zint edição #20: doctor who
jan. 2019
e di to ri al
Brilliant! Estamos em um novo ano e temos uma nova Edição! Neste mês, a Décima Terceira Doutora estampa a Capa de janeiro com a 11ª temporada de Doctor Who. E como Highlight, a nossa crítica do incrível HomemAranha no Aranhaverso! A publicação também traz algumas preparações para o Oscar 2019, com as críticas de filmes como Roma e A Esposa. Também, a Taylor Swift reputation Stadium Tour, a nova temporada de Grace and Frankie, o final de Unbreakable Kimmy Schimdt e a estreia de Sex Education! Como sempre, três palavras novas figuram no nosso Guia do Entretenimento. E o Calendário Cultural faz aquele serviço de te avisar que no próximo mês temos o The Academy Awards 2019 (ou Oscar, para os íntimos), nova temporada de One Day at a Time, o novo álbum de Ariana Grande e a estreia de Patrulha do Destino! Boa leitura! <3
O QUê A ZINT TEM?
como uma publicação digital, as possibilidades de interações são promissoras. usando a plataforma ao nosso alcance, a revista sempre vem acompanhada de interatividade. aproveitamos de todos esses recursos e você pode usufruir de tudo sem muito mistério. »
paleta de cores;
para ficar fácil diferenciar as áreas de cobertura, cada uma delas possuem suas próprias cores, que ficam visíveis nas barras laterais da revista
vídeo;
stories;
com uma revista de Cultura & Entretenimento, estamos sempre escrevendo sobre algo que possui um trailer ou um videoclipe, por exemplo. o ícone do Youtube é sempre visível para encontrar esse conteúdo audivisual. ao clicar na imagem, uma janela com o player será aberto e você poderá assistir ao vídeo!
se você está pelo app Issuu, é possível ler as principais matérias da Edição em versão “Stories”. na parte superior direita você pode ver um ícone de barras; basta clicar nele para ser levado para a área onde o conteúdo está em um formato de texto corrido
playlists;
links;
algumas das nossas matérias vem acompanhadas playlists. quando isso acontece, eles são encontradas ao final da respectiva matéria. ainda, nas páginas finais de cada publicação, você pode encontrar todas as listas, com ícones para ouvi-las no Deezer, Spotify e Youtube
além do conteúdo audiovisual principal, as matérias contém outros tipos de links, como para páginas da internet, ou até mesmo outros vídeos e áudios. toda vez que essa identificação visual aparecer saiba que ela corresponde a um link. é só clicar!
rodapé;
o easter-egg da revista. no rodapé de cada página de matéria, no mesmo lugar da paginação, o zint.online sublinhado também é um link. neste caso, ele leva para a versão correspondente da matéria no site, em formato blog
colabs da edição a cada publicação, o nosso time de colaboradores muda um pouco
joão
vics
criador da revista; editor de conteúdo
criador da revista; diretor de arte
8 colaboradores participam dessa edição, com matérias sobre televisão e filmes!
clique aqui para ver todos nossos colabs
bruna curi
carolina cassese
debora drumond
giovana silvestri
guilherme luis
joĂŁo dicker
juliana almeida
vics
agenda cultural as principais datas de estreias e lançamentos de fevereiro [veja o calendário completo clicando aqui]
01
01
04
boneca russa
sempre bruxa
man with a plan
estreia da 1ª Temporada
estreia da 1ªt
estreia da 3ªT
07
07
uma aventura lego 2
PODERIA ME PERDOAR?
07
07
SE A RUA BEALE FALASSE
NO PORTAL DA ETERNIDADE
08
08
ONE DAY AT A TIME estreia da 3ªt
THANK U, NEXT ARIANA GRANDE
08
12
15
GOD EATER 3
MIRACLE WORKERS
JUMP FORCE
13
14
14
WEIRD CITY estreia da 1ªT
QUERIDO MENINO
15
15
HEAD ABOVE WATER
THE UMBRELLA ACADEMY
ALITA: ANJO DE COMBATE
15
15
DOOM PATROL
FAR CRY NEW DAWN
estreia da 1ªt
PC, PS4, XBOX ONE
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21
21
THE OATH
SAI DE BAIXO: O FILME
A MORTE TE DÁ PARABÉNS
PS4
AVRIL LAVIGNE
estreia da 2ªT
estreia da 1ªT
estreia da 1ªT
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THE ACADEMY AWARDS 2019
PC, PS4, XBOX ONE
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CALMARIA
guia do en tre te ni men to
não é todo mundo que está imerso no mundo do entretenimento, podendo ficar sem entender alguns (ou vários) dos termos utilizados na área. por essa e outras, mês a mês, nos prontificamos a trazer três palavras, traduzidas, explicadas e exemplificadas
veja o dicionário completo
road movie traduzindo road movie de forma literal, temos “filme de estrada”. este gênero resume-se, basicamente, ao que implica a sua tradução, consistindo em longas cujos desenvolvimentos de suas respectivas narrativas e personagens acontecem duante uma viagem. aqui, o filme não é limitado a apenas uma situação-problema, mas a várias, que vão sendo resolvidas na medida em que acontecem.
stand-alone o stand-alone refere-se a narrativas que se iniciam e fecham no mesmo episódios, sem a necessidade de extensões em outros capítulos. este termo traduz-se, literalmente, para algo como “ficar em pé por si só”, fazendo referência direta a essa ideia de autossuficiência do arco.
buddy movie um buddy movie é um gênero cinematográfico que é traduzido, de forma literal, como “filme de amigos”. não é exatamente um longa mirado para amigos (embora consequentemente tenha esse propósito), mas sim uma película que mostra esse tipo de relacionamento. dominado pelos personagens masculino, este gênero coloca duas pessoas de personalidades opostas trabalhando lado a lado, criando a dinâmica que move todo o filme. muitas vezes, a diferença é exposta visualmente pela etnia (um sendo negro e outro branco, por exemplo).
CONTEÚDO 16
Doctor Who vics
p.50
O Perfume
televisão
Carolina Cassese p.28
Grace and Frankie Giovana Silvestri
p.52
Ordem na Casa com Marie Kondo Giovana Silvestri
p.36
Você Carolina Cassese
p.58
Minha Amiga Genial Carolina Cassese
p.40
Sex Education Giovana Silvestri
p.60
The ABC Murders Giovana Silvestri
p.42
Tidelands Bruna Curi
p.62
Lady Night Bruna Curi
p.46
Unbreakable Kimmy Schmidt
p.66
Juliana de Almeida
Giovana Silvestri
Amigos da Faculdade
NA EDIÇÃO
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Homem-Aranha no Aranhaverso
Filmes
João Dicker p.76
p.90
Carolina Cassese
João Dicker
p.80
p.94
Taylor Swift
Black Mirror: Bandersnatch
A Favorita
A Esposa
Debora Drumond
Carolina Cassese
p.82
p.96
Roma João Dicker p.86
WiFi Ralph: Quebrando a Internet Guilherme Luis
Quer entender melhor como funciona o Oscar? Nós temos a matéria perfeita para você!
Green Book: O Guia João Dicker p.100
Assunto de Família João Dicker
playlists p.102
Todas as nossas listas musicais
[
televisĂŁo
]
NOTA DO COLAB: ESTE TEXTO CONTÉM LEVES SPOILERS.
DOCTOR WHO: UMA NOVA ERA E A PRIMEIRA DOUTORA texto e diagramação de vics
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N
ão são muitas as séries que conseguem atingir uma grande longevidade na televisão. Chegar ao centésimo episódio é um marco digno de festa – e para poucos, com muitas séries chegando ao fim antes disso. Mas este não é um caso que se aplique a DOCTOR WHO, cujo primeiro de 851 episódios foi ao ar em 1963 pelo canal britânico BBC. A série, estrelada por um amigável alienígena capaz de viajar pelo Espaço e Tempo em sua cabine policial chamada TARDIS, arrebatou o público quase que instanteneamente, em uma época em que seriados familiares não eram bem recebidos. A ideia para o porgrama, no começo, era ser o show de William Hartnell, que ao longo de quatro temporadas deu rosto ao personagem título conhecido apenas como Doutor. Mas problemas de saúde fizeram o ator se afastar do papel, levando os roteiristas a procurarem formas de manter Doctor Who no ar de forma crível. NOVOS ROSTOS A saída escolhida por eles foi simples, mas inteligente, sendo logo incorporada como parte da mitologia da série. Quando morrem, os Senhores do Tempo, raça habitante de Gallifrey,
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tem a incrível capacidade de regeneração, mudando completamente sua aparência e personalidade, mantendo suas memórias. Este processo poderia ser o resultado de morte por um ferimento mortal ou velhice, e até mesmo por vontade própria. No início, a regeneração podia acontecer apenas 13 vezes, mas o cânone foi mudado recentemente para 507. Doctor Who durou 26 temporadas (1963-1989) antes de entrar em um hiato, dando espaço para sete atores darem seus rostos para o icônico personagem. Em 1996, a franquia ganhou um filme, mas o Oitavo Doutor ficou restrito a apenas aquela produção. Em 2005, a série teve seu revival, voltando às telinhas britânicas com o Nono Doutor. Bem recebida pelo público, a produção trouxe novas faces para o personagem, ampliando ainda mais sua mitologia e, sempre que possível, prestando suas homenagens aos arcos clássicos do original. Com o buraco de quase uma década entre o filme-revival, a produção teve atenção para elaborar um background que explicasse os anos de ausência do Doctor na televisão (uma terrível guerra no planeta natal do alienígena), afetando diretamente a história e personalidade da nova leva de Doutores. Nessa nova versão, conhecemos e nos apaixonamos pelo Nono Doutor (Christopher Eccleston), o Décimo (David Tennant), o Décimo Primeiro (Matt Smith) e o Décimo Segundo (Peter Capaldi). Como parte do background previamente citado, também temos o Senhor do Tempo conhecido como Doutor da Guerra (John Hurt) – que, na cronologia, se encaixa entre o Sétimo e o Oitavo. E agora conhecemos a história de número 13.
JODIE WHITTAKER COMO A DOUTORA, LOGO APÓS A SUA REGENARAÇÃO.
SENHORA DO TEMPO O conceito da regeneração deu início, em algum momento, a uma discussão entre os whovians, nome dado aos fãs do programa. O questionamento gira em torno da possibilidade de um Senhor do Tempo trocar de gênero durante o processo, tornando-se uma Senhora do Tempo. E, sendo possível, porque nunca uma mulher havia assumido o manto de Doutor? O mistério foi finalmente solucionado quando o Mestre (John Simm), arqui-inimigo do Doctor, deixou de ser um homem e, na oitava temporada, passou a ser uma mulher, conhecida como Missy (Michelle Gomez). O público pareceu não se incomodar tanto com isso, até que a mudança foi feita com o personagem título (como eu já discuti nessa outra matéria).
JODIE WHITTAKER JÁ EM SER PRÓPRIO “UNIFORME” COMO A DOUTORA.
A ERA DE JODIE A 11ª Temporada da série agraciou o público com uma Doutora, que caiu na responsabilidade de Jodie Whittaker, famosa por contracenar ao lado de David Tennant (o Décimo) na produção televisiva Broadchurch. O primeiro vislumbre de Whittaker como a Doutora aconteceu dia 25 de dezembro de 2017, no clássico especial de Natal, Twice Upon a Time, episódio que marca o final do ciclo de Peter Capaldi como o personagem. Mas Jodie assumiu de vez o mantou apenas no dia 07 de outubro de 2018, com a estreia da nova temporada de Doctor Who. Com um novo showrunner (Chris Chibnall, que antes ocupava o cargo de produtor-executivo e é responsável
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por Broadchurch) e um novo rosto no personagem título, a produção toma suas habituais decisões para dar uma identidade mais autoral para este novo ciclo. Embora a TARDIS permaneça praticamente a mesma do lado de fora, uma regeneração da Doutora também significa uma regeneração da icônica cabine telefônica (maior do lado de dentro). A nave especial adota um visual que lembra muito a sua primeira versão, com sua padronagem circular, ao mesmo tempo em que dá sua própria personalidade, apostando em uma cor âmbar e
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diversos cristais, além de um mecanismo de pilares que lembram muito dedos. Aliás, como apontam críticos e fãs, a nostalgia não para apenas na TARDIS. A série em si resgata bastante o teor da produção original, colocando a Doutora e suas Companions (nome dado às suas companhias de viagens) em aventuras pelo Espaço e Tempo que prezam por historinhas com moral, na (re)afirmação da humanidade da Doutora e na esperança de que podemos ser o melhor de nós mesmos. A grande e maior diferença neste novo ano está na ausência de um grande plot escondido entre os episódios, como tornou-se comum na era comandado por Steven Moffat (responsável
por séries como Sherlock). O máximo que acontece é o retorno, no último episódio, de um dos primeiros vilões do novo ano, cuja raça também é citada ao longo de alguns capítulos. Fora isso, não há nenhum Bad Wolf ou Impossible Clara acontecendo – para o bem ou para o mal. Mas o grande trunfo do ano 11 de Doctor Who está, justamente, na Doutora. Jodie Whittaker entrega uma personagem bastante polida e, talvez pela primeira vez, uma Senhora do Tempo que entende perfeitamente a sua capacidade e não tem medo algum de verbaliza-las. A jornada torna-se ainda mais curiosa e divertida ao vermos que a Décima Terceira, embora cheia de si e extremamente confiante, assume ainda mais a personalidade de outsider, tendo uma visível dificuldade na hora de manter conver-
A DOUTORA E AS COMPANIONS. sas furadas (“Talvez eu esteja nervosa. Ou só seja socialmente estranha. Eu ainda estou me descobrindo“) e estando diversas vezes falando consigo mesma ou verbalizando seus pensamentos em voz alta. Na mesma lógica, a personagem de Whittaker passa o maior espaço de tempo se adaptando ao seu corpo (talvez, possivelmente, por ser a primeira vez em que ela assume o gênero feminino), comentando constantemente que ainda está se entendendo e descobrindo o que ela gosta ou não. O público até mesmo precisa esperar um pouco mais que o habitual para vê-la com a sua verão da Chave de Fenda Sônica ou usando seu próprio “uniforme”/figurino – também, um misto de homenagens à versões antigas dos Doutores. Mas nada impede que ela encontre espaço para fazer piadas de cunho feminista, afirmando em um determinado episódio (S11E08), por exemplo, que se ela ainda fosse um homem, não seria ignorada e teria sua voz ouvida Jodie é extremamente carismática e entrega um papel memorável. Sua Doutora é mais feliz e leve que seus predecessores, as-
sustados pelo o que haviam feito durante a guerra em Gallifrey e pelas consequências geradas pelo embate. Neste novo ciclo, ela não está atormentada por nada disso e nem está em uma interminável busca interna e externa de encontrar seu planeta perdido. Aqui, o mais importante, é reencontrar a sua identidade enquanto tenta salvar o planeta Terra e sua humanidade – muitas vezes, dos próprios humanos. MAIS QUE COMPANIONS As Companions, por sua vez, fazem uma interessante adição à trama. Diferente de Clara Oswald (Jenna Coleman), entre a 7ª e 9ª temporada, e até mesmo de Bill Potts (Pearl Mackie), na 10ª, as companhias da Doutora voltam a dedicar-se completamente às viagens, não balanceando-as com o seguimento de suas vidas pessoais – Clara foi a primeira a fazer isso plenamente, assumindo o cargo de professora da escola em que o Primeiro Doutor lecionava. zint.online | 21
OS 14 DOUTORES Ao longo de mais de 50 anos de Doctor Who, 14 atores puderam interpretar um dos personagens mais famosos da cultura pop. Conheça um pouco de cada e suas respectivas frases de efeito!
