2
Revista CAU/UCB | 2019 |
Nº10-2019
Brasília | Outubro | 2019 | ISSN 2359-0084
ISSN
Nº10-2019
EDITOR CHEFE CONSELHO EDITORIAL
Marcio N. de Oliveira Aline Zim | Carolina da R. L. Borges
PROJETO GRÁFICO
Daniel C. Brito | Thiago P. Turchi
COLABORADORES
Capa: Daniel C. Brito | Thiago P. Turchi | Editoração eletrônica: | André Gruhn | Perfil: Carolina Borges | Artigos: Rogério Novakoski | Bárbara R. Tavares | Thalita Campelo | Ana Paula Caramaschi | Eduardo José Magalhães | Leonardo Oliveira | Stephany R. dos Santos | Explicando: Frederico Rosalino | Acontece no CAU: Daniel Brito | Milena Delannoy | Thiago Turchi | Aline Zim | ArqCartoon: Daniel Brito | Thiago Turchi
Brasília | Outubro | 2019 | ISSN 2359-0084
Revista CAU/UCB | 2019 | Editorial
1
PERFIL ARQ. PAULO DE MELO ZIMBRES (IN MEMORIAN)
04
ARTIGOS 1- A ARQUITETURA DAS PRIMEIRAS CASAS MODERNISTAS DE SÃO PAULO 2- A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE: LIÇÕES SOBRE A ARQUITETURA SENSORIAL 3- O REDESENHO DA ASSISTÊNCIA NEONATAL NO OLHAR DA ARQUITETURA 4- A COMPLEXIDADE ESPACIAL NA OBRA DE TADAO ANDO 5- FORMA URBANA E QUALIDADE ESPACIAL - ESTUDOS SOBRE AS POSSIBILIDADES DE INTERVENÇÃO NO CENTRO DE IMPERATRIZ, MA
18
3
EXPLICANDO SISTEMAS CONSTRUTIVOS PRÉ-FABRICADOS
128
ACONTECE NO CAU 1- DIÁLOGOS DO CAU-DF 2- PARTICIPAÇÃO DO CAU NO 2º BRASÍLIA CIDADE DESIGN 3- VIAGEM DO CAU PARA SÃO PAULO
140
ARQCARTOON VIDA DE ARQUITETO
148
Revista CAU/UCB | 2019 | Sumário
Carolina Borges | Professora do CAU/UCB
5
ENTREVISTA ARQ. PAULO ZIMBRES
Fig. 1 - Arq. Paulo Zimbres - Fonte: www.correiobraziliense.com.br
Nota da Entrevistadora (Prof. Carolina Borges): Paulo Zimbres nasceu em Ouro Preto e se formou em Arquitetura e Urbanismo na USP em 1960. Radicado em Brasília, foi professor e arquiteto da UnB, criador do projeto arquitetônico da reitoria dessa Universidade e dos projetos urbanos de Águas Claras (DF), do Setor Noroeste no Plano Piloto e do Jardim Mangueiral (DF). Os prédios escolares têm lugar de destaque no currículo do arquiteto. Projetou duas bibliotecas na Universidade Federal de Uberlândia e diversos edifícios universitários em várias partes do Brasil. Paulo Zimbres faleceu em Brasília em 3 de junho de 2019. Esta conversa com Zimbres aconteceu em meados de maio de 2003, num café aqui em Brasília. Na época, eu estava desenvolvendo uma pesquisa sobre campi universitários e, como Zimbres tinha uma vasta experiencia em projetos e obras ligadas à arquitetura universitária, pedi a ele algumas informações. Mesmo estando com a agenda cheia, o arquiteto gentilmente aceitou encontrar essa ainda estudante universitária.
Revista CAU/UCB | 2019 | Perfil
CAROLINA: Sr. Paulo Zimbres, bom dia! Em primeiro lugar, gostaria de ouvir um pouco sobre o seu método de trabalho, partido e conceito arquitetônico, especialmente nos projetos universitários. PAULO ZIMBRES:
6
Entre 1955 e 1960, quando eu fiz o curso de arquitetura, os arquitetos paulistas projetaram a cidade universitária e foi a primeira vez que nós sentimos como uma categoria se preparou para fazer um campus presidido pela cabeça do arquiteto. Havia um conceito de campus com espaço verde entre os prédios, uma receita que tomou conta das universidades federais. Todos os campi daquele período tinham como conceito, prédios entre áreas verdes. Havia duas razões para que isso acontecesse: primeiro para dar tranquilidade á área de estudo, segundo, porque existia no urbanismo esse conceito de zoneamento – locais para aulas, centro de vivência, etc. Começava a surgir um arremedo da cidade modernista no desenho do campus. Não se falava muito ainda em urbanidade dentro da educação, passando a aparecer isso depois. O Fundão é um exemplo da explosão, parece que houve um grande “boom”. Você vê um prédio num local e outro com dois quilômetros de distância, é o paraíso do estuprador, é a insegurança total no campus, um lugar horrível em termos de proximidade. Havia também umas coisas meio megalômanas: a escola de Revista CAU/UCB | 2019 | Perfil
arquitetura, que foi projetada por Jorge Moreira, é uma escola sensacionalmente grande, parecia que a nossa profissão era a coisa mais importante do Brasil. Mas o Jorge Moreira era grandão, então parecia ter a proporção do arquiteto. A escola era tão grande que ele conseguia fazer ateliers para imitar as condições de trabalho de um escritório de arquitetura. Então tinha um tamanho tal para escritórios, salas de reunião, ... Tinha um monte de escritorinhos, num prédio altíssimo, com jardins do Burle Marx… A bateria de elevadores era gigantesca... O Fundão todo era meio megalomânico. Aí tivemos a época de vacas magras que fez tudo isso reduzir um pouco em matéria de qualidade. Só para resumir, na escola de arquitetura do fundão, funciona hoje a reitoria da Universidade, departamentos de não sei o que, e o de arquitetura também, num prédio que é meio desproporcional. O fato é que, naquela época, se pensava muito num campus em um lugar rarefeito e muito espaço para os prédios crescerem - prédios isolados podem crescer sem problema. CAROLINA: A UnB também tem essa configuração de prédios isolados e muito espaço aberto entre eles…. O projeto de Lucio Costa para a UnB era semelhante ao da UFRJ?
PAULO ZIMBRES: O projeto do Lúcio Costa para o Fundão era diferente: tinha uma estrutura mais articulada, com um certo tom de urbanidade, com uma escala mais gregária. Na UnB ele fez um projeto assim: um campus na beira do lago com 460 hectares, eu acho, com os prédios das ciências, quatro prédios, num miolo, a aula magna e reitoria numa praça maior, e serviços gerais atrás, onde ia funcionar as oficinas e tal. A habitação dos estudantes e a colina também foram previstos.
7
Fig. 2 - Lucio Costa. Implantação para a Cidade Universitária da UFRJ. Fonte: SCHLEE, A. A Praça Maior in 9 seminário docomomo brasil, 2011.
Revista CAU/UCB | 2019 | Perfil
8
Revista CAU/UCB | 2019 | Perfil
700 metros é o tamanho de uma cidade do interior de 15.000 habitantes com uma rua principal, onde se organizam igrejas, casas, etc. Pena que a morfologia não é parecida, pois é um grande artefato construído, com vigas e tal. Tem aquelas entradas, mas que são meio rígidas, eu acho. Não tem praças, remansos, não entra uma luz ali ... É meio estanque, mas é uma bela contribuição no sentido da coisa gregária, e passou a ser um dos melhores espaços acadêmicos que eu conheço. A SBPC funciona lá, você precisa ver a riqueza daquele espaço com os cientistas brasileiros lá dentro discutindo o futuro da ciência... é uma coisa sensacional. Mas aí, aquela coisa que era para ser provisória, também foi um espaço muito rico. Você vai encontrar aquelas “ruinhas”, aqueles predinhos baixinhos – onde tem a música, o IdA [Instituto de Artes]. Tem um prédio do Oscar com o Lelé sensacional, que é onde funciona o SEPLAN. É uma coisa minimalista da maior inteligência. Um muro quase no subsolo que não tem janela para fora. Mas ele tem jardins internos que asseguram toda a relação com a luz e com
Fig. 3 - Lucio Costa. Implantação para o Campus Darcy Ribeiro. Fonte: SCHLEE, A. A Praça Maior in 9 seminário docomomo brasil, 2011.
Foi lançada essa proposta e então montou-se a equipe de arquitetura: o Oscar era o líder maior, o Lelé era importante peça na equipe, e havia também muitos outros bons arquitetos, que já morreram. O Alcides da Rocha Miranda fez o primeiro prédio, a Faculdade de Educação – o prédio mais elegante que eu acho no Campus, só que está deteriorado. O Oscar e o Lelé trabalharam no sentido de inovação. O Oscar inovando no desenho. Aqueles quatro prédios de ciências (do projeto de implantação do Lucio) se reuniram todos numa megaestrutura. Acho que foi uma medida bonita, abriu uma coisa importante na cabeça da gente, porque ele fez a rua principal mais bem construída do mundo. Aquela coisa no meio que todo mundo circula, coberta com um jardim... nunca se fez uma rua desse jeito. E aí ele pôs de um lado um monte de auditórios e do outro lado, salas e laboratórios, ... E de repente ele deu um conceito de compacidade, de urbanidade para coisa, embora não tivesse percebendo muito – ele estava achando que estava fazendo um prédio, só que um prédio de 700 metros.
a natureza, com toda a privacidade, com o mínimo uso de vidro. Você tem ambiente para trabalho, sala de reunião, auditório, … só tem um núcleo de banheiros e serviços. É uma coisa sensacional… essa malha tradicional de pequenas ruas é o lugar onde viveu a universidade por muito tempo. Foi o lugar de efervescência, de revolução, de prisão, de violência, ... tudo aconteceu naquele quadrilátero, era quase como uma cidadela urbana. CAROLINA: E como foi a sua experiência como arquiteto do CEPLAN em pleno regime militar? PAULO ZIMBRES: Foi interessante porque nossa equipe era heterogênea e tínhamos uma promessa, um compromisso, de discutir todos os projetos juntos. Ninguém projetava isoladamente, a gente tinha que expor o projeto ao debate com alunos e professores, e trocávamos farpas, ideias... Era muito violento porque tinha um pouco de vaidade misturando tudo. Era difícil o arquiteto achar que autoria é uma coisa de menor importância que o trabalho coletivo ... isso era difícil de se implantar na cabeça de certas pessoas. Eu fui coordenador por algum tempo, sofri pra burro, apanhei de tanta vontade de discutir tudo abertamente, mas não só eu, muita gente compartilhava e me ajudava nessa tarefa bonita de debater. Com isso, eu tive muitas ideias de como continuar o campus. Então um pensava assim,
outro assado, e a biblioteca foi a primeira intervenção maior. Depois acabou ficando na minha mão a reitoria. Era um projeto muito delicado. O Oscar tinha um projeto de reitoria, de praça maior e de biblioteca. Quanto ao desenho da biblioteca, a turma não deu muita bola não, até tinha um sentimento meio arrogante “Ah, agora nós chegamos aqui, demos um chega pra lá e vamos fazer uma biblioteca, vamos mostrar como é que se faz”. Eu não gostei muito da conversa. A biblioteca do Oscar era um quadradinho elegante, levantado do chão, com uns brises... Era um prédio bonito, mas não cabia biblioteca ali dentro. O Oscar fazia a coisa primeiro, o partido geral, e depois tinha que enfiar o programa lá dentro de algum jeito. A reitoria era um gabinete isolado pequenininho, tinha um prédio burocrático do lado e a aula magna – aquelas ideias que ele tem dos grandes momentos e tal. Essa praça tinha uma certa majestade para coisas excepcionais. Aí chegou o Pedro Paulo na nossa equipe em 1968 e inventou um grande espaço livre de uns 400 metros e pôs ali o restaurante universitário e o centro de vivência, e tentou trazer a praça para o cotidiano da vida acadêmica. E não deixar só para grandes eventos, para os reitores fazerem aulas magnas, mas para entrar no cotidiano. Mas ela era ainda um pouco longe do ICC, não estava integrada. E aí surgiu um problema político – o nosso trabalho vive de perigo em perigo, de batalha em batalha, de esclarecimentos e negociação. Revista CAU/UCB | 2019 | Perfil
9
Logo quando a gente abriu a escola de arquitetura, veio uma instrução expressa do Governo Federal e da ditadura de que não queria que a área de artes evoluísse muito. Cinema era proibido. Teatro? Nem pensar. Música? Olhe lá, só se for para tocar música “comportadinha”. Pintura? Deus me livre, só arquitetura e tecnologia. Eles tinham uma orientação muito precisa de como seguiria a área de artes, a área de expressão, de pensar e tal. Então a gente enfrentou essa batalha, e nesses centros de vivência, eu tive ocasião de defender muito e apanhei muito também porque até meus colegas me tiraram o tapete no dia em que eu estava defendendo.
10
A reitoria dizia: “Não! O restaurante universitário é o foco de todas as rebeliões”. O ano era 68, “então tem que ser longe, eu quero o restaurante lá no Centro Olímpico”. Queriam pôr lá na beira do lago. Talvez hoje até seria uma boa né… Aí, o reitor Azeredo perguntou para um colega meu: “O que você acha?” E ele respondeu: “Eu acho que o Zimbres está meio radical, o senhor é que sabe”. Então passou uma fase do pessoal comendo na mão da repressão. Aí eu consegui, por último, colocar o restaurante ainda no centro, atrás do minhocão, perto daquele burburinho tradicional, em vez de pôr lá na beira do lago. Mas é um lugar distante, porque eu queria colocar na praça maior, como queria o Pedro Paulo. Então são essas escaramuças que foram dando um desenho para o Campus.
Revista CAU/UCB | 2019 | Perfil
CAROLINA: O prédio da reitoria é um dos edifícios mais belos e instigantes do campus, e também da arquitetura moderna brasileira. Como foi o processo de projetação? PAULO ZIMBRES: A reitoria é um prédio que não é finito. O que eu fiz: bolei um prédio que seriam lâminas separadas por uma distância que dava para fazer rampas entre elas. Eu trouxe um pouco de um jeito de pensar arquitetura de São Paulo. E essas lâminas, depois, poderiam ser continuadas, e como a rampa faz um entrepiso. Você fazendo um corte, podia-se continuar em declividade do minhocão até o lago. Podia-se, com essa superposição, utilizando esse recurso e ir escalonando um pouco o terreno, fazer pilotis, rampas, mas fazer também alguns acidentes – um auditório pendurado no meio. Eu achei importante pendurar, vou explicar porque: isso permitiria, com esses pilotis, colocar um lago embaixo, com aquela água entrando ... a relação com a natureza. Então tinha esse metaprojeto, essa metalinguagem. Como um oásis gostoso, água e jardim ... teria uma sombrinha. A sensação que a gente tem no campus andando é de calor, e quando se entra na reitoria, está agradável. Eu e um casal de sabiá que todo ano ia lá tinha a mesma sensação. Eles iam procriar todo ano, era uma coisa bonita. O andar de cima era um pouco menor e se projetava para fora, mas tinha um rasgo no meio. Ele fazia sombreamento nas
“Logo quando a gente abriu a escola de arquitetura, veio uma instrução expressa do Governo Federal e da ditadura de que não queria que a área de artes evoluísse muito.” Paulo Zimbres
partes de baixo. O prédio era desforme, era também não finito para cima, não era contido. E ali desciam as gárgulas e os pilotis.
12
Fig. 4 - Pátio interno do prédio da Reitoria da UnB. Fonte: https://www.40forever.com.br/visitando-brasilia-em-dois-dias-parte-2/unb-reitoria-1/
Então eu imaginei que isso pudesse fazer, junto com o minhocão, uma espécie de foro. E fazer a medicina por perto ... e a rua do minhocão ficaria potencializada. E a rua mais bucólica, perto do lago, com a aula magna ... e compactando o campus, se tornando bem urbanita mesmo. Era um conceito que eu queria trabalhar. Mesmo que incomodasse os autores da biblioteca, porque eu ia colocar umas coisas encostadas no prédio deles, e eles não gostaram. Quem raciocina muito como arquitetura objeto, se preocupa muito com fotogenia Revista CAU/UCB | 2019 | Perfil
e pouco com perspectiva. Então é muito mais a fotografia que interessa ao cara do que um prédio conversar com outro. Essa coisa de vários prédios de várias gerações conversando, encostando, pedindo licença, fazendo sombra ... eu queria fazer uma coisa meio assim, envolvendo o que estava lá. A reitoria não engolia muito esse negócio ainda. Então, uma outra geração de arquitetos mais chegados ao poder aceitou fazer uma releitura do campus: “não, o eixo na verdade é esse aqui (uma calçada que passa perto do restau-
rante, que nós tínhamos inventado como último recurso). E aí puseram a faculdade de medicina, de direito... E perdeu-se um pouco esse conceito. Era muito mais desagregador e até hoje esse eixo é vivo por causa desse quarteirãozinho histórico. Então eu estou contando uma historinha que mostra bem umas batalhas sobre um entendimento do que é o campus. CAROLINA: Em relação aos outros projetos de faculdades pelo Brasil – Goiânia, Uberlândia… nos conte um pouco sobre esses projetos. PAULO ZIMBRES: Quando eu cheguei em Goiânia, a reitora da UFG da época queria sair de lá e investir lá no Campus de Samambaia. Mas o pessoal da cidade achava que não, que tem muito patrimônio importante em Goiânia e que tinha ficar na praça universitária, pois é o lugar natural, e me chamaram para defender essa tese. E eu fiz um projeto em maquete, desenhei a praça como quem veio para ficar. Tinha muito vazio e tal e a Católica foi respeitada, fazendo uma parceria bonita para organizar isso tudo. E se, no futuro, houvesse limitações, se começaria a comprar os prédios vizinhos. Fazendo um centro de pós-graduação, centro de informática, “pontezinhas” passando pelas ruas, criando um tentáculo maior e fazendo um campus expressivo.
Eu sempre trabalhei com essa mania de urbano. Agora, o que acontece, são as Federais sem recursos, o dinheiro público é canalizado para as privadas, principalmente as confessionais – Católica e Metodista têm dinheiro do BNDES. Hoje acontece coisas mais importantes nessa questão urbana-rural. As privadas todas são urbanas praticamente, pois na verdade o mercado está aqui. O pessoal trabalha na cidade, e antes de ir para casa, vai para a Universidade. É um “roteirinho” clássico. Então, aconteceu a urbanização daquelas que são avaliadas pelo mercado. E aquelas que tinham que se justificar para o mercado, que tinham que estar perto do aluno, começaram a entender que deveriam revitalizar um prédio antigo. Numa região de São Paulo, por exemplo, já instalaram uma bela universidade num lugar que antes era deteriorado, tá ficando espetacular. Essas coisas estão acontecendo num ritmo alucinado. Chegou uma pessoa do IESB de Brasília e falou: “Paulo, eu te dou o projeto da minha Universidade se você me entregar um prédio com trinta salas de aulas em quatro meses.” Eu respondi: “Olha, vou fazer o seguinte, vou conversar com uma construtora. Para eu poder te responder isso, eu tenho que te indicar a construtora e você tem que contratar, não pode nem discutir”. Eles têm dinheiro, mas agora tá dando inadimplência adoidado, tá problemático. Na época estava o “boom”. E disse pra eles: “Mas é o seguinte, a semana que vem eu tenho que dizer pra vocês onde é a escavação Revista CAU/UCB | 2019 | Perfil
13
e vocês tem que acreditar. E eu vou lançar na outra semana a estrutura, a carga, para ver onde vão se fazer os pilares. Você vai construir e nós vamos projetar e não venha reclamar de projeto não, porque vai sair junto”. Mas só pode ser feito por administração, porque não dá pra orçar uma obra dessas. Primeiro, foi feito um requerimento para a administração, em uma semana, de alguma coisa parecida com o que seria construído. Só para eu ter um protocolo na mão. Aqui em Brasília eles admitem começar com protocolo. Com protocolo, já começa a obra, desde que o arquiteto assine um termo de compromisso de que vai cumprir as leis.
14
Então surgiu uma arquitetura diferente da que eu fazia, porque para fazer essa obra em quatro meses, eu tinha que abrir todas as frentes ao mesmo tempo. Eu não podia fazer aqueles prédios complicados. Para fazer a forma, usava-se tubo de papelão para um pilar redondo, com uma fresta para descer água pluvial e jogá-la para fora. Fez-se uma laje cogumelo de 30 cm de altura e com 50 cm para passar instalação. Gesso acartonado nas paredes, pele de vidro - que eu já podia comprar, não precisei esperar ficar pronta a arquitetura para fazer medida na obra. Só teve um mês para concretar as três lajes. De dez em dez dias havia uma laje concretando – cura acelerada e nivelamento com laser. Em cima pregava-se o paviflex, não tinha contrapiso. O contrapiso é um atraso de vida em dois níveis: no desperdício – tem que ser muito precisa a forma para ficar Revista CAU/UCB | 2019 | Perfil
retinho, é um desperdício de massa – além de ser um trabalho que atrasa tudo. Então já concretava, fundia, subia a forma e em um mês já estavam as três lajes concretadas. Fizemos uma arquitetura de uma linguagem que não tínhamos explorado muito, que era pele de vidro. E eu tive a chance de colocar brises numa fachada e deixar aberto de outra. E dia 3 de agosto entregamos o prédio. E aí veio outra encomenda: “daqui três meses eu quero outro”. Então começou a ficar uma coqueluche, todas as obras a partir dessa experiência foram com cronogramas apertadíssimos. Tem lugares, como em Porto Alegre, que você não começa uma obra antes de aprovar, e demora seis meses, um ano… E tem que perguntar ao patrimônio histórico e paisagístico... então é difícil fazer isso em outros lugares. Mas em certas cidades, eles fazem essa coisa meio corrida. O que é chato também é que está dando um certo abuso de ar condicionado, e hoje a gente não está pesquisando uma arquitetura adaptada ao nosso clima. Eu fiz uma experiência, nessa mesma universidade, de um prédio sem ar condicionado. O ar entraria pela janela para a sala de aula e instalamos exaustor que não funcionou por várias razões. Não calcularam direito, havia uma ventania forte e os alunos deixam a porta bater e quebra o vidro... virou um inferno essa máquina. A gente estava louco para fazer uma pesquisa de economia de energia para ganhar um prêmio, mania de arquiteto,
mas não funcionou, essa máquina foi um pesadelo. Nós tivemos que descer uns tubos aqui e instalar split, porque não conseguimos nem que o cliente tivesse paciência de ajudar a fazer funcionar essa máquina. Eu acredito nela ainda, só exaustão, sem ar condicionado. Porque o custo maior do ar condicionado é o compressor, o sistema de refrigeração ... custa energia. A ventilação não é tanto, é mais barato. E aí surgiu mais um problema: tem uma estação de tratamento de esgoto nas proximidades, que de vez em quando vem um cheiro ruim. Aí um dia eu estava em casa sossegado e vi na televisão: “os alunos do IESB estão fazendo uma passeata na L2 norte porque o prédio está com cheiro ruim”. Aí o reitor falou: “Põe ar condicionado pelo amor de Deus, não aguento mais esse cheiro!” A biblioteca de Uberlândia não tem ar condicionado. Ela tem dois pisos elevados sobre pilotis. Eu criei um espaço interno e o jardim embaixo é aberto. Criei também uma proteção de elementos vazados na fachada que tinha um papel duplo: havia uma telinha em baixo e dei um jeito de fazer um jardim vertical que eles nunca tiveram paciência de plantar, criando uma umidade, além de ser uma forma de não roubarem livros. Embaixo haviam pilotis, umas salas de leitura e tal. E em cima de cada pilar, uma malha de vigas principais. Fizemos um furo para uma árvore ficar aparecendo e em cima colocamos uma claraboia translúcida com ventilação. Eu queria até mais do que isso, queria fazer
também um piso vazado cheio de copinhos para haver uma corrente, mas não consegui realizar. Tinham vários problemas, inclusive as moças andando aqui, mas daria para resolver se eu levantasse o peitoril, porém não tinha o mesmo sabor do pilar. Essa foi uma construção mais convencional, demorou o tempo certo – um ano e três meses – muito concreto ... foi uma obra bem feita. CAROLINA: Sr. Paulo Zimbres, para finalizar nossa conversa, diga a sua opinião sobre os prédios novos da UnB com relação à estética e a unidade arquitetônica. PAULO ZIMBRES: O posto de gasolina eu acho muito bom. Eu tenho um problema com unidade arquitetônica, sou a favor de arquitetura de adição, mas eu também sou de humildade arquitetônica, isso que eu acho importante. Eu acho que aqueles pavilhões do Anísio Teixeira, umas caixas de sapato cheia de furinhos, parece caixa de carregar pintinho, não é arquitetura, não conversa com ninguém, parece um mausoléu ao Anísio Teixeira. Eu estou sendo bem franco porque eu acho uma droga esse projeto. Eu gosto muito do posto, ele merece ter a liberdade. Quando nós chegamos de São Paulo na Universidade, falávamos: “Nós temos que respeitar os traços fundamentais da arquitetura de Brasília.” Então fizemos uma espécie de dez mandamentos – não sei se tinham dez – “Tudo pilotis, amém. Tudo pré-molRevista CAU/UCB | 2019 | Perfil
15
dado, amém”.
16
Mas nós também fizemos uma coisa importante: nenhum projeto era feito sem discussão. Uma vez o debate esquentou: “abaixo a unidade arquitetônica”. Os dez mandamentos não caíram todos, porque se manteve o espírito da pesquisa. Tinha também uma mania de enterrar tudo e só deixar para fora o que era bonitinho. Que é o mesmo o que o Oscar andou fazendo um pouco, mas com sabedoria, mas a turma exagerou. Então eu fui lá e disse: “Eu acho um absurdo. O Le Corbusier fala que arquitetura é o jogo de luz e sombra e vocês colocam tudo na sombra? Não tem luz? Enterra tudo e não tem nada pra ver? Não concordo, eu acho que vocês têm que procurar ter mais coragem de lidar com os problemas da arquitetura, e não esconder os problemas. O importante é aparecer e estar presente na paisagem”. Eles faziam assim: ou enterra ou faz pilotis. É uma coisa meio maluca, nunca tá no chão, é meio mourisco. Num laboratório, a justificativa era porque haviam muitas drogas e tinha que ter uma proteção térmica. Então ficou uma fortuna e a verba não dava. Aí, num outro momento, eles vieram com um projeto em pilotis com as papoulas em baixo. E o pilotis é um lugar para ponto de encontro... E a estufa de plantas estava em cima, não estava no chão, estava em pilotis. E eu era o coordenador e falei: “Gente, eu acho um absurdo! Primeiro vocês fizeram um projeto tatu, agora vem com um projeto saracura. Eu acho que nós estamos brincando com o cliente, com a coRevista CAU/UCB | 2019 | Perfil
munidade, e não temos esse direito”. Aí virou uma intempérie geral e eu tenho o estopim meio curto..., mas eu falei o que eu queria. Eu sou muito a favor da gente não enganar, se puder, sempre tentar ser muito claro no que fazemos. Eu acho que nós temos compromisso com o cliente. E esse compromisso é que faz de você um arquiteto bem realizado. CAROLINA: Sr. Paulo Zimbres, muito obrigada por nos conceder essa bela aula de arquitetura!
