados estatísticos. Tratava-se, deixaram claro, de dizer se Brasília era um mito ou uma realidade e de contar como viviam os primeiros habitantes desta capital inaugurada no dia 21 de abrtil de 1960.
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Para começo de conversa, devo dizer que tive o privilégio de conhecer pessoalmente os criadores de Brasília, em primeiro lugar o Presidente Kubitschek, quando era jornalista em Minas Gerais no início dos anos sessenta e, mais tarde, o urbanista Lúcio Costa e o arquiteto Oscar Niemayer, na UNESCO, em Paris, onde fui diretor da Divisão do Ensino Superior, de outubro de 1981 a fevereiro de 1999. Um dia, nos anos oitenta, tive, inclusive, a honra de receber Niemayer em meu escritório. Na véspera deste encontro, indaguei de meu superior imediato, o sub-diretor geral de educação se ele estaria disponível, no dia seguinte, para receber uma importante personalidade brasileira. O personagem em questão é, até hoje, considerado por muitos um dos melhores senão o melhor sub-diretor geral de que dispôs a organização durante toda sua Revista CAU/UCB | 2017 | Artigos
história. Estava sempre muito ocupado e, em consequência, o acesso a ele não era tão fácil. Desconfiado, o sub-diretor geral me perguntou: “uma personalidade brasileira, está bem, mas trata-se de quem? Quando o soviético armênio, Sema Tanguiane, ouviu o nome de Oscar Niemayer, sua face se iluminou, abriu um largo sorriso e exclamou surpreso e alegre: “Mas é um prêmio Lenine da Paz!”. No dia seguinte, em lugar de esperar por Niemayer em seu escritório, ele veio à minha sala para conhecer o arquiteto de Brasília, porém mais que isto o prêmio Lenine da Paz. Cheguei a Brasília, em minha primeira estadia nesta cidade, pouco tempo após sua criação. Jovem jornalista em Belo Horizonte, 24 anos de idade, tinha sido convidado, em 1963, pelo ministro Paulo de Tarso Santos, um democrata-cristão de esquerda, para ser seu assessor parlamentar, encarregado dos vínculos entre o Ministério e o parlamento. Paulo de Tarso queria revolucionar o sistema educacional brasileiro e reuniu uma equipe dinâmica da qual faziam parte, entre outros, os educadores Paulo Freire e Lauro de Oliveira Lima, e personalidades como Herbert José de Souza (Betinho), Roberto Freire (o teatrólogo e psicanalista, não o político...), Luis Alberto Gomes de Sousa, Ferreira Goulart, Lauro Bueno de Azevedo,
Ney Paiva Chaves e outros. Paulo Freire era o sábio do grupo. Diretor de serviços de extensão2 da Universidade Federal de Pernambuco, no Nordeste do Brasil, fora convidado por Paulo de Tarso para vir a Brasília presidir uma campanha nacional de alfabetização. Os analfabetos constituíam grande parte da população brasileira naquela época. Não dispunham de direito de voto. Os grupos que se opunham ao Presidente João Goulart consideravam que a utilização do método Paulo Freire poderia servir para multiplicar os eleitores de esquerda, favoráveis às reformas de base, o grande tema político do início da década de sessenta. A oposição conservadora e a imprensa atacaram violentamente o ministro e sua equipe (“O Globo” falava dos “meninos” do Ministro da educação). Nossa tarefa não era fácil. Do ponto de vista pessoal, aquela situação me permitiu desenvolver contactos com personalidades que viriam a exercer, nas décadas seguintes, papeis importantes no desenvolvimento político do país. Era o caso, por exemplo, de Darcy Ribeiro, José Sarney, José Aparecido de Oliveira, Rubens Paiva, Neiva Moreira, Ney Braga e muitos outros).
O uso do método Paulo Freire e a transformação política que ele poderia provocar serviram de pretexto para uma enorme mobilização contra o governo Goulart, acusado, então, de tentar implantar um regime comunista no país através da renovação do eleitorado. A semelhança de 1963/1964 com o que ocorreu no Brasil após a reeleição de Dilma Roussef é impressionante. Inexperiente, sem me dar conta, tinha sido lançado no epicentro de uma crise política que iria resultar no golpe de estado de 1964, o qual interrompeu, brutalmente, os sonhos de toda uma geração voltada para a construção de um mundo melhor. Era um mundo novo o que se elaborava na Universidade de Brasilia criada em 1962 por Darcy Ribeiro, Anisio Teixeira, Frei Mateus Rocha e tantos outros. Esta instituição, ao lançar seus programas, rompeu com a tradição acadêmica da época, simplesmente porque não bucava formatar consumidores, mas sim formar cidadãos. Isso fazia parte dos sonhos que foram estilhaçados em 1964. Mas retomemos o fio da meada! Estou claramente me afastando do tema que me deram para desenvolver neste encontro...
2 Desde a Reforma de Córdoba, Argentina, em 1918, as atividades de extensão foram incorporadas às funções essenciais das universidades juntamente com as atividades de ensino e de pesquisa. Elas se constituem pelas ações que dizem respeito aos vínculos com a sociedade e à responsabilidade social das instituições de ensino superior.
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UM SONHO?
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Já na década dos 70, quando me perguntavam, dentro ou fora do Brasil, como era a vida em Brasília, sempre respondia que era um sonho e acrescentava que, para alguém que tivesse um bom emprego e um salário razoável –o que era o meu caso e também o de minha esposa- e que vivesse no Plano Piloto, a vida na nova capital brasileira podia ser considerada um paraíso. Os críticos da cidade diziam, ao contrário, que a decisão de se construir esta cidade tinha sido um erro, porque teria provocado uma inflação sem controle e estimulado uma corrupção em grande escala. Acrescentavam que viver em Brasília em condições normais, era impensável e que “homo brasiliensis”, o ser humano de Brasília, era composto de cabeça, tronco e quatro rodas. A cidade foi planejada para acomodar um máximo de 500 mil habitantes ao final do século XX. Em 2000, já havia ultrapassado a casa dos 2 milhões, hoje são mais de 3 milhões, mas atenção: no Plano Piloto, onde o sonho é sempre possível, residem apenas cerca de 300 mil habitantes!.. O tráfego era muito fácil. O transporte público era pobre, mas o sistema de caronas entre amigos, o que os franceses hoje chamam de “covoiturage”, fazia-se tranquilamente, pois os funcionários públicos proprietários de um automóvel eram numerosos e havia grande solidariedade entre os moradores da nova cidade que sentiam estar participando da construção de algo grandioso para o país. Os ministérios tinham ônibus especiais que transportaRevista CAU/UCB | 2017 | Artigos
vam os funcinários, pela manhã e ao final da tarde, servindo os eixos principais do aglomerado urbano e as primeiras cidades satélites como Taguatinga e Gama. Este sistema deveria permitir a todos, em princípio e ao contrário do que se passava nas demais grandes cidades do país, viver intensamente a vida familiar e aos pais de ver crescerem seus filhos. A psicologia de botequim imediatamente concluiu que proximidade em grande escala despertava as contradições e diferenças entre os elementos de cada casal e podia ser destruidora para a estabilidade do casamento...Constatou-se logo que era grande o número de separações entre casais que se transferiam para Brasília. Para um grande número de funcionários, incluindo entre eles os professores universitários, o acesso à propriedade era relativamente fácil. Quando cheguei em Brasília, em março de 1970, com um mês de salário, poderia ter comprado dois lotes de 800 metros quadrados cada um, na Península do Norte, hoje um dos pontos mais valorizados da cidade, na época quase desabitada. Em 1972, com um montante equivalente a dois meses de meu salário, comprei nesta parte da cidade um lote a fim de construir uma casa. Creio que, hoje, um professor universitário que disponha apenas de seu salário de professor, não terá condição alguma de comprar um terreno nesta área de Brasília.
Finalmente, se alguém quer transmitir uma ideia do que era viver em Brasília, não poderá esquecer o pôr do sol, deslumbrnte em todas as épocas do ano; nem a sensação de espaço que se tinha quando se vivia no Plano Piloto em quadras construidas numa escala humana; o fato de que não se levar mais mais de quinze minutos para se ir do escritório para a residência, seja qual fosse o horário do deslocamento. Até meados dos anos 70, em Brasília não existiam semáforos. Não eram necessários. A temperatura média era de cerca de 24 graus no verão e de vinte graus no inverno. No verão, no decorrer do dia, alguém que tomasse um avião no Rio, a quarenta graus, desembarcava em Brasília com uma temperatura de 30 graus. Nessa época do ano, havia quase sempre uma diferença de 10 graus entre as duas cidades. Hoje, às vezes, faz mais calor em Brasília que no Rio e ainda há quem diga, mesmo nesta cidade, que o aquecimento climático é uma mistificação de ecologistas desocupados... Em 1972, fui convidado para visitar as principais universidades dos Estados Unidos a fim de discutir eventuais acordos de cooperação com a Universidade de Brasília. Em Minneapolis, depois de três dias, numa reunião de síntese com o diretor e o conjunto de professores da Faculdade de Comunicação local, declarei estar impressionado com a qualidade dos programas que acabara de conhecer, mas acentuei, enfaticamente, que dificilmente tomaria a iniciativa de enviar algum de meus colegas da UnB para fazer um dou-
torado ali. Chocado, o diretor me perguntou o porquê desta decisão. A temperatura local naquele momento em Saint Paul de Minneapolis era de pelo menos 25 graus abaixo de zero e a população, com o famoso fator vento, sentia como se fosse de 35 graus negativos. Expliquei qual era a temperatura média em Brasília. Todos compreenderam onde estava o problema... Em Brasília, considerava-se que não existiam problemas de segurança. Crianças podiam brincar com seus amigos nas áreas verdes que estavam à sua disposição. As mulheres podiam sair sós à noite e voltar tarde sempre desacompanhadas, Hoje, já não é o caso. Segundo se sabe, até mesmo os estacionamentos da UnB tornaram-se perigosos. Brasília atraiu pessoas de todo o Brasil e também muitos estrangeiros, sem se notar, naquela fase inicial, problema algum de coexistência entre habitantes provenientes de regiões as mais diversas. A população de origem árabe, particularmente oriunda do Líbano, da Síria, e da Palestina era significativa. O engenheiro que construiu minha casa na Península Norte, chama-se Brasil Helou, o reitor da Universidade de Brasília de 1971 a 1976 era Amadeu Cury, o presidente da Associação Comercial também era de origem libanesa. Na década de 70, Brasil Helou construiu uma mesquita financiada pela Arábia Saudita, no setor norte da cidade. Na mesma área, há uma sinagoga. O assentamento judaico não era muito visível, mas na verdade, era importante. Em Brasília, o diálogo de civilizações era parte da normalidade da cidade. Revista CAU/UCB | 2017 | Artigos
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A experiência da Universidade de Brasília mostrou que para os jovens, também, a cidade era atrativa. Por lei, a Universidade, tivesse ou não lugar disponível era obrigada a matricular funcionários ou seus parentes transferidos para Brasília de outras cidades, inclusive do Rio de Janeiro. Todo ano, muitos se beneficiavam deste dispositivo, o que era um elemento complicador para os administradores da UnB. Os funcionários chegavam a Brasília trazendo seus filhos e esposas, muitas delas estudantes universitárias também. Mais tarde, quando muitos deles eram de novo transferidos seja para a cidade de origem, seja para outros locais, os filhos preferiam permanecer em Brasília, principalmente para não perderem a vaga na UnB.