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PRIMEIRO (1963-66) William Hartnell “Come along, my dear”
OITAVO (1996) Paul McGann “Who am I?”
SEGUNDO (1966-69) Patrick Troughton “Oh, my giddy aunt”
DOUTOR DA GUERRA (2013) John Hurt –
TERCEIRO (1970-74) Jon Pertwee “Reverse the polarity of the neutron fllow!”
NONO (2005) Christopher Eccleston “Fantastic!”
QUARTO (1974-81) Tom Baker “Would you like a Jelly Baby?”
DÉCIMO (2005-10) David Tennant “Allons-y!”
QUINTO (1982-84) Peter Davison “Brave heart, Tegan.”
DÉCIMO PRIMEIRO (2010-13) Matt Smith “GERONIMO”
SEXTO (1984-86) Colin Baker “Mmm, I wonder... Aha!”
DÉCIMO SEGUNDO (2014-17) Peter Capaldi “Shut Up. Shutity shut up”
SÉTIMO (1987-89) Sylvester McCoy “Not this time...”
DÉCIMA TERCEIRA (2018–) Jodie Whittaker “Brilliant!”
as companions É parte da mitologia da série o/a Doutor/a ser acompanhado de pelo menos uma companhia – geralmente mulheres. Estas são as principais Companions* desta geração (2005).
Nono Rose Tyle (Billie Piper) [Companion Fixa] Jack Harkness (John Barrowman)
Décimo Rose Tyle [Fixa] Jack Harkness Donna Noble (Catherine Tate) [Fixa] Martha Jones (Freema Agyeman) [Fixa]
Décimo Primeiro Amy Pond (Karen Gillan) [Fixa] Rory Williams (Arthur Darvill) [Fixa] River Song (Alex Kingston) Clara Oswald (Jenna Coleman) [Fixa]
Décimo Segundo Clara Oswald [Fixa] River Song Nardole (Matt Lucas) [Fixa] Bill Potts (Pearl Mackie) [Fixa]
Décima Terceira Gaham O’Brien (Bradley Walsh) [Fixa] Ryan Sinclair (Tosin Cole) [Fixa] Yasmin Khan (Mandip Gill) [Fixa] zint.online | 23
Ryan Sinclair (Tosin Cole), Yasmin “Yas” Khan (Mandip Gill), Graham O’Brien (Bradley Walsh), que agora são mais conhecidos pelo título de Amigos, triunfam em seu carisma e no desenvolvimento de seus personagens. O trio dá continuidade ao trabalho de diversificar a trama de Doctor Who e trazer representatividade racial, étnica e sexual para o meio. Bill, por exemplo, foi a primeira Companion queer do Doutor, além de ser a terceira negra a acompanha-lo nas viagens e a quarta personagem abertamente LGBTQI+ da série. Ryan é um jovem adulto negro e de baixa autoestima, consequência da vivência com um problema de coordenação motora que possui. Após perder sua avó, que o criou, e lidar constantemente com a ausência de seu pai, a única pessoa que está presente em sua vida é Graham, um homem branco que ele recusa chamar de avô. Ao longo da temporada, vemos a relação dos dois se estreitando e
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AS COMPANIONS, OU AMIGOS, DA DOUTORA: YASMIN “YAS” KHAN, GRAHAM O’BRIEN E RYAN SINCLAIR.
caminhando a passos mais íntimos, com Ryan eventualmente enxergando o amor e carinho que emana de Graham e a possibilidade deles serem uma família. Aos poucos, fica até mesmo mais fácil para o jovem rapaz lidar com suas dúvidas pessoais e ter controle diante de seus problemas de coordenação motora. Yas fica um pouco mais de lado, mas sua história é igualmente interessante. Khan é uma garota de 19 anos, muçulmana e de descendência paquistanesa. Desesperada para provar o seu valor, ela precisa lidar com uma família que está sempre querendo tomar as rédeas de sua vida. Com a TARDIS, ela se vê na possibilidade de abrir seus horizontes e até mesmo entender um pouco sobre a história de seus entes. Yasmin funciona muito como a segunda principal fonte de positivismo do quarteto (a primeira é a Doutora), estando sempre disposta a ajudar seus amigos. Para aprofundar um pouco mais nos personagens, a temporada dá a possibilidade do trio de Amigos a se desenvolveram em pequenos arcos solos. Para Ryan isso acontece em Rosa (S11E03), quando a TARDIS vai parar em 1955 e o quarteto se depara com Rosa Parks (Vinette Robinson), uma figura emble-
mática responsável por um importante capítulo da história de segregação dos Estados Unidos – e a grande heroína da avó de Ryan. O episódio aproveita para falar sobre racismo e humanizar a luta em busca por direitos civis dos negros, apresentando não só Parks, como, brevemente, a figura de Martin Luther King (Ray Sesay). Rosa ainda mostra aos telespectadores o comovente e duro momento que tornou a personagem famosa. Como estabelecido nas mitologias do gênero, ao viajar para o passado a menor das intervenções pode causar mudanças catastróficas no presente/ futuro. Assim, a Doutora, Yas e Graham se veem de mãos atadas ao, involuntariamente, participarem do momento que vai colocar Rosa Parks na História. Durante a segregação, a população negra era obrigada, por lei, a ceder seu lugar no ônibus para os brancos, caso a locomoção pública estivesse lotada. Rosa, no histórico episódio, recusa-se
e acaba sendo presa, não só tendo seu rosto estampado em diversos jornais como também tornando-se o símbolo do movimento por direitos civis dos negros nos Estados Unidos, encabeçado por Martin Luther King Jr.. O trio de protagonistas mostra-se completamente enojado pela situação, mas são obrigados a seguirem em seus respectivos “papéis” sociais – afinal, a Doutora e Graham são pessoas brancas, assistidas pelo Estado da época – para não alterarem nada daquele momento que mudaria o curso da História do país. Graham também tem a oportunidade de se desenvolver mais individualmente com uma arco que se inicia em It Takes You Away (S11E09), ao se ver em um universo-espelho, e termina no season finale The Battle of Ranskoor Av Kolos (S11E10). No primeiro episódio, ele precisa tomar a decisão de viver o sonho de continuar sua amada (mesmo que isso resulte em sua morte), ou voltar para o seu universo e ser a família que
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NA IMAGEM RETANGULAR, A DOUTORA. E AS COMPANIONS TENTAM DESVENDAR O MISTÉRIO DA CRIATURA. NA CIRCULAR, UM DALEK.
Ryan tanto precisa. Já no segundo, Graham está em uma encruzilhada: quebrar uma das únicas regra da Doutora e vingar a morte de sua esposa (consequentemente perdendo o passe de continuar viajando na TARDIS) ou manter sua integridade e tomar a decisão mais difícil de todas (perdoar e seguir em frente). O arco de Graham ilustra, de forma dolorsa, a complexidade da humanidade e uma das grandes morais de Doctor Who: é difícil, mas se realmente quiseremos, podemos ser a melhor versão de nós mesmos. Para Yasmin, o momento de introspecção acontece com Demons of the Punjab (S01E06), quando o quarteto viaja para a Índia, a pedido de Khan, em busca de desvendar um misterioso capítulo na história de sua avó. Como a TARDIS nunca aterrissa em momentos de paz e prosperidade, eles logo descobrem que estão no exato dia do início de um sangrento episódio da história: a Partição da Índia, quando o país foi dividido em dois, dando origem ao Paquistão. Assim, Yasmin não só descobre a dolorosa verdade por trás do segredo de sua avó, como vai precisar lidar em primeira mão com as consequências
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que o conturbado conflito causam no local e em sua família, colocando, mais uma vez, o ser humano como o grande vilão da narrativa. E UM PRÓSPERO DALEK NOVO Fica claro que que a nova temporada de Doctor Who gira em torno não só de tramas e dramas envolvendo família e amizade, mas também no sentimento de nostalgia. Seja na TARDIS ou nas falas e roupa da Doutora, as homenagens estão lá, mais escondidas, perceptíveis para os whovians de carteirinhas ou qualquer um que esteja disposto a
pesquisar. Mas se até aqui esses fan-services não foram o suficiente, o episódio de Ano Novo faz o trabalho completo. Quebrando a tradição anual dos episódios de Natal, Resolution (S11E11) toma lugar durante as festividades de Ano Novo, quando uma antiga e poderosa força ameaça a existência do Planeta Terra. Não demora muito para a Doutora se dar conta que a tal entidade trata-se de um Dalek, a raça de alienígenas mais letal e vil do universo. Os arqui-inimigos declarados dos Senhores do Tempo (e, especialmente, dos Doutores) já foram os protagonistas de inúmeros episódios de Doctor Who, sendo os principais vilões da mitologia e um dos mais difíceis de matar, graças a uma armadura de metal blindada. É inegável que Resolution é um verdadeiro trato para os fãs, não só por trazer os Daleks de volta à trama (da última vez, eles tinham sido supostamente aniquilados), mas também por quase mostrar esta versão da Doutora assumindo o divertido título de Presidente do Mundo. O cargo é um presente do Esquadrão de Inteligência Unificadas (ou U.N.I.T., que sonoramente faz um jogo com a palavra “União” em inglês), uma agência militar britânica super secreta. A UNIT é um órgão responsável por defender a Terra de atividades alienígenas e estudar suas respectivas tecnologias, mas, de acordo com o capítulo, acabou sendo desativado, em um piada que faz referência direta ao Brexit (apelido dado à saída do Reino Unido
da União Europeia), alegando a terminação como mais uma consequência do polêmico capítulo na política britânica. Doctor Who, cuja 12ª temporada estreia em 2020, pode não ser mais tão complexa e elaborada quanto no recente passado, mas continua tão divertida e encantadora como anteriormente. E se nada disso é suficiente para você, uma coisa não há como negar: Jodie Whittaker faz um excelente trabalho no manto de Doctor e, sem muito esforço, rouba nossos corações e nossas risadas. Brilliant! //
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A beleza da vida na terceira idade
por giovana silvestri diagramação vics
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ançada em maio de 2015 pela Netflix e estrelando as veteranas da sétima arte Jane Fonda e Lily Tomlin, GRACE AND FRANKIE é uma série cômica-dramática que estreou sua 5ª temporada no dia 18 de janeiro deste ano. Desde seu primeiro ano, a obra consegue equilibrar drama e risadas para apresentar, de uma forma inovadora, reflexões e críticas que quebram padrões e estereótipos sobre a terceira idade. A história acompanha a jornada de superação e o processo de amizade das duas mulheres, após a chocante revelação de que seus respectivos maridos são gays e mantém um relacionamento há 20 anos. Com a eventual separação, as duas decidem buscar refúgio no mesmo local, mas uma delas não quer a presença da outra durante o processo. Simples, essa é premissa que rege as cinco temporadas da obra criada por Marta Kauffman (criadora da famosa série dos anos 90, Friends) e Howard J. Morris (roteirista da série de comédia Eu, a Patroa e as Crianças).
CASA NA PRAIA O elenco de peso de Grace and Frankie vai além das duas estrelas, com personagens e atores de mais de setenta anos. Embora seja facilmente mirada para um público mais velhos, devido ao assuntos que abordam, a série conseguiu alcançar o público mais jovem sem muito esforço. A produção da Netflix é um produto de muito humor, crítica social e maturidade, em um ambiente de pura descontração graças aos talentosos atores que exploram das mais diversas situações do cotidiano para dar vida às histórias de seus respectivos personagens. Jane Fonda interpreta Grace Hanson, uma mulher vaidosa, preocupada com sua aparência e idade. Independente, ela criou do zero (como vive relembrando) uma empresa de cosméticos chamada Say Grace (que, em português, é um jogo com o seu nome e a palavra “Graça”, traduzindo-se
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para “Dê Graças”). Mãe de duas filhas, a matriarca da família Hanson é considera por muitos insensível, egocêntrica e até antipática. Sempre usando maquiagem, apliques no
cabelo, roupas de grife e com um copo de martini na mão, a personagem se sente desolada com a traição de Robert (Martin Sheen), seu marido. Para tentar seguir com a sua vida, ela decide ir morar
na sua casa de praia, mas esquece que o refúgio foi uma compra em conjunto com os Bergstein. Lily Tomlin interpreta Frankie Bergstein, uma hipponga, ativista ambiental, artista e professora.
Na imagem ao lado Sol Bergstein e Robert Hanson já estabelecidos como um casal homoafetivo. Na imagem abaixo, Frankie Bergstein e Grace Hanson moram na casa da praia e são melhores amigas, estando presentes uma para a outra a todo o tempo possível.