“Mas nós também fizemos uma coisa importante: nenhum projeto era feito sem discussão. Uma vez o debate esquentou: ‘abaixo a unidade arquitetônica’.” Paulo Zimbres
Revista CAU/UCB | 2019 | Perfil
17
PALAVRAS-CHAVE: Residências, Modernismo, Burguesia Paulistana
19
Rogério Novakoski | SENAC Osasco-SP
Em um período que o país buscava a sua identidade nacional, novos arquitetos paulistanos, como Henrique Mindlin, Gregori Warchavchik, Rino Levi, João Vilanova Artigas, entre outros, mostravam o impulso de inserir propostas arquitetônicas vanguardistas, influenciadas, principalmente, pela estética orgânica de Frank Lloyd Wright e pelo design progressista de Le Corbusier. No entanto, essa geração de arquitetos teve a resistência da burguesia conservadora da cidade, que enxergava o modelo tradicional da residência como símbolo de poder perante a sociedade. Assim, este trabalho faz uma análise das características arquitetônicas das primeiras residências modernistas da burguesia paulistana, em seus aspectos plásticos e funcionais, observando a mescla das novas ideias do século XX com elementos tradicionais ecléticos europeus e neocoloniais.
A ARQUITETURA DAS PRIMEIRAS CASAS MODERNISTAS DE SÃO PAULO
Fig. 5 - Casa Modernista da Rua Santa Cruz - Fonte: www.archdaily.com.br
RESUMO
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
A ARQUITETURA MODERNISTA1 PAULISTANA A necessidade de se ter uma identidade brasileira na arquitetura e na arte era bem nítida desde o início da década de 20, com a difusão do Neocolonialismo. Esse “espírito” era encontrado também na literatura e nas artes plásticas, através de jovens artistas, criando e fortalecendo um novo movimento, que seria chamado de Modernismo.
20
Entre os historiadores existe um consenso de que o marco inicial do movimento modernista no Brasil ocorreu em São Paulo, em dezembro de 1917, com a exposição de pinturas da artista Anita Malfatti. Essa exposição provocou uma reação negativa entre os críticos, que defendiam o estilo tradicional e acadêmico. Por outro lado, chamou a atenção dos jovens intelectuais que se solidarizaram com a pintora e se articularam na criação do primeiro grupo modernista brasileiro, colocando em debate os conceitos conservadores no meio artístico em geral e propondo a renovação do ambiente cultural. A primeira importante manifestação desse grupo foi a Semana de Arte Moderna, em fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo (SEGAWA, 2010). Hoje, passados quase cem anos, pode-se ter mais clareza sobre os acontecimentos da época. A aparente contradição entre a necessidade de identidade, em contraNeste artigo, há a preocupação em distinguir o termo “moderno”, como adjetivo, e o termo “modernista”, como referência ao estilo. 1
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
ponto com a modernidade, traduz uma nova visão do passado, só possível com a superação dos convencionalismos criada pelo Modernismo. Assim, a eclosão da Semana de Arte Moderna ocorreu com transposições francesas de Anita Malfati, que conviviam com as ideias da Antropofagia de Mário de Andrade, em uma mistura da cultura moderna internacional e a revisitação das tradições do Brasil colonial, antes escondidas pelas elites sociais. A Semana de Arte Moderna em São Paulo não propôs nenhuma mudança na arquitetura brasileira. O nome “moderno”, na arquitetura, ainda era um adjetivo vinculado à arquitetura neocolonial racionalizada. Somente em 1925, dois artigos escritos pelos arquitetos Rino Levi e Gregori Warchavchik trouxeram ideias alinhadas à vanguarda moderna europeia, lideradas por Le Corbusier, Walter Gropius, Mies Van der Rohe, o arquiteto norte-americano Frank Lloyd Wright, entre outros. No artigo “A Arquitetura e Estética das Cidades”, publicado no jornal “O Estado de São Paulo”, Rino Levi chamou a atenção para a nova arquitetura prática e econômica, caracterizada por linhas e volumes simples e pelo uso de materiais diferentes, com novas técnicas construtivas. No artigo “Acerca da Arquitetura Moderna”, publicado no jornal carioca “Correio da Manhã”, Gregori Warchavchik elogiou o racionalismo das máquinas e ressaltou a importância da estandardização dos elementos arquitetônicos. Ambos propunham não somente novas ideias formais, mas colocavam em debate as questões
econômicas na construção e a importância da velocidade na produção de edifícios, que poderia ser melhorada com o uso de novas tecnologias. No entanto, essas publicações não mudaram em nada o pensamento da maioria dos arquitetos da época, mas foram textos guardados para, mais tarde, serem resgatados pela historiografia do Modernismo, dessa forma tornando possível comprovar as ideias registradas na arquitetura desses dois arquitetos (SEGAWA, 2010). Na Europa, Le Corbusier havia apresentado uma reinvenção do conceito da casa: “a máquina de morar”, pensamento gravado em 1923 em sua obra “Por uma Arquitetura” (2000), através das seguintes palavras: “Uma casa é uma máquina de morar. Banhos, sol, água quente, água fria, temperatura conforme a vontade, conservação dos alimentos, higiene, beleza pela proporção”. Essa “nova casa” deveria funcionar tão bem como uma máquina, e sua forma arquitetônica, de características cubistas, seria fruto de suas necessidades, conceito baseado nos padrões da Bauhaus e sintetizado na célebre frase: “a forma segue a função”. Tal ideia foi criticada por muitos arquitetos tradicionais. No entanto, foi apoiada por vários outros arquitetos vanguardistas e intelectuais no mundo inteiro, que viam esse novo modelo de arquitetura como um padrão universal e revolucionário. No Brasil, Gregori Warchavchik era um dos maiores admiradores e apoiadores de Le Corbusier, como mostra o texto a seguir, de sua autoria:
Na construção aperfeiçoada de uma máquina não procuramos criar um objeto de beleza. Queremos que seja de perfeita utilidade, de perfeito funcionamento, queremos também que não custe mais do que o necessário a esse perfeito funcionamento. Disto resultam proporções e formas tão harmoniosas e convenientes que não pensamos por um único segundo que essas formas poderiam ser diferentes. Defronte a uma perfeita locomotiva, a um telescópio, defronte a qualquer maquinismo aperfeiçoado, temos o sentimento feliz e seguro de que assim, e não de outra maneira, poderiam estes instrumentos ser construídos. Em arquitetura, os problemas são os mesmos e só da mesma maneira poderão ser resolvidos (WARCHAVCHIK, 2006, p.57). Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
21
Essa necessidade de enxergar a casa moderna como uma verdadeira máquina de morar foi fruto da Revolução Industrial, que trouxe ao homem da época um impulso para otimizar o tempo e o espaço em suas ações cotidianas. Automóveis, aeroplanos, eletrodomésticos e outras máquinas surgiram como equipamentos que deram ao homem uma nova sensação de poder e domínio sobre a natureza, o espaço e o tempo. Por outro lado, trouxeram um ritmo diário mais acelerado e uma nova percepção de tempo e espaço à população das metrópoles, transformações essas que se refletiram claramente no modo de viver do homem moderno.
22
O problema da casa é um problema de época. O equilíbrio das sociedades hoje depende dele. A arquitetura tem como primeiro dever, em uma época de renovação, operar a revisão dos valores, a revisão dos elementos constitutivos da casa”. (LE CORBUSIER, 2000, p.159). Sendo o problema da casa uma questão de época, como dizia Le Corbusier, os chamados arquitetos modernistas, no mundo todo, defendiam que o homem moderno não poderia se conformar com uma arquitetura do século passado e, assim, deveria abrir os olhos às novas possibilidades que os materiais industrializados e as tecnoloRevista CAU/UCB | 2019 | Artigos
gias da época lhe proporcionavam para as construções e soluções das necessidades do homem do século XX. Para Le Corbusier, a verdadeira arquitetura era aquela que deveria se preocupar em resolver problemas de maneira simples e racional, sem o objetivo de se esconder atrás de ornamentos decorativos, como crítica a todas as correntes da arquitetura eclética. Novos materiais de construção, como o aço e o concreto, permitiram o desenvolvimento de tipologias arquitetônicas com traços retos e mais simples, que se adaptaram à chamada nova “estética universal” e cobriram as necessidades de higiene, iluminação natural e funcionalidade dos ambientes residenciais, através do uso de técnicas construtivas ainda mais práticas e rápidas. Dentro dessas novas possibilidades criativas, Le Corbusier fundamentou sua “máquina de morar” em tópicos, que ele chamou de os “5 pontos da nova arquitetura”: 1) o edifício elevado sobre pilotis; 2) a planta livre obtida através da independência entre os elementos estruturais e as vedações internas; 3) a fachada livre obtida através da independência entre os elementos estruturais e a vedação externa; 4) as janelas longas, resultado da criação de fachadas livres; 5) a laje-jardim (ou terraço-jardim). (Figura 6)
Fig. 6 - Desenhos de Le Corbusier representando os “5 pontos da nova arquitetura”. Fonte: Desenhos de Le Corbusier https://histarq.wordpress. com/2012/11/24/le-corbusier-1a-parte-1919-1932/ - copiada em 16-04-2015
Esses cinco tópicos foram resultado de pesquisas realizadas pelo arquiteto, em seus primeiros anos de carreira, e permitiram tornar independentes os elementos construtivos do projeto, possibilitando maior criatividade formal do edifício, maior comunicação entre o espaço interno e o externo, e maior continuidade espacial entre os ambientes em seu interior. As ideias de Le Corbusier, com sua arquitetura modernista racionalista, influenciaram muitos arquitetos jovens brasileiros, entre eles Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, no Rio de Janeiro. Porém, devido ao fato de São Paulo ainda ser uma cidade que não aceitava facilmente novos conceitos e estilos revolucionários, e também por ser a metrópole brasileira de maior contato econômico e cultural com os Estados Unidos no início da década de 30, o maior prestígio de seus jovens arquitetos
era em relação ao arquiteto norte-americano Frank Lloyd Wright e seu estilo modernista orgânico. A escassez do cimento e do aço importados, consequência da Segunda Guerra Mundial, também contribuiu para que alguns arquitetos encontrassem, em Wright, soluções modernas, independentes do uso desses materiais. Essa influência de Frank Lloyd Wright em São Paulo fez surgir, muitas vezes, uma solução mista, encontrada nas arquiteturas de João Vilanova Artigas, Rino Levi, Oswaldo Bratke, entre outros (BRUAND, 2010). Com esses arquitetos, a partir dos anos 1940, a arquitetura modernista de São Paulo passou a ter características bem próprias, cada vez mais diferenciadas da produção carioca. Além de Wright, influências como as de Richard Neutra, Gropius e Mies van der Rohe também podiam ser notadas em alguns projetos, e o rigor construtivo e funcional tornou-se a principal marca dessa geração na arquitetura paulistana. No entanto, apesar de algumas diferenças plásticas e diversidades no uso de materiais construtivos, os diferentes estilos modernistas tinham sua base conceitual em comum, sintetizada nos “5 pontos da nova arquitetura”, descritos por Le Corbusier.
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
23
O USO DE SOLUÇÕES MISTAS
24
Portanto, a corrente orgânica possui uma personalidade indiscutível e exprime aspirações diferentes das do racionalismo, mas não se pode falar de antinomia absoluta: as duas tendências estão fundadas na exploração da planta livre e vinculam-se à criação de uma continuidade espacial fruto da visão cubista. É por isso que existem obras intermediárias, às vezes de difícil classificação, influências difusas num sentido ou noutro, sem esquecer as confusões originadas de uma denominação genérica capaz de recobrir diferentes interpretações (BRUAND, 2010, p.271).
A liberdade formal que a arquitetura modernista permitia ao edifício e suas linhas retas e isentas de ornamentos manufaturados, devido à utilização do aço, do concreto e peças industrializadas, refletiam-se também na organização do interior da casa, com a “planta livre”, na possibilidade de separar a estrutura dos elementos de vedação. A utilização de elementos construtivos, como brises, pérgolas, cobogós, grandes vãos abertos e vedações com grandes placas de vidro; o uso de eletrodomésticos; e as novas necessidades residenciais, tudo isso trouxe fluidez, leveza, transparência e um controle maior do homem sobre o espaço em sua casa. Surgiu, assim, uma arquitetura conceitualmente revolucionária e diferenciada em seus aspectos plásticos, tecnológicos e funcionais. Porém, essa arquitetura era contrária à ideologia de muitos da alta classe tradicional da época, que mantinham a imagem de suas residências neocoloniais como símbolo de riqueza, conquistada com as plantações de café, e como peça necessária de distinção social. Poucos representantes dessa elite social juntamente com vários jovens intelectuais da cidade mostravam interesse pelas diferentes formas de expressão do movimento modernista. Na década de 40, o arquiteto João Vilanova Artigas, apesar da sua ideologia comunista, enxergava a burguesia industrial
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
como a classe de poder transformador do país, e projetou grandes residências para essa classe social. Segundo seu discurso, ele buscava, com a sua arquitetura, “reeducar” essa nova burguesia, através de uma ética que propunha a limpeza de excessos em móveis, ornamentos e quaisquer outros símbolos de riqueza, em completa oposição a todos os modelos ecléticos, e incentivava o uso do capital de forma “útil”, com aplicações na industrialização e no desenvolvimento do país (ARANTES, 2002). Apesar do discurso, nos primeiros projetos de Artigas para a burguesia paulistana, pode-se perceber claras características ecletistas, como por exemplo as encontradas na arquitetura da residência do senhor Nicolau Scarpa Jr., no bairro do Pacaembu, projetada em 1942 (Figura 7). Nesse projeto, Artigas propôs uma arquitetura com um desenho normando, através de um telhado inclinado e repleto de recortes, construído em alvenaria portante pintada de branco e tijolos aparentes. No entanto, no interior da casa já se notava a preocupação modernista de dar continuidade aos ambientes, separados apenas por pequenos desníveis. É um projeto que reflete algumas influências de Frank Lloyd Wright, somadas às necessidades e ao pensamento conservador da alta classe social.
25
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
26
Fig. 7 - Vista do corredor com a porta de entrada lateral no projeto da casa do senhor Nicolau Scarpa, criado por João Vilanova Artigas. Fonte: PETROSINO (2009, p.243).
Portanto, nessa arquitetura mista aplicada pelos arquitetos paulistas, discípulos de Wright, era comum notar uma busca da harmonia entre elementos ecléticos neocoloniais ou europeus com ideais e elementos estéticos modernistas. Mais um exemplo dessa característica arquitetônica da época é a residência do senhor Jacob Klabin Lafer, projetada por Warchavchik (Figura 8).
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
Fig. 8 - Frente da casa do senhor Jacob Klabin Lafer, projetada por Gregori Warchavchik, marcada por combinações de elementos neocoloniais e modernistas. Fonte: Revista “Acrópole”, n.66. São Paulo: 1943, p.160.
Os estilos neocolonial e modernista diferiam, mais nitidamente, no uso de materiais construtivos e no partido arquitetônico. A liberdade maior no desenho da planta e no aspecto plástico do edifício, conquistada pelo uso de novas tecnologias construtivas, conseguiu promover diferentes possibilidades de organização entre os ambientes, sem grandes alterações no programa. Dessa forma, na primeira metade do século XX, a elite paulistana dividia-se em residências neocoloniais, existentes em bairros nobres, como o Pacaembu e os da região dos “Jardins”; nas poucas residências construídas na arquitetura modernista, em novos bairros mais afastados
do centro da cidade; e apartamentos dos primeiros prédios residenciais voltados às famílias mais abastadas, no bairro de Higienópolis. A residência construída nos moldes da arquitetura modernista de Le Corbusier demorou a ser aceita em São Paulo. Foi somente a partir da década de 50 que a burguesia industrial e uma elite intelectual realmente passaram a aceitá-la como modelo de arquitetura residencial2. Esse fenômeno ocorreu, principalmente, após a primeira exposição da arquitetura mo2 Pode-se notar esse fenômeno, acompanhando o histórico das edições da revista Acrópole. A partir das edições de 1950, percebe-se a valorização do estilo modernista de Le Corbusier e o aumento de construções nesse padrão formal racionalista.
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
27
dernista brasileira no MoMA (Museu de Arte Moderna de Nova York), em janeiro de 1943, denominada “Brazil Builds”. Esse evento teve total incentivo do governo dos Estados Unidos e procurava ilustrar as diversas manifestações da cultura arquitetônica no país. Porém, ele ocorreu devido a óbvios interesses políticos, durante o período pós-guerra, quando os Estados Unidos, claramente, buscavam promover uma aproximação diplomática com o Brasil3 (CARRILHO, 1998).
28
A exposição “Brazil Builds” começou em Nova York e circulou por várias cidades norte-americanas, Toronto, Cidade do México, Londres, entre outras, durante quase dois anos. No Brasil, também foi apresentada, inicialmente, na cidade do Rio de Janeiro e, posteriormente, em Belo Horizonte, São Paulo, Santos, Campinas, Jundiaí, Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre. Ela mostrava fotos da chamada arquitetura brasileira “antiga”, que contava um pouco da história da arquitetura no país, e da arquitetura modernista de “vanguarda”, que se produzia naquele momento, exaltando, principalmente, obras modernistas progressistas da produção carioca. Esse evento teve repercussão mundial, com elogios da revista norte-americana “Life Magazine” e do jornal “New York Times”. (CARRILHO, 1998). No Brasil, essa exposição contri3 Além do interesse diplomático de aproximação entre os dois países, é bem provável que houve, também, um interesse norte-americano de que nenhum país latino-americano, em especial o Brasil, descobrisse a sua identidade nacional. Sendo assim, na arquitetura, a produção do modelo internacional de Le Corbusier, nos países latino-americanos, era interessante para os Estados Unidos, além de contribuir com a quebra de vínculos coloniais desses países com os países europeus.
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
buiu para apresentar, à própria população a nova arquitetura, inovadora nas técnicas construtivas e no desenho chamado de “futurista”, baseada nos conceitos de Le Corbusier. Devido ao impacto da exposição e à reação positiva internacional, ela contribuiu, também, para fortalecer e impulsionar a produção desse modelo arquitetônico no país e, em contrapartida, desvalorizar tudo aquilo que não estivesse conforme esse padrão. Diferentemente da arquitetura modernista orgânica, o desenho cubista da arquitetura de Le Corbusier era inédito e livre de influências do século anterior. Esse estilo chamava a atenção por sua estética “futurista”, como era chamada na época, e foi usado em São Paulo, nas décadas de 30 e 40, por profissionais como Antônio Garcia Moya, Henrique Mindlin, Gregori Warchavchik, Jayme Fonseca Rodrigues, entre outros. No entanto, foi somente a partir da década de 50 que esse modelo passou a ser visto, no país, como a “verdadeira arquitetura modernista”, uma vez que não possuía qualquer vínculo com o passado colonial e eclético. NO INTERIOR DAS CASAS Independentemente do partido arquitetônico orgânico ou progressista, essa nova arquitetura, em seu interior, não deixava dúvidas: a fluidez, a transparência entre os espaços internos e externos e a continuidade dos ambientes eram características típicas da arquitetura modernista. Outro elemento característico dessa arquitetura era o uso de móveis industrializados, mais
leves, mais simples e, ao mesmo tempo, com um design mais arrojado e inovador, permitindo a criação de layouts adequados para situações diferentes em um mesmo ambiente. Tudo isso era o reflexo de um novo tempo e de uma nova maneira de morar, aceita e adotada ainda por poucos representantes da burguesia paulistana. Em relação ao programa, na casa modernista ocorreram algumas alterações, porém, nenhuma mudança muito radical em relação às casas neocoloniais racionalizadas. Apareceram alguns casos permitindo a passagem da sala de jantar para a cozinha de forma direta, sem a utilização da copa, como espaço de transição da área social à área de serviços. Esse fato pode ser explicado, principalmente, pelo melhor planejamento e organização funcional da cozinha, sendo, assim, necessário somente um único ambiente para o cozimento e a preparação dos alimentos. A partir da década de 30, pode-se ver, em algumas plantas de projetos, esse único espaço sendo chamado de “copa-cozinha”. Surgem, também, projetos com a preocupação de tirar a área social da frente da casa e colocá-la ao fundo, criando uma ligação com o jardim do quintal, muitas vezes, através de um terraço. Os terraços aparecem com uma frequência maior, mais por uma questão estética da arquitetura progressista, do que funcional, com a finalidade de criar contrastes entre “cheios e vazios” no molde do edifício prismático (Figuras 9, 10 e 11). Torna-se mais comum, também, o uso de desníveis, através de al-
guns poucos degraus, como um elemento separador entre ambientes, sem a necessidade do uso de paredes ou qualquer outro obstáculo visual. A “limpeza” visual das faces do edifício, com traços simples e sem ornamentos, manifestava-se também em seu interior, onde passou a ser comum o uso de móveis mais leves, de madeira compensada e estrutura metálica, e ornamentos em menor quantidade.
29
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
Fig. 9 - Vista da frente e da lateral da casa do senhor G. Haberkamp, projetada por Henrique Mindlin, apresentando uma volumetria prismática cubista e ambientes com acessos a terraços. Fonte: Revista “Acrópole”, n.01. São Paulo: 1938, p.22. Fig. 10 - Vista da face posterior da casa, mostrando o acesso ao terraço, no piso superior, e ao jardim, através das portas da sala de estar, nos fundos da casa. Fonte: Revista “Acrópole”, n.01. São Paulo: 1938, p.26.
30
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
Legenda: 1 – hall 2 – living room 3 – sala de jantar 4 – terraço 5 – garagem 6 – quarto da criada 7 – cozinha 8 – hall superior 9 – banheiro 10 – dormitório 11 – terraço
31
Fig. 11 - Perspectiva dos pavimentos térreo e superior (acima). Fonte: Revista “Acrópole”, n.01. São Paulo: 1938, p.22
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
A residência do senhor G. Haberkamp, exibida nas três figuras anteriores, projetada por Henrique Mindlin, na rua Dr. João Pinheiro, na região dos “Jardins”, é o assunto do primeiro artigo de um projeto da revista Acrópole, em sua primeira edição de maio de 1938. É interessante notar que, nessa edição, juntamente com o artigo desse projeto de Mindlin, considerado na época como “futurista”, há outros artigos de projetos neocoloniais, além de a capa da revista trazer uma homenagem a Ramos de Azevedo. Assim, percebe-se que o Ecletismo e o Modernismo caminhavam paralelamente, apesar da preferência da elite paulistana ainda ser pelo padrão eclético neocolonial.
32
Na decoração e no mobiliário da casa, objetos em estilo art decó e em design modernista se misturavam. O piso de madeira, coberto por grandes tapetes, e a lareira na sala de estar (ou living room) também eram características comuns nos projetos modernistas das décadas de 30 e 40. A CASA DE WARCHAVCHIK DA RUA SANTA CRUZ Na rua Santa Cruz, no bairro Vila Mariana, a casa do arquiteto Warchavchik projetada e executada entre os anos 1927 e 1928, tem grande importância na história da arquitetura paulistana e brasileira, por ser considerada pela grande maioria de críticos, historiadores e arquitetos, a primeira obra modernista do Brasil. Sendo assim, uma análise sobre essa obra não poderia faltar neste artigo.
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
Esse projeto já foi tema de muitas discussões em jornais, livros e trabalhos acadêmicos, com suas críticas negativas e positivas, mais por questões relacionadas ao partido arquitetônico e pela técnica construtiva, do que pelo programa funcional. Em plena década de 20, Warchavchik somente conseguiu propor tal arquitetura, porque a casa não era para nenhum de seus clientes da burguesia paulistana, mas, sim, para sua própria moradia. A obra foi construída em um terreno pertencente à família de sua esposa, Mina Klabin, que projetou todo o paisagismo ao redor da casa. As principais críticas negativas em relação a esse projeto são: a construção ter sido realizada, quase que inteira, com tijolos revestidos de cimento branco, e não em concreto armado; as janelas horizontais, de canto, darem um aspecto formal modernista, porém não justificando o uso dos materiais tradicionais; e a cobertura não ser um terraço-jardim sobre uma laje, mas um telhado de telhas coloniais, escondido por uma platibanda. Assim, dos “5 pontos da nova arquitetura”, estabelecidos por Le Corbusier, Warchavchik utilizou somente um, e de forma parcial: as janelas horizontais. Somente a intenção plástica do edifício parecia ser uma novidade. Isso fez com que Carlos Lemos, em mais um de seus comentários polêmicos, discordasse do título de “a primeira obra modernista no Brasil” e a chamasse, em seu livro “Alvenaria Burguesa”, de “a última casa eclética ao estilo francês”.