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A primeira escola primária de Brasília foi inaugurada em outubro de 1957, em Candangolândia, um acampamento para trabalhadores que construíram a cidade. Desde o início, colocou-se como objetivo que o nível da educação básica na capital deveria ser alto. Foi o educador Anísio Teixeira quem lançou o conceito de escolas-parque, onde os alunos seguiam, pela manhã, cursos clássicos e, na parte da tarde, participavam de atividades que podiam selecionar em acordo com suas tendências e motivações. O nível do ensino público na década de 70 era, em geral, considerado muito bom. Meus dois primeiros filhos fizeram o curso primário na Escola Normal de Brasília. Chegando à França em 1981, foram matriculados no Colégio Internacional de Sèvres. A diretora exigiu que fossem sub-
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metidos a um teste de conhecimento. Ficou surpresa com os resultados considerados excelentes. Em suma, constatou que o nível de aprendizagem dos meninos, pelo menos da Escola Normal de Brasília, não era em nada inferior ao das crianças de uma área privilegiada da região parisiense. Lúcio Costa estimava que o conceito de superquadra deixaria de ter significado, se elementos complementares não fossem a ele adicionados. Para a validade da proposta, fazia-se necessária a instalação de escolas, de um clube de lazer, esportes e jogos para a vizinhança, de um centro de saúde, de lojas locais, incluídos aí a padaria, a lavanderia, supermercados, açougues, bistrôs, restaurantes etc. Aqueles que analisam o estado atual da cidade, em 2015, indagam justamente onde e como estas ideias se perderam. Não tenho condições de fazer uma análise detalhada da questão. Noto, no entanto, que as críticas são virulentas no que diz respeito aos serviços públicos. Há que se notar um dado positivo: existe sempre uma movimentada área comercial vizinha às superquadras.
UMA CIDADE QUE SURGE DO NADA Obviamente, todos sabem ou pelo menos ouviram falar que Brasília é uma cidade que surgiu do nada no final dos anos cinquenta e que foi inaugurada no dia 21 de abril de 1960. Todos podem se informar, sem muita dificuldade, sobre a situação atual da cidade transformada em uma grande metrópole com problemas de trânsito, de violência, de serviços públicos ineficientes, de exclusão, semelhantes aos da maioria das grandes cidades do mundo e especialmente do Brasil. No entanto, os construtores da capital brasileira tinham projetado uma cidade jardim que pareceria surgir de uma floresta e dispondo de um plano para seus edifícios que favoreceriam a existência de uma espécie de microclima nas quadras. Esta cidade deve seu sucesso a uma determinada organização do espaço, mas, pouco a pouco, a especulação imobiliária pôs em questão o plano inicial e é daí principalmente que surgem as principais dificuldades atuais. Voltaremos a esta questão.
O plano piloto, que todos conhecem, é a área nobre da cidade e seus limites coincidem com os do Distrito Federal. Nos anos sessenta, como nos anos setenta, era muito comum para qualquer um encontrar ministros e outras autoridades em supermercados e em restaurantes que, ao contrário de hoje, não eram muito numerosos na época. As autoridades viviam em belíssimas residências que os ministérios tinham construído na Península dos Ministros, à beira do Lago Paranoá, ligada ao centro da cidade pela primeira ponte edificada sobre o lago artificial. A situação era tranquila e as autoridades podiam fazer “jogging” ou andar de bicicleta sem serem importunadas. As superquadras foram concebidas como espaço aberto. Os edifícios tinham 5 ou 6 andares, foram construídos sobre pilotis que deixavam o ar circular e criavam uma sensação de abertura, rara nas cidades tradicionais. Em outras palavras, no piso térreo não havia paredes, nem espaços fechados. Entre os edifícios, previam-se verdadeiros jardins (na década de sessenta, os trabalhos de urbanização não tinham sido completados, em lugar dos jardins havia muita terra, muito barro). Entre as quadras, tinha sido planejada a existência de lojas, onde os moradores poderiam encontrar o essencial para a sobrevivência de uma família. Como já assinalado, espaços também eram reservados, entre as quadras, para a construção de escolas, de modo a permitir que as crianças se deslocassem a pé para ir estudar.
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Para encorajar os funcionários a instalar-se em Brasília, deixando suas cidades de origem, em particular o Rio de Janeiro, o governo federal lhes concedeu uma “dobradinha”, ou seja, uma gratificação equivalente a seu salário. Em outras palavras, recebiam, na prática, o dobro de seu salário nas cidades de origem. A essa vantagem, adicionavam-se facilidades para se obter um apartamento e financiamento mais tarde para a compra de um carro. Alguns serviços, como telefone local eram gratuitos. Isto durou até o início dos anos setenta. De “orelhões” instalados em toda a parte, os cidadãos podiam se comunicar com qualquer pessoa no Distrito Federal, bastando, para isso, ligar os aparelhos postos à disposição do público.
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A cidade, inicialmente, especialmente na década de sessenta, era limitada na área do lazer e, à noite, o número de pessoas que se reuniam para jogar cartas na residência de um ou de outro era de impressionar. Mas, desde o início, clubes de lazer foram construídos, a maioria à beira do lago, destinados a categorias especiais como a dos funcionários do Congresso, jornalistas, militares, funcionários do Banco do Brasil etc. Tornou-se, então, para os moradores de classe média mais fácil praticar esportes em Brasília do que em qualquer outra grande aglomeração brasileira.
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UMA UNIVERSIDADE CIDADÃ Em 1962, insistamos neste ponto, desde sua abertura, a UnB –Universidade de Brasília- desenvolveu programas considerados progressistas com o objetivo de formar cidadãos, não se limitando a treinar técnicos ou formar consumidores. A universidade criada por Darcy Ribeiro, ocupava um espaço enorme dentro do Plano Piloto, às margens do lago, no início da Asa Norte. Desde o início, deu a todos, na cidade, a oportunidade de obter uma formação de alto nível ou mesmo de obter uma segunda formação. Isto sem contar com o desenvolvimento de uma forte atividade de extensão, com cursos fornecidos à noite, e que beneficiavam funcionários que preferiam melhorar sua qualificação do que jogar cartas... Em seu início de vida, em lugar de quatro, Brasília dispunha de duas estações bem distintas: a das chuvas (setembro a março) e a seca (final de março a início de setembro). Lembro-me de que, em 1963, do gabinete do ministro da educação, podia-se apreciar o grande espetáculo de redemoinhos de poeira avermelhada, lançada e espalhada pelos ventos. Saia-se de casa pela manhã com uma camisa branca, ao meio-dia ela já estava amarela ou mesmo vermelha...
Viver em Brasília, no final da estação seca no final de agosto, início de setembro, era extraordinariamente penível, às vezes desagradável. Lembro-me de um dia, nos anos setenta, quando tive de interromper um curso após meia hora de aula. Os estudantes estavam nervosos, agitados. expressando todos o desconforto que os atingia. Tinha-se que beber muita água para sobreviver à seca. Os jardins secavam, os gramados verdejantes tornavam-se marrons, parecia que tudo estava morto. No entanto, em setembro, três dias após a primeira grande chuva, o verde reaparecia com força total. Era uma verdadeira ressurreição. Em 1963, durante a minha primeira estadia em Brasília, havia apenas duas superquadras totalmente urbanizadas. Eram as que tinham sido construídas pelo Banco do Brasil na Asa Sul, uma delas a 114, uma das melhores. A Asa Norte tinha o aspecto de savana ou cerrado, muitas das construções, sobretudo as comerciais na Avenida W-3 Norte, eram, até o início dos anos setenta, de madeira. Parecia filme de far-west. Na Asa Sul, entre a Avenida L-2 e o lago, os planejadores previram a existência de um setor nobre, o diplomático. No início, poucos países ocuparam o espaço que lhes fora reservado. Os diplomatas estrangeiros não tinham pressa alguma em deixar o Rio, onde países como a França e os Estados Unidos tinham suas embaixadas instaladas no centro, em edifícios magníficos, situados em frente à Baia de Guanabara, e os diplomatas viviam confortavelmente na zona sul carioca...
No início dos anos setenta, o governo brasileiro, através do chanceler Magalhães Pinto, lançou um ultimatum. As representações diplomáticas que, num espaço de tempo bastante curto, não tivessem sido transferidas para Brasília perderiam todas suas imunidades. No dia marcado, os embaixadores estavam todos em Brasília, em lugares também bonitos. A Embaixada da França, por exemplo, ocupa uma grande área com um complexo de edifícios atribuídos a Le Corbusier, mas que, na realidade, foram projetados por um arquiteto catalão que se inspirou, é verdade, em desenhos corbusianos. Em 1970, recebemos, na UnB, a visita do Prof. Abraham Moles, um grande especialista da comunicação e arquitetura da Universidade de Estrasburgo, que, depois de visitar o setor diplomático, disse: “Eu vou voltar e fotografar todos esses prédios para um teste com meus alunos. Presumo que, depois de ver a foto dos edifícios, eles vão ser capazes de identificar que países cada um deles abriga”. Segundo o Professor Moles, a diversidade dos edifícios correspondia á diferença entre os países. Sem má intenção alguma, observo que o Professor Moles identificou, sem dificuldade alguma, a Embaixada da República Federal da Alemanha, um magnífico edifício que lembra imediatamente um “bunker”...
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Mesmo no início dos anos 70, a cidade ainda estava em construção. Quando foi inaugurada, em 1960, os ministérios estavam prontos assim como as sedes da da Presidência e do Parlamento, mas o essencial ainda estava por se fazer. O sonho dos construtores, especialmente de Niemeyer, era criar uma cidade democrática. Em um mesmo edifício, coabitariam funcionários de alto escalão, diretores de unidades administrativas por exemplo, com vizinhos mais humildes, os contínuos. A realidade foi mais forte que o sonho e, logo, os servidores dos escalões inferiores venderam seus apartamentos e se mudaram para as cidades satélites, onde se juntaram a imigrantes e ex-trabalhadores que construíram a cidade. Esperava-se que estes retornassem a suas regiões, o que, de fato, jamais ocorreu. Desta forma, desde o início, a cidade real seguiu o modelo do conjunto do país: uma área reservada para os mais favorecidos, com serviços públicos de qualidade, e bairros afastados ocupados pelo menos afortunados, setores que, logo, transformaram-se em verdadeiros guetos. A renda per capita em Brasília é bastante elevada, a do Plano Piloto situa-se entre as primeiras do país, mas este fato revela simplesmente que a diferença entre o nível de vida de um grupo de funcionários do projeto-piloto e o de moradores de cidades satélites é também um dos mais significativos do país.