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Sempre fazendo uso de roupas largas e praticante de meditação, não é difícil vê-la fumando maconha ou tomando chás alucinógenos. Casada com Sol (Sam Waterston), que a traiu com Robert, ela constantemente faz discursos pacifistas e revolucionários, entrando em conflito direto com Grace, que preza o consumismo, a postura e se preocupa com a opinião dos outros. Por mais que ambas estejam passando pela mesma situação, a reação e comportamento delas são completamente opostos, facilmente explicáveis pelo tipo de relacionamento marital que possuiam. Enquanto Frankie rejeita a raiva pelo ex-marido por considera-lo seu melhor amigo, Grace se enraivece com a traição de Robert e o evita ou o trata mal. A primeira tinha uma casamento saudável e um companheiro durante uma vida cheia de retiros espirituais, maratonas de séries e ativismo. A segunda vivia num casamento sem comunicação, proximidade ou relações
Na série, Frankie e Grace empreendem e tornamse sócias de uma empresa que fabrica vibradores para a terceira idade.
sexuais e afetivas. Mesmo com a diferença entre elas criando conflitos e a forma de lidar como evento seja diferente, o fato de estarem passando pela mesma situação as une, acabando por aceitar e tolerar a companhia uma da outra. Mas não demora muito para o óbvio: Frankie e Grace acabam se tornando grandes amigas. A FORÇA DA FAMÍLIA A trama de Grace and Frankie ganha ainda mais vida e consistência quando personagens secundários começam a aparecer e ganhar protagonismo. Embora a história carregue um enredo autêntico que cria humor em cima de situações enfrentadas por idosos e promover uma crítica social acerca disso, os episódios vão além e moszint.online | 31
tram os filhos Hanson e Bergstein em suas narrativas problemáticas e subenredos que dinamizam a série. Brianna (June Diane Raphael) e Mallory (Brooklyn Decker) são as filhas de Grace e Robert. Um pouco distantes, as irmãs seguem chocadas com a decisão do pai e, ao longo da série, desenvolvem seus próprios clímax, que conversam com os das protagonistas. Brianna herdou a empresa de Grace e é muito parecida com a sua mãe, com uma personalidade frígida, antipática e autoritária, enquanto Mallory
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é mais sensível, simpática e carinhosa, tendo sua própria familha formado pelo marido e quatro filhos. Nwabudike (Baron Vaughn), ou só Bud, e Coyote (Ethan Embry) são filhos adotivos de Sol e Frankie. Criados por uma família judaica com pais alternativos, foram ensinados desde pequenos a se abrirem sobre sentimentos e inseguranças. Bud é advogado, como seu pai, e negro. Coyote é professor de música, mas foi afastado após entrar em uma clínica de reabilitação e tenta manter sua sobriedade. ALÉM DO NÚMERO Ao mesmo tempo em que diverte com seus personagens e premissas, Grace and Frankie nos alertar sobre as limitações e mudanças físicas que a velhice traz, além de nos aproximar de um novo contexto: a discriminação etária. A produção aborda, de uma forma certeira e interessante, a mudança na forma que somos vistos e tratados após certa idade, seja por parentes, amigos e a sociedade como um todo. No decorrer das temporadas percebemos constantemente como a idade interfere na visão de mundo, não apenas das protagonistas, como de qualquer um que gire em torno delas. Todos criam limitações para Grace e Frankie, acarretando a problemática que elas mesmo acabam criando essas situações, como ao optar por não entrar em um site de relacionamento, não ir à baladas ou não usar determinadas roupas. Contudo, juntas, elas percebem como essas limitações apenas as privam de viver como querem. As perspectivas da dupla mudam quando elas percebem que, já que a sociedade vive relembrando-as de como as resta “pouco tempo de vida”, elas deveriam viver da forma que mais desejam. Com isso, Hanson e Bergstein enxergam inúmeras proble-
máticas que envolvem a terceira idade, por fim decidindo focar em desmitificar a crença que a idade limita as vontades, desejos e objetivos. Além das questões de saúde, Grace and Frankie nos faz lembrar que a velhice traz algo mais doloroso do que a dor física: a emocional. No começo, a série foca bastante na prerrogativa do “falta pouco tempo”, colocando Grace e Frankie na constante situação de ir a enterros. Em um episódio, Grace comenta que na Terceira Idade isso acaba se tornando algo rotineiro, “um por semana”, levando as duas a revezarem diariamente para atender o telefone fixo – elas só recebem ligações lá se for sobre os funerais. A saúde mental é um outro fator. Muitas situações acabam frustrando e magoando as personagens, ao ponto de sentirem que a sociedade tem razão: elas estão velhas. Esquecer algo muito importante, o caminho de casa, um almoço no restaurante, onde colocou os remédios, os óculos, etc. Qualquer uma dessas coisas é motivo para causar esse sentimento de invalidez, agravado pelas dores físicas, a incapacidade de conseguir andar, agachar ou correr e, as vezes, a necessidade de ajuda para algo simples como atravessar a rua. As limitações físicas, por mais que tratadas de uma forma cômica, decepciona e desmotiva ambas. Mas a amizade delas, o suporte que uma dá a outra, consegue fortalece-las, mesmo com ambas sendo pessoas muito opostas em atitudes, pensamentos e até princípios. Aquilo que as separa é justamente o que acaba aflorando o melhor uma na outra. Grace ajuda Frankie a manter os pés no chão, a ser realista e assumir e cumprir suas responsabilidades, enquanto Frankie ajuda Grace a expressão sentimentos, se abrir e ser mais gentil com quem ela ama.
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Da esquerda pra direita, Brianna, Sol, Mallory, Bud e Coyorte interagem.
Ao longo de sua exibição, Lisa Kudrow (primeira imagem ao lado, de rosa), RuPaul Charles e Nicole Richie (segunda imagem) são apenas algumas das participações especiais de Grace and Frankie.
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Com muita empatia e companheirismo, elas se consolam e conseguem quebrar barreiras juntas, relembrando das belezas que a vida na terceira idade traz: poder olhar para o passado e se orgulhar de seus feitos, seja ele a criação de uma empresa ou a realização de uma exposição de telas. Grace e Frankie enxergam suas limitações, mas não se limitam com isso. INVISÍVEIS A quinta temporada de Grace and Frankie foca em problematizar a realidade da nossa sociedade, que trata os idosos como pessoas invisíveis ou irrelevantes. Muitas vezes, Grace e Frankie não são vistas ou ouvidas, sendo ignoradas pelo caixa do supermercado ou durante uma reunião uma reunião de negócios. A falta de uma fila para idosos em estabelecimentos ou um semáforo abrir rápido demais são algumas das muitas questões que assolam o dia-a-dia dos idosos, alertando, principalmente ao público jovem, o quanto isso passa batido diante dos nossos olhos. Algo, inclusive, que deveria
mudar, tendo em vista que a média de vida humana cresce com o avanço da tecnologia e da medicina. O mundo já tem uma grande população de idosos, e ela requer não só reconhecimento e respeito social, mas também medidas adaptativas para suas limitações ou problemáticas, principalmente considerando que muito em breve seremos nós nesse meio. Da criação de filas preferenciais e semáforos mais lentos até vibradores sexuais para pessoas mais velhas: Grace and Frankie nos mostra como a idade muda, mas as vontades e objetivos não. E se a promessa de que um dia seremos velhos também não for o suficiente, Grace faz muito bem em lembrar: essas pessoas fazem parte de um grande e inexplorável mercado consumidor, apenas esperando por sua vez. A produção da Netflix é sensível com assuntos e problemáticas atuais, não tratados e avaliados em um plano mais geral, conseguindo abordar desde o mais íntimo, como o que tange relações interpessoais e casamentos, até questões coletivas, como filas preferenciais e o viver socialmente atendendo o pedido da sociedade como um todo. Grace and Frankie é uma série sobre amizade, recomeços e discriminação etária, e consegue provar que há beleza na terceira idade ao tratar de temas sérios com leveza, empatia e vulnerabilidade. //
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GRACE AND FRANKIE NA NETLIX.
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UM SOCIOPATA EM UM CAVALO BRANCO
U
por
Carolina Cassese
d i ag ra m aç ão
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ma mulher chega na livraria. “Quem é você? Pelo seu jeito, uma estudante. Sua blusa é solta. Não está aqui para ser cobiçada, mas as pulseiras fazem barulho. Você gosta de um pouco de atenção. Certo, caí na rede". Protagonizada por Penn Badgley (o Dan, de Gossip Girl) e Elizabeth Lail (Ana, de Once Upon a Time), a série VOCÊ se desenrola a partir da obsessão do livreiro Joe com a estudante Beck. A produção, que é original do Lifetime, viralizou apenas quando encontrou, na Netflix, o espaço para se tornar um fenômeno global. A série é baseada em um livro homônimo, escrito pela autora norte-americana Caroline Kepnes. Você provavelmente conhece o arquétipo de Joe: aquele cara que viu muitas comé-
dias românticas, tem fama de nerd, usa a expressão friendzone e se sente constantemente injustiçado quando é rejeitado, pois acredita que, poxa vida, “as mulheres só se apaixonam pelos homens errados”. Na ficção, integram esse time personagens como Ross Geller (Friends), Ted Mobsy (How I Met Your Mother) e… Dan Humphrey. Sim, o personagem de Penn Badgley em Gossip Girl se assemelha com o protagonista de Você. Ambos fazem o tipo “cult”, levam um estilo de vida mais despojado, se tornam obcecados por uma loira dos olhos claros, se sentem no direito de seguir ela por Nova York, não hesitam na hora de manipular a parceira… E acham que são os últimos caras românticos do mundo. É claro que, por conta do seu comportamento violento, o protagonista de Você é ainda mais problemático do que Ross, Ted e Dan. Joe enxerga as mulhe-
res da mesma maneira que descreve seus livros: como criaturas frágeis e vulneráveis, que precisam urgentemente de proteção. Ele se sente no direito de se intitular como feminista e criticar o machismo de outros homens, mas, convenientemente, não compreende que sua maneira de enxergar todas as mulheres como donzelas em perigo é bastante sexista. É chocante e assustadoramente verossímil como a série retrata a quantidade de informações que disponibilizamos nas redes sociais. Hábitos, gostos, amizades, relaciona-
Penn Badgley é o grande astro de Você, em um personagem que não só lembra muito Dan Humphrey, de Gossip Girl, mas também é bastante atual e realístico
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Penn Badgley é o grande astro de Você, em um personagem que não só lembra muito Dan Humphrey, de Gossip Girl, mas também é bastante atual e realístico
mentos afetivos, endereços: todos esses dados estão a um clique de distância de qualquer desconhecido. A direção faz um trabalho interessante na maneira em que representa os dispositivos tecnológicos. É eficiente, principalmente, em mostrar o sentimento de ansiedade que o imediatismo das redes sociais causa em qualquer um. Na produção, é explicitado também como a imagem que montamos de nós mesmos nas redes pode ser distorcida. Beck, por exemplo, faz a linha “centrada e zen” no Instagram, sempre postando fotos de posições de Yoga. Suas confusões e frustrações não são mostradas. As amigas da protagonista, todas da
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alta-sociedade, também passam imagem irreais, já que parecem super unidas no Instagram, quando, na realidade, o grupo é cheio de relações conturbadas. Você acerta ainda em mostrar que, nos dias atuais, todo mundo tem um lado stalker. É interessante que, justamente Joe, o cara que não tem nenhum perfil em rede social e se descreve como um homem “à moda antiga”, é o que mais utiliza as plataformas digitais para conseguir informações e perseguir suas vítimas. O personagem que aparentemente é super desligado na verdade é o
mais conectado de todos (novamente, é difícil não se lembrar de Dan Humphrey). Nos momentos em que Joe se descontrola, as imagens ficam difusas e a trilha sonora cria o clima de tensão, crescente a cada capítulo, até atingir o ápice no final. A direção utiliza câmeras com bordas distorcidas, que auxiliam na percepção de como o olhar do protagonista é turvo. Outro acerto de Você é o ritmo: para o espectador, não é tarefa difícil maratonar a série em pouquíssimos dias. Praticamente todos os episódios terminam com cliffhangers, muito eficientes em prender a atenção. Uma falha que pode ser apontada em Você é a falta de verossimilhança em algumas cenas. Logo no primeiro episódio conhecemos a casa de Beck, toda envolta por vidro. Joe consegue ver, da rua, a garota trocando de roupa, transando, saindo de toalha… Difícil de acreditar, né? As atuações definitivamente não deixam a desejar. Em geral, os personagens da série são construí-
dos com pouco maniqueísmo. Beck, por exemplo, está longe de ser uma garota perfeita - mas mesmo assim, não deixa de ser uma vítima da relação abusiva em que se encontra. Peach (Shay Mitchell), a melhor amiga de Beck, parece se adequar 100% ao arquétipo da patricinha rica. Porém, no decorrer da temporada, percebemos que ela é mais complexa. Joe, o abusador, também não é totalmente mau. Em alguns momentos, seu lado humanizado fica evidente. Cabe ao espectador o bom senso de não justificar todas as atrocidades cometidas por ele. É importante ressaltar que Você não é apenas sobre um super stalker. A produção aborda e suscita reflexão sobre a própria construção da masculinidade heteronormativa, que determina questionáveis papéis atrelados ao gênero. Homens são criados justamente para “protegerem” e “salvarem” mulheres, enquanto elas (e aí entra a construção social da feminilidade) devem ser frágeis e vulneráveis. Provavelmente muitos homens héteros poderiam se identificar (e até se simpatizar) mais com Joe se o personagem não tomasse atitudes tão extremas. Afinal de contas, muitos podem pensar, ele só quer proteger sua amada. Mas só se esqueceu de perguntar se ela quer protegida. //
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Asa Butterfield e Gillian Anderson atuam lado a lado como filho e mãe.
O contexto de Sex Education por
Discutir, quebrar tabus e divertir, abordando temas como sexualidade, relacionamentos e sexo, é a proposta de SEX EDUCATION, nova série da Netflix. Otis (Asa Butterfield) é um adolescente tímido de 16 anos com uma história incomum: sua mãe, Jean (Gillian Anderson), é uma terapeuta sexual com um livro publicado chamado Conversas Íntimas, que alavancou sua carreira. Otis está voltando às aulas e, junto à seu amigo Eric (Ncuti Gatwa) e sua recém colega Maeve (Emma Mackey), começa uma clínica de conselhos sexuais e amorosos – ele, no entanto, não consegue se masturbar e nunca teve um relacionamento. Contudo, o enredo, os personagens e o cenário construído conseguem transmitir algo maior, educando o telespectador sobre tolerância, sororidade e diversidade. Dividida em oito episódios com cerca de uma hora de duração cada, a comédia
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giovana silvestri diagramação vics
dramática nos aproxima de uma realidade inovadora. A trama não tenta encaixar personagens diversos no enredo apenas para atrair público – eles fazem parte da história de forma orgânica –, tornando possível que cada possua sua participação relevante para o desenrolar da história. Eric é um rapaz negro e gay, melhor amigo de Otis, um jovem branco, aparentemente hetero, que descobre ter fobia sexual Maeve é uma garota rebelde, inteligente e excluída, com uma família ausente, se mantendo sozinha, sem muitos amigos e sempre sendo motivo de chacota no ambiente escolar. Quando Maeve percebe que Otis tem um dom para dar conselhos sexuais, eles iniciam sua clínica de conselhos sexuais e amorosos no ensino médio. Afinal, existe época melhor para ter traumas, receios e problemas sexuais do
que a adolescência? É quando o ser começa a se formar como indivíduo, um período conturbado cheio de dúvidas, hormônios e crises existenciais. A série lembra um pouco os conflitos adolescentes de outras produções de sucesso como Skins (2007 - 2013) e Glee (2009-2015), mas trazendo uma outra carga de humor, mais no estilo de American Pie (1999) e Big Mouth (2017). A Netflix vem apostando, nos últimos meses, em produções que quebram tabus e que revelam um novo contexto social nas produções audiovisuais: a realidade do dia-a-dia em que homossexuais, hétero, negros, brancos, asiáticos e tudo quanto é tipo de diversidade conversam entre si. Mas, Sex Education não cria o céu na terra. O preconceito, o medo e a inseguranças conversam constantemente com as personagens. A série cria uma diversidade orgânica ao inserir atores que não seguem o padrão hollywoodiano. Assim, há um contexto que não reverbera padrões sejam eles de beleza, de sexualidade ou de etnia. Sex Education, dirigida por Laurie Nunn, também consegue mostrar na prática a sororidade, o feminismo e o machismo com muito humor
e criatividade no enredo, espelhando uma contemporaneidade desconstruída e rica em críticas. A produção aborda os tabus com humor, sem banalizar ou afirmar preconceitos e paradigmas que envolvem o sexo ao proporcionar dramas reais nos arcos de cada um. Por meio da clínica da dupla protagonista vemos como qualquer indivíduo pode ter problemas para transar, gozar ou apenas se relacionar, trabalhando os temas de uma forma universal que conversa com todas as idades. O cenário rico em paletas de cores, algo que combina com a diversidade e a adolescência retratada: conflituosa, mas humorística. A atuação de Asa Butterfield reflete delicadamente todos as inseguranças, dúvidas e indecisões do personagem principal que, apesar de ser um conselheiro, tem traumas que o impedem de se soltar sexual e socialmente. Outros temas como bullying, romance, gravidez precoce e relação difícil com os pais aparecem durante a trama. Cria, cada vez mais, um contexto realista, íntimo e crítico. Sem generalizar ou dar enfoques sem contexto aos assuntos, Sex Education soa como algo cômico, dramático, autêntico e leve. A trama desenvolve um contexto realista para dentro de uma das maiores plataformas de streamings que tem mostrado adorar tratar de temas polêmicos, envolventes e únicos. //
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SEX EDUCATION NA NETLIX.