Assim, podemos dizer que o marco finalizador do ciclo “cafezista” das residências burguesas foi justamente a casa da rua Santa Cruz, de Gregori Warchavchik – casa só de tijolos, de sobrado feito de assoalho e grossos dormentes de madeira e coberta de telhas tradicionais de barro de capa e canal. Constitui ela o fim de uma era e não o começo de outra (LEMOS, 1989, p.201). Em outras de suas críticas, Carlos Lemos (2005) também destaca algumas semelhanças do programa funcional da casa de Warchavchik com os programas utilizados por Ramos de Azevedo, como, por exemplo, a posição da escada, em um ambiente central, que funciona como um vestíbulo “à francesa”, e a importância dada a esse espaço para a circulação, sem corredores; além disso, o uso de portas internas para a circulação entre os dormitórios. Por outro lado, Yves Bruand (2010) exalta alguns aspectos da obra, principalmente, ao enxergar, no interior da casa, as intenções modernistas do arquiteto, como a busca pela continuidade dos ambientes sociais, apesar das dificuldades técnico-construtivas da época, e a necessidade da relação entre o espaço interno e o externo
da casa, como se lê no texto a seguir:
A influência do cubismo, porém, não se limitava à fisionomia externa, composta por prismas elementares; eram visíveis as pesquisas de continuidade espacial, de ligação entre o exterior e o interior. A porta envidraçada, protegida por apenas uma elegante grade de ferro que não impedia a visão e a janela de canto da ala direita, que abria para a varanda, davam uma sensação de acentuada transparência a essa face da casa, enquanto que a organização da planta visava a criação de um espaço contínuo, ao mesmo tempo interno e externo, valendo-se de grandes superfícies envidraçadas e de grandes aberturas, que colocavam os ambientes de estar em comunicação direta com a vasta varanda sem criar uma separação visual; a oposição completa entre as diversas faces agrupadas Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
33
34
duas a duas, umas compostas de volumes prismáticos, as outras dominadas pelo caráter particular dado pela varanda em “L”, estava de acordo com uma das maiores preocupações do cubismo: a de não poder apreender-se um objeto a partir de uma única perspectiva, sendo necessário deslocar-se em torno dele para poder compreendê-lo ou representá-lo na sua totalidade (BRUAND, 2010, p.67). Warchavchik conseguiu construir uma casa esteticamente diferenciada em São Paulo, burlando as normas dos órgãos municipais da época, que não aceitavam ainda a completa ausência de ornamentos na fachada (Figura 12). Assim, a casa tornou-se atração local, com muita gente indo aos domingos à rua Santa Cruz para ver a “caixa d’água”, apelido que foi dado à casa na época (BRUAND, 2010). Mas merecia Warchavchik ser tão criticado como foi?4 Afinal, era ele mesmo o proprietário da casa e parecia não ter o 4 É curioso notar que Le Corbusier, em sua arquitetura pura da Villa Savoye, utilizando corretamente todos os cinco pontos que fundamentavam a arquitetura modernista, foi também muito criticado pela proprietária da residência. Madame Savoye, após oito anos de moradia, disse que a obra era uma “casa inabitável”, principalmente devido às infiltrações de água ocorridas pelo “terraço-jardim” (BOTTON, 2006).
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
direito de realizar uma construção conforme os seus próprios desejos. Em verdade, as críticas a Warchavchik ocorreram por ele ter sido um arquiteto sempre radical na defesa da arquitetura modernista e por ter escrito vários artigos a favor da “nova arquitetura” e, no entanto, em sua própria casa, não aplicou integralmente os conceitos que defendia. Mesmo assim, deve-se valorizar sua coragem e pioneirismo e, apesar da dificuldade da identificação dessa obra dentro de um modelo arquitetônico puro, compreendê-la dentro de um momento de transição natural, observando as dificuldades do arquiteto, as propostas formais e o programa funcional da casa. Outras residências construídas para a elite paulistana, que vieram depois, projetadas por arquitetos considerados defensores da arquitetura modernista, também mostraram elementos do ecletismo até a década de 40. No desenho da planta (Figura 13), percebe-se, realmente, a intenção do arquiteto de continuidade dos ambientes sociais, assim como da transparência entre os espaços internos e externos, sendo mediada, nos ambientes sociais, por uma grande varanda, chamada de “terraço” por Warchavchik. O mobiliário leve e o uso de espaços abertos (terraços) no prisma também caracterizam o estilo modernista da casa. Por outro lado, o escritório à frente da casa, ao lado esquerdo da entrada principal, lembra o tradicional modelo paulista das residências ecléticas. O piano, peça fundamental nas residências da burguesia do início do século XX, também
aparece desenhado, ocupando boa parte do living room.
35 Fig. 12 - Fachada principal da casa da rua Santa Cruz. Fonte: Jornal Folha de S.Paulo. http:// fotografia.folha.uol.com.br/galerias/23225-gregori-warchavchik - copiada em 20-05-2015.
Fig. 13 - Planta do piso térreo, à esquerda, e do piso superior, à direita. Fonte: LIRA, José. Ruptura e Construção: Gregori Warchavchik, 1917-1927. SciELO - Scientific Electronic Library Online. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, 2007. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002007000200013.
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
Também é interessante notar a necessidade técnica do arquiteto em projetar os ambientes térreos e superiores com medidas determinadas e limitadas pela sustentação das paredes térreas em alvenaria: são vistos dois dormitórios, exatamente do tamanho do living room, e um outro do tamanho da sala de jantar. CONSIDERAÇÕES FINAIS
36
No início do século XX, a burguesia paulistana passou a morar em regiões da Avenida Paulista, dos “Jardins” e no Pacaembu, continuando a ocupação no vetor de sentido sudoeste, conforme se vê ocorrendo até os dias atuais, com casas e apartamentos no Morumbi e outros bairros, e municípios como Cotia, Taboão da Serra, Embu das Artes, entre outros. A primeira metade desse século foi marcada pela mescla entre a busca da identidade nacional e a influência estrangeira. Isso ocorreu, à primeira vista, não somente em manifestações da arquitetura brasileira, mas também na arquitetura mexicana, na norte-americana, com modelos em Miami e na região da Califórnia, e em outros países latino-americanos. Em São Paulo, as casas neocoloniais procuraram manter todo o conforto e a privacidade do morador, apesar da racionalização do espaço. O porte da residência da elite paulistana diminuiu, e os espaços públicos da cidade passaram a ser mais valorizados. A cidade, a sociedade e a casa passavam por profundas transformações.
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
A tecnologia permitia que o espaço interno da casa se mantivesse de forma organizada, privilegiando o bem-estar e a vida privada dos moradores. O luxo ainda existia, porém sem exageros, pois a vida social deixou de ocorrer dentro de casa. Esta deveria funcionar bem somente para o proprietário e sua família. O piano, sempre presente nos ambientes sociais, foi substituído pelo rádio e pela vitrola. O mobiliário ficou mais “enxuto”, até mesmo para acompanhar as naturais alterações no espaço. Não era mais possível morar em um palacete, devido à carência de terrenos, de empregados, de novas necessidades familiares e outros motivos, que compunham um paradigma mais prático do modo de viver do século XX. Esses conceitos de racionalização e maior praticidade, encontrados no programa e no desenho dos ambientes da casa neocolonial, juntamente com o desejo de resgatar um modelo plástico na arquitetura como identidade nacional seguiam, cronologicamente, paralelos à difusão das ideias de Le Corbusier e Frank Lloyd Wright, e fortaleciam os ideais modernistas, já presentes na arquitetura de jovens arquitetos, mesmo que ainda de forma tímida. A arquitetura modernista propunha fluidez, transparência e continuidade espacial, bem como uma praticidade, de forma geral, na maneira de morar. Nesse momento, não havia muita sobreposição de funções dentro dos ambientes, no entanto, os espaços não deveriam ser mais tão rígidos como antes.
Percebe-se, assim, que, tanto na virada do século XVIII para o XIX, quanto na do século XIX para o XX, existiu, na arquitetura e no programa funcional da casa, um tipo de “resposta contrária”: o Ecletismo promoveu uma mudança radical em relação à arquitetura e ao modo de vida da elite paulistana colonial, e o Modernismo, por sua vez, também propôs mudanças com conceitos revolucionários, totalmente contrários àqueles do Ecletismo, e de difícil assimilação pela burguesia tradicional paulistana, que via na “casa” não somente um abrigo, mas também um símbolo fundamental de distinção socioeconômica, repleto de memórias incrustadas em suas vergas curvas e telhas coloniais. E é claro que essas mudanças ocorreram inseridas em um conjunto de transformações históricas, que foram muito além do modo de vida do núcleo familiar, da sociedade, da cidade e, muitas vezes, do país. No entanto, o modo de viver da elite paulistana sempre teve características bem particulares, refletidas pela história peculiar e efervescente da cidade, e manifestadas no programa funcional da casa e no modo de utilização de seus espaços. REFERÊNCIAS ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura Nova – Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefèvre, de Artigas aos mutirões. São Paulo: Editora 34, 2002. BOTTON, Alain de. A Arquitetura da Felicidade. São Paulo: Editora Rocco, 2007.
BRUAND, Yves. Arquitetura Contemporânea no Brasil. 5ª Ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2010. CARRILHO, Marcos. Brazil Builds – 55 Anos de Exposição. In: PiniWeb. São Paulo, 01/04/1998. http://piniweb.pini. com.br/construção/noticias/brazil-builds---55-anos-da-exposição-84648-1aspx acesso em 04-06-2015. LE CORBUSIER. Por Uma Arquitetura. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000. LEMOS, Carlos. Alvenaria Burguesa: breve história da arquitetura residencial de tijolos em São Paulo a partir do ciclo econômico liderado pelo café. São Paulo: Editora Nobel, 1989. ______. O Modernismo Arquitetônico em São Paulo. In: Vitruvius / Arquitextos. São Paulo, 2005. http://www. vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/06.065/413 - acesso em 02-05-2015. PETROSINO, Maurício Miguel. João Batista Vilanova Artigas – residências unifamiliares: a produção arquitetônica de 1937 a 1981. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – Universidade de São Paulo. São Paulo: 2009. SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil 1900-1990. São Paulo: Edusp, 2010. WARCHAVCHIK, Gregori. MARTINS, Carlos A. Ferreira (org.) Arquitetura do Século XX e outros escritos. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2006. Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
37
PALAVRAS-CHAVE: Arquitetura Sensorial, Experiência Arquitetônica
39 Bárbara R. Tavares | Estudante do CAU-UCB
Este artigo tem como objetivo a análise sensorial dos espaços apresentados no filme A Fantástica Fábrica de Chocolate (2005) dirigido por Tim Burton, por meio da metodologia da Arquitetura Sensorial, em específico, a filosofia do arquiteto Peter Zumthor (2006). A análise permite a avaliação do espaço como um projeto complexo, no qual, o objeto de estudo, mesmo se tratando de uma arquitetura fictícia, carrega princípios que são utilizados no universo real da arquitetura. A partir da análise, percebe-se a importância do pensamento sensorial e como ele é crucial na conexão entre o homem e o espaço e a experiência que a arquitetura pode proporcionar. O estudo é um olhar focado na potencialização do projeto arquitetônico.
A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE: LIÇÕES SOBRE A ARQUITETURA SENSORIAL
Fig. 14 - Casa de Charlie - Still do filme “A Fantástica Fábrica de Chocolate” (2005)
RESUMO
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
INTRODUÇÃO
“Quando criança, Dahl foi o autor com o qual eu mais me conectei. Ele teve a ideia de escrever uma mistura de leve e sombrio, e não subestimar as crianças, é um tipo de humor politicamente incorreto que as crianças entendem. Eu sempre gostei disso, e moldou tudo que eu fiz.” (Tim Burton, 2006)
40
O filme A Fantástica Fábrica de Chocolate (Charlie and the chocolate factory) do diretor Tim Burton (2005) é uma adaptação do livro de Roald Dahl (1964). Esta é a segunda versão do filme e, além de ser uma fiel adaptação do livro para o universo do cinema, ainda conta com adição de cenas que complementam o aspecto sensorial da narrativa. O livro original retrata uma história que tem um lado doce e inocente e outro amargo e sombrio. A narrativa gira em torno de Charlie, que vem de família muito pobre, e mesmo se tratando de um livro para crianças, Roald Dahl não mede palavras para explicar o estado de miséria que se encontra a família. Além disso, ao longo do livro, o autor faz analogias de tom satírico que marcam seu estilo de escrita.
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
Tim Burton não deixou passar nenhuma dessas sutilezas sombrias da obra original, e um detalhe muito importante que o cineasta captou do livro e traduziu para o filme com excelência foi a realidade dos personagens: a complexidade humana que apresenta pólos positivos e negativos, que é mais complexa que a simples relação de heróis e vilões. Polos os quais se refletem na arquitetura do filme; ao mesmo tempo que são espaços maravilhosos, são também cruéis e perigosos. Essas características mais realistas dos personagens os fazem bons apoios de estudo da relação real humana com os espaços. A escolha pelo filme para esse artigo deu-se pela potencialização da capacidade da Fábrica de ser, além de cenário, um personagem bem desenvolvido que interage com os demais. Para isso, Tim Burton escolheu trabalhar com uma espacialidade cenográfica meticulosamente estruturada para criar as experiências que são tão importantes para o desenvolvimento da obra. Cores, texturas, gostos, cheiros, sons, tudo é orquestrado para cumprir sua finalidade. Essa metodologia usada para a construção dos cenários pode ser categorizada como arquitetura sensorial, a qual será usada como base de análise dos espaços do filme. O objetivo do artigo não é fazer uma análise do filme em si, embora em partes seja necessário analisar a narrativa para entender a espacialidade, mas sim, analisar a arquitetura sensorial que é usada não só como cenário, mas que é tão bem feita e complexa que transfor-
ma a Fábrica em um personagem ativo. Ao interagir com as crianças no seu campo mais subjetivo e pessoal, a conexão é transformada em experiência. A ARQUITETURA SENSORIAL Para que a análise arquitetônica da Fábrica de Chocolates seja coesa, é preciso abordar, para este estudo, qual é a filosofia da Arquitetura Sensorial e como ela transforma o espaço. O espaço é um plano extremamente comunicável e o corpo humano é programado para perceber um ambiente em todos os seus sentidos. Quando unimos essas capacidades, temos a simbiose entre o homem e o espaço. Existem vários arquitetos que priorizam essa interação acima de qualquer coisa. Peter Zumthor, Juhani Pallasmaa e John Ruskin, são uns dos principais pensadores da chamada Arquitetura Sensorial. Essa metodologia projetual usa da organização do espaço dos seus elementos, desde a escolha de terreno e dos materiais de construção até a locação de mobiliário para criar uma narrativa coesa do que aquele espaço quer transmitir a quem o habita (habitar aqui significa utilizar, estar inserido na arquitetura). Esse modo de projetar é bastante conectado com a subjetividade do arquiteto, e o permite explorar do aspecto artístico da arquitetura, criando ambientes mais poéticos e linhas de pensamento mais sensíveis.
Biologicamente, o sistema sensorial humano tem 5 pontos receptivos: a visão, o olfato, o paladar, a audição e o tato. Esta seria a base fundamental para um projeto sensorial: criar estímulos que direcionam o usuário à uma narrativa sensorial. Cheiros, sons, imagens e materiais, quando juntos, apontam para uma mesma direção. Porém, a subjetividade da metodologia nos dá a liberdade de explorar outros sentidos, que não são catalogados pela ciência, mas que ideologicamente são tão válidos quanto nossa biologia. Por isso, vou falar sobre pontos menos óbvios da arquitetura sensorial, apoiando meu discurso nas palavras de Peter Zumthor, em seu livro Atmosferas (2006), o qual explora tal metodologia e filosofia em seus projetos, que são grandes exemplos de espaços sensíveis. O livro se chama “Atmosferas”, pois para o autor, esse seria o produto final de uma arquitetura projetada pensando nos sentidos. Cria-se um espaço que por completo direciona o habitante para uma experiência, algo como um microclima. O autor divide sua metodologia projetual em nove pontos: a forma física da arquitetura, os materiais, o som, a temperatura do espaço, as coisas dentro da arquitetura, a sedução do espaço, a relação interno x externo, aeEscala da arquitetura e a luz, os quais apresento a seguir. A forma física da arquitetura trata do corpo do espaço, numa analogia à anatomia humana que tem um conjunto de vários sistemas para garantir seu funcionamento, tanto físico quanto mental. A partir da Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
41
humanização da arquitetura, que será um dos principais pontos deste artigo, propõe-se a análise da Fábrica como personagem e não como cenário. A consonância dos materiais é crucial na criação do espaço, ou seja, não o material em si, mas a sua composição, e como eles (os materiais) interagem uns com os outros. Pode-se pensar em uma orquestra, na qual os materiais são os instrumentos, cada um propaga um timbre diferente, mas se organizados na mesma melodia, criam uma música. Zumthor coloca que, “materiais soam em conjunto e irradiam, e é desta composição que nasce algo único” (ZUMTHOR, 2006, p. 24).
42
Pode-se pensar no som como um dos pontos mais subestimados da arquitetura, não o som óbvio como uma música ambiente em uma loja, mas o som próprio do espaço que é resultado da interação da arquitetura com elementos externos, que podem ser pensados, o que raramente se faz. Só notamos a importância do som quando enfrentamos o silêncio: pensar em estar em uma sala que não tenha som nenhum é ensurdecedor. O som é conforto e acolhimento. A temperatura do espaço, a partir da escolha dos materiais é crucial. Cada material tem seu desempenho térmico específico, mas indo além disso, temos a temperatura psíquica do espaço. Ao imaginar uma pedra, por exemplo, conseguimos pensar em sua temperatura. Por isso, a “verdade dos materiais” é tão importante na arquitetura sensorial. É destoante quando Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
usamos um revestimento de cerâmica que imita a superfície de madeira, pois nossas expectativas psicológicas não serão atendidas e, a não ser que essa “farsa” seja usada como discurso do projeto, é uma falha na composição sensorial do espaço. Sobre as coisas dentro da arquitetura, Zumthor fala das coisas que nos rodeiam quando estamos dentro de um espaço e como elas nos afetam. Para ele, os objetos são símbolos de amor e cuidado, não de quem projetou mas de quem habita o espaço. Os itens que os habitantes colocam no ambiente é o que dita a relação entre espaço e o homem. É um tema sensível para se tratar com arquitetos, pois existem aqueles que pensam em suas obras como espaços imaculados e a adição de qualquer coisa seria uma quebra de suas ideias tão precisamente calculadas. Esse preciosismo com o qual os projetistas veem suas criações é prejudicial à sensorialidade do espaço. O absoluto da arquitetura está muito mais na sua maleabilidade do que na sua rigidez. Um espaço no qual não se pode adicionar nem um quadro é muito mais frágil em sua composição do que uma sala que pode ser “decorada” de acordo com a personalidade a quem ela pertence. A sedução do espaço trata do aspecto “espaço x tempo” da arquitetura. A conexão entre o habitante e a arquitetura acontece de forma gradual, ela precisa nos seduzir, e faz isso com percurso e permanência. Somos “levados” aos ambientes, conduzidos pelo espaço, e assim, vamos nos apaixonando pela arquitetura
sem nem mesmo perceber. O arquiteto cria o momento de caminhar e o momento de contemplar, para poder compor essa sedução, que no melhor dos casos, é natural, não tem cara de que foi pensada. A relação interno x externo trata da arquitetura como algo que está inserido em um meio, um contexto, e automaticamente se comunica com ele (positiva ou negativamente). Isso quer dizer que devemos sempre nos atentar aos pontos de transição do que significa estar dentro ou fora. A atmosfera do interior e exterior são diferentes, e podemos explorar esse contraste para criarmos uma experiência do que significa estar na arquitetura. Outro ponto importante dessa relação é como a arquitetura se comporta na rua. As fachadas das edificações são as “caras” dos edifícios, é como se mostram para a cidade. Zumthor tem uma frase que comicamente explica essa conversa entre arquitetura e o que a rodeia: “Pode dizer à praça: Estou contente por estar aqui. Ou pode dizer: sou o edifício mais bonito, vocês todos são mesmo maus. Eu sou como uma diva. Os edifícios podem dizer tudo isso” (ZUMTHOR, 2006, p. 50). Sobre a escala da arquitetura, a palavra “escala” aqui fala sobre os níveis de intimidade. Todos os elementos da arquitetura se comunicam com o corpo humano e nos fazem sentir nossa própria escala de formas diferentes; portas enormes e largas nos fazem sentir pequenos e perdidos, portas estreitas e baixas nos sufocam, sendo elementos que nos fazem conscientes do nosso próprio corpo. Zum-
thor fala da escala de intimidade que temos com a arquitetura, que condiz com o quão familiarizados e confortáveis com o espaço nós estamos. A luz é um dos pontos mais poéticos discutidos na arquitetura. Nas ideias de Peter Zumthor, o fim prático da luz tem seu ponto mais importante quando se reflete nos materiais. A melhor forma de atestar a relação entre a luz natural e a superfície do material seria fazer testes físicos, expor uma tábua de madeira ao sol e observar como ela se comporta, por exemplo, captar a narrativa daquele momento, o brilho, a ressonância da luz no objeto. Peter Zumthor finaliza seu livro colocando três aspectos que para ele é a conclusão de uma arquitetura: a arquitetura como espaço envolvente, que diz respeito à capacidade de uma obra de se relacionar com as pessoas e impactá-las (o ponto principal da análise do filme aqui estudado); a harmonia, que é o que garante uma composição unificada de todos os tópicos citados anteriormente, ou seja, um fim coeso em meio a tantos pontos específicos, e por fim, a forma bonita, que para ele não é só um estudo da estética – quando não vê “beleza” na forma final das suas obras, volta e começa do princípio. A Fábrica de Chocolate de Willy Wonka atinge todos os nove tópicos de Zumthor e cria um espaço coeso, com atmosferas pensadas delicadamente para cada criança. A seguir, faço minha análise de tais espaços. Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
43
UMA ANÁLISE SENSORIAL DOS ESPAÇOS DO FILME No filme de Tim Burton, o diretor é extremamente cuidadoso para que o espaço retrate a realidade emocional e física dos personagens. No filme, temos além da Fábrica, mais três espaços que são dignos de estudo, são eles: a casa de Charlie; a casa de Willy Wonka quando criança; e a cidade que acomoda a Fábrica.
44
O primeiro espaço retratado é a casa de Charlie. Um lar extremamente humilde, pequeno, com vários problemas estruturais visíveis, mas que no fim das contas passa a impressão de um local confortável e receptivo, a ideia real de um lar. O simbolismo está no fato de que, mesmo com problemas, a casa da família de Charlie ainda assim passa segurança. As paredes da casa são de tijolos rebocados de modo rústico, dando um ar artesão na casa, o que podemos ver também pelo piso de madeira feito de tábuas não uniformes. O piso de madeira e a lareira criam uma atmosfera mais quente e confortável, como de uma cabana. Temos o uso dos materiais em sua forma pura, não industrializada, o que mostra que a família de Charlie pode ter sim problemas, mas que são verdadeiros a eles. Não tentam esconder e mascarar, como acontece na casa de Willy Wonka (discutida à frente). O uso de tecidos em todos os cantos da casa também ajuda na criação de um ambiente mais aconchegante (Figura 15).
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
Charlie dorme na parte de cima da residência, a qual é aberta, dando visibilidade sempre para à parte de baixo onde dorme o restante da família (Figura 16). Essa proximidade visual e física do projeto demonstra quão próximos os membros da família são, e também a honestidade que têm uns aos outros. A casa é torta pois é humanizada e busca expor uma interpretação da problemática de Charlie (Figura 17), diferente da arquitetura monótona e fabril da cidade, a casa se torna um personagem. A dinâmica da casa de Charlie e a personalidade dele funcionam harmonicamente, uma com a outra. O que Burton fez foi transformar a essência de Charlie em um espaço: percebe-se aqui o corpo da arquitetura que, em simbiose com Charlie, criam uma narrativa mais forte. Já na casa de Willy Wonka, temos praticamente o contrário. O diretor usou da antagonia espacial para demonstrar a frieza com a qual Wonka cresceu morando com o pai em comparação com a infância de Charlie. A casa situa-se em um bairro cheio de residências iguais, e isso demonstra a normatividade urbana refletida no pai que tem um pensamento engessado sobre os sonhos fantásticos do filho. No interior da casa, a textura das paredes é evidenciada, mas enquanto a casa de Charlie é revestida com um material rústico e provavelmente aplicado pela família, na casa de Wonka temos um papel de parede genérico listrado verticalmente. As linhas verticais são usadas na decoração
Fig. 15 - Casa de Charlie - Still do filme “A Fantástica Fábrica de Chocolate” (2005)
45
Fig. 16 - Casa de Charlie - Still do filme “A Fantástica Fábrica de Chocolate” (2005)
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
46
Fig. 17 - Casa de Charlie - Still do filme “A Fantástica Fábrica de Chocolate” (2005)
para criar a ilusão de ambientes mais altos: o filme usa muito do contra-plongée, técnica cinematográfica que capta os personagens de baixo para cima. Essas duas técnicas combinadas engrandecem o pai e o faz parecer mais assustador do que é, e é assim que Wonka o vê, um homem distante e autoritário (Figura 18). Faz-se também o uso de muitos materiais brilhantes de superfície lisa, o que cria uma atmosfera de salubridade, que é reforçada quando o pai frequentemente usa seu jaleco de dentista em casa. Mais uma vez, o filme usa da composição maRevista CAU/UCB | 2019 | Artigos
terial para sugerir uma experiência: o piso de madeira e as cortinas de tecido, que na casa de Charlie passam a ideia de lar por conta de seu aspecto artesanal, aqui, faz o contrário. As tábuas perfeitamente instaladas e as cortinas cinzas cuidadosamente arrumadas criam uma falsa aparência na casa, um ambiente distante, que corresponde a como o jovem Willy Wonka vê seu pai. O piso de madeira foi usado de duas formas diferentes, na casa de Charlie e de Wonka, e passam sensorialidades antagônicas, reforçando o tópico da infinidade de possibilidades materiais de Zumthor (2006).