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A CIDADE NA FLORESTA Lúcio Costa, o urbanista de Brasília, dizia desejar criar um espaço onde os edifícios pareceriam sair de uma floresta. Em que medida este voto tornou-se realidade? Uma pesquisadora da Universidade de Brasília, Adriana Bustos Marta Romero, comparou a situação de duas superquadras vizinhas, a 308 e a 309 da Asa Norte, descobrindo que, entre elas, havia uma diferença de temperatura de 2 a 5 graus. A 308, construída no início dos anos 70, respeitou o plano original de Lúcio Costa e manteve a idéia de pilotis livres. O espaço entre os edifícios é importnte, o número de apartamentos por edifício é reduzido, no centro da Superquadra há um vasto espaço verde com árvores. Na 309, os edifícios são mais próximos uns dos outros, o número de apartamentos por edifício é maior, o ar não circula da mesma forma, o calor acumula-se e logo, os moradores dos apartamentos se viram obrigados instalarem aparelhos de ar condicionado. Em seus estudos, a pesquisadora revela que hoje, quando se examina o conjunto da cidade, observa-se que 40% dos edifícios não aplicam as diretrizes do Plano Piloto de Lúcio Costa e, em particular, os espaços entre os pilotis, que deveria permanecer livre e aberto, é ocupado por construções destinadas à guarda de bicicletas, ao trabalho dos porteiros, a salões de festas e até a estacionamentos. Os pedestres já não dispõem da possibilidade de circular livremente ali. O espaço público foi privatizado. Em 1998, o
Código de Obras de Brasília aumentou a largura máxima de blocos residenciais de 12,5 a 18,5 metros, os edifícios que eram limitados a 48 unidades passaram a 96. Em muitas quadras, as árvores foram substituídas por plantas ornamentais muito menores e o resultado é que há menos sombra e, em consequência, menor atenuação do calor e da poluição. Em novembro de 2014, voltei a Brasília, ficando hospedado com um de meus irmãos que vive, há quatro ou cinco décadas, na Asa Sul, na Superquadra 210. Quando ele se instalou neste apartmento, havia uma vista muito ampla podendo-se ver o lago Paranoá e, mais além, o aeroporto. Na década de 70, um avião foi sequestrado e, de apartamento de meu irmão, podia-se ver o avião bloqueado numa das pistas do aeroporto. Nesta minha volta a Brasilia, em 2014, duas coisas particularmente me impressionaram: - A exuberância da vegetação no interior da superquadra. Viam-se árvores frutíferas de diversas espécies, inclusive mangueiras e jaqueiras carregadas de frutas ainda verdes.
Esta impressão é confirmada pelos dados que mostram que em Brasília contam-se: - 150 milhões de metros quadrados de áreas verdes; - 5 milhões de árvores; - 150 mil árvores plantadas a cada ano; - mil jardineiros; - 20 caminhões cisternas para a irrigação diária; - 700 rotundas. Foi o governador Cristovam Buarque, um antigo reitor da Universidade de Brasília, quem instalou essas rotundas floridas e é também graças a ele que Brasília tornou-se uma das cidades latino-americanas onde os carros respeitam os pedestres. Este resultado foi obtido com a combinação eficaz da utilização dos meios de comunicação de massa para conscientizar a população e uma política de repressão rigorosa contra motoristas que não respeitam as passagens marcadas para os pedestres.
- Das janelas do apartamento, podia-se ainda avistar o lago, mas, no meio da vegetação abundante. As árvores cresceram e aí sim podia-se ter a impressão de que a cidade emergia da floresta, como havia sonhado o urbanista Lúcio Costa.
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PATRIMÔNIO MUNDIAL A cidade foi sempre considerada como uma obra-prima da arquitetura moderna, o que justificou a decisão da UNESCO de incluí-la na lista do Patrimônio Mundial da Humanidade, em 1987. Na época, eu era diretor da Divisão de Ensino Superior da UNESCO, em Paris, tinha boa relação pessoal com o governador José Aparecido de Oliveira que me contatou para iniciar o processo de reconhecimento de Brasília como patrimônio mundial. Não era minha área de atuação. Limitei-me a colocar membros da equipe de José Aparecido em contato com colegas do Setor de Cultura da UNESCO.
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As características essenciais de Brasília são amplamente conhecidas. O autor do plano piloto foi Lucio Costa, que deu à cidade a forma de um avião, rodeado por um lago artificial, o Paranoá. A cidade é dividida em diferentes setores: administrativo do governo federal, administrativo do Distrito Federal, residencial, comercial, bancário, militar, hoteleiro, industrial, esportivo e de lazer e a Universidade de Brasília. Áreas residenciais foram projetadas para serem funcionais e autossuficientes, com unidades comerciais, escolas, parques e igrejas.
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Os principais edifícios foram projetados pelo arquiteto Oscar Niemeyer: a Catedral, a Biblioteca Nacional, o Teatro Nacional, o Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado), o Ministério das Relações Exteriores, o Supremo Tribunal Federal, os Palácios da Presidência, O Instituto Central de Ciências da UnB, conhecido popularmente como “minhocão”, dado o seu tamanho e sua extensão. Os poderes judiciário, executivo e legislativo são agrupados ao redor da Praça dos Três Poderes. Como Lucio Costa permaneceu no Rio e só ia a Brasília de vez em quando durante a construção, foi Niemeyer quem assumiu também a gestão prática da urbanização. Por isso, quando se fala de Brasília é o nome de Niemeyer que aparece em primeiro lugar. A cidade é organizada em torno de dois eixos perpendiculares: o Eixo Monumental e Eixo rodoviário, o primeiro na direção leste-oeste corta a cidade em duas partes simétricas. Alguns argentinos dizem que a monumental e bela Avenida 9 de Julio, em Buenos Aires, com 140 metros de largura, é a avenida mais larga do mundo. O livro Guinness dos recordes tem outro ponto de vista. Diz que este recorde pertence ao “Eixo monumental” de Brasília, com seus 16 km de comprimento e 250 m de largura. Este eixo monumental lembra a fuselagem de um avião. A Praça dos Três Poderes e a Esplanada dos Ministérios estão localizada numa de suas extremidades.
O Eixo rodoviário cruza a cidade de norte a sul. Representa as asas de um avião. A Asa Sul e Asa Norte se compõem de superquadras situadas ao longo do eixo. Tudo isto é enorme. O eixo rodoviário central que tem três vias em cada sentido é acessível a partir dos eixos secundários que os brasilienses chamam de eixinhos. O Eixão (eixo rodoviário) permite cruzar o Eixo monumental sob um túnel, passando-se da Asa Sul para a Asa Norte. Foi concebido para servir exclusivamente à circulação de veículos, passagens subterrâneas foram instaladas para a travessia de pedestres, mas parece que, hoje, muitas delas são ocupadas por pessoas sem abrigo fixo, o que leva os pedestres a atravessar esta via sem nenhuma proteção. Dois outros eixos cruzam de norte ao sul o plano piloto. São a W3 e a L2. Em suas margens, estes eixos tinham inicialmente lojas e residências. Mais tarde, especialmente na L-2, ali se instalaram clínicas, faculdades e escolas. No cruzamento dos dois eixos principais, o rodoviário e o monumental, encontra-se a rodoviária para os ônibus, mas ali se instalou também a estação central de metrô. Apesar da existência do metrô, que entrou em serviço na década de 1990, os transportes públicos são ainda são considerados insuficientes.
O número de habitantes, como já assinalado, aumentou muito mais que o previsto. As cidades satélites se multiplicaram, algumas sem qualquer forma de planejamento. Foram, em grande parte pelo menos, resultado da vontade demagógica de alguns políticos de deslocar para a periferia de Brasilia habitantes provenientes de setores desfavorecidos do país. A intenção clara era a de aumentar o curral eleitoral destes políticos, trazendo eleitores que lhes seriam fieis até o final da vida. A rede rodoviária no Brasil era considerada insuficiente, afirmação que é válida ainda nos dias de hoje. Mas, até o final dos anos anos cinquenta, antes de Kubitschek, o presidente que decidiu criar Brasília, uma cidade da importância de Belo Horizonte, a terceira do país em população, não era sequer ligada a Rio ou São Paulo por uma estrada pavimentada. Após a construção de Brasília, novas estradas foram traçadas: Brasília-Cuiabá, Fortaleza-Brasília, Brasília-Salvador, iniciativas que provocaram uma dinâmica extraordinária. Quando Kubitschek anunciou a abertura da rodovia Belém-Brasília na Amazônia, Carlos Lacerda, o derrubador de presidentes, disse que a estrada iria ligar “o nada com coisa nenhuma”. Hoje, milhares de carros usam esta estrada e muitas novas cidades surgiram em lugares onde, em 1960, havia apenas o cerrado ou a floresta.
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- O senhor sabe de onde eu o chamo, indagou o jornalista? Estou falando desde nossa sucursal em Brasília. Então: a comunicação funciona, sim ou não? Ignoro qual tenha sido a reação de Corção, alguém que, segundo constava, não era pessoa de bons humores. O que se sabe é que esta conversa entrou para a história de Brasília.
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SONHO, MITO OU PESADELO? O início dos anos sessenta foi um tempo de sonhos e ilusões, o país debatia as reformas de base que iriam modernizar o país ao mesmo tempo que se consolidaria a democracia. Em 1964, um golpe militar estabeleceu uma ditadura que durou 25 anos. Ela sufocou da Universidade de Brasília, alguns quiseram fechá-la. Mudou a orientação do plano piloto e a cidade começou a se afastar inexoravelmente de seu projeto inicial. O aeroporto da cidade é um exemplo típico desta mudança. O projecto de Niemeyer foi abandonado em favor de um monstrengo concebido por um arquiteto militar. No início dos anos 70, a preocupação de Brasília era de se afirmar como cidade e como capital. Naquela época, a taxa de crescimento da cidade era da ordem de 10% ao ano. Com a transferência de todos os ministérios, das administrações do governo federal e, além disso, do corpo diplomático, Brasilia tornou-se de fato uma cidade e uma capital. Tudo isto poderia ser parte do sonho, mas os pesadelos estavam lá e em grande número. O caso da Universidade de Brasília é emblemático a este respeito. Em 1964 e em 1968, a universidade foi ocupada por forças militares, laboratórios foram destruídos, professores foram demitidos, estudantes perseguidos e seu líder, Honestino Guimarães, foi eliminado. Seu corpo, até hoje, não foi localizado.
Fig 6 - Comércio local 108 sul década de 70.
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Brasília também provocou um desenvolvimento das telecomunicações, considerado naquela época totalmente inesperado. Na véspera da inauguração da capital, Gustavo Corção, um engenheiro do Rio de Janeiro, muito conhecido sobretudo como escritor, autor do best-seller “Tres alqueires e uma vaca”, escreveu artigos violentos contra Brasília, contra Kubitschek, contra a idéia da transferência da capital. Em um de seus textos mais virulentos, afirmou que Brasília permaneceria isolada, que não se poderia administrar o país a partir da nova capital porque as comunicações seriam impossíveis. Na véspera da inauguração, um repórter de um jornal popular que apoiou a transferência, “Ultima Hora”, chamou Gustavo Corção pelo telefone e pediu-lhe para confirmar que a comunicação com Brasília seria impossível. Corção empolgou-se e confirmou sua opinião.
Em 2012, como parte da comemoração do 50º aniversário de criação da UnB, solicitaram-me que escrevesse um livro depoimento sobre os anos setenta. O título do livro é “UnB e Comunicação nos anos 70 - Acordo tácito, Repressão e Credibilidade Academica”, publicado em 2013 pela Editora da UnB. Era um período de contradições. No interior desta instituição, estabeleceu-se um acordo tácito. Professores competentes foram recrutados, apesar do passado político comprometedor de muito deles aos olhos das autoridades militares. O acordo permitiu o rápido desenvolvimento de disciplinas como Economia, Geologia, Arquitetura e Comunicação.