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UMA MARÉ DE
MISTÉRIOS
bruna curi d i ag ra m aç ão vics por
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As
sereias são seres místicos que sempre fascinaram as pessoas, tendo ganhado o imaginário popular em produções A Pequena Sereia (1989), Aquamarine (2006), H2O: Meninas Sereias (2006-2010) e Mako Mermaids: Uma Aventura H2O (20132016). Em dezembro de 2018, a série australiana TIDELANDS chegou na Netflix, trazendo uma nova abordagem para as criaturas místicas. Escrita por Stephen M. Irwin e Leigh McGrath, e produzida pela Hoodlum Entertainment, a primeira temporada da série apresenta um total de oito episódios que contam a história de Calliope “Cal” McTeer (Charlotte Best), uma ex-presidiária que volta para sua cidade natal, Orphelin Bay, depois de 10 anos presa por ter matado um policial. A cidadezinha é cheia de mistérios e se parece
com uma vila de pescadores, em que as pessoas se conhecem. Voltar para casa não é nada fácil para Cal, que é obrigada a relembrar de seu passado traumático, além de ter que lidar com sua mãe (interpretada por Caroline Brazier), com quem tem uma relação conturbada. Tidelands é uma série cheia de plot-twist e surpresas, com algo emocionante acontecendo em cada episódio. Na mesma época em que Cal volta para sua cidade, um crime choca a população: um pescador é encontrado morto e as causas são misteriosas. Esse acontecimento vai provocar um encontro entre Cal e os tidelanders. Para alguns, eles são um grupo de hippies malucos que vivem afastados da cidade, mas, na verdade, eles são criaturas místicas: metade humanos e metade sereias. Os tidelanders vivem em L’Attante, uma pequena comunidade liderada pela rainha Adrielle Cuthbert (Elsa Pataky). Governando a comunidade há anos, seu maior receio é perder a coroa, de forma que, mesmo fazendo o melhor para
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Astro das novelas da Globo, Marco Pigossi (ao lado) deu início à uma carreira internacional, cujo primeiro título da empreitada é Tidelands, atuando ao lado de Charlotte Best (imagem acima).
manter o seu povo seguro, as vezes acaba sendo bastante autoritária e rígida com seus súditos, sendo capaz de passar por cima de qualquer um para conseguir o que precisa. Dylan (Marco Pigossi) é o braço direito de Adrielle, seguindo todas as regras dela, sem hesitar em nenhum momento. Enquanto isso, outros, como Lamar (Dalip Sondhi) e Violca (Madeleine Madden), não estão muito contentes com as ações da rainha, sendo capazes de questionar seus atos: as ações de Adrielle são para benefício de seu povo ou dela mesma? Para manter a segurança de L’Attante, uma das regras dos tidelanders é não manter muita proximidade com
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os humanos. Contudo, apesar dessa regra, Adrielle está sempre em negócios com Augie McTeer (Aaron Jakubenko), irmão de Cal e contrabandista. A primeira temporada é recheada de muita ação e aventura. Ao longo da trama, temos a oportunidade de ver o relacionamento de Cal com sua família, muito conturbado e repleto de mentiras, e com os tidelanders, mesmo após ter sido aconselhada a manter distância deles e de L’Attante. O telespectador também desvenda,
junto à protagonista, os segredos de seu passado como o motivo de ter sido presa. Apesar da série abordar algumas criaturas místicas, as sereias são o verdadeiro mistério. Tidelands revela que, assim como a conhecida mitologia narra, elas atraem os homens com seus cantos, fazendo eles desaparecem nas profundezas do oceano. Na trama, os tidelanders herdaram alguns desses poderes, como a capacidade de manipular a água. Além disso, é dito que elas abandonam seus filhos, de forma que um dos motivos de Dylan seguir às regras de Adrielle é para poder ver sua mãe. “Mas eu procurei por ela todos os dias. Eu nadava, mergulhava dia e noite. Eu as ouvia. Gritava com ela. Chorava por ela. Você sabe como é chorar por uma mãe que nunca vem?”. A silhueta e a forma das sereias é revelada somente em dois episódios (S01E05 e S01E08), ainda tendo muito mais o que explorar sobre essas criaturas místicas. Tidelands trabalha bem os arcos de seus personagens, cruzando, ao longo dos episódios, os núcleos de Orphelin Bay e de L'Attante. A única coisa que a produção peca é em explicar a reunião das mulheres de Orphelin Bay, que se reunem
para discutir sobre o desaparecimento constante dos homens da região – vemos apenas uma breve conversa e nada mais. Fica aqui uma mistério que pode ser melhor trabalhado em uma possível segunda temporada. No elenco, alguns que se destacam. Charlotte Best brilha ao dar vida à Cal McTeer, uma mulher independente, um pouco reservada e com uma atitude bem badass. Elsa Pataky está maravilhosa na pele Adrielle Cuthbert, uma personagem sexy e que não mede escrúpulos para conseguir o que tanto deseja. Um detalhe que chama atenção é a presença do ex-Global Marco Pigossi. Em uma entrevista publicada em outubro pela revista GQ, Pigossi revelou que tinha chegado ao seu limite artístico já que constantemente vinha fazendo papéis parecidos na Globo. Tidelands deu a oportunidade para ele se reinventar e, no final, Marco entregou uma boa atuação no papel do complexo Dylan. Com um belíssimo cenário, várias reviravoltas, ótimos atores e muita ação, Tidelands é uma série emocionante. Você fica preso à trama e, no fim, fica aquele gostinho de “quero mais”. Mesmo que sem a confirmação de um segundo ano, a história de Cal, Adrielle, Augie e Dylan, recheada de mistérios e criaturas místicas, deixam um bom universo para a Netflix poder explorar. //
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O INQUEBRÁVEL MUNDO DE KIMMY SCHMIDT E O FIM DE UMA “FASCINATING TRANSITION” juliana de almeida diagramação vics por
P
rimeira série de comédia a ser encomendada pela Netflix, UNBREAKABLE KIMMY SCHMIDT chegou ao seu fim em 2019. Criada por Tina Fey e Robert Carlock, a sitcom carrega um humor absurdo tratado através da inocência da protagonista, uma personagem caricata que, após anos presa em um bunker, precisa se adaptar a realidade de ser uma adulta. Durante toda sua jornada, assistimos
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lembranças de nossa própria transição serem interpretadas teatralmente por Ellie Kemper. O bizarro humor de Fey é espertamente usado para diversas criticas sociais ao longo da série, que nos apresenta também à Titus Andromedon (um homem negro gay que fugiu de seu casamento heterossexual para viver seu sonho de ser ator em Nova Iorque), Jacqueline White (uma “nativo-americana” que busca se encaixar em uma sociedade racista e ganhar reconhecimento por seu esforço) e Lilian (uma polonesa que luta pela não gentrificação do bairro em que vive há 40 anos). É claro que, assim como a protagonista, todos esses
personagens são tratados da maneira mais estereotipada possível. Mesmo com uma premissa tão diferente, sempre esteve claro de que em algum ponto Kimmy terminaria sua fascinante transição e se tornaria uma adulta normal, ou o mais normal quanto é possível para uma Mulher Toupeira. E é disso que se trata a quarta temporada, o fim da inocência de Kimmy e o aumento de sua compreensão da vida adulta. Como já havíamos acompanhado no começo
A ZINT já fez outras publicações sobre Unbreakable Kimmy Schmidt. Para ler todas as matérias relacionadas, basta clicar bem aqui!
da temporada, a personagem busca agora impedir que os garotos se tornem homens como Richard Wayne (Jon Hamm), o reverendo que a sequestrou quando criança.
Da esquerda pra direita, os grandes protagonistas de Unbreakable Kimmy Schmidt:
INQUEBRÁVEL Mesmo com um humor muitas vezes visto como fútil, Unbreakable Kimmy Schmidt consegue carregar muito bem os seus personagens ao longo das quatro temporadas. Com um roteiro leve e muito bem definido, a obra cumpre seu papel ao tratar de assuntos sérios, como os assédios em Hollywood e desigualdade de gênero, utilizando do seu
JACQUELINE, KIMMY, TITUS E LILIAN
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enredo para mostrar que, assim como uma mulher adulta com uma mochila falante, é incoerente que escândalos como esses ainda aconteçam em pleno século XXI. Nada disso seria possível, é claro, sem a interpretação de Ellie Kemper, que ao entrar na personagem, consegue arrancar risadas com sua inocência e dar alegria até mesmo à pessoa mais ranzinza do mundo. Além disso, a atriz se mostrou perfeita enquanto interpretava uma Kimmy alternativa, no maior e talvez melhor episódio de toda a série, Sliding Van Doors. Após apenas quatro temporadas, é impossível olharmos para Ellie e não sentir vontade de abraçar a personagem mais doce e carismática das sitcoms. Seu companheiro de elenco, Tituss Burgess, também é um dos responsáveis pelo humor série, mantendo o jeito estranho e egocêntrico de Titus Andromedon até o final. A produção da Netflix com certeza não seria a
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mesma sem os marcantes momentos do personagem que sempre tinha uma canção para tudo – incluindo uma nova versão do aclamado álbum Lemonade, da cantora Beyoncé, que ganha um episódio inteiro na terceira temporada. Mesmo sem um marcante ato neste resto de temporada, tivemos a oportunidade de ver o ator em ação em seu ambiente natural: a Broadway. O momento garanta um ponto muito marcante para a produção, considerando que desde o começo o público vem sendo preparado para a chegada da grande chance de Titus. Embora Unbreakable Kimmy Schmidt tenha trabalhado muito para desenvolver seus personagens, seu final acabou desapontando muito no assunto. Mesmo com uma mudança completa na vida dos personagens, suas personalidades infantilizadas continuaram as mesmas. Kimmy continua vivendo em um mundo de doces e de boas ações, ainda que tantas vezes tenha visto que as coisas não são simples e as pessoas nem sempre são boas com ela. No mesmo passo, Titus
continua com seu egocentrismo, Lillian com seu medo de mudanças e Jacqueline em busca de sua escalada social. O mais triste de toda essa situação é que, por alguns momentos, acreditamos que os personagens estejam completamente desenvolvidos e livres dos piores aspectos de suas personalidades. Não demora muito para que isso seja tirado de nós, com a série devolvendo os mesmos personagens de antes, apenas com vidas mais bem sucedidas em um mundo de fantasias. É claro que em certo nível pode até ser satisfatório ver que personagens que sofreram tanto alcançaram seus objetivos, mas a sensação de uma transição incompleta não some totalmente quando os últimos segundos do último episódio chegam. Kimmy é, de fato, inquebrável – e nada pode mudar seu jeito de ver o mundo. Mesmo com uma falha tão grande, vale à pena assistirmos os últimos seis episódios de Unbreakable Kimmy Schmidt? Sim. Afinal de contas, ninguém acompanhou a série durante todos esses anos para poder ver a elaboração de um super enredo, mas sim para acompanhar as situações absurdas que toda a bondade e inocência da protagonista a coloca. É graças ao seriado que, mesmo que por 30 minutos, podemos fugir da realidade de nossas próprias vidas e do ceticismo do dia-a-dia, enxergando uma perspectiva de uma realidade melhor. E nisso, Kimmy não nos desaponta em momento algum. //
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Aromas, mistério e assassinato: a fórmula de "O Perfume" Dirigida por Philipp Kadelbach, a série alemã O PERFUME se inspira no best-seller de Patrick Süskind, que rendeu a bem-sucedida adaptação cinematográfica Perfume: A História de Um Assassino (2006), com Dustin Hoffman e Alan Rickman. A trama da produção disponível na Netflix é centrada no violento assassinato da cantora local Katharina Läufer (Siri Nase). Os detetives Nadja Simon (Friederike Becht) e Matthias Köhler (Jürgen Maurer) são encarregados do caso e descobrem uma proximidade da vítima com outros cinco amigos da época do colégio. O grupo tem uma relação especial com os cheiros: eles se dedicam 50 | zint.online
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CAROLINA CASSESE diagramação
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a estudar e criar novos aromas. Ao longo dos seis episódios, conhecemos a trajetória e os segredos de cada um deles, que se tornam, todos, suspeitos em potencial. DESFILE DE MISOGINIA É perceptível que as três principais personagens femininas da série são significativamente afetadas pelo machismo. A própria vítima, Katharina, sempre foi julgada pela sua vida sexual ativa. Os comentários maldosos partiam, inclusive, de homens que mantinham relações com a cantora. Elena (Natalia Belitski), que integra o grupo principal de amigos, não só sofreu violência sexual na adolescência, como se casou com um dos agressores e continua lidando com uma série de abusos – físicos e psicológicos. A detetive Nadja é praticamente a única mulher da equipe e se depara constantemente com piadinhas e comentários sexistas. A discussão sobre esse tema, no entanto, poderia ter sido mais bem aproveitada.
Muitas falas e atitudes machistas não são problematizadas e, consequentemente, acabam sendo tratadas com certa naturalidade. Corpos femininos (em sua maioria, padronizados e filmados a partir de ângulos impecáveis) são mostrados com frequência, ao passo que a nudez masculina é praticamente inexistente. A própria construção de Katharina como uma mulher muito atraente que seduz “indefesos homens de família” é problemática. Não conseguimos saber nada sobre a personalidade da personagem, mesmo com sua presença constante em flashbacks. Ela praticamente não tem falas – por outro lado, seu corpo (perfeito) é mostrado incontáveis vezes. É inegável que a produção alemã apresenta muitas nuances do relacionamento abusivo de Elena, mas a “resolução” que a série apresenta para o caso é extremamente insatisfatória. No final das contas, O Perfume é quase um desfile de comportamentos misóginos, com pouquíssima reflexão e crítica sobre os mesmos.