Fig. 18 - Visão de Willy Wonka sobre seu pai - Still do filme “A Fantástica Fábrica de Chocolate” (2005)
O ranger das tábuas quando colocada no silêncio da casa cria uma atmosfera tenebrosa, que amedronta o jovem Willy. O jogo entre som arquitetônico e silêncio dos cômodos cria a sensação de desconforto. A lareira, mesmo que funcione fisicamente e aqueça o espaço, não aparenta cumprir tal função. A grande quantidade de objetos metálicos nas cenas, criam uma atmosfera hostil e fria, a temperatura psíquica do espaço, como discorre Zumthor. Os móveis da casa são feitos para um adulto e Willy parece ser engolido por eles (Figura 19). Essa desconexão entre ele e os objetos que o rodeiam mostra claramente que o espaço não se conecta com sua personalidade, ou seja, os móveis somente afirmam para Willy que ali não é seu
lar e que não pertence a esse espaço. Esta distância entre habitante e arquitetura é desenvolvida de uma maneira menos óbvia com o pai que é mostrado maior que as passagens das portas, evidenciando a falta de intimidade do personagem com a casa que, mesmo aparentando satisfazer as necessidades da família, torna-se desconfortável para ambos. Uma cena muito importante, que demonstra a relevância do espaço arquitetônico ou “lar” no filme, é quando Willy Wonka confronta o pai e diz que vai fugir para se tornar um chocolateiro, recebendo a resposta que, quando ele voltar, seu pai não estará mais ali. Ao retornar de sua tentativa, falha em busca de sua independência, e a casa inteira não está mais lá Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
47
Fig. 19 - Poltrona desproporcional e desconfortável para Willy - Still do filme “A Fantástica Fábrica de Chocolate” (2005)
48
(Figura 20). A casa simboliza para Wonka, seu pai, que mesmo falho, o faz falta. Quando ele é abandonado, literalmente, perde seu lar. A leitura do diretor é uma interpretação sensível sobre a memória de Willy Wonka. A personalidade do espaço, para Wonka, estava tão conectada à personalidade de seu pai e a tudo que ele significava, que ao perder a pessoa, ele perdeu também o espaço. Lembrando que a casa é mostrada do ponto e vista da memória de Willy; portanto, essas características podem muito bem ser leituras que o menino fez da casa, e não retrata como ela era realmente. Isso só reforça o poder da percepção sensorial sobre a materialidade da arquitetura e como ela interfere na percepção do espaço. A leitura de Willy Wonka de sua casa da infância é uma leitura subjetiva, que pode ter distorcido a realidade da casa como é. Assim, o que Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
Fig. 20 - Casa de Wonka desaparecida - Still do filme “A Fantástica Fábrica de Chocolate” (2005)
fica na memória, é a sensorialidade do espaço, a experiência subjetiva, e não o que é de fato. O que Tim Burton fez ao retratar a casa de infância de Willy Wonka foi justificar a sua personalidade por meio de sua história, contada através do espaço. A experiência fria, distante e adulta na sua casa da infância o faz um homem anti-social, rancoroso e que compensa com sua inventividade uma infância que não teve. As duas moradias de Wonka, sua casa inicial e sua Fábrica, são espacialidades de dois pontos distintos da sua vida: a primeira é um espaço frustrante, e a segunda um espaço compensador. Essa antagonia (figura 21 e 22) é evidente em cor e intimidade do personagem com o espaço, mas um
toque sutil de iluminação usado pelo diretor foi que, ao retratar o espaço de sua memória, temos pontos focais de luz, que pouco iluminam, criando um espaço cenográfico macabro. Por último, entramos em uma escala um pouco maior, a cidade na qual a Fábrica se situa, em específico, seu entorno. Aparenta ser uma cidade opaca de pedra, com casas iguais, sem marcos interessantes com exceção da Fábrica, que impõe sua importância em tamanho e morfologia diferenciados. A relação entre a arquitetura e a rua, segundo Zumthor, é mais profunda, pois ao mesmo tempo que a Fábrica de Chocolates estabelece dominância visual no espaço por se destoar formalmente, quando colocamos o contraste interior Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
49
Fig. 21 - Contraste entre o primeiro e o segundo lar de Wonka - Still do filme “A Fantástica Fábrica de Chocolate” (2005)
50
Fig. 22 - Contraste entre o primeiro e o segundo lar de Wonka - Still do filme “A Fantástica Fábrica de Chocolate” (2005)
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
e exterior da Fábrica e sabemos que sua fachada é extremamente discreta, sóbria, impessoal, como a casa da infância. Isso retoma à complexidade do personagem Fábrica, assim como Wonka que, ao reconhecer seu fantástico “interior”, demonstra a necessidade de se “encaixar” aos outros, retraindo-se. Wonka interage pouco com as pessoas que o rodeiam, uma timidez que talvez venha da sua infância, e a Fábrica é “recolhida” e retraída em relação à arquitetura em sua volta. Ambos se relacionam pouco com o que os rodeia. A relação dentro x fora da Fábrica acontece de maneira bastante gradual. Os visitantes são apresentados em diversas etapas até realmente se sentirem dentro dela. Esses níveis criam também um processo de sedução espacial bem pensado. Fora da Fábrica, com os portões fechados, os personagens são como quaisquer outros em relação a ela; ao passarem pelo portão estabelecem uma relação de confiança. O primeiro espaço no interior da Fábrica é o longo corredor com um tapete vermelho que conduz os visitantes a entrarem mais ainda no espaço. Os personagens são envolvidos pouco a pouco até se sentirem maravilhados pela apresentação da Floresta Comestível, o ápice sedutor da Fábrica. Após essa análise espacial com base nos nove pontos de Zumthor, percebe-se que, sem dúvidas, o cineasta captou a importância da experiência na criação da narrativa do espaço. A espacialidade é um ponto crucial na tradução da história. A função
psicológica que a sensorialidade tem cria uma ponte entre o espaço e a percepção dos personagens sobre ele. Agora, para analisar o resultado dessa arquitetura sensorial, entrarei nos aspectos de conexão entre o espaço e quem o habita. A RELAÇÃO DA FÁBRICA COM AS PESSOAS
“A essência humana da arquitetura não pode ser entendida de forma nenhuma a não ser que nós reconheçamos sua natureza metafórica, mental e expressiva” (PALLASMAA, 2013, p. 9) O arquiteto finlandês, Juhani Pallasmaa, em seu livro “Arquitetura e Neurociência” (2013), explora a conexão mental e consequentemente emocional que a arquitetura promove em quem a habita. Ele estuda a neurofenomenologia (arte + psicologia) do espaço. Com apoios científicos como o Neurónio espelho (estudo da empatia e emoções que o espaço gera), ele fala da união do espaço físico e o espaço mental. Ao entrarmos nos conceitos metafísicos da arquitetura somos levados aos aspectos seus antropológicos. O que significa a conexão entre seres humanos e o espaço? Qual a importância dessa troca de energias? Até onde podemos justificar um acontecimento pela junção das características pessoais de alguém e as características intrínsecas do espaço arquitetônico? Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
51
São nesses tópicos que a obra “A Fantástica Fábrica de Chocolate” toca muito bem. A Fábrica tem características marcantes, por exemplo ego, extravagância, eliminação do impossível, e isso quando colocado ao lado das características singulares das crianças gera experiências únicas para elas e para o público que assiste.
52
É de especulação de quem assistiu o filme que a arquitetura das salas específicas para cada criança não é um acidente, mas sim um plano de Willy Wonka, para propositalmente criar as experiências moralistas para os visitantes. As experiências punem as crianças por serem como são, e mostram aos pais que estão criando os filhos de forma errada. Temos por exemplo a Sala de Nozes, que para Veruca Salt, desperta seu pior defeito, sua ganância. O resultado dessa interação é uma lição de moral, Veruca e seu pai acabam na lata de lixo, o antagônico da luxúria na qual vivem. A experiência acaba despertando no pai de Veruca algo essencial para seu crescimento como pai, a percepção que ele não deve mimar sua filha. As salas da Fábrica são sensíveis, cada uma feita para criar determinada experiência em cada criança, uma arquitetura moralista que cria experiências de aprendizado e crescimento, as quais mudam a vida e o relacionamento entre pais e filhos. O filme desenvolve, portanto, por meio da arquitetura sensorial, espaços de experiência. O desejo de Willy Wonka de que a Fábrica seja admirada é essencialmente preenchido pela visita de Charlie. A humilde crianRevista CAU/UCB | 2019 | Artigos
ça fica maravilhada com todos os aspectos da arquitetura. Quando alguém olha para a Fábrica com olhos de admiração, está cumprindo a intenção principal do espaço, cativar. A experiência de Charlie é a melhor de todas as crianças pois sua expectativa ao conhecer a Fábrica era simplesmente ser cativado pelo espaço que idealizava. Ele queria que seu sonho de uma fábrica fantástica fosse real, o que aconteceu, suprindo ambas as expectativas, do habitante e do espaço. A RELAÇÃO DA FÁBRICA COM SEU CRIADOR
“Como iria o pintor ou o poeta expressar qualquer coisa além de seus encontros com o mundo?” - Maurice Merleau-Ponty O arquiteto é um filósofo sobre sua própria essência, traduzindo tal à arquitetura, como acredita Pallasmaa (1996). No fim, conseguimos identificar os traços do arquiteto em suas obras. No livro e no filme A Fantástica Fábrica de Chocolate não é deliberado quem foi o arquiteto da Fábrica, mas sempre temos Willy Wonka como seu criador. Vemos claramente traços do personagem (arquiteto), na Fábrica (espaço). Mas antes de explorar o “objeto Fábrica”, vamos olhar para o “desejo Fábrica”, quais os motivos de Willy Wonka construí-la como ela é.
Temos durante a obra literária e cinematográfica a exposição constante do desejo de Wonka de criar seus doces da maneira mais original e bem-sucedida. Wonka é um cientista criativo e todo cientista precisa de um laboratório à sua altura. Por isso, ele cria a fábrica mais fantástica do mundo que traduz o espírito extraordinário de seu criador, em um lugar que acomode a criação do impossível. A Fantástica Fábrica de Chocolate faz jus ao seu nome, ela é imponente, extravagante, inteligente, auto-suficiente, egocêntrica (não admite ser questionada ou duvidada) e rancorosa, muito parecida com Wonka, que quando a criou, projetou suas características em um espaço que respondia a si. A Fábrica constantemente reafirma o quão extraordinário é Willy Wonka, e em retorno, o chocolateiro frequentemente elogia a Fábrica e a enaltece: “Nenhuma outra fábrica no mundo mistura o chocolate em cachoeira! Mas esse é o único jeito certo de fazer isso! O único!” (DAHL, 1964, p. 72), afirma Willy Wonka. Um exemplo dos reflexos da personalidade de Wonka na Fábrica é a apresentação do show de bonecos quando os visitantes chegam, que acabam pegando fogo. Essa é a natureza socialmente desajeitada de ambos sendo retratada, pois no filme, o próprio Willy Wonka se coloca como espectador do show, passando a ideia que aquela seria uma obra da Fábrica, como suas “boas-vindas”. Willy Wonka passa por uma grande trai-
ção quando alguns de seus funcionários se tornam espiões, o que causa profundo rancor no personagem, que tem dificuldade de confiar nas pessoas. A Fábrica demonstra também um caráter rancoroso e impiedoso ao conhecer as crianças que, ao demonstrarem seus defeitos e sua falta de admiração por ela, despertam uma troca de energias negativas, pois todos os personagens tem defeitos; a Fábrica sendo um personagem principal na narrativa, também os tem. Quando a natureza falha das crianças entra em contato com os defeitos da Fábrica, temos os acontecimentos trágicos que levam a eliminação das crianças da competição. Willy Wonka arquitetou além de uma fábrica, um sistema complexo que o apoiava tanto profissional como emocionalmente. Charlie não questiona a Fábrica, pois sua experiência é profundamente emocional, e segundo Pallasmaa, “Quanto mais artístico um trabalho arquitetônico, menos o entendemos intelectualmente” (PALLASMAA, 2013, p. 11). O PERSONAGEM FÁBRICA A humanização da arquitetura começa com sua análise de forma complexa. Nós, seres humanos, temos um sistema estrutural, temos energia que percorre nosso corpo, temos fachadas (ou rosto, se preferir), mas o mais importante, o que nos faz seres extremamente complicados, é a nossa personalidade, nosso conjunto de ideias que nos faz únicos, com possibilidades infinitas de direções. Edificações são como pessoas, algumas tem personalidaRevista CAU/UCB | 2019 | Artigos
53
de mais forte e presente, outras são mais retraídas, mas todas as obras arquitetônicas têm uma personalidade, uma narrativa e histórias que carregam. Algumas obras vão além e tornam esses diálogos os verdadeiros argumentos da arquitetura, como é o caso do Museu Judaico de Berlim projetado por Libeskind em 1988. Um espaço contador de histórias que não precisa de palavras nem de imagens ou livros: foi projetada para criar uma troca entre a essência humana e a essência do espaço.
54
A Fábrica de Chocolate é um exemplo de uma obra arquitetônica de personalidade tão forte que virou um personagem principal do filme. A Fábrica de Tim Burton não é um mero cenário à história que se passa, mas é corpo ativo na história. Willy Wonka é rancoroso e egocêntrico, assim como a Fábrica, que foi, no fim das contas, quem fez a escolha do vencedor do grande prêmio, Charlie, o único participante que realmente a admira. Aqui notamos o alto grau de intimidade entre Charlie e Fábrica que se estabelece quando os dois entram em contato. Todas as crianças, exceto Charlie, são apresentadas como pessoas ruins, com seus defeitos dramatizados, os quais se revelam ainda mais quando entram em contato com a Fábrica. A floresta comestível com a cachoeira de chocolate, que parece ser um lugar maravilhoso, quase paradisíaco, porém, em simbiose com a essência gulosa de Augustus Gloop, se mostra um local quase mortal. Esse mecaRevista CAU/UCB | 2019 | Artigos
nismo é usado durante todo o filme, até sobrar somente Charlie. Tudo que acontece é uma resposta da Fábrica às crianças. A constante afirmação da admiração de Charlie pela Fábrica é algo usado para criar essa relação de “amizade” entre os dois. Sua reverência a ela é demonstrada com a maquete na qual o garoto trabalha tão arduamente e sua natureza humilde, que o permite ver o local como ele realmente deseja ser visto, como algo fantástico. A “escolha” da Fábrica por Charlie é o ápice da humanização da arquitetura. No filme, o espaço desenvolve caráter moral e ético, pois a Fábrica é personificada e assim, ganha uma personalidade, a qual a faz mais inclinada a escolher Charlie como o ganhador do prêmio. A Fábrica é inteligente, rancorosa, criativa, teatral e egocêntrica, características exclusivamente humanas, porém levanta um ponto crucial: Tim Burton tinha recursos de imagem e de personagem para passar a nós, que assistimos o filme, a sensação de um espaço complexo e envolvente. Não podemos visitar a fábrica para sentirmos sua atmosfera como Burton idealiza. O que o diretor fez foi criar profundidade na essência do espaço com recursos cinematográficos. Ele deu à Fábrica desenvolvimento de personagem, deu cenas e oportunidades de expressão, ele humanizou a Fábrica. Os arquitetos não contam com situações escritas e dirigidas para proporcionar a interação entre homem e espaço como o filme fez, mas se considerarmos as criações
arquitetônicas com a mesma complexidade que Tim Burton compõe, podemos criar obras que se comportam como um indivíduo que existe no tempo-espaço e se comunica com o habitante. Ao entrarem em contato com outras pessoas, as fazem sentir, refletir, emocionar e crescer. Algumas edificações não vão além de cálculos estruturais e revestimentos populares. Espaços que performam perfeitamente em seu quesito funcional, mas falham em criar laços com quem os utiliza. Uma arquitetura fria que não emociona é uma falha da arquitetura para com o usuário. Uma falha do arquiteto para com a arquitetura, pois “até um tijolo quer ser alguma coisa” - Louis Kahn (1969) CONCLUSÕES
“Arquitetura é a arte da reconciliação entre nós e o mundo, e essa mediação ocorre através dos sentidos” (Pallasmaa, Os Olhos da Pele, 1996, p. 72)
Peter Zumthor (2006), inicia seu livro se questionando o que é qualidade da arquitetura? O que faz alguém se apaixonar por um espaço? Estas são perguntas difíceis de serem respondidas, e talvez façam parte das questões mais antigas da história da arquitetura. Em Atmosferas o autor trata cada projeto com uma individualidade, uma personalidade singular. A qualidade está na experiência única do arquiteto de projetar em tal local para tal público, a experiência extraordinária de visitar um espaço ou habitar uma casa. A resposta para a qualidade arquitetônica não existe em totalidade, toda vez que o arquiteto a encontra, deve usá-la, e depois a esquecer para que a possa descobrir de forma diferente em um outro projeto. O que captamos na Fábrica de Chocolates é a humanização que Zumthor tanto reforça em sua filosofia. Nos apaixonamos pela Fábrica como nos apaixonamos por uma pessoa. A arquitetura se projeta além dela mesma. Ela é metafísica, energia, a qual se comunica com o habitante por meio de cada inspiração, cada toque, cada som. O homem precisa do espaço tanto quanto o espaço precisa do homem para se desenvolver. Essa simbiose, alcançada por meio da arquitetura sensorial aplicada no projeto, gera a tão buscada experiência mágica de uma arquitetura. Se apaixonar pelo espaço é se envolver com ele, deixar que ele lhe afete por meio dos seus sentidos, é permitir que ele aconteça através de você. Este é o vínculo entre a alma do espaço e a alma do habitante. Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
55
REFERÊNCIAS Dahl, R. (1998). A fantástica fábrica de chocolate (2a ed.). São Paulo: Martins Fontes; Pallasmaa, J. (2005). The eyes of the skin: Architecture and the Senses (2a ed). Inglaterra: Wiley-Academy; Pallasmaa, J. (2013). Architecture and Neuroscience. Finlândia: Tapio Wirkkala—Rut Bryk Foundation Zumthor, P. (2006). Atmosferas (1a ed.). Barcelona: Editorial Gustavo Gili;
56
Kearney, R. (1994). Modern Movements in European Philosophy. Manchester: Manchester University Press. Neves, J. (2017). Arquitetura Sensorial: A arte de projetar para todos os sentidos. Rio de Janeiro: Mauad X; Rasmussen, S. (2002). Arquitetura Vivenciada. São Paulo: Martins Fontes Bziotas, E. Therme Baths at Vals, Switzerland: Peter Zumthor. Disponível em: <http://www.scribd.com/doc/31384347/ Therme-Vals-by-P-Zumthor-Conceptual-Approach>. Acesso em 06/02/2019.
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
Fig. 23 - Casa de Wonka desaparecida - Still do filme “A Fantástica Fábrica de Chocolate” (2005)
Burton, T (Diretor). (2005). A Fantástica Fábrica de Chocolate [DVD]. Burbank, CA: Warner Bros.
58
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
Fig. 24 - Tríade na UTIN
PALAVRAS-CHAVE: Recém-Nascido, PNAISC, Ambiência, Humanização
Thalita Lellice Morais Campelo | Ana Paula da Cruz Caramaschi
À medida que o paradigma do cuidado do paciente muda, é exigido que o espaço de saúde se adeque às novas práticas. Para isso, é importante compreender o significado de atenção integral ao recém-nascido hospitalizado e como os fatores ambientais podem contribuir para o desempenho no cuidado a esses pacientes. A ausência de normativas atualizadas sobre o espaço físico de saúde, com abordagem da mudança de paradigmas implementados para minimizar o estresse do paciente internado em um ambiente de alta e média complexidade, resultam desfavoravelmente na produção de saúde. Dentre elas as normas de segurança do paciente, os fluxos assistenciais e à ambiência a luz da legislação da arquitetura hospitalar.
O REDESENHO DA ASSISTÊNCIA NEONATAL NO OLHAR DA ARQUITETURA
RESUMO
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
59
INTRODUÇÃO Oferecer atenção integral à criança significa oferecer todos os serviços necessários ao atendimento de suas necessidades, sejam eles a atenção básica, apoio diagnóstico, procedimentos de média e alta complexidade, atenção à urgência e emergência, serviços especializados e internação hospitalar com ambientes que atendam suas especificidades e favoreçam seu pleno reestabelecimento e desenvolvimento. Associam-se a isso as questões relacionadas ao ambiente adequado e que resultam em produção de saúde, dentre elas as normas de segurança do paciente, os fluxos assistenciais e a ambiência, à luz das normativas da arquitetura hospitalar.
60
A principal legislação de infraestrutura para Estabelecimentos Assistenciais de Saúde (EAS), a RDC 50/2002/ANVISA, foi publicada na era dos berçários, onde ainda se separava o recém-nascido de sua família. Atualmente, as boas práticas assistenciais mantêm o recém-nascido saudável junto com sua família, acompanhando sua mãe. Quando há necessidade de internação do RN, ele é encaminhado para uma Unidade Neonatal onde será assistido por uma equipe especializada. A Portaria do Ministério da Saúde nº 930 de 10 maio de 2012, prevê a permanência em tempo integral dos pais junto ao recém-nascido que necessita de internação. Entretanto, é garantido pela Lei nº 13.257/2016 (Marco Legal da Primeira Infância) que dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância, alterando o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que esse pacienRevista CAU/UCB | 2019 | Artigos
te permaneça acompanhado da família, ou seja, ela se torna coparticipante do cuidado e da recuperação do recém-nascido. É difícil quebrar o paradigma do modo de nascer que se estabeleceu no Brasil, mas é preciso lembrar, que essa mudança é necessária e tem um foco: Privilegiar o cuidado por meio da assistência humanizada. Para isso, o espaço físico precisa entender o cotidiano da assistência para se concretizar em um ambiente que favoreça o pleno desenvolvimento da criança, que necessita ser assistida em uma área de alta e média complexidade hospitalar. Garantir essa transformação exige um olhar multidirecional e a comunicação do arquiteto com a equipe assistencial. Integração para promover a cura, reabilitação, garantia de direitos de recém-nascidos, mulheres e homens. Assim, será conquistado e trilhado o caminho da arquitetura que visa humanizar o serviço, acolher o usuário, ampliar o campo do conhecimento além dos parâmetros mínimos e da recorrente justificativa que as atuais normas não permitem a melhoria do atendimento.
PACIENTE RECÉM-NASCIDO A Constituição Federal de 1988 no art. 227 estabelece que a saúde da criança é responsabilidade constitucional, social e moral, e deve ser prioridade absoluta nas políticas públicas. No Brasil, nascem, por ano, cerca de três milhões de bebês, destes 11% são prematuros segundo os dados oficiais (SINASC 2017). A Organização Mundial da Saúde (OMS) define como prematura toda criança nascida antes de 37 (trinta e sete) semanas. A prematuridade é a principal causa de morte de crianças no primeiro mês de vida, atualmente, a taxa brasileira de mortalidade de crianças abaixo de 1 ano é de 12,4/1000 nascidos vivos, segundo dados do MS/SVS/DASIS (2017). Cerca de 70% das mortes acontecem nos primeiros 28 dias de nascimento. Mais de dois milhões dos nascimentos anuais, são assistidos exclusivamente pelo SUS, percentual considerável de recém-nascidos são internados em unidades neonatais que necessitam de adequação em sua ambiência para atender a legislação vigente tanto dos aspectos dos direitos da criança quanto da RDC-50/2002/ ANVISA. Evidências científicas demonstram as consequências geradas na vida de pacientes internados nos primeiros 28 dias de vida. Vandenberg, (2007) diz como a melhora na sobrevida das crianças que nascem no
limite da viabilidade traz consigo maior necessidade de vigilância à saúde destas, que têm risco aumentado de apresentar morbimortalidade e podem ter limitações para atividades de vida diária na infância, adolescência e até idade adulta. Para garantir a sua sobrevivência, estes neonatos são expostos à alta tecnologia, ambiente de elevado risco para o cérebro, órgãos dos sentidos, pulmão e intestino. A longa permanência nas unidades de tratamento intensivo pode ocasionar impactos fisiológicos e psicológicos” (Costa et al., 2011). Muito dos impactos gerados pela prolongada internação e este excesso de tecnologia da unidade neonatal, podem ser minimizados pela organização do espaço físico, distribuição da equipe, controle de ruídos, temperatura e luminosidade, questões nas quais a arquitetura incide diretamente. Estudos comprovam que a infância é o período extraordinário, e que, os primeiros 1000 dias de vida impactam em toda a sobrevivência do ser humano. O ambiente favorece o desenvolvimento, atentar para as crianças que necessitam de internações e ressaltar a importância de unidades projetadas para favorecer a sobrevivência, recuperação e pleno desenvolvimento é de suma importância. A Portaria do Ministério da Saúde nº 2.068 de 21 outubro de 2016 aponta que o recém-nascido saudável deve permanecer ao lado de sua mãe do nascimento até a alta e, o RN grave ou potencialmente grave deve ser encaminhado para a UniRevista CAU/UCB | 2019 | Artigos
61
dade Neonatal: unidade assistencial com equipe multiprofissional especializada, estrutura física e tecnológicas adequadas e na qual a presença dos pais é garantida. Tal orientação proporciona diversos benefícios, tais como melhor recuperação do bebê, redução no tempo de internação, incentivo ao aleitamento materno, maior vínculo família e recém-nascido, além de promover a segurança do paciente e do trabalho em equipe, favorecendo a continuidade do cuidado neonatal. A figura 24 mostra a presença da tríade (pai, mãe e RN) em uma UTI Neonatal, onde o pai participa do cuidado junto com a mãe. AMBIENTE DE INTERNAÇÃO NEONATAL
62
O ambiente de internação neonatal requer atenção para reconhecer a necessidade de soluções arquitetônicas que permita promover resultados satisfatórios. De acordo com Ribeiro (2019), a oferta adequada de estrutura para a continuidade de cuidados pode tanto evitar internações quanto abreviar a saída hospitalar, reduzir custos, proporcionar mais qualidade de vida e segurança para o paciente e família. Diante desse desafio, a Portaria do Ministério da Saúde nº 930 de 10 maio de 2012 redesenha os espaços e suas relações, com o propósito de beneficiar o RN e ofertar melhoria do atendimento deste paciente e sua família. A Unidade Neonatal – UN é um ambiente no qual é organizado o cuidado integral do recém-nascido grave ou potencial grave (Figura 25). Isso quer dizer que o a internação neonatal Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
é baseada no recém-nascido de alto e médio risco, que necessita de assistência continua e especializada. O RN saudável está junto com sua família na internação de Alojamento Conjunto – ALCON (serviço de atenção obstétrica voltado à recuperação da puérpera e no qual o seu filho está lhe acompanhando). A UN (Figura 26) é dividida em duas tipologias de serviços: (1) Alta complexidade, Unidade de Terapia Intensiva Neonatal – UTIN; (2) Média complexidade, Unidade de Cuidado Intermediário Neonatal – UCIN. Sendo que, esta última é subdividida em UCINCo – Unidade de Cuidado Intermediário Neonatal Convencional e UCINCa – Unidade de Cuidado Intermediário Neonatal Canguru. O paciente é internado conforme evolução do quadro clínico. Se é um perfil grave, com ventilação mecânica, por exemplo, deverá estar na UTIN. Em caso de médio risco, mas que ainda requer assistência continua, será localizado na UCINCo. Porém, se o paciente está clinicamente estável, mas precisa de ganho de peso, e a mãe ou acompanhante participam da recuperação do RN, esta família estará na UCINCa. Na UCINCa acontece a transição da alta para o domicílio, o ambiente é trabalhado para simular a rotina da família e prepará-los para desospitalização. Tudo é objetivado para alta segura, segurança do paciente, preparo da família. Consequentemente, se atinge: eficácia do atendimento pelo profissional de saúde, respei-
Fig. 25 - Representação Cuidado Progressivo Neonatal - Fonte: Thalita Lellice
63
Fig. 26 - Representação Unidade Neonatal - Fonte: Thalita Lellice
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
to no atendimento, gera empoderamento dos pais com maior segurança no retorno ao lar, incentivo do aleitamento materno, da permanência pai, mãe e filho juntos por mais tempo e desmame dos aspectos hospitalares, como ruídos e baixa temperatura. Ao mesmo tempo para uma pessoa comum seria muito incômodo o som constante de um monitor, para os pais este pode ser visto como um sinal de segurança. Ou seja, a transição para receber alta é tão importante até para desmamar os pais a pararem de olhar para o monitor cardíaco. Em uma entrevista, um pai cuidando do filho no leito disse: “Eu não sei se olho para o monitor ou para meu filho, quero levar um desse quando for para casa!”.