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Mas a instituição não era democrática. Funcionava sob tutela e era controlada por elementos vinculados aos órgãos de repressão. Quem se atrevia a exceder os limites toleráveis era eliminado. Até 1976, um certo equilíbrio se manteve, mas, a partir desta data, a instituição sofreu uma repressão em grande escala, professores foram novamente punidos, dezenas de estudantes foram expulsos e, em 1977, as forças militares e policiais, mais uma vez ocuparam a universidade. Tudo estava sujeito aos princípios da doutrina de segurança nacional, importada dos Estados Unidos, mas com sua aplicação no Brasil tendo sofrido a influência francesa de militares que tinham se notabilizado nas guerras da Argélia e da Indochina. Por volta de 1973, o governo Pompidou enviou a Brasília, como adido militar, o General Paul Aussaresses, conhecido como grande Revista CAU/UCB | 2017 | Artigos
torturador durante a guerra da Argélia, morto em 2013 aos 95 anos, depois de ter sido rejeitado por suas três filhas. Antes de morrer, ele se orgulhou publicamente de ter transmitido a militares latino-americanos suas técnicas anti-subversivas. O Estado, segundo os partidários da doutrina de segurança nacional, deve difundir uma ideologia antisubversiva, mas, antes, prioritariamsnte, deve identificar os inimigos internos, capazes de propagar uma ideologia hostil ao poder estabelecido. Para descobri-los, vale tudo, em especial a prática de atos arbitrários, entre eles incluídas a censura e a tortura. O importante é eliminar aqueles que são favoráveis à subversão: elementos ativos e seus eventuais colaboradores, em particular os que, com sua ação, pudessem ter um efeito multiplicador. No caso brasileiro, isso provocou a perseguição de professores e de estudantes, assim como de membros do clero envolvidos em lutas sociais. Existia, na opinião dos adeptos da doutrina de segurança nacional, um estado permanente de guerra isto justificava a adoção de medidas duras e o estabelecimento do “estado de segurança nacional”.
A repressão a tudo o que pudesse deixar pensar que a Universidade de Brasília iria continuar a agir no espírito dos seus fundadores e colaboraria com o retorno da democracia, funcionou de maneira permanente de 1976 até a restauração da democracia em 1985. A falta de visão social, a não-observância dos princípios essenciais do plano piloto do Distrito Federal abriu caminho à comercialização das construções e dos serviços, inclusive da educação. E isto continuou mesmo após o fim do regime ditatorial. É o que leva alguns a dizerem que Brasília não é mais um sonho, que Brasília tornou-se um mito, e mesmo, em alguns casos, um pesadelo. Os motoristas presos em engarrafamentos entre o Plano Piloto e cidades satélites, especialmente no final do dia e aqueles que, no final de 2014, foram surpreendidos por uma inundação inimaginável dada a configuração da cidade estarão certamente de acordo com esta constatação. No início desta década, sob a presidência do arquiteto Professor Geraldo Nogueira Baptista, da Universidade de Brasília, o Instituto de Arquitetos do Brasil, seção Distrito Federal, aprovou um documento estabelecendo novas regras para o planejamento em Brasília. (“Diretrizes Urbanísticas para Brasília”), com a participação de Gilson Paranhos, Gunter Roland Kolsdorf Spiller, Jorge Guilherme Francisconi José Carlos Córdoba Coutinho, Luis Alberto Cordeiro, Otto Toledo Ribas, Sonia Helena Camargo Cordeiro. A análise deste documento ultrapassa a missão que me foi dada pelos organizadores do seminário “Regards sur Brasilia”.
Pediram-me um depoimento sobre a vida em Brasília nos seus primeiros anos de existência. Por certo, não se pode falar do passado, sem olhar para o presente e imaginar o futuro. O documento dos arquitetos merece ser analisado por aqueles interessados nesta aventura humana que representou a criação e desenvolvimento de Brasília, que foi o tema deste depoimento. O sonho de Kubitschek, Niemeyer e Lúcio Costa deve ser defendido em seus valores fundamentais. Sem dúvida, adaptações à realidade atual são necessárias, como indicam os documentos de orientação do IAB-DF. É necessário tomar-se em consideração os interesses de toda a população e tentar reduzir as lacunas escandalosas entre os habitantes do Distrito Federal. É necessário que se alcance o objetivo de uma cidade sem guetos. Adaptações são necessárias e aberrações eliminadas, como defende o ex-diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília, José Carlos Córdoba Coutinho.
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Palavras-chave: População em situação de rua, edificações em altura, abrigo, albergue.
Milena C. S. de Lannoy e Stephanie Campos de Jesus | CAU/UCB
Fig 7 - Vista leste da edificação.
No ano de 2011, em Brasília, foram contabilizadas mais de 2500 pessoas em situação de rua, uma grande parcela se encontra em albergues e as outras em baixo de marquises, viadutos, pontes e nos mais inusitados locais. Estas pessoas são integrantes da imagem da cidade sabiamente descrita por Lynch (1960), e na maioria das vezes, despertam sensações de desconforto aos outros habitantes que não absorvem bem a ideia de partilhar espaços públicos. Neste contexto, este exercício acadêmico apresenta uma forma, pouco convencional, de pensar um abrigo para esta parcela da população em formato de edificação em altura. O texto apresenta, principalmente, as soluções arquitetônicas propostas para o cumprimento do programa estabelecido, a preocupação com a estética e com a durabilidade dos materiais.
CIDADE DE QUEM? HABITAÇÃO PARA MORADORES DE RUA
RESUMO
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“Aos olhos do brasiliense os moradores de rua são uma gente desqualificada que suja a urbanidade asséptica do Plano Piloto. Nós esquecemos que a cidade, Brasília, ou qualquer outra do planeta, pertence a quem nela vive – ricos, pobres e miseráveis, brancos, pardos e negros, limpos e sujos, bonzinhos e malvados, com e sem teto. A indigência acampada no canteiro central da utopia diz respeito a todos nós. Menos a quem é simpático às ideias de higienismo – aquelas que sustentaram a ideologia nazista.” (FREITAS, Conceição de. Feios, sujos e malvados. Coluna XX, Correio Braziliense, outubro de 2011)
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O trecho acima, de autoria de Conceição Freitas, ilustra uma situação de conflito comum nas cidades e que passa despercebida muitas vezes, justamente pela sua repetição: a ocupação dos espaços públicos pelo morador de rua. Nas calçadas, marquises, viadutos, na sombra das árvores, nos mais inusitados espaços, e por onde passemos rapidamente o olhar, vemos esses corpos que habitam nas ruas e, às vezes, quando o nosso olhar se demora um pouco mais nessas figuras tão estranhas e ainda assim comuns, nos indagamos: “De onde veem? ”. A designada “população de rua” existe desde que o mundo é mundo, por assim dizer, aparecendo já nas civilizações romanas, gregas e egípcias. (SANTOS e BEVILACQUA, 2012). Porém, foi com o advento do capitalismo que isso deixou ser um modo de vida para se tornar um problema social:
“Neste sistema, os espaços – públicos e privados de toda sorte – eram para poucos e o papel do Estado ao longo destes últimos séculos era o de garantir que os que “pertencem” tivessem mais direitos de pertencer, ao passo que os que nada têm, deveriam ter menos ainda…” (GATTI, 2011, p. 13)
No Brasil, nas últimas décadas do século XIX, as ações de adensamento urbano e vinculado a ela, práticas higienistas, que através da expulsão compulsória de milhares de indivíduos com o objetivo de urbanizar e “embranquecer” os centros das cidades, culminaram em três grandes processos: a formação das favelas (em locais centrais), das periferias (em locais afastados) e na massificação dos moradores de rua. Essas medidas se perpetuam ainda hoje em todo país, tendo o Estado atuado de maneira a esconder e ocultar dos espaços da cidade o “problema” que atende pelo o nome “morador de rua” ao invés de dialogar por uma solução definitiva. Tal afirmação pode ser ilustrada se relembrarmos as diversas ações de órgãos da justiça que denunciaram atividades de recolhimento e internação compulsória massificada da população de rua por parte do Estado no período que antecedeu a Copa do Mundo de 2014, de acordo com dados do Comitê Popular Rio da Copa e das Olimpíadas em 2013.
O morador transitório abarca os indivíduos que estão em uma situação provisória, ou seja, a sua permanência na rua é passageira, estando à espera de um acontecimento, como um emprego, por exemplo. Já o grupo de moradores permanentes constitui-se daqueles que tem na rua a sua casa, o seu lar, e esta é a sua opção no tempo presente. A ideia de que morar na rua seja uma opção é pouco ou quase nunca considerada, explicando por que em campanhas ou programas oficiais do governo se conceituam estes dois grupos, como um único e coeso bloco de gente ao qual se insiste em definir como população em situação de rua, dando a ideia de que é inteiramente necessária a saída das ruas e o retorno a uma vida “digna”. Dentro desses dois grupos há ainda subgrupos no que se refere ao motivo de estarem nas ruas, por exemplo.
Tratar dos espaços públicos é, então, indispensável quando falamos da população em situação de rua. Contrariando o senso comum, os moradores de rua não são um grupo homogêneo, há uma extensa variedade de perfis a serem analisados para que se possa compreender suas demandas, sua organização e as possíveis propostas urbanas e arquitetônicas que a cidade possa lhes oferecer. Basicamente, pode-se definir dois grandes grupos distintos de moradores de rua: o morador transitório e o morador permanente (QUINTÃO, 2012).
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Segundo a de análise introdutória do Projeto Renovando Vidas:
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As consequências desse tombamento, contudo, são o aumento da segregação es“Em Brasília, o controle sopacial, da especulação imocial e ideológico da população e a submissão à lógica biliária (que também segrega) e da discriminação contra do capital ganharam contornos mais expressivos, tornan- pessoas sem direito à cidade.” do a cidade única, com carac(GATTI, 2011, p. 14-15) terísticas que a diferenciam O projeto da capital do país e, para além de todas as demais do País dela, de todo o Distrito Federal denota desde a sua fundação. […] uma espacialidade muito marcada pelos tem-se, em resumo, uma ci- limites territoriais das suas regiões, que dade funcional, na qual a in- por sua vez se configuram em áreas muidistintas com uma organização forstrumentalização do espaço, to temente hierárquica: Plano Piloto como a estabilidade e a ordem são centro de atividades e da economia e as demais regiões como periferias, fato obos fins a serem obtidos a na polarização dos moradores qualquer custo, via qualquer servado de rua na área centro das atividades meio. A arquitetura e o ureconômicas e nas periferias onde se situbanismo da cidade moderna am os albergues. – que fez jus ao tombamento Tal afirmação pode ser mostrada pelo de Brasília como Patrimônio Censo da População em Situação de Rua do Distrito Federal (realizado em 2011 atda Humanidade em 1988 – ravés de parceria entre o FAP/DF e a Unisão apontados como cura versidade de Brasília) onde identificou-se para a anomia (ou a doença) 2.512 pessoas que vivem ou sobrevivem própria das grandes cidades na rua. Destas a maioria é composta por pessoas do sexo masculino (74,6%) e em todo o mundo. raça/cor negra ou parda (82,6%). Entre os adultos 27% se concentram na Região Administrativa (RA) XX, Águas Claras, 25,1% em Brasília e 10,7% em Taguatinga. Deste montante apenas 23% dos adul-
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tos têm ou alugam casa, ou seja, a maioria não tem nenhuma forma de habitação convencional fazendo das ruas seu único local de moradia. Também a maioria dessa população é composta por trabalhadores, somente 10,6% pedem esmolas e 9,9% vivem com o auxílio governamental ou de instituições (GATTI, 2012).
dessas pessoas dos espaços públicos. A solução oferecida tem sido a de albergues como o Albercon (albergue governamental do DF) como locais de pernoite, refeição e higiene. No entanto, 42,3% dos moradores de rua nunca utilizaram e nem mesmo conhecem um abrigo (GATTI, 2012, p. 98).
Cabe ressaltar que os perfis dos moradores de rua não aparecem de forma detalhada em pesquisas censitárias, assim como os motivos que os levam a estar nas ruas, que podem ser dos mais diversos. Apesar de um grande número destes fazerem o uso de algum tipo de entorpecentes (85%), sendo um dos motivos que os levam a essa situação, pode-se citar também o rompimento de laços familiares, problemas mentais, desemprego, imigração para tratamento médico, perda de moradia, entre outros. Neste contexto, não se pode esquecer que há ainda a parcela que escolhe ficar nas ruas por “[...] questões subjetivas como desejos, vontades, que não podem ser reduzidas a itens mensuráveis em pesquisas.” (QUINTÃO, 2012, p. 58).