RESOLUÇÃO SURPREENDENTE Um ponto positivo de O Perfume é, sem dúvidas, a direção de fotografia. Para retratar os momentos presentes, são utilizados filtros esverdeados, que dialogam com os figurinos de tons sóbrios. Quando são mostradas cenas do passado, os cenários apresentam cores mais abertas e um efeito granulado. Junte-se a isso as estonteantes paisagens alemãs e tem-se como resultado uma estética impecável. Outro acerto é o diálogo da produção com a obra de Patrick Süskind. Os detetives responsáveis pelo caso descobrem que o grupo de amigos investigados tinha uma relação especial com a história original, centrada no perfumista Jean-Baptiste Grenouille, que assassinava mulheres para “capturar” seus odores, a fim de criar um perfume capaz de incitar desejo. Em uma cena de interrogatório, cada personagem da série narra a sua interpretação do livro de Süskind. Alguns espectadores descreveram o ritmo da produção alemã como “lento”, mas, em geral, a narrativa consegue envolver e prender a atenção, devido principalmente às reviravoltas presentes nos últimos episódios, que trazem fôlego para a narrativa. No decorrer da temporada, não há praticamente nenhuma pista em relação à identidade do assassino, o que nos leva, consequentemente, à uma resolução surpreende. Ao final, O Perfume definitivamente se mostra como uma produção incômoda, seja pela violência explícita ou pelas ações problemáticas e pouco problematizadas das suas personagens. No entanto, cumpre seu papel como uma série policial densa, complexa e repleta de surpresas. //
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O MÉTODO
KONMARI
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giovana silvestri
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uem nunca prometeu ser mais organizado como resolução de ano novo que atire a primeira pedra! Com a nova série da Netflix, ORDEM NA CASA COM MARIE KONDO, que estreou dia 1º de janeiro no serviço de streaming, talvez você se inspire a arrumar sua
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casa. A japonesa de 30 anos, que sabe apenas um pouco de inglês e adora uma bagunça, é uma “guru da arrumação”, tendo publicado o livro A Mágica da Arrumação, com mais de duas milhões de cópias vendidas no mundo todo. Assim, a série retrata Marie Kondo ajudando casais ou famílias a organizarem não só suas casas, mas seus respectivos estilos de
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vida. Considerada uma das 100 Pessoas Mais Influentes do Mundo, segundo a revista norte-americana Time, Marie desenvolveu um novo método de organização, separando as etapas por categorias, e não cômodos. Com suas dicas de dobras roupas, usar caixas e desapegar de objetos, ela auxilia, ao longo de oito
episódios, diversas famílias a se organizarem através do "método KonMari". Um dos diferenciais de Kondo é sua relação com a casa e com os objetivos. Todos sabemos que manter a casa organizada é um objetivo e desejo de muitos, mas, ao fazermos essa tarefa, não pensamos em como criamos laços com nossos pertences e com nosso lar. Marie ensina algo interessante para seus alunos durante o show: o “sentir a alegria”, ou em inglês “Spark Joy”. Durante o processo de desapego precisamos nos questionar se aquele item é útil e válido para ocupar espaço em nossas vidas (e casa), mas para a especialista em organização, essa escolha precisa ser mais íntima – e podemos interpretar até como energética. Ao escolher o que fica e o que será doado, os moradores são ensinados a pegar os objetos (principalmente as roupas) e sentir se elas trazem alegria.
Ao entrar nas casas, Kondo faz um cumprimento ao lugar, como se conversasse com os cômodos para cooperarem com o objetivo de organização. Como, para algumas pessoas, desapegar de algo acaba acarretando em um processo sentimental ou de culpa, a guru instrui as pessoas a agradecerem as roupas, decorações, papeis e livros pelo seu serviço prestado à
eles. Assim, cria um sentimento de positividade e harmonia para as decisões de desapego. Durante os episódios de Ordem na Casa com Marie Kondo, o método proporciona uma leveza no ambiente, com os moradores percebendo que até as dicas de Kondo, no momento de dobrar e posicionar os itens, se tornar algo maior do que uma simples organização: traz conforto, paz e, como já esperado,
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alegria. Os residentes aprendem como as casas e o estado de espírito estão ligados e se influenciam diretamente, conseguindo até interferir nas relações. Quanto mais desarrumado o ambiente, mais estresse, mais conflitos, logo, mais discussões. Assim, os participantes contam como suas relações, humor e vida mudam – e para melhor. Algo prático e simples que a especialista ensina é a posicionar itens de cozinha, roupas, bolsas e até fotos de maneira que, segundo ela, desperte alegria no ambiente. Muitas vezes, Marie diz que, numa gaveta de roupas, o essencial é dobrá-las e deixá-las na vertical, para assim, melhorar a visualização na hora de procurar algo. Separar itens de cozinha a partir da frequência de utilização, colocando os menos usados nas prateleiras mais altas e os mais, nas mais baixas. As bolsas, a guru ensina que deixar uma dentro da outra ocupa menos espaço; e com as alças levantadas,
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ajuda na percepção de qual está dentro de qual. Além disso, ela ensina a dobrar qualquer tipo de roupa de maneira que ocupe menos espaço, as enrolando. O método KonMari, como mostrado em Ordem na Casa com Marie Kondo, é dividido em quatro categorias: na hora do processo, as pessoas não buscam um cômodo por vez para pôr em ordem – elas arrumam por objetos. Primeiro, as roupas. E então os livros e os papéis. Em terceiro, o KOMODO (ou itens variados da cozinha, banheiro e garagem). Por fim, os artigos de valor sentimental. Mas o método não se trata apenas de organizar, e sim de perceber o acúmulo, o consumismo e o apego. No começo da missão de organizar, Marie começa pela categoria roupas e orienta seus alunos a fazer uma pilha de roupas na cama para, assim, as pessoas notem o volume e quantidade de tudo que tem, e se isso é realmente necessário. E isso acontece com vários outros
itens. Colocá-los juntos em apenas um espaço faz muitas pessoas se assustarem com a quantidade de roupas, sapatos, decoração e itens de cozinha, que muitas vezes apenas ocupam espaço e não são usados por seus compradores. Durante o descarte, Kondo faz perguntas para ajudar as famílias: "Você vê isso no seu futuro? Isso te desperta alegria?". Os oito episódios nos aproxima desde pessoas que possuem problemas em acumular ou comprar muitas coisas, que acabam ficando entulhadas por anos, desde casais novos que procuram um ambiente mais maduro ou organizado após uma recente mudanças. Há, ao decorrer da série, uma sensação estranha de satisfação, ao vermos outras pessoas vivendo num nível de bagunça mais intenso e estressante que o nosso. Por fim, Ordem na Casa com Marie Kondo consegue despertar uma motivação – afinal, se até aquela família que vivia
num caos consegue mudar, nós também conseguimos. Assim, é normal, após ver alguns episódios, se encantar com o avanço e sensação boa que um local organizado e limpo agrega, levando-nos a aventura de organizar nossos próprios espaços. OS LIVROS, AS FAMÍLIAS E A DIVERSIDADE Como uma boa guru da arrumação, Marie Kondo procura evitar, ao máximo, o acúmulo, sendo levado para todos os tipos de itens de uma casa. Contudo, algumas pessoas se viram em meio a críticas e questionamentos, tanto os leitores quanto os telespectadores e os participantes, como os livros se encaixam nesse processo. Para muitos leitores, o apego e carinho pelos livros, contraposto ao argumento sobre o acúmulo de livros ser algo positivo e não negativo, proporcionou uma visão negativa sobre o "método KonMari". Marie instruí os participantes a colocarem os livros em uma pilha, toca neles para que eles “acordem”, para ajudar durante a sentir a alegria ao tocarem. Contudo, algumas pessoas criticam o desapego aos livros, insinuando que não é algo necessário durante o processo de organização e que aglomerar livros é algo muito mais positivo do que se desapegar deles. Uma participante até comenta sobre a dificuldade que teve ao pensar que eles são um trabalho valioso de alguém. Mas Kondo mantém o método e afirma que o acúmulo de livros, revistas ou jornais pode sim causar bagunça. Uma outra crítica, mais bem fundamentada em Ordem na Casa com Marie Kondo, é o estilo e padrão que a maioria das famílias que aparecem apresentam. Basta assistir alguns
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episódios para ver apropagação, mesmo que sem intenção, de valores machistas. Muitas vezes, as família auxiliadas por Kondo são formadas por mulheres/mães exaustas física e mentalmente, acumulando tarefas e sendo as únicas responsáveis pela organização do lar. Porém, o machismo consegue ser ainda mais profundo. Além desse papel de gênero reforçado, as mulheres confessam uma culpa por não serem capazes de manter uma organização e os homens,
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e toda a família, insinuam que estão num processo para tentar ajudar as mães durante a organização, um conceito muito enraizado em nossa sociedade. Estamos acostumado a tornar responsável pelos trabalhos domésticos apenas as mulheres, enquanto filhos e pais apenas “ajudam” – invés de, por exemplo, assumirem esses papéis. Tarefas domésticas e a participação na organização da casa deveria ser um dever ou obrigação de cada indivíduo que ali reside. Alguém que "ajuda" o outro está apenas prestando um favor ou um serviço/suporte provisório ou temporário para alguém. Essa interpretação de ajuda e não de dever credibiliza o papel do gênero feminino e, com isso, reverbera percepções e valores machistas. Isso se repete em várias famílias, e por mais que Marie diga que todos os moradores devem cuidar de um cômodo, os participantes e o show ainda con-
tinuam a propagar a ideia de ajuda, e não de dever. Por outro lado, algo tanto positivo quanto negativo é a representatividade que aparece no programa. Em cada episódio, Ordem na Casa com Marie Kondo busca trazer cada vez mais diversidade para as telas, com famílias homossexuais e de outras etnias que residem nos Estados Unidos. Essa insistência em diversificação pode acabar gerando questionamento para a Netflix: será que ela realmente está tentando combater o preconceito, normalizando (com toda razão) essas realidades, ou apenas suprindo um pedido do público em busca de alcançar o maior número de público possível (mas sem se tornar uma aliada)? Ordem na Casa com Marie Kondo não retrata apenas como devemos nos organizar ou evitar as bagunças particulares com nossos hábitos de desorganização, mas também mostra o processo de descobrir e perceber como e porquê temos hábitos de acúmulo ou de bagunça, além dos sentimentos de apego e até felicidade por alguns objetos. A série consegue inspirar, através do método tanto teórico quanto prático, os telespectadores a se organizarem e entenderem a organização da casa como algo íntimo, particular e trabalhoso mas que, no final, desperta completa alegria. //
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ORDEM NA CASA COM MARIE KONDO NA NETLIX.
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IMAGENS LITERÁRIAS
carolina cassese d i ag r am aç ão vics por
“F i z m u i ta s coisa s n a vida , m as s e m co n v i cção. Sem pre m e s e n ti d i s ta n t e da s m in h a s p r óp r i a s açõ e s. A Lila , em bora e s t i v e s s e e m m ovim e n t o con t ínu o, p e q u e n a e ne rvosa , a ssum ia a s co i s a s q u e fa zia . O que m e i m pr e s s i o n a , e o que eu sem pre notava , e r a a f i rm eza d ela . A L i l a e r a f i r me ” . A AMIGA GENIAL, inspirada no romance da italiana Elena Ferrante, chegou a HBO no final de 2018. A obra original vendeu 30 milhões de cópias no mundo inteiro e é o primeiro lançamento da tetralogia napolitana, 58 | zint.online
composta também pelos livros A História do Novo Sobrenome, História de Quem Foge e de Quem Fica e História da Menina Perdida. Com narrativa centrada na amizade de Elena Greco e Rafaella Cerullo, a adaptação para as telas ficou sob a responsabilidade de Saverio Costanzo, diretor romano. Tudo começa com uma ligação. O filho de Cerullo liga para Greco no meio da madrugada, perguntando se ela sabe onde sua mãe se encontra. Greco, então, é tomada por memórias. Lila sempre teve o hábito de sumir, lembra. Assim, voltamos para a década de 1950 a fim de explorar a infância das duas companheiras inseparáveis. A reconstituição da atmosfera literária impressiona. De acordo com informações do jornal The Guardian, o designer de produção Giancarlo Basili passou uma semana em Nápoles para garantir que a realidade retratada no livro fosse transferida para a série. A familiaridade com que Ferrante descreve as loca-
lidades não poderia se perder. Dito e feito. Um senhor italiano, que viveu na Nápoles pós-guerra, foi ao set para conferir se os cenários eram verossímeis. Ainda segundo o jornal britânico, ele não só aprovou, como ficou emocionado e chorou durante a visita. A série já começa intensa. Com uma mise-en-scène muitíssimo bem construída, o espectador consegue mergulhar na autêntica realidade napolitana. A trilha sonora e a direção de fotografia de A Amiga Genial também são acertadas e criam ambientações pertinentes (e bem cinematográficas) para os acontecimentos. Logo no primeiro capítulo, é possível conhecer as duas personagens principais e notar como são ambas são complexas e bem construídas. A narração de Elena exala literatura. A primeira “mesada” que Elena e Rafaella recebem na vida não poderia ter sido melhor aplicada: as meninas decidem comprar um livro. E o encantamento das duas quando se deparam com as palavras impressas não poderia ser mais genuíno “Temos um balde na nossa cabeça cheio de palavras, onde há tudo que precisamos. Tiramos uma palavra, depois a outra e escrevemos um livro”, sonha Lila em voz alta, depois de sua primeira leitura. As atuações das garotas Elisa del Genio e Ludovica Nasti impressionam. Dizer que elas roubam a cena é pouco; talvez “sequestram” seja um verbo mais adequado. Na fase adolescente, as protagonistas são vividas por Margherita Mazzucco e Gaia Giracce, também excelentes. Os testes para o elenco, que é 100% italiano, levaram oito meses para serem concluídos e contaram com a participação de 9.000 crianças e 500 adultos. A maior parte dos atores selecionados são estreantes – apenas Gaia já teve experiência profissional. Repleta de mistérios, a produção se torna mais envolvente a cada capítulo. Os episódios são recheados de dialetos napolitanos e até mesmo os italianos precisaram de legendas para compreender todas as falas. "A HBO queria algo autêntico. Não me impuseram nada e pude ir para onde quisesse", afirmou Costanzo em uma coletiva do Festival de Veneza. Por romper com a lógica norte-americana, A Amiga Genial representa uma inovação. No mesmo evento, o
produtor Lorenzo Mieli garantiu que, caso a série seja bem sucedida, toda a indústria mudará. A pegada girl power da temporada é extremamente natural e, ao mesmo tempo, potente. Embora essa força feminina esteja presente desde o primeiro minuto de A Amiga Genial, para o diretor, a narrativa é essencialmente sobre o poder da educação. “Os livros de Ferrante contam que um professor pode salvar sua vida e mudar seu destino. O conhecimento e a cultura são as únicas maneiras de construir uma alma sólida. Essa é a ideia mais política e provocadora do livro, embora esteja escondida dentro de uma história de amizade e sentimentos", declarou. AUTORA MISTERIOSA Afinal de contas, quem é Elena Ferrante? O mistério em torno da identidade da escritora italiana se tornou um atrativo a parte. Quando explodiu com A Amiga Genial, em 2011, a Itália (e, posteriormente, o mundo) queria descobrir qual era o rosto por trás de uma história tão bem sucedida. Em uma sociedade cada vez mais midiatizada, era surpreendente que Ferrante preferisse se esconder. Sem posts no Instagram, sem participação em programas de TV, sem sua cara estampada em revistas e jornais. Intrigado, o jornalista italiano Claudio Gatti se dedicou a investigar o mistério. Chegou a uma conclusão: a escritora seria, na verdade, Anita Raja, uma tradutora da Edizione E/O, editora responsável pelos livros de Ferrante. Ele chegou a esse veredito depois de examinar a contabilidade de Raja e perceber que suas finanças tiveram um pico exorbitante na época do lançamento de A Amiga Genial. Enquanto a imprensa aplaudiu a suposta descoberta, boa parte do público declarou repúdio aos métodos invasivos do jornalista. Até hoje, no entanto, Ferrante não assumiu uma identidade. // zint.online | 59
Chin-chin, A.B.C. por
giovana silvestri
diagramação
vics
John Malkovich na imagem em destaque. Nas menores, Rupert Grint e Eamon Farren, na primeira e segunda imagem ao lado, respectivamente.