64
Esse olhar assistencial do serviço de neonatologia traz a forte reflexão das consequências que o ambiente gera no quadro clínico de um paciente recém-nascido. Muito dos impactos gerados pela prolongada internação e o excesso de tecnologia da unidade neonatal, podem ser minimizados pela organização do espaço físico, distribuição da equipe, controle de ruídos, temperatura e luminosidade, questões nas quais a arquitetura incide diretamente. Portanto, a arquitetura tem a forte missão de promover a mudança de paradigma por meio de soluções funcionais que abordam: avanço tecnológico, fluxo e zoneamento, dimensionamento, iluminação e emissão sonora.
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
AVANÇO TECNOLÓGICO Os avanços tecnológicos incluem novos equipamentos para suporte a vida do paciente e impacta na tipologia do leito. Ao prever cuidados intensivos a todos os leitos, a área física deverá prever 100% do seu espaço para alta complexidade, prevendo maior dimensionamento para: os equipamentos de suporte a vida, para a equipe assistencial voltada à terapia intensiva em todos os leitos, pacientes com maior risco no mesmo ambiente de pacientes com médio risco ou estáveis. Quando se trabalha com o cuidado progressivo, a rotatividade e o atendimento nos leitos se tornam mais eficiente. Pois a equipe, o ambiente e os equipamentos são conforme o quadro clínico de cada paciente, não tornando o cuidado geral. Esse fator influencia tanto no dimensionamento da equipe, na área dimensionada, no programa de necessidades da Unidade Neonatal e automaticamente no custo do serviço. FLUXO E ZONEAMENTO Um fluxo bem definido reduz riscos desnecessários ao RN hospitalizado. Entre outros aspectos, pode diminuir o percurso no momento da transição entre leito e o trajeto das equipes, privilegiar o acesso direto a UTIN, UCINCo e UCINCa, fator que evita visitantes e acompanhantes transitando entre as unidades sem necessidade, e otimizar a atuação profissional especializada que se concentra em um setor e o compartilhamento dos ambientes de apoio.
O zoneamento da UTIN deve levar em consideração o local do nascimento, para melhorar a agilidade em casos de intercorrência e a proximidade do Alojamento Conjunto, pois a mãe nos primeiros dias está em internação para recuperação puerperal. A terapia intensiva e o cuidado intermediário formam a Unidade Neonatal, e não é recomendada que a localização destas seja muito distante. Assim, o correto zoneamento da unidade garante que o RN de risco não percorra sem necessidade outros setores do hospital, incentivando a rotatividade do leito e evitando a alta precoce. Logo, quando estes setores são contíguos, a equipe atua em conjunto e de maneira integrada. DIMENSIONAMENTO A base normativa fornece áreas mínimas e requer a consideração do dimensionamento conforme o equipamento utilizado e os usuários do serviço. Antigamente, a poltrona do acompanhante era prevista a cada quatro leitos, mas atualmente a Lei nº 13.257/2016 (Marco Legal da Primeira Infância) dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância, alterando o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e estabelecendo que os estabelecimentos de atendimento à saúde – inclusive as unidades neonatais, de terapia intensiva e de cuidados intermediários – deverão proporcionar condições para a permanência em tempo integral de um dos pais ou responsáveis.
leito 24h do dia. Ou seja, o dimensionamento é influenciado: pelos equipamentos de suporte a vida, pelos acompanhantes, pela presença de uma poltrona a cada leito e pela largura adequada da circulação para o funcionamento destes elementos. ILUMINAÇÃO Nos seis primeiros meses de vida o ambiente pode favorecer ao desenvolvimento visual da criança. Quando não estimulada, pode haver perda significativa da visão e a iluminação direta em cima do leito pode interferir nesse progresso. O RN acordado pode fixar a visão no ponto de luz e comprometer seu tratamento. Se descentralizados e previstos em sistemas próximos das cabeceiras evita o paciente focar a visão na luz, acionado separadamente evita despertar ou assustar os pacientes dos leitos próximos. Outros dispositivos de auxílio que devem ser observados é o fator de penumbra na incubadora em momentos estratégicos para o descanso ou tratamento do RN.
A presença da família pressupõe que a tríade (pai, mãe e filho) esteja à beira do Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
65
EMISSÃO SONORA Como diz NIGHTINGALE (apud ANVISA, 2014 p. 48) “o ruído desnecessário é a mais cruel ausência de cuidado”. A forma como é planejada a disposição dos leitos influência diretamente no impacto auditivo da unidade. Desde a localização dos ambientes de apoio e do posto de enfermagem, até as emissões sonoras causadas por todos equipamentos localizados à beira do leito.
66
Levando-se em conta que quaisquer ruídos de ocorrência alheia ou temporária podem ser de impacto na qualidade do conforto humano [...] a caracterização do ruído deve ser considerada, medida e efetivamente incluída na avaliação acústica. (ANVISA/2014, p. 55). Conforme Eduardo Zaeyen (2003, p. 139), a criança de zero a três meses de idade se assusta ou acorda com sons intensos e repentinos e acalma-se ao ouvir a voz materna. Um dos motivos pelo o qual a mãe é coparticipante do cuidado em uma internação do RN. No ambiente de internação os sons emitidos por tampas de lixeira, lavatórios, portas de incubadoras, escadas sendo arrastadas, conversas, portas batendo, e esbarrões no leito podem chegar a mais de 80 decibéis (dBA). A figura 27 representa algumas fontes de emissão sonora detectadas em uma medição no leito de UTIN. A norma NBR 10.152:1987 fornece parâmetros de avaliação do ruído amRevista CAU/UCB | 2019 | Artigos
biente em recintos de edificações visando o conforto dos usuários e seus procedimentos são caracterizados com valores de ruído aceitáveis em níveis sonoros, para ambiente neonatal, entre 35 e 45 dBA. Portanto, os ruídos gerados por atos do cotidiano podem gerar fortes impactos para o paciente que vão além do estresse da internação, já que o RN se encontra em estado de desenvolvimento corporal e qualquer desequilíbrio auditivo pode desencadear retrocesso na sua recuperação.
Fig. 27 - Emissão sonora em leito de UTIN - Fonte: Thalita Lellice
CONCLUSÃO O reconhecimento de que as crianças são o grupo mais vulnerável da humanidade dá suporte à importância da atenção integral à sua saúde. A compreensão desta perspectiva de atenção integral é exigente e pressupõe vínculos muito bem estabelecidos entre a criança, seu familiar ou responsável, o profissional cuidador e o ambiente no qual estas ações são realizadas. A tradução das diretrizes arquitetônicas para a implantação e lógica de funcionamento dos serviços de neonatologia em consonância com a PNAISC e a RDC/502002/ANVISA, na perspectiva da efetividade e resolutividade no cuidado ao recém-nascido de risco na unidade neonatal é condição fundamental para o cuidado
integral a esse grupo. Esse processo contribui para que o atendimento especializado ocorra de acordo com as necessidades de cada criança, com a estrutura adequada para seu pronto restabelecimento e desenvolvimento. Embora todas as mudanças ocorridas no cenário da arquitetura e da saúde da criança estejam amplamente disseminadas, ainda persistem dificuldades na integração da informação sobre esta assistência versus ambiente do cuidar, principalmente no que se refere aos princípios organizacionais, direitos das crianças e famílias. Portanto, interpretar a PNAISC, destacar as evidências científicas, o conceito de ambiência e por fim o ambiente de saúde neonatal resultante do olhar multidirecional da arquitetura versus a assistência é imprescindível. Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
67
A integração da política de saúde da criança no olhar da arquitetura, traz a definição de linhas de cuidado continuado que contemplem uma visão global das dimensões da vida, numa perspectiva de integração de experiências, em que se inclui a articulação do trabalho e das práticas dos profissionais, direitos da criança e suas famílias, segurança do paciente e ambiência, inseridos como fatores determinantes de saúde.
68
Assim, é necessária a visão integral da rede de assistência à criança e sua família na visão da arquitetura como potencializadora dos recursos disponíveis para oferecer a resposta mais adequada, completa e resolutiva à sua necessidade, garantindo a continuidade do cuidado integral, desde as ações de promoção às de tratamento e reabilitação, com um fluxo ágil e oportuno em cada nível de atenção até a recuperação completa do indivíduo. Espera-se aprofundar o diálogo das equipes assistenciais, das vigilâncias quanto às especificidades e diferenças encontradas nas regiões de saúde, além de mobilizar os diversos setores da sociedade – incluindo usuários do SUS, os profissionais de saúde, gestores e sociedade civil - com a finalidade de promover a saúde das crianças no ambiente promotor da vida. Todas essas mudanças geradas pela garantia de direitos das crianças e seu pleno desenvolvimento baseado em evidências científicas, a inclusão dos pais com presença e responsabilidades compartilhadas no cuidado hospitalar, necessitam de viRevista CAU/UCB | 2019 | Artigos
sibilidade em projetos arquitetônicos de saúde, que expressam diferentes formas de promoção de saúde e distintas maneiras de se relacionar com este ambiente potencializador da implementação das políticas. Muitas transformações são necessárias para o modo de projetar espaços de saúde em consonância com a Política de Saúde da Criança, a arquitetura se configura neste olhar ampliado, enquanto elemento fundamental da promoção e produção de saúde. Para tal, a integração saúde versus arquitetura deve ser pauta constante na formação dos profissionais de saúde e arquitetura.
REFERÊNCIAS ______. ANVISA (2002). Resolução nº 50, de 21 de fevereiro de 2002. Dispõe sobre o Regulamento Técnico para planejamento, programação, elaboração e avaliação de projetos físicos de estabelecimentos assistenciais de saúde. Resolução - RDC Nº 50, de 21 de fevereiro de 2002. Brasília, DF. ______. ANVISA. Serviços de atenção materna e neonatal: Segurança e Qualidade. Brasília, 2014. ______. BRASIL, Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016. Implementação de políticas públicas para a primeira infância em atenção à especificidade e à relevância dos primeiros anos de vida no desenvolvimento infantil e no desenvolvimento do ser humano. Brasília, 2016. ______. Ministério da Saúde (2012). Portaria nº 930, de 10 de maio de 2012. Define as diretrizes e objetivos para a organização da atenção integral e humanizada ao recém-nascido grave ou potencialmente grave e os critérios de classificação e habilitação de leitos de Unidade Neonatal no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Portaria Nº 930, de 10 de maio de 2012. Brasília, DF.
______ (1988). 2. Emenda Constitucional, Brasil. 3. Decreto Legislativo, Brasil. I. Título. ______.MOREIRA, Mel., BRAGA NA., and MORSCH, DS., orgs. Quando a vida começa diferente: O bebê e sua família na UTI neonatal. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003. ______.COSTA, G.D; COTTA, R.M.M; REIS, J.R; Ferreira, M.L.S.M; REIS, R.S; FRANCESCHINI, S.C.C. Avaliação da atenção à saúde da criança no contexto da Saúde da Família no município de Teixeiras, Minas Gerais (MG, Brasil).Ciência&Saúde Coletiva, 16(7): 32293240,2011. ______. Vandenberg KA. Individualized developmental care for high risk new borns in the NICU: A practice guideline. Early Hum Dev 2007;83: 433-42.
______. Ministério da Saúde (2016). Portaria nº 2. .068, de 21 de outubro de 2016. Institui diretrizes para a organização da atenção integral e humanizada à mulher e ao recém-nascido no Alojamento Conjunto.. Portaria Nº 2.068, de 21 de outubro de 2016. Brasília, DF. Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
69
70
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
Eduardo José Coimbra Magalhães | Leonardo Oliveira | Universidade Paulista - UNIP
O arranjo espacial é uma das principais questões – senão a principal – a serem resolvidas em um projeto arquitetônico. O máximo aproveitamento do espaço, em termos de funcionalidade, depende de como o arquiteto manipula diversos fatores, tais como: programa de necessidades, zoneamento/setorização, insolação, ventilação, entre outros. No entanto, a funcionalidade não deve ser o único aspecto a ser considerado na concepção do espaço arquitetônico: este deve, ademais, buscar provocar sensações em seus usuários. A obra do arquiteto japonês Tadao Ando (Osaka, 1941–), inserido por Kenneth Frampton no movimento do Regionalismo crítico, pode fornecer exemplos que ilustram a junção bem-sucedida entre função e sensação no espaço arquitetônico. À vista disso, o presente artigo irá abordar a dimensão espacial em seus projetos à luz dos preceitos desse movimento, visando à compreensão de como os espaços são capazes de materializar a associação entre essas duas variáveis. O artigo se restringirá à análise de dois pro-
A COMPLEXIDADE ESPACIAL NA OBRA DE TADAO ANDO
Fig. 28 - Igreja da Luz, Tadao Ando - Fonte: www.archdaily.com.br
RESUMO
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
71
jetos de sua autoria: o Museu de Arte de Chichu (Distrito de Kagawa, Japão, 2004) e o edifício-sede da Faculdade de Arte, Arquitetura e Design da Universidade de Monterrey (México, 2013). Como objetivo geral, o artigo se propõe a suscitar reflexões em arquitetos e estudantes de Arquitetura a partir das lições de Tadao Ando e evidenciar a possibilidade de evocação do sensível por meio da materialidade, uma vez que cabe ao idealizador do espaço arquitetônico explorar as inúmeras possibilidades de arranjo espacial com vistas a induzir o usuário a sentir o espaço, e não apenas visualizá-lo. PALAVRAS-CHAVE: Tadao Ando. Regionalismo crítico. Complexidade espacial.
72
O que tenho procurado alcançar é uma espacialidade que estimula o espírito humano, desperta a sensibilidade e comunica com a alma mais profunda. (ANDO, 1995, apud DIAS; DURÃO, 2014: 3)
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
73
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
Morar num espaço [...] em que a luz e escuridão estão constantemente interagindo foi uma experiência decisiva para mim. (Entrevista com Tadao Ando. In: AUPING, 2003: 11)
74
Nascido em 1941 em Osaka, Japão, o autodidata Tadao Ando construiu seu repertório arquitetônico por meio de viagens de estudo internacionais, empreendidas a fim de compreender a obra de mestres europeus (a destacar: Le Corbusier, Alvar Aalto e Mies van der Rohe), aliadas à cultura tradicional japonesa que lhe fora transmitida (BENEVOLO, 2007: 382). A noção de espaço, para Ando, está intimamente associada à casa que habitou no Distrito de Asahi, Osaka, durante sua infância. Essa casa, privada de iluminação natural em razão de sua organização espacial e implantação em lote exíguo, era fria no inverno e quente no verão. Tais fatores resultaram na consciência do arquiteto das forças impostas pela natureza no projeto arquitetônico, que posteriormente viriam a ser trabalhadas de modo poético em sua obra (ENDO, 2017: 15–6). A estética minimalista de sua produção projetual tem origem na busca pela tradição do espaço japonês, fundamentado na simplicidade; no entanto, Ando buscou rastrear essa tradição com o intuito de criar noRevista CAU/UCB | 2019 | Artigos
vas formas arquitetônicas (MONTANER, 1997: 165), reinterpretadas à luz de seu próprio tempo. A habilidade de materializar o sensível, portanto, advém de seu repertório cultural e de suas experiências pessoais, como é possível notar em seus excertos: “A memória daquela casa sempre esteve comigo, o modo como os aposentos pareciam estar pintados em sombra e luz. É assim que eu experimento o espaço.” (AUPING, 2003: 11)
Fig. 30 - Embora Auping (2003: 10) não assevere que os croquis abaixo representam o espaço onde Tadao Ando cresceu, a descrição feita pelo arquiteto aliada à narrativa do livro leva o leitor a crer que são, de fato, esquemas espaciais de sua casa de infância, em Osaka. FONTE: Ibidem: 10.
1. DO CONCRETO AO ABSTRATO: O ESPAÇO PARA TADAO ANDO
A análise de sua obra arquitetônica, que recebeu o Prêmio Pritzker em 1995, demonstra que a configuração espacial sempre foi buscada pelo arquiteto de modo a transmitir sensações aos seus usuários, resultado muitas vezes alcançado mediante a inserção de elementos naturais – luz, água e até a própria paisagem – na composição da arquitetura. Deduz-se que essa estratégia contribuiria para a elevação do estado espiritual do indivíduo inserido nesse espaço. Por meio do manuseio “respeitoso” dos materiais construtivos, Ando conforma uma qualidade espacial capaz de “dignificar” aqueles que dela usufruem (AUPING, 2003: 7). A habilidade do arquiteto para compor espaços visualmente vazios, porém plenos de sensibilidade estética, deu origem a um número considerável de projetos1 – sobretudo templos, museus e habitações2 – em distintos países.
Das lembranças sobre sua casa de infância, a experiência de contemplar o jardim interno influenciou a visão do arquiteto sobre a importância do vazio, elemento por onde se manifesta a luz, meio possibilitador do recor-
te temporal contemplativo e, de acordo com a cultura japonesa e o pensamento zen, representante do infinito. (ENDO, 2017: 18) Ando se utiliza da materialidade da arquitetura para obter a transcendência do espírito, possibilitada pelos jogos de luz e sombra premeditados ainda na fase projetual. Depreende-se disso que o pensamento sobre a qualidade estética do espaço construído advém das etapas de projeto, nas quais deve haver uma minuciosa investigação a respeito das sensações que a arquitetura se propõe a transmitir. Conforme aponta Endo (2017: 18), a inserção de elementos naturais no espaço como método de resgate da conexão entre indivíduo e natureza tem raízes na própria cultura japonesa, o que evidencia o apreço de Ando pelos aspectos culturais tradicionais de seu local de origem. De acordo com Montaner (2001: 261), ao contrário do urbanismo “estridente e comercial” do Japão atual, a obra do arquiteto é marcada pelo silêncio e sutileza.
1 De acordo com Endo (2017: 10), até então a obra do arquiteto abarca cerca de 200 projetos construídos. 2 Segundo Benevolo (2007: 382), Ando impõe a si mesmo a limitação de temas projetuais para que possa alcançar um alto grau de controle do projeto como um todo, simulando a relação de artistas com suas obras executadas manualmente, porém atendo-se rigorosamente ao manejo dos elementos arquitetônicos.
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
75
76
A resposta de Tadao Ando à superficialidade do aumento do consumismo capitalista foi reafirmar a conexão com a natureza, seja em encraves fechados dentro da cidade ou em sutis intervenções na paisagem do campo. [...] As interferências minimalistas lembravam tanto a escultura abstrata moderna quanto as ideias tradicionais sobre o espírito do lugar (ma), a relação do primeiro plano com o plano de fundo (shakkei) e a fusão do natural com o artificial (oku). (CURTIS, 2008: 670)
O resgate de aspectos culturais e sua inserção na arquitetura construída é uma atitude reiterada entre os arquitetos pós-modernos, bem como a sensibilidade ao terreno de projeto e aos materiais construtivos regionais. A arquitetura (e, por conseguinte, o espaço arquitetônico) representa, para Ando, não apenas um “complexo de estratégias estilísticas”, mas uma “expressão básica da consciência”, ou ainda uma profunda reflexão da própria civilização (AUPING, 2003: 7). Ao prezar pela humanização dos espaços, Ando evidencia seu intento de subverter os padrões estabelecidos pela arquitetura moderna.
Fig. 31 - A introdução da luz externa no espaço interno na obra de Tadao Ando conecta o usuário com a natureza circundante. Da esquerda para a direita: Casa Koshino, Ashiya-shi, Japão, 1984. Templo da Água, ilha de Awaji, Japão, 1991. Pavilhão de conferências da Vitra, Weil am Rhein, Alemanha, 1993. FONTE: SCHIELKE, 2017.
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
2. A INSERÇÃO DA OBRA DE TADAO ANDO NO MOVIMENTO DO REGIONALISMO CRÍTICO
Será que para entrar na rota da modernização é necessário descartar o antigo passado cultural que constituiu a raison d’être3 de uma nação? (RICŒUR, 1961, apud FRAMPTON, 1980: 381) O L’Esprit Nouveau propugnado por Le Corbusier no início do século XX concebeu uma nova estética arquitetônica, que visou à padronização da linguagem dos edifícios e exerceu grande influência sobre diferentes contextos culturais e regionais. Por volta de 1956, quando do último congresso dos CIAM e do surgimento do Team X, as fundações do modernismo já se encontravam fragilizadas e, a essa altura, despontaram as primeiras críticas à arquitetura moderna, expressas por meio de diversos desdobramentos arquitetônicos que surgiram poucos anos depois e que compuseram o período comumente denominado “pós-modernismo”. Sobre o dissabor provocado pela arquitetura moderna versou Paul Ricœur em 1961, em seu texto intitulado Universal Civilization and National Cultures: na publicação o autor questionou a necessidade de abdicar das tradições culturais com vistas à integração à civilização moderna, uma vez que as raízes culturais de um povo representavam sua memória, que deveria 3 “Razão de ser” (tradução livre).
ser preservada. De acordo com Ricœur, o fenômeno da universalização trazido pela modernidade estava “destruindo” o núcleo criativo de grandes civilizações e culturas” (1961, apud Frampton, 2003: 381). A arquitetura moderna, fundamentada na rejeição ao ornamento “desnecessário” e na ode à estética da máquina, buscou universalizar as regras de composição arquitetônica sob a promessa de criação de cidades plasticamente homogêneas; a esse respeito pode-se afirmar que o projeto modernista obteve sucesso. A questão era que a ênfase excessivamente analítica apregoada pelos célebres arquitetos modernistas – uma minoria de intelectuais – acabava por padronizar (também em excesso) a arquitetura, as cidades e os próprios valores culturais. O programa de simplificação arquitetônica do modernismo ameaçava as identidades culturais que haviam sido construídas de modo legítimo por culturas autônomas. Por outro lado, o projeto da cidade moderna, que serviu prioritariamente aos interesses das classes dominantes e fora construída a partir de uma ideologia intimamente ligada ao poder, desconsiderava a maioria da população, posteriormente marginalizada nas novas periferias urbanas. Em cima dessa problemática, o teórico da arquitetura Kenneth Frampton (1930–), utilizando-se do termo “Regionalismo crítico” introduzido por Alexander Tzonis e Liane Lefaivre, elaborou sua crítica no mesmo sentido de Ricœur. O autor esclarece que Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
77
78
preceitos muito próximo da ideia do ReO termo Regionalismo crígionalismo crítico, o que se revela “na tico [...] pretende identificar tensão que ele percebe entre o processo as “escolas” regionais recen- de modernização e a idiossincrasia da cultura do local”, ideia da qual compartilha tes, cujo objetivo principal Montaner (2001: 55): tem sido refletir os limitados elementos construtivos nos Um caso similar de evolução quais se basearam a servir a da sintaxe racionalista para a eles. Entre outros fatores que linha do elementarismo geocontribuíram para a emermétrico e escultural é o que gência de um regionalismo desenvolvem alguns arquitedesse tipo encontram-se não tos japoneses a partir do final somente uma certa prospedos anos cinquenta, sobre a ridade, mas igualmente um base da arquitetura de concerto tipo de consenso anticreto armado. É a obra que centrista – em última instân- realizam arquitetos como [...] cia, uma aspiração por uma Tadao Ando [...]. Novamente forma de independência cul- trata-se do resultado de uma tural, econômica e política. real e autêntica integração de (FRAMPTON, 2003: 381–2) duas tradições: a racionalista internacional e os padrões da O movimento do Regionalismo crítico, arquitetura tradicional. portanto, buscou abordar de forma crítica a arquitetura moderna e refletir sobre o avanço desenfreado da globalização no âmbito arquitetônico. A padronização estética que estava sendo imposta pelo modernismo deveria ser reconsiderada, diligência que foi possível mediante a reinterpretação da arquitetura moderna sob ótica do contexto regional específico onde seria produzida. Segundo Frampton (1983, apud Endo, 2017: 44), Tadao Ando soube formular com clareza um grupo de Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
Majoritariamente produzida no Japão, a obra de Tadao Ando faz reiteradas menções à cultura japonesa. Alicerçada na síntese entre espaço, forma, volume e material, sua produção arquitetônica explora o vazio e busca conformar a tipicamente oriental atmosfera “zen”. A simplicidade espacial na arquitetura de Ando não advém puramente, no entanto, da filosofia
miesiana Less is more4, mas de seu próprio repertório cultural. O emprego recorrente do concreto desnudo corrobora a ideia de simplicidade, que é traduzida, por meio da materialidade, para a linguagem do usuário do edifício. A formas puras utilizadas em sua arquitetura buscam representar arquétipos, isto é, princípios formais lógicos, imutáveis e atemporais (MONTANER, 1997: 127–8). No Pavilhão do Japão para a Exposição Internacional de 1992, em Sevilha, Espanha, Ando deixou clara sua reinterpretação plástica da “modernização universal” mediante a utilização da madeira, material construtivo típico do seu país, na composição das fachadas do edifício.
4 A esse respeito Montaner (1997: 187) aponta que a obra de Tadao Ando assemelha-se à de Mies van der Rohe (1886–1969), porém a primeira busca considerar veementemente o contexto circundante, dando origem a edifícios abertos e transparentes em contextos naturais – isto é, próximos à natureza – e hermeticamente fechados em contextos urbanos.
No Japão a obra de Tadao Ando abriu caminho para a ligação entre o redutivismo modernista e certos princípios da tradição japonesa, caracterizando a reavaliação dos conceitos modernistas com base nessa cultura específica (CURTIS, 2008: 591). O país, no entanto, não escapou à significativa influência ocidental e a arquitetura teve que se adaptar a esse modo de vida. Com a perda gradativa do viés humano nos novos espaços urbanos, Ando buscou conceber a espacialidade de seus edifícios mediante a integração da natureza com a arquitetura, dando origem à continuidade física e visual entre interior e exterior dos edifícios; desse modo, o arquiteto resgata aspectos da cultura arquitetônica japonesa tradicional, que tende a eliminar as barreiras entre edificação e terreno, ao contrário do que geralmente acontece no Ocidente, reconquistando a “humanização” dos espaços. A luz, elemento ao
Fig. 32 - Pavilhão do Japão para a Exposição Internacional de 1992, Sevilha, Espanha. FONTE: DAL CO, 2000: 380–3.