Para uma parcela da sociedade a população de rua é um elemento indesejado à paisagem, mesmo em condições formais de acolhimento, como o Albercon, não raro vemos mobilizações de moradores avizinhados a tal instituição insistindo na retirada do abrigo e dos “mendigos” da convivência das crianças e das famílias.
Independente de qual grupo este morador pertença ou quais os motivos o levaram a habitar esse espaço, é na rua onde ele encontra sua morada ou seu lar e é da rua que retira seu sustento, sua sobrevivência. Apesar desse fato, mesmo tendo o direito à cidade e ao que ela oferece, o morador de rua ainda é desconsiderado, tratado como um descarte que insistem em x ou y destinações. A resposta política a essa situação tem sido a retirada compulsória
Não se pode negar que há uma marcação de território imposta por estes cidadãos, e a partir do momento que ele produz a ação de habitar, ele desenvolve uma existência sólida dentro da paisagem, ao mesmo tempo que descaracteriza a rua como um espaço de permeabilidade. Juntamente com sua presença física surgem os elementos de atendimento às suas necessidades fisiológicas, esta conjunção faz com que os outros cidadãos percorram novos caminhos, se afastando da calçada transformada em habitáculo. Nesta contextualização, nos deparamos com estudos sobre a divergência do uso do espaço público:
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“[...] não há uma aceitação da presença de pessoas morando nas ruas; não há uma aceitação da sua instalação nos espaços de passagem, do transitórios. E não importam como devem sair dessa situação, importa que não ocupem esses espaços, não incomodem a passagem, o caminho daqueles que transitam, não importunem a ordem estabelecida. ” 52
(OLIVEIRA, 2011, p. 74) Indagando o papel do arquiteto e urbanista, enquanto planejador de espaços para pessoas, surge a ideia, no mínimo curiosa, de uma modificação no tema proposto na disciplina de Projeto Arquitetônico V (Edificações em Alturas), a de se realizar um edifício para moradores de rua. A aluna Stephanie Campos, autora deste texto e envolvida em causas que prestam atendimento pessoas em situação de rua, questionava se havia a necessidade de mais um hotel. A alegação era que já haviam vários e que a classe abonada era sempre privilegiada. Sua indignação era o porquê de idosos, adultos e crianças em situação de rua não possuírem um local de cuidados e acomodações similares ao programa do edifício proposto. O desafio Revista CAU/UCB | 2017 | Artigos
foi aceito e com o conhecimento que a aluna advinha, o exercício se tornou uma experiência intrigante que vale a pena ser conferida. O maior impasse seria: adequar e orientar o desenlace deste nada convencional programa de necessidades ao acolhimento e abrigo destes usuários em uma edificação em altura na Região Administrativa Águas Claras, Brasília -DF (figuras 01 e 02).
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Um dos primeiros questionamentos foi sobre a aparência do edificio em meio há tantos prédios envidraçados. Havia a preocupação de se distanciar da vista “fria” que por vezes pode recordar os shopping centers onde os moradores de rua não são bem-vindos. A estética do edifício surge, então, a partir das caracteristicas dos espaços que são conhecidos pelo morador de rua, se erguendo sobre cimento e terra. Sua estrutura em concreto armado é aparente, fazendo alusão aos materiais das marquises e viadutos que muitas vezes são o teto e o lar dos moradores de rua. Buscando a sensação de conforto as vedações são feitas em tijolo de barro, em uma tentativa de resgatar as sensações do lar primitivo (figura 03).
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A edificação possui 28 pavimentos e 2 subsolos. Respeitando a diversidade do grupo que será atendido pelo empreendimento a proposta busca oferecer espaços para diferentes necessidades. São três setores distintos distribuidos pelos seus pavimentos: o albergue, desde o mezanino ao 4º
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pavimento, o hostel, do 5º pavimento ao 14º pavimento e os lares provisórios que ocupam desde o 16º pavimento somando-se ao terraço (figura 04). O acesso aos programas do edifício se divide em dois fluxos principais: uma entrada direta pela fachada nordeste para o hostel e para o lar provisório acessados por hóspedes e residentes e outro na fachada sudeste, através de uma rampa de acesso ao mezanino, para o albergue (figura 05, 06 e 07). Também há um acesso secundário pela lateral leste que dá acesso aos subsolos, onde estão o estacionamento de veículos de moradores, hospedes e funcionários e os carrinhos utilizados por moradores de rua , o canil, gatil, sanitários e áreas técnicas (figura 08).
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Para aqueles indivíduos que optam em permanecer nas ruas, o edificio precisava disponibilizar auxilio básico e a oferta de alguns serviços os quais eles têm dificuldade de acessar no espaço urbano público: local para banho de uso esporádicos ou diários, enfermarias para serviços simples (entendendo a dificuldade do atendimento em postos de saúde, principalmente quando não se tem documentação), espaço para se alimentarem, local para o cuidado dos seus animais de estimação, terapia, lavanderia para higienizar as roupas, abrigo do sol e da chuva ou dormitório para passar a noite. O Albergue tem quartos coletivos para pernoite de até 90 pessoas, com vestiários e sanitários, restaurante, salas para aconselhamento e acompanhamento psicológico, lavanderia coletiva e salas de atividades diversas para barbearia, corte de cabelo, doação de roupas, alfabetização, uso de telefone e internet, entre outras (figuras 09 a 13).
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61 Há ainda o morador de rua que, este sim, se sente em uma situação provisória e que quer uma oportunidade de se estabelecer. O lar provisório é para atender esse individuo ou familia que pode utilizar um dos apartamentos do edifício por um período determinado enquanto desenvolve as condições necessárias para a saída definitiva da rua. Há tipologias de apartamentos para atender a diversidade de indivíduos e constituições familiares (figura 14) . Estes, já ex moradores de rua, podem trabalhar nos serviços do hostel, interagindo com diferentes pessoas, saindo da “invisibilidade” e gerando recursos financeiros para seu próprio sustento e para o funcionamento do empreendimento. Revista CAU/UCB | 2017 | Artigos
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Foi interessante vivenciar esta vontade de mudanças quanto a forma de pensar em uma arquitetura que possa proporcionar condições de vida mais adequada a esta parcela e verificar que o arquiteto desempenha importante papel enquanto agente que produz as mais diferentes formas de abrigo. Em todas as etapas de projetação buscou-se soluções que respeitassem a opção de vida dos diferentes perfis de moradores de rua. Apesar da tentativa de ampliar o programa para atender às necessidades de centenas de pessoas, as soluções adotadas não esgotam as possibilidades de intervenção no âmbito da cidade. O respeito foi ação perseguida nesse trabalho, entendendo, a partir do que temos de concreto na nossa sociedade, que como proposta utópica, que é o que define tal trabalho, ela nos serve como aprendizagem e como forma de ampliar nossas reflexões sobre o uso da cidade e de seus espaços e sobre a liberdade individual dentro de uma comunidade. E uma tentativa de criar uma saudável convivência entre as escolhas e as não escolhas de pessoas tão diversas, e por mais que se escancare seu caráter utópico, é importante ressaltar que a utopia tem uma função indispensável. Como já disse o escritor uruguaio Eduardo Galeano? “Por mucho que yo camine, nunca la alcanzaré. ¿Para qué sirve la utopía? Para eso sirve: para caminar.” (GALEANO, 2001)
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BIBLIOGRAFIA GATTI, Bruna Papaiz (Org.) Projeto renovando a cidadania: pesquisa sobre a população em situação de rua do Distrito Federal. Brasília: Gráfica Executiva, 2011. OLIVEIRA, Maria do Rosário. A RUA COMO ESPAÇO PARA MORAR: observações sobre a apropriação dos espaços públicos pelos moradores de rua da cidade de João Pessoa – PB. 2011. 114 p. Dissertação (mestrado em Serviço Social) – Centro de ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba, Paraíba.
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SANTOS, Júlio Cezar dos; BEVILACQUA, Solon. População de rua e (des)proteção de rua e (des)proteção social: uma análise da política nacional para a população em situação de rua. Anais eletrônicos da I CIEGESI, 2012. QUINTÃO, Paula Rochlitz. Morar na rua: há projeto possível? 2012. 150 p. Dissertação (mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, São Paulo. LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2011. LYNCH, Kevin. The image of the city. Cambridge: The M.I.T. Press, 1960.
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GALEANO, Eduardo. Las Palabras Andantes. Buenos Aires, 2001. COMITÊ POPULAR RIO DA COPA E DAS OLIMPÍADAS (Rio de Janeiro) (Org.). Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro: Dossiê do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro. 2013. Disponível em: <https://comitepopulario.files.wordpress.com/2013/05/dossie_comitepopularcoparj_2013.pdf>. Acesso em: 15 ago. 2016.
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Lucas Akira | Aluno do CAU/UCB
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CRUZAMENTOS
Fig 8 - Rodoviária do Plano Piloto.
O cruzamento desse eixo monumental, de cota inferior, com o eixo rodoviário-residencial impôs a criação de uma grande plataforma liberta do tráfego que não se destine ao estacionamento ali, remanso onde se concentrou logicamente o centro de diversões da cidade, com os cinemas, os teatros, os restaurantes etc. [...] Nesta plataforma [...], situou-se então o centro de diversões da cidade (mistura em termos adequados de Piccadilly Circus, Times Square e Champs Elysées). [...] Na parte central da plataforma, porém disposto lateralmente, acha-se o saguão da estação rodoviária com bilheteria, bares, restaurantes etc., construção baixa, ligada por escadas rolantes ao “hall” inferior de embarque separado por envidraçamento do cais propriamente dito.