G
rã-Bretanha, 1933. O experiente detetive Hercule Poirot recebe cartas intrigantes de um destinatário desconhecido que assina metodicamente como “Chin-chin, A.B.C”. Em seguida, uma série de assassinatos começam a assolar a população. Do lado de cada vítima é deixado, propositalmente, uma pista: um guia ferroviário aberto de título O Guia ABC Ferroviário. Ao enfrentar o serial killer, tudo sobre o detetive Poirot será questionado: sua autoridade, sua integridade e sua identidade. A premissa de THE ABC MURDERS, minissérie de três episódios da BBC 60 | zint.online
One, é baseada na obra de mesmo nome da rainha do romance policial Agatha Christie. A escritora britânica publicou mais de oitenta livros e atuou como romancista, contista, dramaturga e poetisa. O programa, exibido durante três noites consecutivas (começando a partir do dia 26 de dezembro), é adaptado por Sarah Phelps, diretora de The Casual Vacancy, série inspirada no drama de
J.K. Rowling. Nos EUA, The ABC Murders chega na Amazon Prime Video no dia primeiro de fevereiro. Na produção televisiva, John Malkovich incorpora Poirot, um detetive renomado que ganhou admiração de muitos mas está com a carreira estacionada e sem muita perspectiva de futuro. Rupert Grint é o Inspetor Crome, um homem novo para seu cargo que duvida das ações de Poirot por não saber sua verdadeira história e origem antes de ser detetive. O elenco conta também com Andrew Buchan como Franklin Clarke, irmão de Lady Hermione Clarke, uma admiradora do detetive que é interpretada por Tara Fitzgerald. Eamon Farren vive Alexandre Bonaparte Cust, um vendedor de meias com um nome de iniciais misteriosas. HISTÓRIA A cinematografia de The ABC Murders ambienta a época de 1930 na Europa com a industrialização e o autoritarismo dos policiais. Os assassinatos nos aproximam dos parentes e vida das vítimas, fazendo com que percebamos a situação da população caracterizada por uma contrastante desigualdade social. Porém, a tensão e o mistério não partem apenas do ambiente ou dos crimes, uma vez que conseguimos entrar na percepção do personagem principal e de seu antagonista. Desta forma, temos a sensação de que conhecemos os crimes, as vítimas e o assassino; mas será que os conhecemos mesmo? Hercule Poirot é o único personagem que conhecemos pouco, sendo, para o telespectador, o único mistério que precisa ser resolvido. Quando temos acesso às lembranças vagas e cortadas, através de cenas que se repetem embasadas ao decorrer dos episódios na mente de Poirot, entendemos pouco de seu passado e percebemos a angústia do personagem. Por outro lado, conhecemos o assassino: sabemos que A.B.C. é metódico e que seus assassinatos são feitos pensados e
elaborados para, exclusivamente, Hercule resolver. As cartas que o detetive recebe denunciam o próximo assassinato anunciando o local com as iniciais correspondem às iniciais do nome da vítima. Os crimes seguem em ordem alfabética e o guia ferroviário é sempre deixado no local. A vítima da letra A, por exemplo, é Alice Ascher (Tamzin Griffin), morta em sua tabacaria em Andover, enquanto Elizabeth "Betty" Barnard (Eve Austin) é a vítima B, uma garçonete sedutora que é morta na praia de Bexhill. Não demora muito para Hercule perceber que a ordem alfabética e o guia não não são os únicos métodos e pistas deixados pelo serial killer e que as regras do jogo vão muito além do que é perceptível. Em um show de interpretação, Rupert Grint e John Malkovich expõe a tensão que a época e local possuem, mesmo sem assassinatos: a Grã-Bretanha de 1930 tem uma atmosfera tensa, já que os países do Reino Unido estão divididos em relação a postura diante das grandes guerras mundiais. Grint consegue fazer os telespectadores esquecerem de seu personagem icônico da franquia Harry Potter ao dar vida a um Inspetor Crome carrancudo, autoritário, questionador e impetuoso. Em outra vertente, Malkovich, que já trabalhou em mais de quarenta filmes, aproxima o mistério com sua interpretação: Hercule Poirot não apenas soluciona mistérios, ele se torna um – além do fato dele ser francês, todos desconhecem sobre os anos que antecedem sua chegada ao país inglês. No final, nos surpreendemos tanto com o solucionar dos crimes quanto da história particular de Hercule. The ABC Murders tem um desfecho que faz todo o raciocínio do telespectador virar do avesso, o óbvio não era assim tão óbvio e o mistério de Hercule não era tudo isso também. A trama encerra trazendo aquilo que os romances de Agatha Christie fazem de melhor: provar que a solução de um crime pode ir além do que conseguimos ver. //
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ESTAMOS DE VOLTA
COM MAIS UM
LADY NIGHT
O
talk-show LADY NIGHT estreou no dia 10 de abril de 2017, exibido pelo Multishow. Comandado por Tatá Werneck, o programa foi aos poucos conquistando público e espaço. O sucesso foi tanto que, desde janeiro, o programa faz parte da grade da Globo, dona da rede Globosat da qual o Multishow faz parte. O canal aberto exibe os melhores episódios do talk-show logo após o Big Brother Brasil. A terceira temporada do programa foi exibida entre novembro e dezembro de 2018, dando o que falar entre os convi62 | zint.online
bruna curi diagramação vics por
dados e os internautas. A volta do talk-show foi marcada por duas celebridades especiais: Patrícia e Tiago Abravanel. Logo no início, Patrícia revela detalhes de sua relação com seu pai, de sua criação e de seu trabalho no Sistema Brasileiro de Televisão (ou, SBT). Já na segunda parte, Tiago Abravanel conversa e brinca muito com Tatá, revelando a reação que sua família teve quando ele assinou contrato com a Globo. O melhor momento da estreia é, no entanto, o quadro Minha Empresa é Melhor que a Sua. O jogo simulava um debate entre Patrícia e Tiago, em que ambos devem defender suas emissoras (SBT e Globo, respectivamente) em quesitos como salário, qualidade dos programas
A ZINT já fez outras publicações sobre Lady Night. Para ler as outras matérias relacionadas, clique aqui!
e apresentadores. Apesar de se tratar de uma simples brincadeira, Patrícia se sai melhor que Tiago, uma vez que o ator ficava em cima do muro, sem argumentar muito bem. “Se eu falar mal do SBT, eu to falando mal da minha família. Se eu falar mal da Globo, eu sou mandado embora porque eu tenho um contrato. Ou seja, eu tô fofido, porque ir
pra uma Record não vai dar”, brinca. A terceira temporada do Lady Night não muda muito em comparação às anteriores, cuja maior mudança se dá no final dos episódios: na primeira e segunda temporadas, Tatá sempre canta uma música de encerramento com seus convidados, o que agora não se torna mais obrigatório. Neste meio, o quadro Desculpe, Só Quero Te Beijar também traz um pouco de novidade ao programa, se popularizando mais no novo ano. Este consiste em fazer uma cena romântica em que, na maioria das vezes, Werneck consegue beijar seu convidado, cuja lista se extende entre Tiago Abravanel, Juliana Paes, Cláudia Raia, Grazi Massafera, Eliana, Gracyanne Barbosa, Caetano Veloso, Susana Vieira, Reynaldo Gianecchini e Sonia Abrão. É importante ressaltar que Tatá, como apresentadora, está cada vez melhor. Suas piadas continuam muito engraçadas e suas perguntas inteligentes – e, sempre que possível, ela encontra uma brecha para improvisar. Além disso, como de costume, Werneck não perde a oportunidade para fazer piadas à própria pessoa, provando que realmente não há nada melhor do que rir de si mesmo. É impossível não gargalhar e se divertir
Na primeira imagem ao lado, Tiago e Patrícia Abravanel duelam em um jogo que determina a melhor emissora para se trabalhar, enquanto na segunda imagem Eliana não teme e dá um selinho em Tatá Werneck.
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com a comediante, que no comando de Lady Night, entrega um dos mais criativos e engraçados programas de entrevista da televisão brasileira. SEJA UM CONVIDADO QUE RENDE Com um total de 25 episódios, diversos famosos passaram pelo palco do Lady Night, rendendo boas risadas e situações divertidas ao lado de Tatá. Mas sempre tem aqueles que acabam se destacando.
Caetano Veloso Com 76 anos de idade, o músico Caetano Veloso entrou no clima das brincadeiras de Werneck. Ele conta sobre sua família, sobre sua juventude, faz flexão, canta e ainda realiza uma importante reflexão sobre a época da ditadura militar: "Essas ilusões a respeito da ordem, da segurança, durante a ditadura, são ilusórias. Durante a ditadura, eu fui preso, fiquei dois meses na cadeia, sendo que uma semana fiquei numa solitária, deitado no chão, com uma porta de ferro, sem que ninguém me dissesse por quê. Não fui interrogado, que havia também desorganização e desrespeito pela pessoa humana, e eu não sofri tortura. Conheço pessoas que sofreram, algumas morreram, foram assassinadas. Tem gente que fica elogiando, achando que era bom, não era bom. Isso eu não admito".
Cláudia Raia Conhecida por participar de Roque Santeiro (1985), O Beijo do Vampiro (2002), Belíssima (2005), A Favorita 64 | zint.online
(2008) e Salve Jorge (2012), Cláudia Raia relembra um pouco de sua carreira em sua participação no programa. A famosa atriz faz algumas revelações sobre sua infância e arranca a risada de todos aos falar de seu filho Enzo Celulari. “Amor, não pega ele não! Ela tem uma coisa com negócio de 21 anos!”, provoca Raia, já que o namorado de Tatá é Rafael Vitti, 12 anos mais novo. Cid Moreira O renomado jornalista de 91 anos, Cid Moreira também não perdeu a oportunidade de brincar ao lado de Werneck. Moreira aproveita para relembrar a trajetória de sua carreira, que começou sem nenhuma pretensão. No quadro 50 Tons de Boa Noite, o jornalista, que já apresetou o Jornal Nacional, precisa dar "Boa Noite" com diferentes vozes. E para encerrar a noite com chave de ouro, Cid e Tatá não fogem do costume e, juntos, cantam uma música. Rouge Dono do hit Ragatanga, o grupo Rouge deu muito o que falar nas redes sociais, sendo um grande sucesso. As integrantes Aline Wirley, Fantine Thó, Karin Hils, Li Martins e Lu Andrade contam sobre o início da formação do grupo, da época em que se separaram e da volta do grupo, que ocorreu no segundo semestre de 2017. Além disso, elas também participaram das brincadeiras de Tatá, além de cntar e fazer o público cair na risada. //
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LADY NIGHT NA GLOBOPLAY.
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UMA BUSCA PELA JUVENTUDE por
giovana silvestri
A série AMIGOS DA FACULDADE, da Netflix, estreou sua segunda temporada dia 11 de janeiro e trouxe consigo mudanças em seus personagens e seu enredo. Criada por Nicholas Stoller e Francesca Delbanco, a comédia recebeu inúmeras críticas em relação ao seu elenco e sua proposta. O show, como o título já insinua, acompanha o reencontro de seis amigos da faculdade que começaram a morar na mesma cidade vinte anos depois de se formarem. Ethan (Keegan-Michael Key), Lisa (Cobie Smulders), Sam (Annie Parisse), Max (Fred Savage), Nick (Nat Faxon) e Marianne (Jae Suh Park) estão enfrentando os seus quaren-
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diagramação
vics
ta anos e tentam voltar a amizade. Os amigos, formados em Harvard, são pessoas adultas e com vidas muito diferentes, mas quando estão juntos se sentem nostálgicos e agem como se estivessem com vinte anos e na faculdade: são inconsequentes, fazem vozes infantis, brincadeiras inconvenientes e até ações imorais. É justamente dai que vem a maior crítica à Amigos da Faculdade: por mais que conte com um ótimo elenco, a série não consegue explorar bem das oportunidades cômicas das antigas amizades. O humor é trabalhado de uma forma repetitiva, abordando situações em que adultos de quarenta anos agem como
universitários sem perceber ou se importar muito com as vergonhas e as atrapalhadas que passam. Os personagens não são aprofundados durante a trama, parecendo figuras jogadas ali de forma desconexa para forçar este humor. A primeira temporada de Amigos da Faculdade tenta, por exemplo, mostrar e valorizar o quão algumas amizades do grupo acabam se tornando tóxicas. O telespectador precisa lidar com personagens que cometem decisões erradas e tem ações infantis – tudo isso, sem conseguir entender a motivação por cada ato e sem o reconhecimento dos personagens pelos erros cometidos. Por isso, Nick, que sempre foi imaturo, se torna o personagem mais autêntico da série, uma vez que não se comporta como o estereótipo de universitário apenas quando os amigo estão juntos, mas sim porque sua personalidade é naturalmente dessa forma. Com as subtramas envolvendo cada uma das personagens e uma malha de mui-
tos acontecimentos, os conflitos se tornam cada vez mais insustentáveis dentro do grupo. Muitos se sentem desconfortáveis pelas atitudes de alguns, outros tentam fingir que aceitam e acham natural agirem sem responsabilidade quando estão juntos. Mesmo se tratando de uma comédia, o que atrai o público em sua segunda temporada é a posição e as ações dos personagens perante o desenrolar dos conflitos. Por mais que os conflitos, traições, ressentimentos e raiva do grupo continue aumentando a cada episódio, a reação despreocupada e a insistência deles de permanecerem juntos criam um clima diferente da primeira temporada: mais íntimo e confortável. A segunda temporada da série tenta criar um humor mais leve e menos repetitivo, mudando a posição de alguns personagens. Os seis amigos refletem um humor que não se repete, e mesmo quando as brincadeiras e situações inusitadas entre eles continua, o desenrolar é diferente. O enredo diversifica o humor e cria uma nova visão: a busca pela juventude não acabou, mas tomou um rumo diferente. Por mais que Amigos da Faculdade decepcione alguns como comédia, ela encanta outros pela sua história simples de reencontro que envolve confusões e conflitos entre um grupo de amigos que os criam sem perceber ou saber o motivo. A razão de tudo isso pode ser, talvez, por conta apenas das ações inconsequentes, infantis e imorais dos personagens, ou por causa da vontade, nostalgia e busca pela juventude. //
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AMIGOS DA FACULDADE NA NETLIX.