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
79
mesmo tempo físico e imaterial, contribui para a criação da forma arquitetônica, uma vez que todos os elementos do edifício se articulam a partir de suas arestas obscuras e iluminadas.
Fig. 33 - Da esquerda para a direita: Casa Azuma, Osaka, 1976. Igreja no Monte Rokko, Kobe, 1986; Igreja da Luz, Osaka, 1989. FONTE: ENDO, 2017: 20; 23; 116.
3. A COMPLEXIDADE ESPACIAL DE TADAO ANDO: DOIS BREVES ESTUDOS DE CASO O espaço, segundo Coutinho (1977, apud LEITÃO; LACERDA, 2016: 809), é a composição do vazio. A destinação desse espaço, baseada na inclusão do indivíduo, distin¬gue o espaço da arquitetura de outros possíveis espaços existentes na natureza e dos quais se ocupam outros cam¬pos disciplinares (ZEVI, 1977, apud LEITÃO; LACERDA, 2016: 814). A espacialidade na obra de Ando se propõe a ir além: busca auxiliar o ser humano a “descobrir um novo relacionamento com a natureza”. E esse resgate da humanização revela uma crítica à efemeridade Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
do industrialismo tardio da segunda metade do século XX, época marcada pela preocupação com estados mentais que buscassem reaver alguma espiritualidade (CURTIS, 2008: 670).
Fig. 34 - O momento em que a luz toca a materialidade na obra de Tadao Ando. Casa Koshino, Ashiya-shi, Japão, 1984. FONTE: CURTIS, 2008: 641.
3.1. MUSEU DE ARTE DE CHICHU, ILHA DE NAOSHIMA, KAGAWA, JAPÃO. 2004. Localizado na ilha de Naoshima e cujo projeto fora iniciado em 1992, o museu de arte de Chichu abriga a coleção pessoal de Soichiro Fukutake, onde Ando buscou configurar um local em que o processo artístico fosse reinventado e um ambiente onde houvesse um embate entre espectador e arte, como explica ele próprio: “Quero moldar o espaço com espírito delicado e artesanal. Porém estou disposto a penetrar neste espaço utilizando violência” (ACAYABA, 2008). Sendo o museu o edifício principal da ilha, o arquiteto o implantou de modo semienterrado no
terreno, delineando um percurso sinuoso – propício ao tema de projeto – e subvertendo a topografia e o próprio modo de se relacionar com a arte.
Em outros museus de arte, obras são objetos a serem observados; neste museu, no entanto, os trabalhos devem ser experimentados com todo o corpo. Naturalmente, não será possível experimentar
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
81
as obras de arte dessa maneira sem a ajuda do espaço arquitetônico. Visto de outra maneira, o Museu de Arte de Chichu é um laboratório subterrâneo. É uma tentativa ambiciosa de criar espaços onde os visitantes possam experimentar as obras de maneira pura, usando o ambiente subterrâneo. Nele estamos
isolados do mundo exterior, nossa percepção se acentua. (FURUYAMA, 2006) O museu representa uma tentativa de fusão entre geometria e natureza, que são opostos um ao outro (FURUYAMA, 2006). No edifício, Tadao Ando mesclou sua linguagem arquitetônica particular, imbuída da simplicidade japonesa, com referências greco-romanas, que expressam sobriedade e rigor. A cada trecho do edifício, é destinada uma obra de arte. A indivi-
Fig. 35 - Museu de arte de Chichu, ilha de Naoshima, província de Kagawa, Japão, 2004. FONTE: JODIDIO, 2008: 262.
82
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
83
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos Fig. 36 - Esquema simplificado da implantação do museu no terreno, que evidencia a busca pela geometria simples. FONTE: FLORES, 2016.
dualização das partes concede diversidade ao todo e proporciona a seu usuário uma continuidade física e a maximização da experiência estética, tanto das obras de arte em si como do próprio edifício. As formas contidas de Ando apresentam sua materialidade e caráter unitário como valores máximos, renunciando elementos secundários para expressar as ideias básicas, um tipo de arquitetura que é produzido apenas em circunstâncias determinadas (MONTANER, 1997: 164).
84
A transição entre os espaços, que proporciona distintas experiências, é marcada pelos jogos de luz e sombra, aspecto inerente à obra de Tadao Ando: “[...] não há um único momento previsível enquanto você caminha pelo prédio. [Ando] se recusa a se sujeitar pela convenção, mas sim
Fig. 38 - Espacialidade interna do museu de arte de Chichu, na ilha de Naoshima. FONTE: FLORES, 2016.
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
pelos sentimentos5” (FLORES, 2016). A incorporação das obras de arte na arquitetura tende a ampliar seus significados, uma vez que o olhar não identifica com precisão o limite entre ambas; esses significados se conectam às sensações proporcionadas pelo espaço de Ando, que, preenchido pelo vazio, se expande e se desdobra em múltiplas possibilidades de reconexão com o próprio ser.
to ao centro contrasta com o teto branco e configura uma possível alusão ao Yin e Yang e a seu significado implícito, isto é, a dualidade de todos os elementos que existem no universo. As peças de madeira nas paredes colocam em evidência a vinculação de Ando ao Regionalismo crítico e a presença da luz natural, que preenche e monumentaliza o espaço, revela a autoria do projeto.
A sala que abriga a obra Time/Timeless/ No Time (Walter De Maria, 2004) dispõe de uma escadaria que remete à entrada de uma igreja e simboliza a ascensão ao céu, representado pelos rasgos na estrutura de concreto6. A esfera de granito pre-
O museu configura um percurso que corta a paisagem montanhesca, percorre o céu e conforma um movimento contínuo do corpo do edifício dentro da terra7 (ACA-
Fig. 39 - Time/Timeless/No Time (Walter De Maria, 2004). FONTE: ACAYABA, 2008.
5 Tradução livre de: “[...] there is not a single predictable moment as you walk through the building. He refuses to bound by convention, instead by feelings.” 6 Segundo Montaner (2001: 261), a obra de Ando é “quase que
exclusivamente feita com concreto armado”, que, de acordo com Jones (2015: 395, é moldado no local e “meticulosamente detalhado”. A precisão e densidade de detalhes são, segundo Frampton (2003: 394), cruciais para a “qualidade reveladora de suas formas quando sob a luz”. 7 Segundo Acayaba (2008), “chichu” (chikyū, 地球) significa “terra” em japonês.
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
85
86
Fig. 40 - Espelho d’água no anexo do museu de arte de Chichu. FONTE: ACAYABA, 2008.
YABA, 2008). A presença da água conecta virtualmente o interior do edifício ao mar de Seto que banha a ilha de Naoshima. O espelho d’água, que reflete os elementos construídos ao seu redor, alude à pureza que esse elemento natural simboliza. O significado da arte é, desse modo, amplificado: Ando amarra a funcionalidade do museu à fruição estética, que, por meio do concreto artificial, desperta a natureza que há na individualidade de cada ser humano.
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
3.2. CENTRO ROBERTO GARZA SADA, DE ARTE, ARQUITETURA E DESIGN (CRGS), UNIVERSIDADE DE MONTERREY (UDEM), MONTERREY, MÉXICO. 2013.
O Centro Roberto Garza Sada, de Arte, Arquitetura e Design da Universidade de Monterrey foi o primeiro projeto de Tadao Ando construído no México. Alcunhado “Porta da Criação” devido ao rasgo monumental em seu vão de acesso, que remete à iniciação da carreira do estudante e faz deste um elemento simultaneamente simbólico e estrutural, é constituído de uma qualidade espacial que, mais uma vez, representa a concretização do caráter autônomo e autorreferencial do arquiteto e que, ao mesmo tempo, advém da relação abstrata com o lugar onde está inserido (MONTANER, 1997: 200). Ando compara a “barriga” de concreto no vão de acesso a uma “vela”, “que serve para ajudar a navegar nas correntes da criatividade e do artístico, porque a viagem pessoal – as afirmações do “autodidata” – é o agente fundamental de toda a aprendizagem” (SOUTO, 2013).
Os particulares rasgos minimalistas na obra de Ando remetem ao Minimal Art, tendência artística que surgiu na segunda metade do século XX a partir do termo cunhado por Richard Wollheim (1923– 2003), que refletia o esforço manual mí-
87
Seu local de implantação é emoldurado pela cadeia montanhosa que predomina na cidade, a maior de Nuevo León, estado no nordeste do país. Com aporte da natureza circundante, o arquiteto busca conexões visuais por meio dos rasgos precisos nas fachadas, que convidam a iluminação natural para o interior do edifício. No museu de arte de Chichu o uso da luz se relaciona em grande medida à percepção do espaço; já o tema educacional exige maior rigor e controle desse elemento, pois, nesse caso, ele está associado ao rendimento e desempenho dos alunos. Ando não descarta, no entanto, o uso da luz natural como uma das principais diretrizes projetuais. Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
Fig. 42 - Vão no acesso ao Centro Roberto Garza Sada, de Arte, Arquitetura e Design. FONTE: Pinterest, 2015. Disponível em: <https://br.pinterest.com/pin/50946977 6577597235/?lp=true>. Acesso em: 08 de set. 2019.
Fig. 41 - Centro Roberto Garza Sada, de Arte, Arquitetura e Design, Monterrey, México, 2013. FONTE: SOUTO, 2013.
88
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
8 Em Depois do movimento moderno: arquitetura da segunda metade do século XX (2001), Montaner reitera que “Tadao Ando propôs uma arquitetura minimalista de volumes puros e concreto armado” (p. 117).
tada pelos próprios materiais empregados no edifício (MONTANER, 1997: 189–190), sem necessidade de recorrer a outros subterfúgios. Para conformar espaços propícios à realização de palestras, Ando recorre à tipologia clássica da arena semicircular, cujas propriedades acústicas são propiciadas, sobretudo, por sua geometria; desse modo o arquiteto não se apoia em sistemas artificiais de amplificação de som, mas na própria forma física da arquitetura como possibilitadora de uma efetiva propagação sonora. Destaca-se, nesse caso,
89
Fig. 43 - Rasgos precisos nas fachadas de concreto do Centro Roberto Garza Sada, de Arte, Arquitetura e Design. FONTE: Dezeen, 2013. Disponível em: <https://www.dezeen.com/2013/10/02/centro-roberto-garza-sadade-arte-arquitectura-y-diseno-by-tadao-ando>. Acesso em: 08 de set. 2019.
nimo para criação de obras de arte, isto é, pinturas e esculturas (FARTHING, 2011: 520). Embora essa estética tenha sido inicialmente incorporada por um grupo de escultores norte-americanos na década de 1960, no âmbito da arquitetura, os rasgos minimalistas aparecem de modo reiterado na obra de arquitetos de diferentes gerações e contextos culturais. Essencialmente, o objetivo do caráter minimalista da obra de Ando8 é buscar a expressão de uma materialidade que seja represen-
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
Fig. 44 - Fachadas transparentes e iluminação artificial no interior do edifício. FONTE: SOUTO, 2013.
90 o papel da teoria e da história da Arquitetura, que fornece ao arquiteto o repertório necessário para a implementação de conceitos arquitetônicos da Antiguidade em projetos contemporâneos. As arenas semicirculares, cujas aberturas amplas otimizam a ventilação natural no interior do edifício e oferecem ao usuário uma visão estendida do horizonte, alcançam plenamente os objetivos aos quais o espaço de Ando se destina: por entre vãos e perspectivas visuais, surge a sensação de flutuar sobre o concreto que, apesar de fisicamente pesado, proporciona leveza visual e serenidade espiritual mediante seus vazios. Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
Seus edifícios de concreto aparente seguem o Le Corbusier neobrutalista dos anos cinquenta, mas o tratamento do concreto é completamente refinado. Porque Tadao Ando é, antes de tudo, um especialista profissional na delicada construção de edifícios em um concreto aparente que acaba atingindo a fragilidade, suavidade e lu-
minosidade do papel ou da seda9. (MONTANER, 1997: 187) Conforme exposto previamente, a obra de Tadao Ando busca criar a essência do espaço com base em formas arquetípicas, isto é, segundo princípios formais lógicos, imutáveis e atemporais. Essa tentativa de 9 Tradução livre de: “Sus edificios de hormigón visto siguen al Le Corbusier neobrutalista de los años cincuenta, pero el tratamiento del hormigón es totalmente refinado. Porque Tadao Ando es, ante todo, un profesional especialista en la delicada realización de edificios en un hormigón visto que acaba alcanzando la fragilidad, suavidad y luminosidad del papel o la seda.”
91
Fig. 45 - Arenas semicirculares no Centro Roberto Garza Sada, de Arte, Arquitetura e Design. FONTE: SOUTO, 2013.
Fig. 46 - Composição de vazios no Centro Roberto Garza Sada, de Arte, Arquitetura e Design. FONTE: Dezeen, 2013. Disponível em: <https://www.dezeen.com/2013/10/02/ centro-roberto-garza-sada-de-arte-arquitectura-y-disenoby-tadao-ando>. Acesso em: 08 de set. 2019.
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
resgate da estrutura “oculta e profunda” no âmbito das artes tem sido observada, segundo Montaner (1997: 199), da filosofia grega até o estruturalismo contemporâneo. No Centro Roberto Garza Sada, de Arte, Arquitetura e Design – um edifício educacional –, o arquiteto manipula complexas variáveis de modo visualmente simples e materializa um espaço funcionalmente artístico que busca, sobretudo, conformar um lugar de refúgio mental, onde as incertezas da vida contemporânea são atenuadas em face das perspectivas futuras de aprendizagem. CONSIDERAÇÕES FINAIS
92
Por meio da análise de dois edifícios de Tadao Ando, os quais pressupõe-se conterem os aspectos essenciais de sua obra, foram observados elementos que expressam um modo particular no qual o usuário experimenta o espaço arquitetônico. Esses elementos se interconectam e dispensam a junção de componentes secundários, o que revela que a arquitetura de Ando, embora baseada em formas geométricas simples e primárias, é provida de uma peculiar complexidade espacial. A habilidade do arquiteto para conformar esse tipo de espaço advém de seu repertório cultural, cujos pressupostos têm sido considerados e representados em seus edifícios de modo reiterado, inserindo-o no movimento do Regionalismo crítico descrito por Frampton em História crítica da arquitetura moderna (1980). A espacialidade de Ando proporciona ao usuário múltiplas maneiras de despertar Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
sensações, sobretudo mediante o resgate com a natureza circundante. O exterior adentra o interior de seus edifícios; elementos naturais e artificiais interagem; visuais são criadas e, formas arquitetônicas, manipuladas por meio dos jogos de luz e sombra intrínsecos à sua obra. Esse trabalho de composição distingue e singulariza sua arquitetura, que comprova a possibilidade de junção efetiva entre funcionalidade espacial e sensibilidade ao espaço. Conforme aponta o próprio arquiteto,
[...] meu objetivo não foi comungar com a natureza de modo como ela é, mas transformar o significado da natureza através da arquitetura. Em minha opinião, quando isso acontece o homem descobre uma nova maneira de relacionar-se com a natureza. (ANDO, 1989, apud FRAMPTON, 2003: 415) Embora não esgote o assunto, este artigo buscou inspirar estudantes e arquitetos a perseguirem, em seus projetos, o viés “humano” da arquitetura, isto é, aspectos que convertam o espaço físico comum em uma atmosfera convidativa ao olhar, ao ouvir e ao sentir. Ao possibilitar o resgate desse viés, que tem sido perdido nos últimos séculos, a arquitetura reassume seu valor intrínseco, original e intransferível.
93
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
REFERÊNCIAS ACAYABA, Marina. Naoshima, a ilha de Tadao Ando. Arquiteturismo. São Paulo, ano 02, n. 021.02, Vitruvius, nov. 2008. Disponível em: <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/02.021/1474>. Acesso em: 03 mar. 2019. ANDO, Tadao. Discurso de aceitação: Tadao Ando. 1995. Disponível em: <http:// www.pritzkerprize.com/1995/ceremony_ speech1>. Acesso em: 18 abr. 2019. AUPING, Michael. Conversas com Michael Auping. Barcelona: Gustavo Gili, 2003.
94
BENEVOLO, Leonardo. Arquitetura do novo milênio. São Paulo: Estação Liberdade, 2007. COUTINHO, Evaldo. O espaço da arquitetura. São Paulo: Editora Perspectiva, 1977.
DIAS, Sarah Frances; DURÃO, Maria João. A arquitectura como arte no espaço espiritual de Tadao Ando. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DA ACADEMIA DE ESCOLAS DE LÍNGUA PORTUGUESA: ARQUITETURAS DO MAR, DA TERRA E DO AR, 3, 2014. Lisboa. p. 1–10. Disponível em: <https://www.academia. edu/29362835/A_Arquitectura_como_ Arte_no_Espa%C3%A7o_Espiritual_de_ Tadao_Ando>. Acesso em: 07 set. 2019. ENDO, Vitor Massayuki. Tadao Ando: modernidade e tradição. 2017. 208 f. Monografia (Graduação em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo São Paulo, 2017. FARTHING, Stephen. Tudo sobre arte: os movimentos e as obras mais importantes de todos os tempos. Rio de Janeiro: Sextante, 2011.
CURTIS, William. Arquitetura moderna desde 1900. Porto Alegre: Bookman, 2008.
FLORES, Maria. Chichu Museum: darkness before light. 2016. Disponível em: <https://archiologist.wordpress. com/2016/10/03/chichu-museum>. Acesso em: 08 set. 2019.
DAL CO, Francesco. Tadao Ando: complete works. Londres: Phaidon Press, 2000.
FRAMPTON, Kenneth. História crítica da arquitetura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2003. FURUYAMA, Masao. Ando. Londres: Taschen, 2006. JODIDIO, Philip. Ando: Complete works 1975–today. 2019 edition. Colônia: Taschen, 2019.
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
JONES, Denna. Tudo sobre arquitetura. Rio de Janeiro: Sextante, 2015. LEITÃO, Lucia; LACERDA, Norma. O espaço na geografia e o espaço da arquitetura: reflexões epistemológicas. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 18, n. 37, p. 803– 22, set/dez 2016. Disponível em: http:// www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext& S2236-99962016000300803&lng=pt&tlng=pt. Acesso em: 18 mai. 2019. MONTANER, Josep Maria. La modernidad superada: arquitectura, arte y pensamento del siglo XX. Barcelona: Gustavo Gili, 1997. MONTANER, Josep Maria. Depois do movimento moderno: arquitetura da segunda metade do século XX. Barcelona: Gustavo Gili, 2001. OLIVEIRA, Thiago. Arquitetura: sobre espaço e tempo. 2017. Disponível em: <https://wsimag.com/pt/arquitetura-e-design/20924-arquitetura-sobre-o-espaco-e-tempo>. Acesso em: 28 mai. 2019.
escola de design por Tadao Ando no México. 2013. Disponível em: <https://www. papodearquiteto.com.br/o-portao-da-criacao-escola-de-design-por-tadao-ando-mexico>. Acesso em: 04 mar. 2019. TEIXEIRA, Joana. A luz na obra de Tadao Ando: o papel da matéria e da proporção na sua valorização. 2014. 181 f. Dissertação (Mestrado Integrado em Arquitetura) - Faculdade de Arquitetura e Artes, Universidade Lusíada de Lisboa, Lisboa, 2014. URIBE. Begoña. Em foco: Tadao Ando. 2017. Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/br/773468/em-foco-tadao-ando>. Acesso em: 29 abr. 2019. ZABALBEASCOA, Anatxu. El taller del arquitecto. Barcelona: Gustavo Gili, 1996. ZEVI, Bruno. Saber ver a arquitectura. Lisboa: Arcádia, 1977.
PORTOGHESI, Paolo. Depois da arquitectura moderna. Lisboa: Edições 70, 1985. SCHIELKE, Thomas. Quando a luz encontra o concreto: reflexões sobre a obra de Tadao Ando. 2019. Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/br/915357/ quando-a-luz-encontra-o-concreto-reflexoes-sobre-a-obra-de-tadao-ando> Acesso em: 24 ago. 2019. SOUTO, Emanuel. O portão da criação: Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
95
96
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
PALAVRAS-CHAVE: Morfologia urbana, Qualidade espacial, Centro urbano
97
Stephany Rodrigues dos Santos
A pesquisa se estrutura sobre quatro eixos: 1) a compreensão da formação do campo disciplinar da morfologia e o contexto histórico; 2) estudo de conceitos e princípios importantes para a análise da forma-espaço e os atributos qualificadores do espaço urbano; 3) as visões da morfologia sobre o centro urbano e modelos de intervenções que vigoram; e 4) o estudo e exemplo da cidade de Imperatriz- MA, para a qual se avaliam aspectos de sua forma e do papel de seu centro. O objetivo principal é compreender quais aspectos configuracionais implicam sobre a qualidade físico-ambiental da cidade, principalmente no que diz respeito a sua área central. Alguns resultados do estudo permitiram constatar a importância desse recinto para o desenvolvimento das atividades humanas e os aspectos a serem considerados nas reestruturações de sua forma, visando a qualidade do espaço e a urbanidade, explicitando o caso de Imperatriz.
FORMA URBANA E QUALIDADE ESPACIAL ESTUDOS SOBRE AS POSSIBILIDADES DE INTERVENÇÃO NO CENTRO DE IMPERATRIZ, MA
Fig. 47 - Vista da cidade de Imperatriz, localizada no estado do Maranhão. Fonte: GOOGLE EARTH, 2018.
RESUMO
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
INTRODUÇÃO Alguns aspectos da cidade podem ser compreendidos por meio da sua composição espacial, urbana e arquitetônica, ou seja, da sua forma ou de seu desenho urbano. Nesse sentido, é possível afirmar que há relações entre a forma da cidade (morfologia) e a qualidade do espaço e da vida urbana. No entanto, de que maneira a morfologia da cidade influencia a qualidade do meio urbano, seu uso, atividades e o convívio entre pessoas? Quais aspectos configuracionais do ambiente urbano podem melhorar a qualidade de vida na cidade, para pedestres e para espaços públicos?
98
O presente estudo pretende, por meio da abordagem da morfologia e do campo disciplinar do Desenho Urbano, em sentido abrangente, compreender alguns dos aspectos que aproximam a composição da forma urbana e a qualidade de uso do espaço. E a partir destes entendimentos, trazer a essa discussão o caso da cidade de Imperatriz, no estado do Maranhão, cujo centro é uma área de grande valor histórico, simbólico e de potencial urbanístico, mas que vem perdendo ao longo do tempo a multifuncionalidade de seus usos, atividades e pessoas. A investigação visa buscar aspectos adequados para avaliação desse recorte da cidade e seu desempenho quanto à qualidade espacial, no sentido de contribuir com futuras intervenções para resgatar a urbanidade do centro. Para tanto, o artigo divide-se nas seguinRevista CAU/UCB | 2019 | Artigos
tes partes: 1ª) A forma urbana como disciplina e campo de análise e o contexto de alguns marcos históricos; 2ª) Conceitos e princípios atuais importantes para compreensão da forma-espaço e seus aspectos físico-ambientais que contribuem para a qualidade de vida no espaço urbano; 3ª) Definições dentro da morfologia sobre o centro urbano e modelos de intervenções que vigoram (as REs); e 4ª) Compreensão histórica do desenvolvimento urbano da cidade de Imperatriz (MA) e sua influência na forma-espaço do seu centro. Contudo, o objetivo principal do estudo é caracterizar quais aspectos configuracionais implicam sobre a qualidade físico-ambiental da cidade, principalmente no que diz respeito a sua área central; a importância desse recinto para o desenvolvimento das atividades humanas e quais aspectos devem ser considerados nas reestruturações de sua forma, visando a qualidade do espaço e a urbanidade. 1 FORMA URBANA COMO DISCIPLINA E CAMPO DE ANÁLISE: CONTEXTO E MARCOS HISTÓRICOS IMPORTANTES Compreender as relações entre o desenho urbano e a qualidade de vida nas cidades parte de conceitos que se originaram na antiguidade e continuam tomando outras proporções na atualidade. Essas relações podem ser compreendidas a partir da intervenção humana sobre o ambiente natural, isto é, a origem do espaço modificado, denominado urbano, que se tornou o lócus do homem, configurando-se conforme suas aspirações e seu modo de ver
e viver no planeta. O lócus é a cidade, construída pelo homem e para o homem, processo que alterou a lógica natural do espaço. Sua configuração foi definida de maneiras diferentes, dependentes do local e do tempo, atribuindo sua forma-espaço as expectativas e necessidades do homem. Estabelecendo essas relações, Medeiros (2013, p. 183) afirma que o “lócus urbano” definiu uma relação de poder e domínio das civilizações sobre o território, adaptando-o a sua geografia ou destruindo seus aspectos naturais de acordo com as intenções espaciais idealizadas. A princípio, é importante estabelecer o conceito de cidade e as características que justifiquem o embasamento do assunto. O século XXI, por exemplo, compreende a cidade por meio da multidisciplinaridade das suas interrelações, um campo de atuação vasto. Espacialmente, o conglomerado urbano compreende as dimensões sociais, econômicas, políticas, ambientais e históricas, além de influenciar nas questões antropológicas, psicológicas, sociológicas e geográficas que atuam na relação homem-espaço. Segundo Medeiros (2013, p. 92) a cidade é um “complexo conjunto de relações”, isto é, o meio urbano concentra todas as interações individuais e coletivas do ser humano. Por isso, a forma-espaço da cidade atual define o desempenho das atividades humanas. No Renascimento, a cidade era entendida como um organismo vivo, uma perfeita
sintonia entre o divino e a natureza. A razão áurea e as relações métricas baseadas no corpo humano justificavam arquitetônica e urbanisticamente a forma-espaço do recinto urbano. Cabe ao período a definição de cidade ideal, apresentada morfologicamente através da racionalidade do traçado, aprimorado pela perspectiva, que fazia analogia à perfeição. Essa definição da cidade entendida como organismo é até os dias atuais defendida por alguns autores, sendo ela planejada ou orgânica. Lynch (1981, apud Medeiros, 2013, p.182) afirma que a cidade não é um organismo, define como produto da intenção do homem, os anseios formam o espaço urbano e só eles podem alterar sua forma.
99
Fig. 48 - Plano de Scamozzi para a Fortaleza de Palmanova, construída em 1593. Representa o ideal renascentista para o traçado das cidades. Fonte: <http://www.vitruvius. com.br/revistas/read/arquitextos/05.059/473>
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
Considerando as cidades que “nasceram” por meio da colonização espanhola, morfologicamente compõem-se no formato de grelha, a mesma utilizada no Renascimento. O traçado regulador e geométrico reafirmava o poder e o domínio sobre o território. As diretrizes eram definidas na
Espanha e aplicadas no novo território conquistado. Esse tipo configuracional do espaço era de fácil implantação e consequentemente gerava uma forma-espaço mais racional, dispondo melhor a circulação, hierarquia e articulação dos elementos do âmbito social, político e econômico.