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Lucio Costa (1991, p. 20) definiu o centro da cidade, o cruzamento dos eixos, como local apropriado para a implantação da plataforma rodoviária, como pode ser percebido nos itens 5 e 10 do Relatório do Plano Piloto de Brasília. Sua intenção de que este centro fosse também o centro de diversões voltado às classes mais favorecidas, no entanto, foi frustrada pela apropriação do povo mais simples do local; trabalhadores que vieram para a construção da cidade se tornaram o público que mais frequentava a rodoviária e, consequentemente, o centro de diversões. Tal fato o surpreendeu; em um depoimento gravado pelo Programa de História Oral do Arquivo Público do Distrito Federal, em 1988, Lucio diz que havia planejado o local como um centro muito cosmopolita, e que a população periférica que havia tomado conta de lá. Isto o fez feliz por ter contribuído, afinal, foi o “Brasil de verdade [...] que tomou conta da área”, e que “isso deu uma força enorme à capital”. Tal fato é recorrente até hoje; a rodoviária é o local mais movimentado da capital, pois recebe pessoas de todas as cidades satélite e do entorno, assim, os setores de diversão Norte e Sul acabam recebendo esse grande contingente populacional em suas dependências. No entanto, a plataforma da rodoviária que se tornou o verdadeiro centro da cidade, não da forma como Lucio imaginou (apenas um local de passagem para se chegar ao verdadeiro “centro”), mas sim como um centro de encontro, um local de inter-
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ação entre toda a população Brasiliense. Mais do que o espaço físico, um espaço social. Se transformou, segundo os conceitos expostos por Marc Augé (2012, p. 73), de um não lugar a um lugar, pois “se um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode se definir nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico definirá um não lugar”. Logo, a rodoviária, planejada para ser apenas um ponto de passagem, se tornou um lugar com identidade própria, com sua história e sua função relacional, consequência da apropriação do local pela massa popular. O comércio, regular ou irregular, se apropriou de parte do local, assim como os “indigentes” e cidadãos marginais; lojas de doces, roupas e sapatos, lanchonetes e restaurantes, ambulantes vendendo brinquedos e guloseimas, moradores de rua e usuários de drogas, são figuras constantes na paisagem da rodoviária. As lojas e barraquinhas se misturam ao espaço de circulação, os corpos, jogados no chão, desaparecem em meio à sujeira, os limites se tornam confusos e abstratos, o “nosso” se mistura ao “deles”. As pessoas passantes na rodoviária, então, se tornam uma só, ao mesmo tempo em que se tornam só mais uma, e que, ainda assim, continuam sendo únicas. Trato de três conceitos aqui, que, apesar de diferentes caracterizam um só fator: a perda de identidade e a perda de importância experimentadas no local, a impessoalidade consequente do descaso. O primeiro se dá pelo fato de todos es-
tarem lá por um mesmo objetivo, esperando pelo transporte que os levará para casa. Apenas mais uma pessoa na fila, sem nome, sem história, sem identidade, geralmente cansada e sem paciência para observar e sentir, e que, em conjunto com outros, cria uma massa uniforme. O outro conceito trata da falta de importância que as pessoas tem quando no local. Independentemente de sua presença, as coisas continuarão acontecendo por ali, um “alguém” se torna só mais um, irrelevante. E por fim, apesar disso, cada pessoa ainda tem sua história e sua identidade, sonhos e desejos que lhe motivam, mas que são completamente ignorados quando em meio à multidão. Além dos “passantes”, ainda há outro grupo de pessoas, composto por aqueles que vivem no local. Pessoas que já tiveram suas identidades apagadas, se tornaram “não pessoas”. O cúmulo do descaso se reflete nelas, enquanto os passantes, que se julgam melhores, as ignoram e continuam seus caminhos, com pressa e medo. Se os passantes sofrem com a perda de identidade quando no local, os habitantes estão fadados a sofrer com isso até o fim. Mas estes tem com o local uma relação muito mais profunda do que qualquer passante jamais terá: a relação que alguém tem com sua casa. Pode-se dizer, então, que os habitantes cuidam do local melhor do que os passantes, afinal, para os últimos, o espaço não tem significado maior do que ponto de aglomeração e dispersão populacional (ao menos para a maioria), logo, depredam e sujam o es-
paço, não mantêm uma relação afetiva com este. Abandonam-no, mas não é um abandono espacial, e sim emocional. De tal forma, pode-se dizer que a rodoviária é tanto o lugar mais frequentado de Brasília quanto o lugar mais abandonado, só depende da perspectiva. No entanto, esta é apenas uma visão pessimista do lugar. De um ponto de vista mais otimista, a rodoviária é, de fato, o centro de convivência da população; o ponto de encontro entre todas as pessoas da capital, onde não importa quem você é, o que tem, de onde veio ou para onde vai, onde todos são iguais. Tal forma de pensamento é fascinante e, de certa forma, utópica, utopia que herdei de Lucio em minha forma de enxergar o mundo. Mas apesar de quase surreal, é algo que acontece e faz parte da vida Brasiliense. É provável que todo mundo que mora em Brasília já tenha marcado de encontrar com alguém na rodoviária para ir a outro lugar, afinal, como escreveu Milton Nascimento em sua música “Encontros e Despedidas”, “a plataforma dessa estação é a vida desse meu lugar”.
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BIBLIOGRAFIA AUGÉ, Marc. Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. 9. ed. Campinas: Papirus, 2012. COSTA, L. Brasília Revisitada 1985/1987: Complementação, preservação, adensamento e expansão urbana. Projeto, Brasil, v. 100, p.115-122, 1987. RELATÓRIO do Plano Piloto de Brasília/ elaborado pelo ArPDF, CODEPLAN, DePHA. – Brasília: GDF, 1991. 76p., il. ROSSETTI, E. P. Lucio Costa e a Plataforma Rodoviária de Brasília. Arquitextos, Brasília, v. 119, n.3, abr. 2010. <http:// www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/10.119/3371>
Fig 9 - Rodoviária do Plano Piloto de Brasília.
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ANTES DO GRAFITE
Fig 10 - Pintura em Lascaux.
(Karl Marx)
Carolina da Rocha Lima Borges | Professora do CAU UCB
A linguagem é tão antiga como a consciência. A linguagem é a consciência real, prática, que existe para os outros homens e, portanto, existe para mim mesmo; e a linguagem nasce, como a consciência, da carência, da necessidade de intercâmbio com outros homens.
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A consciência da individualidade acontece a partir da linguagem, que é expressa por meio de um objeto no qual o sujeito se identifica. É pela identidade (particular) que se percebe a diferença (coletivo), que é o primeiro indício da consciência de cidadania. Os primeiros registros dessa consciência humana que temos conhecemos se dão na arte paleolítica, que têm um aspecto sintético e até simbólico, em alguns momentos. Ao mesmo tempo, se percebe nos desenhos a representação de desejos e vontades individuais, sendo que o ato de desenhar torna esse desejo, que até então era interno e individual, compartilhado e público. O indivíduo passa a desenvolver uma consciência e expressar uma identidade, logo, se identifica como ser social. O grafismo parietal paleolítico constitui-se nas primeiras formas de manifestação artística do homem e nos primeiros indícios da construção de uma consciência propriamente humana. No desenho da figura humana (fig. 1), tem-se o órgão sexual representado numa condição erétil, sugerindo uma sensação de prazer. Trata-se da consciência do desejo que está diretamente relacionada com a liberdade – liberdade enquanto consciência da necessidade – o que corrobora o aspecto libertário na cena de caça. A ideia de que, ao fazer o desenho do objeto desejado, se teria uma antecipação do ato da captura do animal, seria uma forma de ter controle psicológico sobre uma natureza que muitas vezes se mostrava bastante hostil. Segundo Matheus Gorovitz:
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O desenho revela desejo do desejo, consciência do desejo consubstanciada graças à representação do desejo (...) Desejo de erradicar o perigo e psicologicamente se apropriar de sua coragem. Os autores desses desenhos estimavam a presa em cuja força poderosa mensurava seu heroísmo – a deliberação (livre) de enfrentar o perigo. A imagem evocada (é uma aparição) é sempre a negação da coisa. Significativamente, o objeto de evocação é explicitamente a redução da coisa real à condição de coisa possuída. (Gorovitz, 2006)
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Fig 11 - Arte paleolítica: Lascaux, França 15.000 a.C
Temas com indicações sexuais estavam relacionados com poder e dominação, sendo a ereção uma manifestação desse poder sobre o animal subjugado. Desenhos com caráter erótico são muito comuns em sociedades mais próximas da nossa historicamente, a diferença em relação à arte paleolítica é o caráter subversivo no momento em que a questão religiosa está presente. Em Pompéia, por exemplo, já temos registros de grafite com um conceito semelhante aos atuais, sendo vários com temas eróticos, mas também ligados à política (propaganda de imperadores) ou à propaganda de espetáculos e eventos. Em
todos os casos, os autores permaneciam no anonimato, mas as opiniões sobre seus desejos e aspirações, amores conquistados e perdidos, apoio e crítica aos políticos ou mensagens aos amigos, se tornam públicas. No caso dos temas sexuais, a semelhança que vemos com o período paleolítico é a associação do sexo com o poder. De acordo com Feitosa ( pag. 98), no período romano, os indivíduos e organizações sociais eram regidos por princípios de vigor e fecundidade, sendo que “a atuação em uma sociedade guerreira e conquistadora Revista CAU/UCB | 2017 | Explicando
consolidaria uma imagem de virilidade (...) associada à força física, à superioridade bélica, ao caráter e à sexualidade do cidadão romano”. Ainda seguindo esse raciocínio, Cantarella explica:
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Para os romanos, a virilidade não era apenas um acontecimento sexual, era uma virtude política. Criada na mais tenra idade na ótica da conquista e alcança a idade adulta na qual os cidadãos romanos devem dominar o mundo. Como nos surpreender (...) de terem conservado seu direito de impor a própria vontade a todos, também no campo sexual? Em relação à isso, a regra era ‘não se deixar submeter’. A sua virilidade (...) era uma virilidade de estupro”. (CANTARELA apud Feitosa, pag. 99)
O conceito de orientação sexual era diferente do que entendemos hoje. Como sexo estava associado ao poder, era a posição de ativo ou passivo que definia uma hierarquia, independente do sexo dos participantes – os servos e escravos estavam sempre numa situação passiva e o senhor, ativa. Por princípio, a mulher sempre estaria em uma situação inferior.
Fig 12 - Grafite de Pompéia. (Fonte: FEITOSA, 2005, pag. 154
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Como exemplo de grafite romano, é conhecido um poema escrito nos muros de Pompeia chamado de ‘Jogo da Serpente’, onde todas as quatro linhas do poema começam com a letra S. Traduzindo, seria algo como: “se qualquer um tiver a oportunidade de observar o jogo da serpente, no qual o jovem Sepumius mostrou toda sua habilidade, não importa que você seja um espectador do palco teatral ou um devoto dos cavalos, que seja você sempre equilibrado como ele é em todos os lugares.” (fonte: mortesubita.org – Quadrado Sator)
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Fig 13 - Pintura mural do Segundo Estilo da Villa de Publius Fannius Sinistor, Boscoreale, arredores de Pompeia. Meados do séc. I a.C.
Independente do tema, o grafite, por si, tem um caráter subversivo, que o diferencia do afresco: o ultimo é autorizado e muitas vezes feito sob encomenda, sendo realizado tanto em espaços externos quanto internos. Já os grafites são feitos nos espaços externos, sem autorização e normalmente têm num tom de denúncia ou desabafo. O aspecto decorativo não era uma característica própria do grafite na sua origem.
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Fig 14 - Jogo da Serpente. fonte: mortesubita.org – Quadrado Sator
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Muitos dos grafites de Pompéia, com frases rápidas e sintéticas, se assemelham mais às pichações contemporâneas do que ao nosso grafite propriamente dito1. Para desenhar ou escrever, os antigos usavam carvão ou objetos pontiagudos, fazendo um baixo relevo sobre a parede. De acordo com Gigante, “os grafites constituem uma notável fonte para o conhecimento da difusão da cultura literária fora dos círculos literários da elite”(Gigante apud Feitosa, pag. 80).
1 O nome “grafite” tem origem no italiano “graffito”, palavra usada para designar os desenhos elaborados ao ar livre em geral. A principal diferença entre o grafite e a pichação é que o grafite é baseado em figuras, enquanto a pichação é baseada em letras. (fonte: www.artistasnarua.com.br)
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No mundo contemporâneo, o tom de protesto continua, além da ideia de subversão que é própria do grafite, mas a manifestação de poder não é tão forte, a não ser em casos de pichação onde as diferentes gangues disputam território. Foi aproximadamente partir dos anos 60 que essa arte ficou bastante popular nos Estados Unidos, de onde saíram vários artistas do anonimato e da marginalidade para os grandes circuitos artísticos. Esse movimento de retirar a arte de dentro das galerias e valorizar as manifestações artísticas urbanas tornou a arte mais democrática e acessível para o observador e para o artista. Além disso, ao tirar o artista do anonimato, surge uma arte urbana mais formal e poética do que subversiva, se tornando
não só mais aceita entre uma maior parcela da população, como também saiu da ilegalidade e se institucionalizou, em muitos casos. Nesse sentido, o termo correto estaria mais para arte urbana do que o grafite propriamente dito, se aproximando mais dos afrescos da antiguidade do que daqueles grafites de Pompéia. O modo como a arte se relaciona com o público se torna mais direto e mais intenso dentro do espaço urbano. A diferença é que o expectador que vai até à galeria, já tem uma predisposição em “consumir” a arte. Nas ruas, muitas vezes esse expectador não está disposto e consequentemente não enxerga o objeto artístico – olha e não vê, já que o diálogo entre observador e o objeto é decorrente tanto da capacidade do objeto artístico em suscitar reações quanto do observador, se este está aberto ou se possui condições sensíveis para apreendêlo. Jacques Rancière, no texto “o expectador emancipado”(2012, pag.17), diz que a emancipação começa quando se compreende que olhar é também uma ação que transforma:
O espectador também age, tal como o aluno ou o intelectual. Ele observa, seleciona, compara, interpreta. Relaciona o que vê com muitas outras coisas que viu em outras cenas, em outros tipos de lugares. Compõe seu próprio poema com os elementos do poema que tem diante de si. (...) Assim, são ao mesmo tempo espectadores distantes e intérpretes ativos do espetáculo. (RANCIÈRE, 2012, pag.18) No momento em que o expectador sai de uma postura passiva e interage com a obra, sua interpretação se torna livre e a obra é recriada. Daí a ideia de que a obra não pertence ao artista, mas se torna viva e faz parte do mundo, sendo assim infinita, pois infinitas são as formas de interpretação.