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[
filmes
]
por joão dicker
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a riqueza do ARANHAVERSO 70 | zint.online
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esde que a Marvel iniciou a construção de seu universo compartilhado no cinema, surgiram as dúvidas questionando a possibilidade de a empresa adaptar, para as telonas, os arcos mirabolantes e diversas linhas temporais e universos paralelos existentes nos quadrinhos. Até dado momento, com os 10 anos de MCU, a Casa das Ideias ainda não se aventurou em abrir o leque neste sentido, optando por construir uma malha de filmes que se completam, característica que também é marca de sua linha editoral nas HQs. Por outro lado, depois de diversas adaptações e reboots do Homem-Aranha no cinema, promovidas pela Sony, estúdio que detêm os direitos autorais do personagem nas telonas, o herói finalmente ganhou uma versão em desenho animado e que, curiosamente, optou por abordar o conceito de realidades paralelas da Marvel. É dessa premissa que HOMEM-ARANHA NO ARANHAVERSO (2018) embasa sua narrativa. De cara, o roteiro assinado por Phil Lord (Uma Aventura LEGO) e Rodney Rothman (roteirista de Anjos da Lei 2) nos introduz brevemente ao já conhecido Peter Parker, o que inclusive é motivo de piadas bem humoradas que referenciam cenas marcantes das adaptações prévias do herói, para em seguida passar o bastão para o verdadeiro protagonista da história: Mi-
les Morales (Shameik Moore). Apesar de ter feito sucesso nos anos recentes nos quadrinhos, quando se consagrou no Universo Ultimate e foi incorporado ao selo regular da editora, o longa apresenta Miles para uma audiência maior. O personagem é um jovem birracial, filho de um pai negro com uma mãe hispânica, morador do bairro nova-iorquino Brooklyn e que se sente deslocado em sua nova escola para jovens prodígios. Após ser picado por uma aranha e a partir de um encontro ao acaso, em que o jovem se depara com o Peter Parker de sua realidade em conflito com Wilson Fisk/Rei do Crime (Liev Schreiber), Miles passa a contar com uma grande
OSCAR 2019 I NDI CAÇ ÃO
MELHOR ANIMAÇÃO
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MILES MORALES é uma das três versões do Teioso, sendo a primeira vez que o personagem aparece nos cinemas como o protagonista.
responsabilidade: aprender a controlar seus novos poderes como Homem-Aranha para impedir que os múltiplos universos paralelos conectados pelo vilão sejam destruídos. E é ai que residem os dois maiores acertos de Aranhaverso: o esmero com que constroem seu protagonista e com que tratam o conceito de "multiversos", não só na trama, mas também esteticamente. No que diz respeito ao texto, Homem-Aranha no Aranhaverso acerta ao renovar as possibilidades que envolvem a figura do herói já tão conhecido. Além de todos os easter eggs, menções e piadas que remetem as produções anteriores, o texto é muito consciente de como trazer um frescor a uma nova história e um novo protagonista, inseridos em um contexto totalmente oposto ao habitual de Parker – e, no caso de Aranhaverso, ainda mais interessante.
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Acompanhando os hobbies, gostos, anseios, rotina e relações de Miles, vamos a cada cena conhecendo profundamente o novo responsável por carregar o símbolo do Homem-Aranha – pelo menos no que cabe ao universo das animações – e, consequentemente (ou naturalmente), sendo apresentados aos novos dilemas que vão envolver a jornada de crescimento, amadurecimento e aprendizado de como ser o herói que a sua realidade precisa. É uma construção de personagem muito bem feita, com Morales trazendo toda a carga de seu contexto e essência, que também é transposta para o visual: vemos um Brooklyn multicultural, multirracial e plural, colorido e estilizado de uma forma única, com um riquíssimo detalhamento técnico de grafites e intervenções artísticas. O texto ainda encontra espaço para fazer uma sútil e engraçada piada – que brinca com uma marca de cafeteria meio hipster – capaz de contextualizar toda a construção de um bairro gentrificado e diverso. Falando em diversidade, quando o filme coloca Miles de frente para o Peter Parker de outra dimensão (vi-
vido por Jake Johnson), a trama engata em uma aventura crescente que, em momento algum, nos permite tirar os olhos da tela, seja pela jornada tão bem construída e envolvida devida ao personagem ou pelo impressionante trabalho estético e de design. O que os diretores Bob Persichetti, Peter Rmasey e Rodney Rothman entregam em Homem-Aranha no Aranhaverso é de uma riqueza de detalhes, texturas quase que palpáveis, cores vibrantes, formas e movimentos nunca antes vista em uma animação. Esse trabalho é ainda mais esplendoroso quando somos apresentados as outras versões paralelas de aranhas-poderosos: Gwen-Aranha/ Gwen Stacey (Hailee Steinfeld), Homem-Aranha Noir (Nicolas
Cage), Porco-Aranha (John Mulaney) e Peni Parker, a versão em anime do herói, transformada em uma garota (vivida por Kimiko Gleen) e um robô. O que destaca aos olhos é a maneira orgânica com que cada uma das personagens, em seus próprios designs, traços e cores particulares, conversam entre si e tornam toda a experiência de assistir a película ainda mais especial. O Aranha-Noir tem soluções visuais (e também ótimas piadas) que brincam com as convenções do gênero; Peni Parker é uma homenagem digna e bem feita aos animes japoneses, tanto em traço quanto no comportamento; e o Porco-Aranha traz um desenho bidimensional cartunesco que lembra desenhos consagrados, como o próprio Looney Tunes. Toda essa beleza vale também para as sequências de ação,
Da esquerda pra direita: Peni Parker, Gwen Stacy, PorcoAranha, Miles Morales/HomemAranha, Peter B. Parker/HomemAranha, Homem-Aranha Noir.
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Na Edição #2, nós falamos sobre os Homem-Aranhas do cinema. Para ler a matéria, clique aqui!
sempre coloridas, envolventes e claras, e para as formas como o filme utiliza de convenções de linguagem dos quadrinhos com naturalidade, explorando de caixas de pensamentos e balões de sons, o que dá ainda mais um gostinho especial ao filme enquanto uma adaptação de uma mídia para outra. Todas essas
Ok. Vamos fazer isso uma última vez. As referências ao mundo dos quadrinhos vai um pouco mais além em HomemAranha no Aranhaverso. As HQs inspiram praticamente toda a parte visual e estética do filme (como na imagem abaixo).
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qualidades, juntamente da clareza com que os combates são dirigidos, permitem que o espectador não só compreenda o que acontece, mas aprecie o deleite visual que o filme proporciona. É uma verdadeira obra prima pop e psicodélica, apresentada como uma animação que tem uma narrativa com um ritmo fluido, um humor muito divertido e inserções de drama que equilibram bem toda a obra. Outro grande mérito são as atuações: sim, apesar de se tratar de uma animação, o trabalho que cada um dos atores selecionados para dublarem seus personagens é impecável, merecendo ser exaltados não como um mero empréstimo da voz, mas uma verdadeira compreensão de como dar vida e compor a existência de cada um deles. O principal destaque é a maneira irreverente, largada e quase que descrente com que Jake Johnson faz o seu Peter
Parker, que tem em seu visual acima do peso e a barba de fim de tarde mal feita, uma ótima colocação de que ele está cansado de ser o Homem-Aranha. Hailee Steinfeld traz muito carisma, segurança e um senso autoconfiança para a Gwen-Aranha/Gwen Stacey, que encerra sua passagem no filme como uma excelente personagem para uma possível aventura solo. John Mulaney e Nicolas Cage estão ambos impagáveis em seus papéis, com suas vozes combinando perfeitamente com os estilos adotados pela estética dos personagens: o primeiro dá um tom lúdico e sarcástico ao Porco-Aranha, enquanto o segundo traz uma carga satírica para a construção do Aranha-Noir. Fechando os heróis, Kimiko Gleen assegura uma doçura, sensibilidade e ternura para Peni Parker, passando todo o afeto existente entre a garota e o robô que pilota. Saindo um pouco do espectro dos heróis, Mahershala Ali traz profundidade, imponência e presença de tela para Aron Davis, o tio descolado de Miles, que funciona como um importante personagem para o crescimento pessoal do protagonista, além de contribuir para a
conexão do público com o garoto. O filme ganha ainda mais criatividade quando adicionado os seus inúmeros easter eggs. Estes, por sua vez, vão desde a aparição de Stan Lee e homenagens/piadas autorreferentes com cenas e momentos marcantes do herói nos quadrinhos e nos filmes live action, até a lista telefônica com nomes de diversos artistas envolvidos na criação do Homem-Aranha, de Miles Morales e do conceito do Aranhaverso nos quadrinhos – dentre várias outras brincadeiras colocadas para os fãs perceberam. Homem-Aranha no Aranhaverso é a incrível refrescante história de um dos mais queridos e famosos heróis de todos. Com um trabalho técnico irrefutável e um protagonista que ganhará um espaço no coração de qualquer fã de super-heróis, somos convidados a presenciar a riqueza de criatividade e sensações que o filme proporciona. E se existem muitos Aranhas pelo universos, que eles continuem ganhando as telonas, sejam eles Peter Parker, Miles Morales, Gwen Stacey, ou qualquer um digno de vestir a roupa do eterno Amigão da Vizinhança. //
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por carolina cassese diagramação vics
A melhor má reputação 76
"E na morte de sua reputação, ela se sentiu verdadeiramente viva". O trecho de Why She Disappeared aparece no telão para finalizar o show de uma das turnês mais lucrativas dos últimos tempos – a mais rentável de uma artista feminina na última década. O registro de TAYLOR SWIFT REPUTATION STADIUM TOUR, que dá suporte ao álbum reputation. e foi gravado em Dallas (Texas), chegou à Netflix no último dia de 2018 e logo alcançou o topo dos assuntos mais comentados no Twitter mundial. A frase que encerra o show representa muito bem a mensagem que a cantora norte-americana procura passar com seu mais recente trabalho. Em um momento de conversa com o público, Taylor Swift desabafa:
“Se eu tivesse que chutar e adivinhar a única coisa que todos aqui têm em comum, eu diria que todos gostamos de encontrar algo genuíno. Como uma amizade genuína, um amor genuíno ou alguém que realmente nos entenda. Acho que o que mais nos assusta é o que ameaça a nossa chance de encontrar algo genuíno. É por isso que temos tanto medo de uma má reputação. Porque tememos que um boato, uma fofoca ou um apelido maldoso nos atrapalhe nessa busca . Quando se trata desse medo e dessa ansiedade, é delicado, não é, Texas?”.
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A plateia responde com enorme fervor. A câmera, nesse momento, foca no rosto de uma garota que chora. Em seguida, Taylor apresenta Delicate. Os comentários que aparecem para o público logo no começo da produção (“pelo menos 13 famosos não gostam dela”, “Taylor Swift guarda muito rancor”, “ela se faz de vítima o tempo inteiro”) e a presença constante de “cobras” no palco e também no figurino da artista, ilustram a maneira que a cantora abraça, ao mesmo tempo em que ironiza e critica, a sua má fama. Durante a turnê, Swift se esquivou de polêmicas e demonstrou amadurecimento quando, em Boston, convidou a cantora Hayley Kiyoko para se apresentar. Semanas antes, Kiyoko havia dado uma entrevista para a Refinery 29 em que falou sobre o preconceito que sofre na indústria por ser uma cantora lésbica. 78 | zint.online
“Muitos executivos me disseram, ‘mais uma música sobre garotas?’. Eu respondi: ‘Bom, a Taylor Swift está aí sempre compondo sobre homens e ninguém reclama que ela não é original’. Taylor replicou nas redes sociais: “Não podemos ignorar o fato de que ela enfrenta a homofobia e eu nunca me deparei com isso. Hayley tem todo o direito de fazer essa comparação”. O que poderia ter sido mais uma das “tretas” que a internet adora, acabou se tornando uma colaboração incrível. Juntas, as duas performaram a icônica canção Curious. 2018 também foi o ano em que a artista (finalmente) se posicionou politicamente. Em um post no Instagram, Taylor se manifestou contra a candidata ao Senado Marsha Blackburn, apoiada por Trump, e fez críticas ao racismo “aterrador e doentio” dos EUA. “Darei sempre o meu voto ao candidato que proteger e lutar
pelos direitos humanos”, escreveu. Quem acompanha a carreira da artista sabe que o posicionamento veio em um momento importante, já que alguns membros da extrema-direita norte-americana a elegeram, sem seu aval, como uma representante do interesses conservadores. Ela chegou a ganhar o apelido horroroso de “deusa ariana”. Representantes da artista fizeram de tudo pra impedir esse meme de circular na internet – aparentemente, a “brincadeira” se iniciou quando uma adolescente começou a colocar citações de Hitler em fotografias de Swift no Pinterest. A imagem da cantora, loira de olhos claros, e sua relação com o Country foram motivos que justificaram (entre muitas aspas) essa associação que os conservadores fizeram. Sim, eles são assim em qualquer lugar do mundo. REPUTATION EM DALLAS No registro disponibilizado pela Netflix, o diretor Paul Dugdale faz um trabalho eficiente em representar a grandiosidade do show. A câmera viaja por todos os cantos do estádio e consegue capturar a imensa empolgação do igualmen-
te imenso público, sem deixar nenhum momento das mais de duas horas de show entediante. Dugdale foi responsável também pela filmagem da turnês The Rolling Stones Olé Olé Olé!: A Trip Across Latin America (2016) e Paul McCartney Live at The Cavern Club 2018 (2018). A participação de Camila Cabello e Charlie XCX em Shake it Off garante um dos melhores momentos do show. A rápida aparição das duas realmente dá um gosto de “quero mais”, mas a presença de Taylor é forte o suficiente para segurar as duas horas de apresentação. A artista faz questão de interagir com o público em diferentes momentos e se mostra lisonjeada quando a plateia canta suas letras a plenos pulmões. Ao longo de sua trajetória musical, Taylor criou um universo de símbolos que a representam. Seu amor por gatos, sua conexão com o número 13, sua fama de “cobra”. Todos esses elementos estão presentes não só no palco, mas também na plateia. Não é difícil encontrar fãs como o número 13 pintado nas mãos ou com cartazes com fotos de Olivia, a gatinha icônica de Taylor. Quando, no meio do Taylor Swift Reputation Stadium Tour, a cantora resolve apostar no formato voz e violão, apresentando músicas mais antigas do seu repertório, o público vai à loucura. O remember é maravilhoso, mas definitivamente não estamos vendo a Taylor daquela época. A menina de Love Story, no final das contas, está morta - e por isso ela não pode atender o telefone agora. //
TAYLOR SWIFT REPUTATION STADIUM TOUR DISPONÍVEL PARA STREAMING NA NETFLIX. 2018; 2h05; Musical zint.online | 79
VOCÊ ESCOLHE?