Fig. 49 - Traçado geométrico, formato em grelha proposto pelos espanhóis para Caracas – Venezuela. Fonte: MEDEIROS, 2013.
100
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
Em contrapartida, a colonização portuguesa apresentava duas correntes morfológicas. A primeira era determinada pelo formato plano e regulador das cidades, isto é, a conformação espacial em grelha ou ortogonal, e a segunda definida pelo traçado irregular e vernáculo, ou seja, as vilas e cidades cresciam organicamente, adaptando-se ao sítio. Nesse caso, o planejamento e a definição da forma-espaço das cidades eram estabelecidos pelas características geográficas do sítio, em situações diversas de sua configuração, considerava-se aquela que implicaria no mínimo de hostilidade quanto a sua implantação. Medeiros explica,
A forma-espaço que o português implantou distinguiu-se do padrão espanhol por uma nítida associação ao sítio e pouco geometrização regulada, como a que levaria aos traçados em xadrez da América espanhola. (MEDEIROS, 2013, p. 295)
Cidades são montadas, e a rede urbana que o português criou se dá progressivamente e em caráter simultâneo em partes do mundo distintas. A fundamentação são critérios de forma-espaço específicos de associação ao território, ponderando a geografia diversa de variadas regiões do mundo.
101
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
102
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
A dicotomia que envolve as colonizações portuguesas e espanholas definiram a fisionomia de muitas cidades ao longo dos séculos. O caráter racional e geométrico, foi utilizado como premissa para a origem da cidade planejada enquanto a irregularidade da malha urbana constituiu a forma-espaço das cidades orgânicas. Analisando historicamente o processo de formação das cidades, os indícios mostram que o espaço urbano sempre foi pensado para o homem e suas atividades, por meio do planejamento e da morfologia que abrigaria essas dimensões. As cidades não se desenvolveram ao acaso. Os anseios, desejos e intenções do ser humano acompanharam sua interação com o espaço natural, o qual foi modificando-se para atender às suas necessidades. A análise morfológica das cidades renascentistas e os exemplos da colonização espanhola e portuguesa reafirmam que a forma-espaço das cidades foi estipulada pelo caráter intencional e justificada pela afirmação do poder do homem sobre a natureza. Situação semelhante que ocorre durante os séculos da era industrial, apresentada a seguir. 1.1 A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL E SUAS INFLUÊNCIAS NA FORMA DA CIDADE CONTEMPORÂNEA
novos assentamentos deveriam atender a demanda populacional em termos de moradia, trabalho, saúde e educação. O lócus é alterado por constantes mudanças ideológicas, políticas, arquitetônicas e urbanas. A Era da Máquina provocou significativas transformações na forma-espaço das cidades. A percepção do meio urbano herda novas tendências, consideradas como solução para os problemas urbanos instalados. Nessa perspectiva, o meio urbano era tratado sob premissas do Planejamento Urbano, responsável pela análise funcional e da saúde urbana, promovendo melhores condições de vida. A dialética quanto a industrialização e a urbanização na era industrial, diz respeito ao crescimento expressivo das cidades, ao passo que a demanda populacional não conseguia ser suprida, e por consequência a cidade apresentava espaços insalubres, ruas “labirínticas e intransponíveis” e aumentou o número de cortiços, causado pelo deslocamento dos habitantes do centro para a periferia. A cidade subdividiu e afastou-se das interrelações articuladas que devem compreender ambiente urbano. Medeiros afirma,
Os séculos XIX e XX marcam um importante e rápido avanço tecnológico no mundo e por consequência as cidades “incham” com a migração campocidade. Novos posicionamentos no que concerne ao meio urbano tornam-se indispensáveis, pois os Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
103
104
Com o advento do Movimento Moderno surgem novas propostas para solucionar os problemas socioespaciais instalados desde o início da era industrial, partindo de planos e paradigmas que englobaram o novo panorama arquitetônico e urbanístico empregado no tratamento das cidades, fundamentado pelos CIAMs e a Carta de Atenas. Essas relações socioespaciais se estendem às Ciências Sociais, voltando a atenção a outras correlações entre os aspectos funcionais, sociais e ambientais do recinto urbano. A abordagem do tratamento físico-ambiental das cidades no modernismo, seguiram o paradigma de estrutura em árvore, isto é, soluções espaciais atribuídas a setorização espacial dos usos urbanos e as conexões de seus recintos por meio de Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
um sistema viário planejado. O que difere das soluções colonizadoras dos espanhóis e do Renascimento explicadas anteriormente. O urbanismo moderno consistia em organizar a cidade por zonas de interesse social, comercial, institucional e de lazer, conectadas por um sistema viário hierárquico que privilegiava os veículos automotores, além do desenvolvimento de uma arquitetura que vislumbrava mais os avanços técnicos, em escalas maiores, do que a sua integração com o tecido urbano ou com a escala humana.
Fig. 51 - Representação do esquema de estrutura em árvore usado como paradigma modernista. Fonte: DEL RIO, 1990.
A ilusão urbana se desfaz em seu tamanho, e a vida se sujeita às péssimas condições de saúde, educação, acesso e circulação. A pretensa democracia é usufruída por poucos e praticamente não existe unidade naquilo dito por núcleo urbano: a cidade se fragmenta como partes que não se relacionam coerentemente com o todo. Não há unidades, e sim dispersão. (MEDEIROS, 2013, p. 291)
A morfologia urbana moderna previa a funcionalidade da cidade, compreendendo a máquina da vida urbana. Segundo Del Rio (1990, p. 38) o urbanismo proposto pelo modernismo assumiu “um modelo de Homem universal”, ditando uma dinâmica urbana calculada e reguladora, que sofreu duras críticas da própria população, por estarem insatisfeitas com as proporções da cidade, pois o desconforto ambiental e estético se fazia presente tanto nas moradias quanto nos espaços urbanos. As áreas tratadas, segundo as premissas modernistas, eram consideradas indesejáveis para a cidade, pois agrediam sua imagem e não condiziam com o novo olhar urbano. O foco estava voltado principalmente para as zonas centrais, muitas das quais as cidades originaram-se, devido sua característica de deterioro e abandono. Sob a perspectiva do novo, o planejamento dos novos espaços urbanos ou o tratamento dessas áreas abandonadas era permeado por destruições em massa, incluindo elementos culturais e históricos que faziam parte do cotidiano da população. De acordo com Vargas e Castilho (2015, p. 65) o ideal modernista “quanto à morfologia, rompe brutalmente as características do tecido urbano anterior e a relação com a vizinhança.”.
105
Fig. 52 - Mapa do Plano Voisin para Paris, desenhado por Le Corbusier em 1925. Reafirma que a morfologia abor-dada pelo modernismo, desconectava-se do traçado existente. Fonte: DEL RIO, 1990.
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
Em oposição a atitude modernista, com relação a morfologia proposta para restaurar a cidade, surgiram diversas críticas a respeito da arquitetura e o urbanismo predominante do século XX. As novas fundamentações desencadearam uma gama de soluções sobre os aspectos socioespaciais das cidades. Abre-se, portanto, outros campos de atuação que disseminaram ideais para que o espaço urbano se qualificasse e atendesse o complexo de atividades humanas. 2 CONCEITOS E PRINCÍPIOS ATUAIS: A CONSOLIDAÇÃO DO CAMPO DA MORFOLOGIA URBANA PARA COMPREENSÃO DA FORMA-ESPAÇO
106
Na década de 1960, as críticas se tornaram mais eficazes com os novos ideais arquitetônicos e urbanísticos apresentados pelo Pós-Modernismo. As propostas resultaram numa linguagem simples, envolvida de símbolos, aproximando-se naturalmente da classe média. A pós-modernidade resgatou a valorização do histórico e do passado como contextualização das obras arquitetônicas e/ou urbanas, definindo novas propostas no que se refere o tratamento urbanístico das cidades. O pós-modernismo desencadeou mudanças ideológicas e contribuiu para a construção do pensamento sistêmico. A abordagem sistêmica equivale à compreensão dos elementos que constituem um determinado organismo e tudo que influencia ou é influenciado por ele. No caso da cidade, compreende o campo vasto da interdisciplinaridade e o relacionamento de suas interpartes. Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
Fig. 53 - Exemplo de plano modernista para reurbanizar uma ĂĄrea do desmonte do Morro de Santo AntĂ´nio, no Rio de Janeiro, por Affonso e Reidy, 1948. Fonte: DEL RIO, 1990.
107
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
A nova abordagem, surge em oposição as premissas modernas, caracterizadas pelo descompromisso social, priorização do automóvel, destruição em massa de edifícios históricos, longas distâncias determinadas pela setorização e zoneamento da cidade, entre outros aspectos. A mudança de postura dessa geração pós-moderna, implica, portanto, sobre novas proposições quanto a abordagem sistêmica do meio urbano. A partir desse momento, o planejamento ganha novo impulso e se firma como base importante para a criação de recintos urbanos que atendam às necessidades da população e melhorem a qualidade espacial das cidades, compreendendo sua complexa dinâmica urbana.
108
O Planejamento Urbano desenvolve-se e amplia seu campo de atuação. Os movimentos sociais se impuseram à administração das cidades e por consequência sua abordagem política passou a incorporar os anseios da população, partindo do pressuposto de analisar e definir leis que justificassem a nova realidade. Pensar a cidade não apenas sob a perspectiva urbana e/ou arquitetônica, mas como um todo complexo de relações humanas sociais, econômicas, políticas e ambientais, incluindo a população na tomada de decisão, a qual em conjunto com o governo passaram a definir processos importantes para o desenvolvimento urbano das cidades. Segundo Del Rio,
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
“Não se pode negar, entretanto, que a partir disto os processos de planejamento se tornariam um pouco mais transparentes para a população e mais permeáveis a suas reivindicações: mais em alguns países e cidades do que em outros. Os movimentos de bairro e de grupos de cidadãos com interesses especiais, como os grupos de defesa do meio ambiente, se institucionalizariam e passaram a ser consultados e a ter voz ativa na administração e no desenho das cidades.” (Del Rio, 1990, p. 32) Da década de 1960 até por volta dos anos 2000, foram expostos os resultados da aplicação dos procedimentos do Planejamento Urbano. Contudo, apesar do engajamento social e de sua inclusão, as limitações que envolveram o Planejamento Urbano enquadraram-se em duas razões: a resistência do campo político; e a implementação dos planos, por sua carga técnica de teorias e métodos, ou seja, distante da cidade real e de seu desenho. Os questionamentos em torno do Planejamento Urbano foram essenciais para engajar o Desenho Urbano como campo
disciplinar, desenvolvendo sua influência na transformação e criação de ambiências de qualidade, surgindo para atuar com interdisciplinaridade e multidisciplinaridade dos modelos dinâmicos que respondem as demandas sociais. O Desenho Urbano surge, portanto, como novo campo de atuação para auxiliar e pôr em prática as premissas elaboradas pelo Planejamento Urbano. Não detém-se apenas no campo da arquitetura, passa para a abordagem geral da cidade, isto é, sua atuação é no campo das interrelações concomitante com a qualidade físico-ambiental do recinto urbano, isto é, a cidade passa a ser examinada sistematicamente. Del Rio (1990, p. 54) define o desenho urbano como campo disciplinar que trata da interação morfológica da cidade com a sua população, “através de suas vivências, percepções e ações cotidianas.”.
Nesse sentido, a importância do Desenho Urbano na atualidade também pode ser entendida e complementada pela definição da Ambiência Urbana. A cidade é consequência dessas interações expostas acima e considerando a interferência do homem na natureza, esse conceito compreende principalmente os aspectos físico-ambientais da morfologia urbana e sua influência ao meio ambiente e ao homem, cabendo a preocupação atual que o Planejamento Urbano e o Desenho Urbano devem abordar. Mascaró (2009) afirma que:
109
A sistemática atual do Desenho Urbano considera, como exposto no discorrer do assunto, a multidisciplinaridade do processo que deve acontecer em paralelo e considerando também os aspectos do Planejamento Urbano. A importância desse desenrolar meticuloso compete com a realidade global do século XXI, visto que atualmente as expectativas sociais a respeito da cidade, abrangem um campo vasto de interrelações com o recinto urbano. Não é apenas o tratar urbano ou arquitetônico, esses devem interagir e integrar as relações socioespaciais, definindo a qualificação da forma-espaço das cidades.
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
110
“Repensar a ambiência urbana é refletir sobre a qualidade de vida da cidade perante as atuais condições de crise global e local de maneira diferente à dos anos de 1990. A mudança nesse período tem sido grande e desfavorável. A mudança da biosfera com o aquecimento global e suas consequências catastróficas faz com que nos rendamos à evidência e reconheçamos o componente natural como base para a construção do território, necessário para o encontro entre o projeto natural e o artificial.” (MASCARÓ, 2009, p. 167) Os aspectos físico-espaciais podem ser definidos a partir do pensar nas características de uma ambiência urbana de qualidade para as cidades. Nesse contexto, desenvolveu-se desde meados do século XX muitos escritos, até hoje utilizados como roteiros de estudos e projetos urbanísticos, que buscam compreender a urbanidade e a vitalidade como contribuição do recinto urbano. Autores como Jane Jacobs, Jan Gehl, Chirstopher Alexander e Nikos Salingaros, que segundo
Silva Torres1 (2017, p. 26) escrevem sobre teorias de sucesso ou insucesso das intervenções realizadas nos espaços urbanos, decorrentes das críticas de 1960. Jacobs e Gehl descrevem sobre a importância dos estudos de planejamento dos projetos urbanos para promover a vitalidade da cidade e seus espaços públicos. Enquanto, Alexander e Salingaros “contribuem para a compreensão sistêmica e relacional do espaço urbano.” Os autores tratam vários aspectos em comum da forma urbana como capazes de promover a melhor qualidade das cidades. A exemplo da forma e dimensões das quadras, tratada por Jacobs (2007). Segundo a autora, as quadras em menores dimensões facilitam a permeabilidade dos pedestres. Os usos mistos e a variedade de tipologias construídas ampliam as possibilidades de atendimento às diversas atividades, democratizam a cidade e a movimentam em horários diferentes. Assim como, a existência de espaços públicos bem distribuídos e bem dimensionados oferecem as atividades de interação social e lazer. A acessibilidade e a mobilidade, segundo os diferentes autores tornam-se melhores à medida que se definem centralidades e “subcentralidades” mais próximas dos bairros e da atividade de moradia. Da mesma forma, a priorização do pedestre na boa forma de caminhos, calçadas e vias, contribui com a “caminhabilidade”, urbanidade e segurança. Em síntese, as características físicas da 1 O autor faz comparações importantes sobre as teorias abordadas e a convergência entre elas.
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
forma-espaço, abordadas pelos autores citados nesse capítulo, estão classificadas no quadro abaixo:
Quadro 1 - Quadro 1: Representação esquemática da análise realizada sob os aspectos físico-ambientais das cidades, baseados nos estudos de Silva e Torres (2017).
As interpelações envoltas dos conceitos explicados acima, reafirmam a importância do tratamento físico-ambiental das cidades por meio do estudo de sua Morfologia Urbana. Processo que desperta o campo das intervenções, implicando em transformações socioespaciais, que buscam integrar e qualificar a cidade.
-ambientais diversificadas devido a concentração dos seus usos e das pessoas. Esse perfil determina a grande movimentação dessas áreas, tanto no que diz respeito a circulação de transportes e pedestres quanto aos encontros interpessoais que envolvem atividades diversas da cidade, principalmente de comércio e lazer.
Ressalta-se a importância em se considerar, no âmbito das análises, estudos e projetos, as características morfológicas da cidade de acordo com as necessidades socioespaciais do recinto urbano, simultaneamente valorizando o contexto histórico e a qualidade de vida dos seus habitantes, por meio do planejamento de suas interpartes e da elaboração do desenho urbano que contribua e desenvolva uma ambiência urbana distinta físico e ambientalmente.
As áreas urbanas centrais e de cidades históricas se configuram quase sempre em torno do núcleo original das cidades, que pode ter um conjunto urbano tombado ou não. Ao longo de sua existência, essas áreas passam, de maneira geral, por processos de transformação urbana que resultam em situações de declínio e/ou mudança na dinâmica econômica, esva-
3 O CENTRO URBANO: CARACTERÍSTICAS DA SUA FORMA-ESPAÇO Os aspectos morfológicos do centro das cidades evidenciam características físico-
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
111
ziamento de usos e funções, abandono e degradação dos imóveis, além da precariedade dos espaços, equipamentos e serviços urbanos. (BRASIL, 2011, p. 21)
112
A descrição é do Manual de Orientação do Ministério das Cidades em parceria com o Iphan, que aborda a gama de relações em torno da área central e a sua importância na dinâmica da cidade. Pode-se afirmar que a composição espacial do Centro representa em grande parte o núcleo inicial do nascimento das cidades e com o processo de expansão territorial das cidades, essas áreas tornaram-se importantes eixos de comércio e serviços, além da salvaguarda do patrimônio arquitetônico ou urbano. Atualmente, as áreas centrais abrangem o dinamismo social, econômico e político da vida das cidades, todavia, a existência do centro como foco dos encontros e das atividades urbanas nem sempre esteve presente como ponto central da articulação urbana. O novo olhar sobre esses espaços urbanos permeia meados do século XX, conforme explicado no capítulo anterior, devido o advento de novas propostas urbanas, considerado assim o principal objeto de estudo e implantação de projetos de intervenções. Sobre essas hipóteses Vargas e Castilho (2015, p. 6) explicam que “durante todo o século XX e, em especial, após o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), assistiu-se à dinâmica das Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
proposições e dos questionamentos sobre a vida urbana e, consequentemente, sobre a atividade nos centros urbanos.” As indagações quanto ao tratamento dos centros urbanos determinaram-se justamente por sua configuração espacial e sua influência na malha urbana da cidade. Na década de 1960, as áreas centrais constituíam-se no recinto urbano como espaços ociosos e em deterioração. Ocorre que a vida dessas áreas foi perdida pelo seu esvaziamento, por consequência de um processo de expansão periférica, que consequentemente aumentou a quantidade de subúrbios nas cidades. Segundo Del Rio (1990, p. 20) isso foi crucial para os centros urbanos deteriorarem-se “física, econômica e socialmente”, a dinâmica da cidade foi alterada, voltando a atenção aos subúrbios, para onde migraram a população e as atividades de comércio e cultura, enquanto os imóveis das áreas centrais sofriam com o descaso e o abandono, formando os cortiços. Vale ressaltar que o abandono dos centros urbanos desperdiça os investimentos já feitos: essas áreas possuíam infraestrutura urbana, áreas históricas, comércio e serviços. Enquanto isso, o posicionamento à época ditou a implementação de premissas modernistas sob a perspectiva do “arrasa quarteirão”. É a partir desse momento, que a década de 1960 se torna decisiva, pois desperta para novos valores sociais, os quais se opõem a realidade instalada pelo Modernismo, explicada em item anterior.
A qualidade da articulação que as áreas centrais podem atribuir ao ambiente urbano, é papel decisivo do movimento natural que ocorre com esta e outras zonas da cidade. A articulação aqui tratada, refere-se aos eixos viários de maior fluxo e suas conexões, a circulação de pedestres, a variedade de usos, a concentração de empregos e as opções de lazer que atribuem ao centro características que atraem as pessoas. A interpretação de Medeiros (2013, p. 121) classifica essa articulação como “princípio de atração”, “pois se assume que as viagens são geradas sempre de um para o outro lugar, a depender do poder de atração que certas formas ou áreas construídas têm no contexto do sistema urbano como um todo.” Todas essas características do centro foram decisivas para o estabelecimento de processos de intervenções no decorrer do século XX até o XXI, com a premissa de restaurar os espaços ociosos da cidade ou propor uma nova morfologia urbana, principalmente, nas áreas centrais. A abordagem implica também sobre o Planejamento e Desenho Urbano que andam atrelados com os planos intervencionistas dessas áreas, ambos desenvolvidos paralelamente. Usualmente, observam-se nos projetos de intervenções diversas terminologias, tais como: renovação urbana, revitalização do centro, reutilização, dentre outros. A contribuição e os objetivos proposto por cada “REs”2 configuram situações e siste2 A partir da década de 1960, as ações em sítios com preexistências significativas introduzem o reconhecimento de valor histórico e cultur-
mas próprios de cada tipo de intervenção, influenciando a morfologia do recinto urbano e consequentemente influenciando sobre a vida das pessoas. O tipo de intervenção terá grandes impactos na configuração espacial e na ambiência urbana, podendo influenciar, para o bem ou para o mal, as relações sociais, espaciais e ambientais, a qualidade de vida da cidade e consequentemente dos seus habitantes. 3.1 OS TIPOS DE INTERVENÇÕES E A VALORIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO As novas posturas que surgem como crítica ao Modernismo, explicadas anteriormente, tornaram-se a fonte principal para o surgimento dos conceitos que serão abordados a partir de agora. Principalmente, no que tange a responsabilidade quanto ao patrimônio e a preservação das características históricas e culturais das cidades. Serão importantes para entender como os aspectos morfológicos puderam contribuir para a análise do desenvolvimento das manchas urbanas durante seu processo de consolidação como cidade. De início, o processo de intervenção que prevaleceu foi a Renovação Urbana, entre as décadas de 1950 e 1970. A principal característica dessa intervenção é o conceito do “arrasa quarteirão” justificado no capítulo anterior sobre a Revolução Industrial. Sob a perspectiva do novo, al. Essa nova postura em relação ao meio ambiente construído indica uma atitude crítica às práticas precedentes de demolição de extensas áreas da cidade, para fins de expansão e/ou substituição de usos e edificações. Os planos urbanísticos passam a ganhar denominações sempre acompanhadas do prefixo “re” – reabilitação, revitalização, entre outras. (VARGAS e CASTILHO, 2015, p. 61)
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
113
desligando-se de todas as prerrogativas sociais, culturais e históricas, esse tipo de intervenção destruiu grandes áreas para implantar novos sistemas urbanos baseados nos paradigmas do Movimento Moderno. Impulsionaram diversas renovações nos Estados Unidos e na Europa, fortalecido pelo interesse em comum entre os idealizadores do projeto e seus patrocinadores, desconsiderando os interesses dos habitantes. Segundo Vargas e Castilho (2015, p. 9) “prefeitos, empresários e equipes profissionais de alto nível desenvolveram os projetos, e os cidadãos tiveram uma atuação secundária, apenas como agentes de cristalização e legitimação dos planos então elaborados.”
114
O caso dos Estados Unidos mostra que essa intervenção tomou grandes proporções e destruiu grande parte do acervo histórico arquitetônico e urbano. Constituíam novas propostas que envolviam: o sistema viário, uso do solo em grande escala, novas áreas verdes, entre outros. Na Europa, as renovações partem da proposição de reconstituir as áreas arruinadas pela guerra e de melhorar os problemas de congestionamentos. Diferentemente do anterior, os europeus priorizavam a preservação dos edifícios históricos e a participação popular de forma direta conseguindo manter grande parte dos monumentos. Essas abordagens diferentes do mesmo conceito contribuíram para que fossem definidas outras bases e intenções sobre novas REs.
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
Fig. 54 - Exemplo de implantação de um shopping-center, que rompe com a características morfológicas da cida-de de Stonestown, San Francisco. Fonte: DEL RIO, 1990.
115
Fig. 55 - Exemplo de projeto de renovação na Europa, para recuperar áreas no pós-guerra. Centro Multiuso Bar-bican, Lodres, por Chamberlain-Powell & Bon, 1954. Fonte: DEL RIO, 1990.
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
A proposta de Preservação Urbana, que surge a partir da década de 1970 e persiste até 1990, surgem sob a premissa da salvaguarda dos monumentos históricos e da transformação do centro urbano como cenário comercial, considerando a relevância das atividades tradicionais para o consumo coletivo. O tratamento dos centros passa ser prioridade e de âmbito comercial, sendo parte integrante da cidade, estabelecendo empreendimentos diferenciados e autênticos como shoppings centers com “nova roupagem”. Vargas e Castilho explicam
116
Essa estratégia baseou-se na história do próprio comércio como um componente orgânico da cidade, qualificando os seus centros e os pontos a eles devidamente associados. Os shoppings centers centrais buscavam incorporar comerciantes locais, desprezar as grandes lojas, dar ênfase à mistura de usos urbanos. (VARGAS, 2000 apud VARGAS e CASTILHO, 2015, p. 18) Esse tipo de intervenção foi envolvida pelo paradoxo da criação de cenários para atrair o público para as áreas centrais, porém ao mesmo tempo conduziu a exclusão social desses espaços. O patrimônio Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
histórico teve como principal objetivo a atração do turismo como incentivo econômico para a cidade, e essa associação culminou em um caráter reprodutivo de obras antigas, não considerando o meio urbano e a cultura como parte do patrimônio. A falta de interesse em relação a inclusão das camadas populares e o apelo social da Preservação Urbana, instigaram a origem de novas propostas de intervenções. A mudança de século não foi apenas uma mudança cronológica, mas uma consagração da tecnologia e seus meios de comunicação. A globalização mudou o cenário mundial. Foram estabelecidas novas visões sobre a cidade e suas dimensões urbanas. A nova era gera um meio urbano destinado ao consumo dos habitantes e visitantes, preservando seus antecedentes históricos e trazendo uma abordagem mais ampla em relação ao tratamento de suas cidades.
A Reinvenção Urbana surge com o intuito de somar os aspectos da preservação do patrimônio histórico com a recuperação de outras áreas da cidade como orlas e antigas ferrovias, além do centro, resgatando a identidade desses lugares por meio da união entre projetos arquitetônicos e urbanísticos, o que fez grande diferença nesse tipo de intervenção. As propostas incorporaram o marketing para atrair mais pessoas para a cidade, reestabelecendo a economia urbana. Os projetos arquitetônicos e urbanísticos ganham proporções mundiais e servem como “elemento catalisador”3. A influência do pensamento sistêmico também implica sobre os aspectos morfológicos da Reinvenção Urbana, havendo uma maior integração e preocupação com outros componentes essenciais ao desenvolvimento da qualidade de vida dos recintos urbanos, ou seja, contribuição à dimensão socioespacial e as características físico-ambientais das cidades. A consideração desses aspectos deve perpassar pelo campo comunitário, atribuindo seu sentido de lugar, ou seja, a cidade começa a ser analisada a partir das suas relações interdisciplinares. “A melhoria da qualidade de vida urbana nos centros e o aumento da sua atração externa deveriam ser construídos para os seus cidadãos e com sua participação.” (VARGAS E CASTILHO, 2015, p. 45)
3 Termo utilizado por Vargas e Castilho, 2015. Refere-se ao tratamento das áreas centrais, no que concerne o campo do planejamento e do desenho que melhor qualifiquem o espaço urbano.