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BIBLIOGRAFIA BENJAMIN, W. “Obras Escolhidas”. Martins Fontes: Editora Brasiliense, 1987. BOURRIAUD, N. “Estética Relacional”. São Paulo: Martins Fontes. 1998 FEITOSA, L. C. “Amor e Sexualidade: O Masculino e o Feminino em Grafites de Pompéia”. 2005. GARCIA, C. “Os Desígnios da Arquitetura: Sobre a Qualificação Estética do Desenho”. Tese de doutorado. Brasília: UnB, 2009. GOROVITZ, M. Anotações de aula. Universidade de Brasília, 2006.
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GARRAFFONI, R. S. “Contribuições da Epigrafia para o estudo do cotidiano dos gladiadores romanos no início do Principado”. In História, vol.24, n.1. Franca, 2005. OLIVEIRA, A C. “Neolíltico: Arte Moderna”. São Paulo: ed. Perspectiva, 1987. RANCIÈRE, J. “O Expectador Emancipado”. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
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O tratado assinado em Roma, em 1992, colocou fim a uma guerra civil de 15 anos e fez com que a capital se tornasse um lugar promissor. Porém, somente há menos de doze anos é que várias mudanças positivas aconteceram: espaços públicos ren-
83 Fernanda Moreira | Professora do CAU UCB
Maputo possui um pouco mais de um milhão de habitantes e quase dois milhões, considerando as cidades periféricas. O cotidiano das ruas exemplifica a luta pela sobrevivência: incontáveis vendedores ambulantes oferecem desde frutas e verduras até réplicas chinesas de marcas famosas de bolsas e calçados. É a atmosfera da economia informal que garante o sustento de milhares de famílias na cidade.
RELATO DE VIAGEM À MAPUTO, MOÇAMBIQUE
Figura 15 - Maputo, Moçambique.
Fascinante: essa é a palavra que define Maputo, capital de Moçambique. Talvez por sua localização à Costa do Oceano Índico e as vistas que você pode aproveitar em um passeio à pé, ou por sua arquitetura que guarda tesouros do Art Deco de 1930 e 1940 e o Modernismo dos anos 1950 e 1960, somada à simpatia e hospitalidade dos moçambicanos. Motivos não faltaram para eu me apaixonar por essa cidade na oportunidade de uma viagem em dezembro de 2016.
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ovados, centros comerciais se espalharam pelas ruas e avenidas, houveram várias aberturas para investimentos e para o turismo. Tudo isso fez com que Maputo se tornasse um lugar multicultural e multiétnico, com gente de vários países africanos, orientais e europeus. Infelizmente toda a riqueza gerada nos últimos anos não beneficiou as camadas menos favorecidas da população, intensificando a realidade de desigualdade social, aspecto que nós brasileiros conhecemos muito bem. Enfim, depois dessa pequena introdução do panorama geral de Maputo, irei compartilhar minha prazerosa experiência na maior e mais populosa cidade moçambicana.
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Cheguei em Maputo no dia 16 de dezembro e logo percebi que se tratava de uma cidade cheia de surpresas que merecia mais dias de permanência que o planejado. A vida noturna agitada e repleta de alegria misturando a originalidade cultural do país e muita música brasileira me deixou animada logo no primeiro dia. No tour que fiz pelo centro histórico pude conhecer os principais edifícios da cidade desde o início da capital, passando pelo Art Deco e o Modernismo Tropical de Pancho Guedes, o extraordinário arquiteto moçambicano protagonista do movimento moderno no país. Membro do Team 10, em seus trabalhos percebe-se forte influência dos mestres Horta, Gaudi, Wright, Louis Kan e Le Corbusier.
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Figura 16 - Maputo, Moรงambique.
85 Figura 17 - Maputo, Moรงambique.
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A primeira impressão de Maputo é de uma cidade bastante européia, especialmente pelos edifícios existentes na parte denominada cidade de cimento, onde portugueses entre outros europeus viviam muito antes do país se tornar independente. É importante salientar que nessa época a cidade era dividida em duas partes: a cidade de cimento onde os edifícios eram construídos com esse material e onde vivia somente a população branca, e a cidade de lata, local destinado à moradia dos negros que só podiam construir suas casas usando telhas de zinco como material de cobertura e vedação.
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Esse apartheid condicionou o traçado urbano da cidade e fez surgir a Mafalala, o bairro símbolo da capital e berço de artistas, intelectuais e líderes políticos em Moçambique. Atualmente o bairro tem mais de vinte mil habitantes e uma vida ativa e alegre, diferente dos tempos de segregação que acabou somente em 1975. Porém a estrutura original do bairro segue com suas características marcantes: ruas labirínticas de terra batida delimitadas por casas feitas em madeira e zinco, repleta de problemas de infraestrutura e habitação. É o local perfeito para perceber os traços históricos e políticos comuns aos países de colonização portuguesa, cristalizado na memória e na identidade do lugar. Segue alguns registros dessa viagem inesquecível e especial.
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Figura 18 - Maputo, Moรงambique.
87 Figura 19 - Maputo, Moรงambique.
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Figuras 20 e 21 - Maputo, Moรงambique.
Figuras 22 e 23 - Maputo, Moรงambique.
A definição de EMAU - Escritório Modelo de Arquitetura e Urbanismo é estabelecida pela FENEA (Federação Nacional dos Estudantes de Arquitetura e Urbanismo do Brasil). O escritório - sem fins lucrativos - visa a melhoria da Educação e da formação profissional, através da vivência social propiciada pelo contato direto com a população e da experiência teórica e prática como um todo. 1 Texto elaborado à partir de material produzido pela FENEA. Disponível para download em:http://www.fenea.org/poema. (Último acesso: 01/05/2017)
Implementando um Escritório Modelo de Arquitetura na UCB
MAS O QUE É UM ESCRITÓRIO MODELO?1
EIXOS
Figura 24 - Projeto de Arquitetura 6 de estudantes do CAU/UCB.
Em 2016 o curso de arquitetura da UCB foi selecionado no edital 03/2016 - Demanda espontânea da FAP/DF (Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal) com o projeto intitulado: “Implementando um EMAU - Realização de atividades de pesquisa e extensão, atendendo a demandas de comunidades locais, através da implantação de um Escritório Modelo de Arquitetura e Urbanismo.” A execução do projeto aprovado servirá para viabilizar a implementação de um Escritório Modelo no Curso de Arquitetura e Urbanismo da Católica.
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Os EMAUs não desenvolvem atividades profissionais; apenas atividades acadêmicas com interesse didático dentro das Universidades. A Responsabilidade Técnica sobre os projetos elaborados pelos EMAUs segue legislação reguladora dos exercícios das profissões. Os trabalhos desenvolvidos dentro dos EMAUs são acompanhados e orientados por professores universitários, que possuem responsabilidade técnica e legal para os projetos.
• Ser um projeto de extensão universitária;
Têm-se, como eixo norteador ético, os quatro postulados da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) e União Internacional de Arquitetos para a educação em Arquitetura e Urbanismo:
• Atender a populações sem possibilidades de ter acesso ao trabalho do arquiteto e urbanista;
• Garantir qualidade de vida digna para todos os habitantes dos assentamentos humanos; • Uso tecnológico que respeite as necessidades sociais, culturais e estéticas dos povos; • Equilíbrio ecológico e desenvolvimento sustentável do ambiente construído; • Arquitetura valorizada como patrimônio e responsabilidade de todos. Os princípios do EMAU, definidos no Projeto de Orientação a Escritórios Modelo de Arquitetura e Urbanismo (POEMA) compreendem:
• Propiciar a melhoria da formação acadêmica; • Retornar à comunidade acadêmica o conhecimento adquirido em suas atividades; • Difundir a atividade de arquitetura e urbanismo, complementando e não competindo com o mercado profissional;
• Ser de livre participação a todos os estudantes de arquitetura e urbanismo e outros interessados, sendo um espaço de debate e produção aberto a toda a sociedade; • Proporcionar o trabalho coletivo, visando uma gestão democrática e horizontal; • Estabelecer um processo projetual participativo, promovendo a mobilização social; • Garantir o trabalho integrado a outras áreas do conhecimento; • Ser autônomo em relação a sua gestão e seleção de projetos e orientadores; • Ser isento de remuneração pelos beneficiários; • Garantir seu funcionamento e continuidade;
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VIABILIZANDO O EMAU NA UCB O projeto para implementar o EMAU, aprovado na FAP, tem como objetivo geral: ‘Integrar atividades de pesquisa e extensão na área de Arquitetura e Urbanismo, atendendo a demandas sociais de comunidades locais, através da implantação de um Escritório Modelo de Arquitetura e Urbanismo’. Seus objetivos específicos são: 1. Contribuir com o processo de estruturação e implantação do EMAU da UCB; 2. Mapear localidades e equipamentos comunitários que necessitem de projetos de intervenção no âmbito da proposta do EMAU. 3. Realizar pesquisas acadêmicas envolvendo o processo de projetação, materiais e técnicas construtivas; 4. Integração com outros projetos de pesquisa e áreas acadêmicas. Através de propostas de intervenção o aluno aplica conhecimento adquirido nas disciplinas exercitando e promovendo a interdisciplinaridade.
7. ‘Mapeamento’ de parcerias (acadêmicas, econômicas, sociais, etc.). 8. Organização de mutirões envolvendo comunidade acadêmica e comunidade local; com a finalidade de despertar, desde o primeiro contato com a universidade, a pratica social do Arquiteto e Urbanista. 9. Sistematização das atividades realizadas. O material produzido dessa sistematização deverá propiciar a elaboração de artigos científicos. A primeira etapa consiste em definir locais de atuação. O levantamento desses locais ocorrerá de forma contínua, durante o período de vigência do projeto. Serão mapeadas localidades e equipamentos comunitários que necessitem de projetos de intervenção no âmbito da proposta do EMAU – como escolas, creches, asilos, praças, parques e outras demandas de intervenções urbanas em áreas carentes. A comunidade deverá proporcionar facilidade de comunicação e possuir uma capacidade organizativa com coordenadores ou lideranças.
5. Auxiliar na formação profissional dos alunos; propiciando aos envolvidos o entendimento de aspectos gerais da profissão como ética profissional, organização, responsabilidade, gerenciamento e aspectos legais do projeto de arquitetura. 6. Elaboração de propostas de intervenção arquitetônicas e urbanísticas segundo demandas da comunidade. Revista CAU/UCB | 2017 | Acontece no CAU
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Deverão ser prioritários locais: • Situados próximos à UCB (em Taguatinga, Ceilandia, Areal, Samambaia e imediações); • Carentes, com demandas urgentes e comunidade organizada; • Equipamentos Comunitários ligados às Regiões Administrativas visando o desenvolvimento de parcerias e a continuidade das ações. Os trabalhos a serem desenvolvidos nas áreas de intervenção compreendem: • Pesquisa de exemplos de ações e/ou intervenções de iniciativa popular em situações similares;
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• Levantamento de problemas locais para definir as diretrizes de intervenção envolvendo a mobilização da comunidade (reuniões; entrevistas, etc.); • Projeto de intervenção arquitetônica e/ ou urbanística segundo demanda local. No desenvolvimento da proposta poderá ser realizada integração com outros projetos desenvolvidos na UCB; • Mapeamento de possíveis parcerias para viabilização das propostas, como administrações de Regiões Administrativas (RA’s), demais órgãos públicos, comércios, instituições privadas, etc. • Definição de um cronograma de ações (curto, médio e longo prazo) para as melhorias locais. A curto prazo corresponde o Revista CAU/UCB | 2017 | Acontece no CAU
planejamento de um mutirão a ser desenvolvido no início do próximo semestre letivo, durante as atividades de acolhida aos ‘calouros’. • Mutirão envolvendo comunidade local e comunidade acadêmica (trote solidário) a ser desenvolvido no local, coordenado pelos alunos bolsistas. • Registro documental (fotos/audiovisual...). Deverá ser realizado durante todo o processo e envolver outras áreas e/ou projetos de pesquisa da universidade com fim de publicação. Portanto, o trabalho aprovado junto à FAP/DF compreende um projeto piloto, terá duração de um ano e contribuirá na estruturação e consequente continuidade do EMAU. Serão desenvolvidas atividades de projetos no âmbito da atuação profissional, amparadas por estudos e pesquisas específicas, com caráter comunitário/ social advindas de sugestões de demandas da administração pública e comunidades locais. ESTABELECIMENTO DE PARCERIAS As parcerias na implantação do escritório modelo podem ser classificadas basicamente em acadêmicas, econômicas e sociais.
As parcerias acadêmicas envolvem a comunidade acadêmica da UCB e/ou outras instituições de ensino e pesquisa. Na UCB, pretende-se envolver outros projetos de pesquisa – com atuações nas áreas de arquitetura, engenharia, meio ambiente, etc. - que possam interagir com as atividades desenvolvidas pelo EMAU ao longo das etapas. Também são parcerias potenciais as áreas de documentação audiovisual da universidade para o registro e divulgação da pesquisa.
• Elaboração de propostas de intervenção, arquitetônicas ou urbanísticas, que atendam as demandas das localidades beneficiadas;
As parcerias econômicas e sociais visam o estabelecimento de redes de parcerias em projetos sociais. Portanto, um dos itens da pesquisa é o mapeamento das mesmas para viabilização das propostas, como administrações de Regiões Administrativas (RA’s), demais órgãos públicos, comércios, instituições privadas, etc. O envolvimento das RA´s visa a continuidade das propostas elaboradas pelo EMAU, para equipamentos e áreas públicas, nas áreas de abrangência das mesmas. O envolvimento de instituições privadas e comerciais busca envolve-las em atividades (como os mutirões) que tragam benefícios sociais às comunidades.
• Integração com outros projetos de pesquisa e áreas acadêmicas da UCB;
RESULTADOS ESPERADOS NA EXECUÇÃO DO PROJETO JUNTO À FAP
• Sensibilização e envolvimento dos novos estudantes do curso de Arquitetura para questões sociais e demandas da profissão;
• Estruturação e consolidação do EMAU da UCB bem como o empoderamento dos alunos envolvidos na construção deste;
• Potencialização da capacidade organizativa das comunidades envolvidas; • Aprendizado profissional e acadêmico dos alunos envolvidos; • Estabelecimento de redes de parcerias em projetos sociais;
• O mapa e cadastro de localidades e equipamentos comunitários que necessitem de projetos de intervenção no âmbito da proposta do EMAU; • Pesquisas acadêmicas envolvendo processo de projetação, materiais e técnicas construtivas; • Realização de mutirões, envolvendo comunidade acadêmica e comunidade local, atendendo a demandas práticas e imediatas das áreas;
• Sistematização das atividades realizadas e do material produzido, visando a elaboração de artigos e outras produções.
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SITUAÇÃO ATUAL A equipe de alunos foi selecionada via processo seletivo eletrônico com os estudantes do curso de arquitetura da UCB. A grande procura representou um indicativo do interesse dos educandos por atividades de extensão junto à comunidades. Outro ganho no processo se deu com a seleção de alunos da equipe nos projetos de iniciação científica da UCB. Cada um deles desenvolverá pesquisa acadêmica ligada ao processo de implementação do escritório modelo. As pesquisas representarão um aporte no envolvimento dos alunos de graduação em arquitetura e urbanismo com a pesquisa científica.
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Em relação à proposta inicial do projeto junto à FAP, houve um acréscimo na equipe e nas atividades . De dois para quatro professores, orientando quatro equipes coordenadas pelos quatro alunos bolsistas. As equipes serão de cinco alunos compreendendo: (I) bolsistas da FAP/DF, (II) bolsistas do programa de iniciação científica/UCB e, alunos voluntários com (III) horas complementares junto ao curso e/ou à (iv) disciplina de Estágio Supervisionado. Quanto ao mapeamento de parcerias, já estão sendo construídas no âmbito da administração pública. Compreendem atualmente: a SEGETH, a CODHAB e a RA do Guará. Devido ao andamento das reuniões junto aos setores governamentais, foram definidas áreas para elaboração de projetos comunitários no Guará e na Revista CAU/UCB | 2017 | Acontece no CAU
Ceilândia (Sol Nascente). Os projetos arquitetônicos comunitários a serem desenvolvidos compreendem: feira de artesões (Guará), Centro comunitário, cultural e social (Sol Nascente). Os projetos do Sol Nascente ainda contemplam a possibilidade de reaproveitamento estrutural de vigas de cobertura de estacionamento em discussão com a Câmara dos Deputados Federais. O mapeamento de áreas para desenvolvimento das atividades do mutirão encontra-se em processo. A dificuldade maior está em definir demandas que envolvam uma interação forte com a comunidade local. Locais como o Albergue, CRÁS e casas de apoio, não possuem boa integração com a comunidade do entorno. As demandas locais para elaboração de projetos arquitetônicos e atividades de intervenção como o mutirão são muitas. Porém, devido às próprias fragilidades sociais das comunidades locais, há dificuldade de integração ou de organização das mesmas. Dentre as parcerias internas do curso estão as disciplinas ‘Estágio Supervisionado’ e ‘Projeto de Atendimento Comunitário – PAC’, além do apoio da ENTRE e das disciplinas de Computação Gráfica. Devido à estreita relação com PAC, o mapeamento de localidades e equipamentos comunitários que necessitem de projetos de intervenção auxiliará no desenvolvimento dos trabalhos da disciplina. E m bora as atividades de projeto, envolvendo projeto arquitetônico e mutirão sejam as atividades fim, outras atividades meio
para a implantação do EMAU estão sendo desenvolvidas pelos alunos. Para tanto foram estabelecidas equipes de trabalho internas. Com o auxílio da ENTRE , os setores de atividades definidos para as equipes foram: administrativo, gestão de pessoas, financeiro, projetos e marketing. O regimento interno e o estatuto estarão sendo construídos ao longo do desenvolvimento das atividades meio e fim. Duas atividades meio já foram desenvolvidas por essas equipes: o modelo de diagnóstico e a definição da identidade do EMAU. Cada EMAU tem uma identidade própria com nome e logomarca. Num processo rico de criação, elaborou-se a identidade do EMAU da UCB. Auxiliados pelos professores de computação gráfica do curso, os alunos definiram o nome e a logo do escritório modelo. Considerando a carga simbólica dos eixos do Plano Piloto na identidade de Brasília, bem como os diversos eixos de atuação - tanto na localização das RA’s quanto no sentido de possibilidades de projetos sociais - instituiu-se o nome “EIXOS” para o escritório modelo da UCB.
REFLETINDO... A construção do EIXOS - o escritório modelo do curso de arquitetura da UCB - vem ao encontro da necessidade de realizar a Extensão Universitária compreendida como parte integrante da Pesquisa e do Ensino de graduação. Na linha dos processos de pesquisa-ação, os alunos integrantes do EIXOS estarão desenvolvendo atividades práticas e se capacitando ao mesmo tempo. As interações com as comunidades envolvidas propiciarão também uma troca de saberes e formação mútua. O escritório modelo será uma importante ferramenta pedagógica para melhoria da educação e da formação profissional dos estudantes no curso de arquitetura da UCB. Atendendo a demandas reais de regiões carentes do Distrito Federal, busca-se, na prática de arquitetura e urbanismo, o comprometimento com as camadas excluídas de nossa sociedade.
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Figura 25 - Professores e estudantes participantes do projeto.
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Centro Comunitário P-sul Projeto de Diplomação II Orientador: Marcílio Sudério Aluna: Juliane Matos e Sousa A edificação é harmonizada pelos espaços externos, integrados através do paisagismo funcional e de fácil manutenção. Jardins de chuva, canteiros pluviais e biovaletas garantem o escoamento e absorção adequados das águas da chuva, sem, no entanto, deixar de lado o aspecto estético. As espécies selecionadas, de sutil rusticidade, se harmonizam com a taipa de pilão, material escolhido como principal método construtivo. Além dos jardins, as áreas externas também abrigam quadra poliesportiva com vestiários integrados, playground, praça, área para piqueniques e para a prática de exercícios, estacionamento paisagístico, teatro de arena e espaço externo integrado ao café e livraria.
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Terminal Rodoviário - Eixos PA6 - Grandes Vãos Orientadora: Milena C. S. Lannoy Alunos: Daniela Barbosa Caparelli, Gabriel José Araújo Costa e João Pedro Freitas Lau Um dos principais partidos do projeto foi em relação ao pedestre e aos fluxos já existentes no local. A implantação do terminal tem como objetivo principal o baixo impacto visual na área, pois se trata de um grande terminal, com amplas dimensões. Uma das principais estratégias foi semienterrar grande parte das áreas, fazendo com que a cobertura tenha destaque em relação ao pedestre. O desenho da cobertura foi inspirado nos “caminhos dos desejos”, que seriam os rastros de fluxos dos pedestre que já
existem no local da implantação do projeto. Trata-se de uma grande casca de concreto arqueada, com a possibilidade do pedestre acessar o ponto mais alto da cobertura e poder aproveitar a paisagem no mirante.
Biblioteca Pública do Gama Projeto de Diplomação II Orientadora: Carolina Borges Alunos: Roberto Silva Rodrigues Filho
O conceito volumétrico da proposta baseou-se no periquito, um pássaro típico da região Centro Oeste do Brasil. Desde o surgimento da cidade, os primeiros moradores, junto a administração optaram pelo periquito para ser o animal representante da cidade. Com base nessas informações, o conceito surgiu a partir da análise biônica do periquito, levando em consideração as principais características:
- Eixos principais: Observando o ponto de equilíbrio do periquito. - Geometria básica: Formada a partir do contorno externo do periquito observando a composição e as características únicas do periquito. - Estudo de proporção: As relações de proporções do objeto estudado, onde a cabeça do periquito tem a metade do tamanho de seu corpo, ou seja, o próprio corpo do pássaro mesmo com formas orgânicas e naturais, segue uma relação matemática de proporção.