Analisando os três casos de intervenções, é importante destacar que eles passam a incluir o planejamento do espaço urbano concomitante com seu desenho espacial, entretanto o ambiente passa a ser tratado sistemático e morfologicamente a partir da virada do século, buscando a restauração da qualidade físico-ambiental da cidade, que diz respeito a sua ambiência, melhorando o relacionamento dos habitantes com a cidade. Contudo, são os aspectos outorgados pela Reinvenção Urbana que condizem com as premissas intervencionistas da atualidade. As dimensões físico-ambientais e as interrelações do ser humano com o espaço construído passam a estar atrelados as com as funções da cidade. A cidade é entendida morfologicamente, isto quer dizer, que são considerados além do planejamento, o seu desenho urbano, a ambiência gerada por ele e a influência positiva que ambos expressam na qualidade de vida dos seus habitantes. Aspectos como escala humana, diversidade, relação das pessoas com os espaços públicos e edificações, dão a principal tônica do perfil desse modelo, absorvendo aspectos que, como visto, são capazes de atribuir qualidade ao espaço urbano. 4. O EXEMPLO DE IMPERATRIZ: DIRETRIZES PARA UM MODELO DE INTERVENÇÃO A partir de agora as implicações das abordagens vistas até aqui serão dirigidas à cidade de Imperatriz, localizada no oeste do estado do Maranhão, analisando qual Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
117
o modelo intervencionista pode melhor tratar o seu desenho urbano, resgatando a qualidade do espaço e da vida na cidade. A cidade de Imperatriz enquadra-se no perfil de muitas cidades brasileiras, no que se refere ao local escolhido para sua implantação e também quanto ao seu desenvolvimento urbano no decorrer nos anos, influenciado pela industrialização nas décadas de 1950 até 2000, que transformou a configuração espacial dessas cidades.
118
Imperatriz configura-se atualmente em dimensão territorial e densidade demográfica como cidade média, com aproximadamente 254.569 habitantes segundo o censo de 2017 do IBGE, sendo assim a segunda maior cidade do estado com o segundo maior PIB, atrás apenas da capital São Luís. Para os estados do Maranhão, Pará e Tocantins, a cidade forma um importante entreposto comercial e industrial, agregando à rede a participação no desenvolvimento econômico da Região Tocantina e Amazônica. O território foi descoberto em decorrência das inspeções territoriais determinada pelos bandeirantes que saíram de São Paulo entre os séculos XVI e XVII para explorar as terras ao Norte do país. A cidade nasceu às margens do Rio Tocantins, foi fundada em 16 de julho de 1852, por Frei Manoel Procópio do Coração de Maria, após uma expedição religiosa e militar comandada por Jerônimo Francisco Coelho, que partiu do porto de Belém-PA, com o Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
objetivo de estabelecer instalações militares ribeirinhas.
Fig. 56 - Vista da cidade de Imperatriz, localizada no estado do Maranhão. Fonte: GOOGLE EARTH, 2018.
Durante o século de sua fundação até meados do século XX o desenvolvimento urbano da cidade, onde hoje está localizada a zona central, foi lento, sobrevivendo através dos ciclos agrícolas, pecuaristas e de mineração. A urbanização da cidade acontece em escala exponencial a partir de 1958, com o início das obras da rodovia Belém-Brasília. A construção de Brasília e a criação dos novos eixos viários para conectar todas as regiões brasileiras, desempenhou um papel importante no crescimento de Imperatriz. A Belém-Brasília concomitante com o rio Tocantins criaram os dois eixos de ligação, culminando num crescimento demográfico, urbano e econômico da cidade. Segundo Martins,
Com a construção da rodovia Belém-Brasília o fluxo migratório acelerou-se. Para a cidade vieram diversas famílias dos mais variados estados brasileiros. Os migrantes eram paulistas, goianos, mineiros, paranaenses e gaúchos, entre outros, o que concorreu para uma verdadeira explosão demográfica
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
119
no município, cujo fenômeno transformou a configuração geográfica e humana de Imperatriz. (MARTINS, 2013, p. 55)
120
A migração acelerada desencadeou um processo rápido no que tange o desenvolvimento urbano de Imperatriz. A cidade teve um aumento no seu contingente populacional em torno de duas décadas. Segundo os dados do IBGE a população estimada na década de 1960 era de 35.918, enquanto que na década de 1980 a população equivalia a 220.442 habitantes. Como consequência, o urbanismo da cidade não conseguiu acompanhar a demanda populacional e os problemas físico-ambientais da cidade surtiram efeitos negativos aos seus habitantes. De acordo com Franklin (2008, p. 130) o prefeito Mundico Barros na época improvisou um planejamento para abrir novas vias e logradouros na cidade, executou o novo traçado urbano, no qual as ruas, segundo ele conta, foram abertas à machado. O traçado urbano implantado pelo prefeito Mundico estendeu-se apenas ao que hoje é definido como a zona central da cidade, que liga o rio Tocantins a Belém-Brasília. Essa realidade se manteve durante algumas décadas e a cidade foi crescendo sem um planejamento prévio do seu recinto urbano, favorecendo o aparecimento de problemas socioespaciais. Diferente do centro, o restante da cidade desenvolveu-se de forma desordenada, Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
hora acompanhando seu traçado urbano já definido e por outras vezes conforme as necessidades da população, e muitos bairros apresentavam problemas sérios quanto a qualidade pública urbana. O primeiro plano diretor foi feito apenas em 2004 (LEI COMPLEMENTAR Nº 02/2004), porém sua implantação não foi bem-sucedida e a cidade se manteve com os mesmos problemas. A lei passou por revisão apenas em 2016, carecendo de mais estudos a respeito dos aspectos urbanos da cidade. Existe ainda uma quantidade considerável de bairros que não possuem infraestrutura urbana e saneamento básico. A cidade cresce fragmentada, periférica e horizontalmente, contribuindo para o surgimento de condomínios fechados horizontais, os quais criam muros na cidade e vendem a ideia de segurança com as melhores condições de vida da cidade. De acordo com Carvalho (2015, p. 21), o cenário “urbano-regional” sob a atuação do mercado imobiliário, tem definido uma apropriação elitizada da cidade, estimulando a segregação socioespacial. Os novos traçados urbanos da cidade, surgidos sem o devido projeto, não enriquecem a sua ambiência urbana. Sistema viário mal planejado, calçadas mal desenhadas e com problemas de manutenção, novos loteamentos demasiadamente horizontais, carência quanto os aspectos ambientais da cidade, ausência de estratégias sobre a preservação histórica urbana e arquitetônica, mal uso do solo, que
apesar da diversidade de atividades não consegue atender a demanda social, econômica e ambiental, além de não otimizar o espaço urbano. Essas são apenas algumas implicações que dificultam o convívio dos habitantes com o meio urbano. 4.1 AS CARACTERÍSTICAS MORFOLÓGICAS DO CENTRO DE IMPERATRIZ Como exposto anteriormente, a localização do centro da cidade possui uma carga histórica enraizada na sua composição espacial, correspondendo ao traçado urbano desenvolvido nos primeiros anos de seu assentamento. No entanto, com o processo de consolidação da cidade, as características da sua forma-espaço traduzem-se em aspectos positivos e negativos conforme a comparação com as teorias urbanas explicadas no decorrer do artigo.
121
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
Fig. 57 e 58 - Exemplo da situação dos espaços públicos de Imperatriz. Nas fotos a praça Mané Garrincha, uma das mais antigas da cidade, apresentando sinais de deterioro e má qualidade do ambiente. Fonte: ACERVO PESSOAL.
122
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
123
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
124
O perfil do centro de Imperatriz apresenta uma malha urbana em composição ortogonal com quadras curtas, facilitando o deslocamento das pessoas. Quanto aos usos, o centro incorpora em grande parte atividades comerciais e institucionais, realizadas principalmente no período diurno, contribuindo para a geração de espaços ociosos e inseguros durante a noite. A quantidade de residências é quase insignificante, no entanto, a sua malha urbana conecta-se com outros bairros residenciais. Apesar dessa interrelação do centro com os outros bairros, a mobilidade urbana é precária, pois o sistema viário é confuso e grande parte prioriza exclusivamente os veículos automotores, além da cidade não possuir ciclovias, um meio usado por muitos habitantes para se locomoverem. Ainda sobre essa questão, no que diz respeito as calçadas, uma quantidade considerável dificulta o ir e vir das pessoas, em virtude do desenho, dimensionamento e escolha de materiais, ambos inadequados, que prejudicam a qualidade do caminhar. Por fim, o centro é pobre em espaços públicos e de convivência, a população carece de espaços como esses para melhorar a qualidade física do uso espacial da área. O Quadro abaixo visa comparar a análise de aspectos morfológicos do centro de Imperatriz aos quesitos tratados pelos autores no item 2:
Quadro 3: Comparação da área central de Imperatriz com as abordagens tratadas anteriormente.
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
Como se observa na maior parte dos aspectos, algumas características morfológicas não atendem aos critérios de qualidade urbana e precisam ser consideradas nos projetos de requalificação, obviamente resguardando as características históricas e culturais. CONCLUSÕES Considerando as características morfológicas negativas do centro de Imperatriz (MA), vale ressaltar que a área é um local propício para o desenvolvimento de intervenção, com a premissa de restaurar a dignidade urbano-ambiental do recinto urbano. O redesenho da zona central quanto as soluções urbanas e arquitetônicas e de sua expansão territorial, podem partir sob a diretriz da preservação histórica e da melhora ou criação de espaços públicos, além de ponderar sobre a otimização do sistema viário e dos seus usos, promovendo melhores condições espaciais para a realização das atividades urbanas da população.
Por conseguinte, parte-se para a realidade presente, de pensar a cidade como um complexo de relações e atividades humanas, significativo para que a partir do centro, Imperatriz consiga desempenhar seu desenvolvimento, seu crescimento equilibrado e seu papel como cidade média de grande importância para os demais municípios que também estão sob a sua influência.
125
De acordo com essas condições, recomenda-se uma intervenção baseada na requalificação do centro de Imperatriz sob a perspectiva da Reinvenção Urbana, caracterizada pela integração entre as dimensões arquitetônica e urbanística, realçando a importância da preservação histórica de edifícios, traçados e de áreas ociosas, ao passo que promove uma nova realidade espacial em que os habitantes são os principais autores do ambiente, no qual esse é tratado morfologicamente integrando as dimensões socioespaciais da cidade atual. Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
REFERÊNCIAS BRASIL, Ministério das Cidades. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Implementação de Ações em Áreas Urbanas Centrais e Cidades Históricas: manual de orientação. Brasília-DF: IPHAN: Ministério das Cidades, 2011. CARVALHO, Sheryda Lila de Souza. CONDOMÍNIOS HORIZONTAIS EM ESPAÇOS PERIFÉRICOS: reflexões sobre a realidade de Imperatriz (MA). In: XI ENCONTRO NACIONAL DA ANPEGE, 2015, Presidente Dutra. A Diversidade da Geografia Brasileira: Escalas e dimensões da análise e da ação. Anais do XI – ENANPEGE. Presidente Dutra-SP, 2015. p. 25142525.
126
DEL RIO, Vicente. Introdução ao Desenho Urbano no Processo de Planejamento. SãoPaulo-SP: Pini, 1990. FRANKLIN, Adalberto. Breve História de Imperatriz. Imperatriz-MA: Ética, 2005. _________________. Apontamentos e Fontes para a História Econômica de Imperatriz. Imperatriz-MA: Ética, 2008. GONSALES, Célia Helena Castro. Cidade moderna sobre cidade tradicional: movimento e expansão. Vitruvius, abril 2005. Seção Arquitextos, 059.04. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/ read/arquitextos/05.059/473>. Acesso em: 27/04/2018.
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Estimativa populacional. Brasília-DF: IBGE, 2017. ___________________. Censo demográfico de 1960: Maranhão. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/68/cd_1960_v1_t3_p2_ ma_pi.pdf> Acesso em: 13/04/2018. ___________________. Censo demográfico de 1970: Maranhão. Disponível em: < https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/69/cd_1970_v1_t5_ ma.pdf> Acesso em: 13/04/2018. ___________________. Censo demográfico de 1980: Maranhão. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/73/cd_1980_v1_t6_n7_ ma.pdf> Acesso em: 13/04/2018. MARTINS, Francisco Robson Saraiva. PLANEJAMENTO URBANO: Uma abordagem da dimensão habitacional do município de Imperatriz-MA. Taubaté: UNITAU, 2013. Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano) - Programa de Pós-Graduação em Administração do Departamento de Economia, Contabilidade e Administração da Universidade de Taubaté, Taubaté, 2013. MASCARÓ, Lúcia; MASCARÓ, Juan José. Ambiência Urbana. 3. ed. Porto Alegre-RS: Masquatro Editora, 2009.
MEDEIROS, Valério. URBIS BRASILIAE: O labirinto das cidades brasileiras. Brasília-DF: Universidade de Brasília, 2013. TORRES, André Luiz Teixeira e Silva. O FRÁGIL LIMIAR ENTRE ESPAÇOS PÚBLICOS E VAZIOS URBANOS: uma análise das condições para assegurar a vitalidade nos assentamentos. Brasília: UNB, 2017. Dissertação (Mestrado em Projeto e Planejamento Urbano e Regional) - Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília, Brasília, 2017. VARGAS, Heliana Comin; CASTILHO, Ana Luisa H. Intervenções em Centros Urbanos: objetivos, estratégias e resultados. 3. ed. Barueri-SP: Manole Ltda, 2015.
127
Revista CAU/UCB | 2019 | Artigos
Franco (1992) ressalta que a industrialização e a racionalização estão diretamente interligadas pois a pré-fabricação em indústrias melhora o nível de organização dos processos, e permite a implementação de inovações tecnológicas, métodos de trabalho, controle e planejamento. Neste contexto, esta seção apresenta como são executadas as estruturas pré-fabricadas de treliças aporticadas em bambu roliço de pequeno diâmetro, muito utilizadas no Vietnã na construção de edificações e coberturas destinas princi-
129
Frederico Rosalino | Prof. CAU/UCB
Fig. 61 - Bambu - Fonte: www.mercadolivre.com.br
Arnold Van Acker (2002) destaca que a forma mais eficiente de industrializar o setor da construção civil é a realização do trabalho em fábricas o que possibilita processos de produção eficientes e racionais, trabalhadores mais qualificados para cada atividade, qualidade do produto, melhoria nas condições de trabalho, entre outros benefícios.
SISTEMAS CONSTRUTIVOS PRÉ-FABRICADOS
Os sistemas construtivos pré-fabricados geram uma série de benefícios para a construção civil, entre eles a possibilidade de reduzir o tempo de obra, melhorar a qualidade e reduzir a geração de resíduos.
Revista CAU/UCB | 2019 | Explicando
O bambu roliço é uma material que atende aos requisitos estruturais além de conter uma pegada ambiental muito inferior a qualquer tipo de material construtivo. O uso do bambu roliço na produção e estruturas já é uma realidade no Brasil e no mundo, e vem crescendo significativamente devido a uma série de vantagens que este material proporciona. É sustentável do ponto de vista ecológico, possui características físico mecânicas compatíveis com os principais materiais estruturais, é leve, sua forma em tubo cilíndrico, confere alta eficiência para resistir esforços em todas as direções além de ser esteticamente atrativo.
130
Revista CAU/UCB | 2019 | Explicando
Um dos pioneiros neste tipo de sistema é o arquiteto Vo Trong Nghia. Radicado no Vietnã, Nghia desenvolve coberturas com grandes vãos utilizando feixes de bambus de diâmetros médio de 6 cm, explorando curvas e formas diversas que trazem plasticidade e requinte ao material (Figura 62). Fig. 62 - Sistema estrutural com tesouras em feixes de bambus de médios diâmetros - Fonte: http://votrongnghia.com/projects/naman-beach-bar/
palmente ao ecoturismo.
O CURVAMENTO Os colmos, após passar pelo aquecimento, seguem para um gabarito onde são posicionados e resfriados, e após o resfriamento se mantém na posição curvada após a retirada do gabarito. São utilizados lança chamas alimentados por botijões de GLP para aquecer os colmos e realizar a moldagem nos gabaritos. (Figura 64)
Fig. 63 - Detalhe do sistema estrutural com tesouras em feixes de bambus de pequenos diâmetros - Fonte: http://votrongnghia.com/projects/naman-beach-bar/
É possível observar na Figura 63 um detalhe do sistema estrutural de feixes formando uma seção retangular.
131
A confecção destes pórticos treliçados segue um caminho bem definido desde a seleção do material até a montagem da estrutura. Os bambus colhidos são encaminhados a centrais de tratamento preservativo, porém, em alguns casos onde é necessário que o bambu seja curvado para compor a estrutura é utilizado um processo de aquecimento e resfriamento as fibras do bambu.
Fig. 64 - bambus sendo curvados em gabarito. Fonte: Bambuild, 2017
Revista CAU/UCB | 2019 | Explicando
Os bambus após curvados são furados e passam por um tratamento por imersão em água fervente com solução de bórax. (figura 65)
PRÉ FABRICAÇÃO Assim que os bambus passam pelo tratamento, e já curvados conforme projeto quando necessário, os pórticos treliçados são montados em gabaritos geralmente no local da obra onde uma superfície plana proporciona um correto nivelamento da estrutura a ser pré-fabricada são utilizados tubos de aço para garantir a estabilidade do gabarito (Figura 66, 67 e 68). Os colmos são posicionados de forma intercalada e assim que todas as peças são posicionadas procede-se a perfuração dos colmos para instalação dos pinos.
132
Fig. 65 - Detalhe do tratamento por imersão em tanque. Fonte: Bambuild, 2017
Revista CAU/UCB | 2019 | Explicando
133
Fig. 66, 67 e 68 - Detalhe da montagem em gabarito. Fonte: Bambuild 2018
LIGAÇÕES As ligações utilizadas tanto nas construções são realizadas da mesma maneira, basicamente com pinos de bambu e amarras em cordas de polipropileno inspiradas nas ligações tradicionais utilizadas em toda a Ásia. Os bambus são posicionados de forma intercalada e nos pontos de ligação, são perfurados com uma broca longa
onde imediatamente são posicionados os pinos, posteriormente, afim de garantir a rigidez da estrutura, a cada 1,5 a 2 metros são instaladas amarras com corda de nylon conforme apresentado nas Figuras 69 a 72.
Revista CAU/UCB | 2019 | Explicando
134 Fig. 69 - Detalhe das ligações com pinos e cordas de nylon. Fonte: Bambuild, 2017
Fig. 70, 71 e 72 - Detalhe das ligações com pinos e cordas de nylon. Fonte: Bambuild, 2017
Revista CAU/UCB | 2019 | Explicando
O pino é o principal elemento de ligação entre as peças de bambu, considerando que trata-se de treliças, os esforços axiais de compressão e tração são predominantes, portanto, a resistência aos esforços ocorre na ligação do pino com bambu, esforços de cisalhamento perpendicular às fibras atuam no pino, já no colmo, ocorre o cisalhamento paralelo além de cisalhamento perpendicular e ainda, algumas treliças observadas apresentam peças submetidas a flexão. FUNDAÇÕES As fundações são em concreto armado, sempre com um bloco para apoio dos pilares onde é deixado um arranque em tubo metálico oco para a fixação dos apoios dos pórticos. Os pilares são posicionados sobre o bloco de fundação com o tubo metálico centralizado, após o posicionamento do pórtico, procede-se a perfuração dos colmos da base juntamente com o tubo os quais são ligados por barras metálicas ou pinos de bambu (Figura 73).
Fig. 73 - Detalhe da fundação
135
MONTAGEM Após a pré-fabricação, as treliças são posicionadas sob as fundações em concreto armado executadas previamente, com auxílio de equipamentos de movimentação de carga (figura 74).
Fig. 74 - posicionamento das treliças. Fonte: Bambuild, 2017
Revista CAU/UCB | 2019 | Explicando
COBERTURA Nas coberturas são utilizadas uma espécie vegetal chamada Gleicheniaceae, um tipo de samambaia que cresce na Índia, China, Laos, Vietnã e Sudeste Asiático. (Figura 75). É possível utilizar outros tipos de cobertura, desde telhas metálicas à palhas nativas do Brasil como a Piaçava.
136
Fig. 75 - Detalhe da cobertura iniciando a instalação. Fonte Bambuild 2018
Revista CAU/UCB | 2019 | Explicando
Este sistema construtivo pode ser aplicado em diversas configurações de treliça possibilitando curvaturas e sistemas de tesouras não convencionais que vencem pequenos médios e até grandes vãos. Na figura 76 é possível observar diferentes configurações do mesmo sistema construtivo os quais podem ser pré-fabricados.
parceria da empresa júnior de arquitetura e urbanismo da Universidade Católica de Brasília, a ENTRE. (figuras 77, 78 e 79)
Em 2018 foi elaborado um projeto utilizando o sistema em feixes de bambu para o Parque Garota de Ipanema localizado na Praia do Arpoador na cidade do Rio de Janeiro. O projeto foi elaborado pelo Engenheiro Civil MSc Frederico Rosalino com
137
Fig. 76 - Diferentes configurações do sistema de cobertura com feixes de bambu. Fonte Bambuild 2018
Revista CAU/UCB | 2019 | Explicando
138
Revista CAU/UCB | 2019 | Explicando
Fig. 77, 78 e 79 - Projeto restaurante do Parque Garota de Ipanema-RJ
139
Revista CAU/UCB | 2019 | Explicando
140
Foi realizado no dia 25/09/19 o evento “FORA DOS EIXOS – Diálogos do CAU/ DF”, realizado pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Distrito Federal e apoiado pela UCB. O objetivo do evento foi juntar profissionais para debater sobre empreendedorismo e sobre os desafios da inserção do arquiteto e urbanista na vida pública e na cidadania. O Presidente do CAU-DF, Arq. Daniel Mangabeira fez a abertura do evento, que ainda contou com a participação do Prof. Marcio Oliveira, coordenador do CAU-UCB, que mostrou as atividades desenvolvidas no curso que buscam fomentar o empreendedorismo e a participação social dos estudantes.
DIÁLOGOS DO CAU-DF
141
Revista CAU/UCB | 2019 | Acontece no CAU
142
PARTICIPAÇÃO DO CAU NO 2º BRASÍLIA CIDADE DESIGN
De 13 a 17/08/19 o Conjunto Cultural da República recebeu a segunda edição do evento “Brasília Cidade Design”, organizado pelo Instituto do Terceiro Setor, com apoio da Secretaria de Cultura e da Secretaria de Turismo do GDF e que contou com o apoio institucional da UCB, por meio da Escola de Exatas Arquitetura e Meio-Ambiente. O evento trouxe pela segunda vez a Brasília uma intensa programação de palestras, pitches, mentorias, oficinas, debates e business parties. Entre cerca de 50 palestrantes convidados estiveram Guto Requena, consultor de design de marcas como Google e Nike, o arquiteto italiano Giacomo Pirazzoli, o designer Sérgio Matos, o estilista Ronaldo Fraga e a jornalista Daniela Falcão, diretora-geral da Vogue.
Revista CAU/UCB | 2019 | Acontece no CAU
143
O CAU-UCB contou com um espaço especial no evento, denominado “Espaço Católica”, que incluiu um estande, onde foram mostrados filmes e objetos produzidos por estudantes da universidade, além de uma oficina e duas palestras. No dia 14/08 os professores Thiago Turchi e Daniel Brito, do Curso de Arquitetura e Urbanismo, apresentaram a palestra “Fabricação Digital e Prototipagem em Arquitetura”, que mostrou os incríveis resultados obtidos pelos estudantes nas diversas disciplinas que se beneficiam das mais modernas aplicações e tecnologias disponíveis nos laboratórios da UCB.
144
Revista CAU/UCB | 2019 | Acontece no CAU
145
Na quinta-feira, dia 15/08 foi a vez das professoras Milena de Lannoy e Carla Pacheco falarem sobre o “O Campo de Atuação do Profissional de Design”, em uma palestra que abordou as diversas possibilidades de atuação na área do design de interiores. Este palestra contou ainda com a participação especial do professor Cleber Alves da Costa, do Curso de Física, que apresentou o um case de tratamento acústico em um Home Theater, aliando o design à técnica mais atual de tratamento acústico para este tipo de
ambiente. Neste mesmo dia, pela manhã, foi realizada a oficina “Técnicas de prototipagem para visualização e tomada de decisões em projetos”, conduzida pelo Arquiteto Rafferson Antunes, egresso do curso e por Bruno Luebke, estudante do Curso de Arquitetura e Urbanismo, que demonstraram as possibilidades de utilização das novas tecnologias 3D no processo de projeto.
Revista CAU/UCB | 2019 | Acontece no CAU
146
A estudante Ana Clara Nascimento citou que com a viagem “aprendemos sobre as problemáticas do desenvolvimento de um lugar superlotado, ou uma cidade sem planejamento, e com certeza como podemos pensar em possibilidades que nos ajudarão a ser bons arquitetos, pois às vezes em sala de aula não conseguimos ver esses problemas que os professores relatam em uma orientação de projeto, mas em São Paulo vivemos uma realidade bem diferente.” Já a aluna Karina Oki ressaltou que “toda a experiência da viagem foi muito enriquecedora, cumprindo com todos os objetivos citados no início, nos
aproximando das teorias estudadas através de uma experiência de vivência. Eu, que já conhecia São Paulo, pude vê-la agora com outros olhos, mais ricos e mais apaixonados pela arquitetura.”
147
VIAGEM DO CAU PARA SÃO PAULO
Do dia 29 de agosto à 01 de setembro de 2019 foi realizada a Viagem de Estudos do CAU à cidade de São Paulo. A visita incluiu a participação de estudantes e docentes do curso e incluiu no roteiro de três dias alguns do locais mais tradicionais e simbólicos da arquitetura e urbanismo da capital paulista, incluindo a galeria do Rock, os Edifícios Martinelli, Banespa e Copan, a Casa Modernista, o Museu de Arte Contemporânea – MAC, a FAU/USP, a Casa de Vidro no Instituto Bardi e o SESC Pompéia, além de diversos passeios feitos nos momentos livres da programação.
Revista CAU/UCB | 2019 | Acontece no CAU
148
149
150
Nยบ10-2019