debora drumond diagramação vics p or
N
o dia 28 de dezembro de 2018, a Netflix decidiu agraciar os fãs de BLACK MIRROR enquanto a quinta temporada, já confirmada, não chega. Para este evento, a plataforma de streaming decidiu apostar em um formato diferente: um filme interativo solto, em que o espectador pode controlar o desenrolar da trama. Assim surge BLACK MIRROR: BANDERSNATCH. A narrativa base conta a história de Stefan (Fionn Whitehead), um jovem programador que, inspirado pelo livro Bandersnatch pertencente
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a sua mãe, decide desenvolver um jogo homônimo em que o indivíduo tenha escolhas e possa controlar sua experiência. Ele apresenta sua ideia a Mohan Tucker (Asim Chaudhry), dono da Tuckersoft, empresa responsável pelos jogos de seu programador favorito Colin Ritman (Will Poulter). Ambos se interessam pela ideia, mas o prazo para desenvolver a versão final do jogo é bem apertado. Stefan é um jovem introvertido e perturbado, em grande parte, pela morte trágica de sua mãe quando ainda era criança, tratando essas questões durante as sessões de
terapia com a Dra. Haynes (Alice Lowe). Stefan é bem reservado e tem grande dificuldade de desenvolver relacionamentos, até mesmo com seu pai, com quem mantém uma relação distante e sem afeto. O PODER DE UM CLIQUE Durante todo filme, Black Mirror: Bandersnatch apresentada duas opções de escolha ao telespectador, interferindo diretamente na continuidade da história. As decisões são das mais diversas, com algumas parecendo muito simples, como qual cereal comer no café da manhã ou qual música ouvir a caminho da Tuckersoft. Mas não se engane: cada decisão tomada pelo espectador tem impacto na narrativa, culminando em ações que causarão mais impacto posteriormente. Com a possibilidade de diferentes caminhos e finais diferentes (a contagem já chegou em 12 desfechos possíveis), a vontade de voltar e tentar outra opção
é inevitável, e a Netflix flexibiliza o formato permitindo que algumas escolhas sejam refeitas para prolongar a história. Mas quanto mais você volta e tenta mudar as escolhas para ter um determinado final ou transformar alguma situação da trama, você começa a perceber que alguns resultados são inevitáveis. Você pode tentar se esconder ou deixa o tempo de escolha expirar, mas não há como fugir: o desenrolar vem de qualquer forma. Essa inevitabilidade é algo que nos leva a refletir se realmente temos o poder de escolha e o controle da narrativa, um questionamento que o próprio Stefan tem durante o filme. E aqui, esse é o objetivo principal. Black Mirror sempre trouxe temas que levassem à reflexões sobre nosso comportamento em uma sociedade tão tecnológica e com Black Mirror: Bandersnatch não é diferente. Ao mesmo tempo em que o longa apresenta uma proposta inovadora e diferente, a película não deixa de ter o caráter questionador que é fundamental nos roteiros da série. A interatividade traz uma experiência metalinguística incrível, além de ser muito imersiva. Reservar algumas horas para se dedicar ao universo de Bandersnatch não precisa ser uma escolha difícil de tomar – mas você vai precisar fazer muitas escolhas. //
BLACK MIRROR: BANDERSNATCH DISPONÍVEL PARA STREAMING NA NETFLIX. 2018; 1h30; Drama, Thriller, Suspense zint.online | 81
O CINEMA COMO DIÁRIO DE MEMÓRIAS joão dicker diagramação vics por
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Q
uando o Festival de Cannes anunciou que a partir de 2018 os filmes de serviço de streaming estavam banidos da programação, a direção do evento provavelmente não sabia que estavam deixando de fora uma obra prima do cinema. Mesmo sem participar de Cannes, ROMA (2018), de Alfonso Cuarón para a Netflix, conquistou o Leão de Ouro de Melhor Filme no Festival de Veneza e foi ovacionado no Festival de Toronto. Mais do que isso, a película se tornou a primeira produção original da gigante do streaming a ser indicada a categoria de Melhor Filme do Oscar. Tantos prêmios, indicações e elogios se devem majoritariamente ao trabalho de Cuarón, que entrega em Roma seu projeto mais pessoal e sensível. A pessoalidade com que o mexicano trata sua obra é sentida não só pelo o roteiro, assinado por ele, que parte de um olhar nostálgico e carregado de memórias para seu passado, visitando a década de 70 quando morava ainda criança no bairro Roma, na Cidade do México. Assim, o cineasta o escolhe contar a história de Cleo (Yalitza
OSCAR 2019 INDICAÇÃO
MELHOR FILME MELHOR ATRIZ YALITZA APARICIO
MELHOR ATRIZ COADJUVANTE MARINA DE TAVIRA
MELHOR DIRETOR ALFONSO CUARÓN
MELHOR FILME ESTRANGEIRO MELHOR ROTEIRO ORIGINAL ALFONSO CUARÓN
MELHOR FOTOGRAFIA ALFONSO CUARÓN
MELHOR MIXAGEM DE SOM CRAIG HENIGHAN JOSÉ ANTONIO GARCÍA SKIP LIEVSAY
MELHOR DIREÇÃO DE ARTE BARBARA ENRIQUEZ EUGENIO CABALLERO
MELHOR EDIÇÃO DE SOM SERGIO DIAZ SKIP LIEVSAY
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Aparicio), uma empregada doméstica de uma família composta por Antônio (Fernando Grediaga), Sofia (Marina de Tavira) e pelos três filhos Paco (Carlos Peralta), Pepe (Marco Graf) e Sofi (Daniela Demesa). Responsável pelas tarefas da casa junto de sua amiga Adela (Nancy Garcia), a jovem passa quase que todo o tempo de seu dia a dia trabalhando, seja limpando a casa, preparando chás, cuidando das crianças ou pendurando roupas no varal. Assim, acompanhamos o desenvolvimento de uma dinâmica familiar conturbada, convidando-nos a perceber uma realidade social muito parecida com a do Brasil, em que Cleo é a funcionária que faz parte da família afetivamente, com uma devoção de carinho aos filhos do casal e funcionando como uma conexão – às vezes imperceptível para os familiares – entre eles mesmos. Justamente por Roma ser seu projeto mais pessoal, fica claro a entrega de Cuarón que ainda assume a direção de fotografia e a montagem (juntamente de Adam Gough). Assim, direção e roteiro se combinam com maestria em uma bonita, sensível e tocante histó-
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ria de uma protagonista passiva em sua própria vida. O plano de abertura já nos prepara para um estado de contemplação da narrativa, que se assume ainda mais pela proposta estética arrojada e simbólica do diretor. A escolha por um ritmo compassado construído pelo uso de uma câmera sempre distante dos atores, com planos panorâmicos lentos e um uso impressionante da profundidade de campo, dão a sensação de que Cleo é sim somente uma testemunha ocular do que acontece em sua vida, fadada a ser uma pequena peça de algo maior ao redor. Junto disso, a atuação retraída de Yalitza Aparicio transforma a protagonista na mulher dócil, amável, ingênua e introspectiva que acompanhamos sempre disposta aos seus chefes, devido a relação profissional, e as crianças, devido a relação afetiva, em uma dualidade que torna sua participação no núcleo familiar ainda mais interessante. Dando sequência a sua proposta estética arrojada, Cuarón entrega sequências
que são das mais belas de sua filmografia. A cena de abertura carrega uma simbologia com o mar, que é resgatada na cena da praia ao final do longa, em um dos momentos mais tocantes e bonitos (tanto no sentido emocional quanto no aspecto estético) do cinema em 2018. A recriação do Massacre de Corpus Chrsti, em que centenas de estudantes foram assassinados enquanto protestavam contra o governo mexicano, tem um senso de desespero enervante, capturando a brutalidade nua e crua de forma arrebatadora. Em um dos poucos momentos em que quebra sua proposta contemplativa, o diretor filma a chegada do pai da família com seu carro luxuoso na afunilada garagem da casa, exigindo diversas manobras e um cuidado com o veículo impressionante. Assim, ele trabalha uma montagem mais ágil com cortes e planos detalhes, que funcionam
para construir a personalidade daquele pai/marido por meio da linguagem do filme. Assim, o cineasta entrega um filme carregado de sentimentos, mas que é livre de julgamentos e didatismos para o espectador, deixando espaço para que todas os discursos levantados sejam construídos a partir das interpretações de cada um. Assim, vemos temáticas que envolvem a luta de classes e a submissão social existente na sociedade mexicana (é evidente o discurso na jornada de uma personagem pobre inserida em uma grande casa de classe média, o que novamente aproxima o filme da realidade brasileira), a representação das áreas suburbanas deterioradas, a recriação do Massacre de Corpus Christi, o comportamento agressivo e dominador do namorado de Cleo e o levantamento de questionamentos quanto a importância da mesma na criação e sustentação de uma família. No fim das contas, Roma é uma oportunidade de Cuarón revisitar sua própria memória, reviver e resolver sentimentos pessoais profundos, ao mesmo tempo que homenageia uma importante figura materna e afetiva de sua vida, em um filme que com um esplendor técnico, uma sensibilidade tocante e muitas emoções, convida o espectador à compartilhar de um sentimento universal e muito particular: o amor. E não há nada mais humano que isso. //
ROMA DISPONÍVEL PARA STREAMING NA NETFLIX.
2018; 2h15; Drama zint.online | 85
NAVEGANDO PELA INTERNET p or guilherme luis
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diagramação vics
Q
uando o excelente Detona Ralph estreou em 2012, iniciou-se uma leva de animações Disney que desconstruíam clichês e padrões do estúdio de antigamente, seguido por filmes como Frozen: Uma Aventura Congelante (2014) e Moana: Um Mar de Aventuras (2016). Em WIFI RALPH: QUEBRANDO A INTERNET, o estúdio brinca consigo mesmo, se referencia e desconstrói personagens antigos, sem se esquecer de contar uma boa história e envolvente. No novo longa, Ralph (John C. Reilly) e Vanellope (Sarah Silverman) precisam deixar o fliperama e adentrar o mundo da Internet para buscarem uma peça fundamental para que o jogo Corrida Doce não seja desligado e continue funcionando. Assim, o que podia ser uma simples aventura de caça a um artefato, se torna uma jornada interna para cada um dos dois protagonistas e, consequentemente, par a relação dos dois. Ralph vê na menina sua melhor amiga e acaba desenvolvendo um comportamento protecionista que não é saudável, já que ela está passando por um processo de autodescobrimento e crescimento interno. É nesse ponto que o filme toca em um ponto tão delicado
e tão atual: o relacionamento tóxico entre duas pessoas, que não precisa ser necessariamente entre um casal romântico. Os dois protagonizam um arco dramático que passa uma importante mensagem. Mais deslumbrante que a história e a discussão trazida pelo filme, é o seu visual. A Internet é pensada e apresentada de um jeito criativo, revelando soluções visuais coloridas e cheias de textura para simples coisas do mundo virtual. Os pop-ups, as propagandas inconvenientes, o buscador (genial!) e os likes são apenas alguns dos divertidíssimos elementos do filme. Nesse ponto, WiFi Ralph soa muito como um filme Pixar, que em todos os seus filmes faz a pergunta: "e se ____ tivesse vida?". Pois bem: os estúdios Disney souberam muito bem dar vida à Internet que está tão presente no nosso dia a dia.
OSCAR 2019 I NDI CAÇÃO
MELHOR ANIMAÇÃO
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Em meio a tanta criatividade, o longa apresenta milhares de referencias aos próprios filmes e produtos Disney. Sendo direto: sim, as princesas protagonizam os melhores momentos do filme. Um já fora
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mostrado em demasia nos trailer (e acaba perdendo o impacto), mas o outro é sensacional, surpreendente e um verdadeiro pedido de desculpas da Disney à essas personagens tão incríveis. Os boatos de uma série para esse time de princesas juntas no futuro serviço de streaming
da empresa está tomando força – e se acontecer, o sucesso é certo. Além delas, é claro, o filme referencia todo o resto do império: Star Wars, Marvel, as outras animações... É tudo muito rápido, mas
enche os olhos. Sem muitas novidades na trama, há apenas uma nova personagem que se destaca e ganha um peso maior que as rápidas participações de todos os outros coadjuvantes: a Shank (Gal Gadot), do jogo Corrida do Caos. Isso é um dos pontos em que a sequência perde para o primeiro filme. Além disso, o vilão em questão e todo o desenvolvimento do terceiro ato é
bem aquém se comparado com o seu antecessor, soando quase genérico. Contudo, a forma como Ralph encontra a solução para o problema, fechando com o tema tomado em discussão no filme, salvam o desfecho que passa uma mensagem, no fim das contas. WiFi Ralph: Quebrando a Internet felizmente não só se apoia em referências e um visual bacana. Apesar de não conseguir ser tão inventivo em sua história quanto o primeiro foi, o filme traz uma discussão importante, desenvolve um arco novo para seus personagens e é repleto de momentos divertidos. Ralph destrói a Internet, mas mostra como construir melhor suas amizades. //
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Um sensual e inquietante
JOGO DE PODER por joão dicker diagramação vics
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Y
Yorgos Lanthimos têm demonstrado em sua filmografia um cinema que brinca com o desconforto como meio, mas não como fim. Por mais incômodos e inquietantes que Dente Canino (2009), O Lagosta (2015) e O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017) sejam, o cineasta sempre demonstra seu olhar autoral ao explorar de tensões e sentimentos deturpados para trabalhar seus discursos e personagens. Em A FAVORITA, seu novo longa, o diretor entrega seu filme mais bem humorado até aqui, carregado de um cinismo latente e de uma tensão construída a partir de um interessante jogo de antecipação entre as personagens. A cena de abertura do longa já dita a proposta da produção com sua inspiração histórica. Por mais que retrate parte do governo da Ana da Grã-Bretanha, que governou o país em um mandato conturbado entre os anos de 1702 e 1714, a película toma liberdades narrativas visíveis com relação a fidelidade histórica, fato que não diminui o filme de forma alguma. Assim, somos apresentados politicagem vivida pela Corte Inglesa, principalmente no que diz respeito as decisões tomadas pela rainha Anne (Olivia Colman), sempre aconselhada por sua fidelíssima Sarah Churchill, a Duquesa de Marlborough (Rachel Weisz), que é quem verdadeiramente consegue
OSCAR 2019 INDICAÇÃO
MELHOR FILME MELHOR ATRIZ OLIVIA COLMAN
MELHOR ATRIZ COAJUVANTE EMMA STONE
MELHOR ATRIZ COAJUVANTE RACHEL WEISZ
MELHOR DIRETOR
YORGOS MAVROPSARIDIS
MELHOR ROTEIRO ORIGINAL DEBORAH DAVIS TONY MCNAMARA
MELHOR FOTOGRAFIA ROBBIE RYAN
MELHOR FIGURINO SANDY POWELL
MELHOR MONTAGEM YORGOS MAVROPSARIDIS
MELHOR DIREÇÃO DE ARTE ALICE FELTON FIONA CROMBIE
dar algum rumo ao país por meio dos direcionamentos que dá à rainha. Com a chegada da jovem e sedutora Abigail Hill (Emma Stone), a rotina vivida na Corte se transforma completamente, resultando em um jogo de poder, sedução e favoritismo entre as duas mulheres para com a rainha Anne.
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É justamente da dinâmica entre as três mulheres que saem as maiores virtudes do longa. O roteiro de Deborah Davis e Tony McNamara dá vida a um trio de mulheres fortes e imperfeitas, cada uma a sua maneira. Cada uma delas passam por arcos dramáticos interessante ao longo da projeção, mostrando diversas nuances de suas personalidades e dominando um ambiente frequentado por homens da realeza, tão tapados quanto cegos ao controle que sofrem destas inteligentes mulheres. Olivia Colman faz uma rainha Anne frágil, insegura e aparentemente incapaz,
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que com o desenrolar da trama revela uma dureza e um comportamento explosivo e histérico que ao invés de transmitirem fragilidade, na verdade esconde o sofrimento de uma pessoa que aguenta não só as dores físicas, mas as críticas e questionamentos de todo um país. Rachel Weisz se mantém firme, forte e sólida como uma pedra durante toda a projeção, ao mesmo tempo em que encontra espaços breves, sutis e humanos para transmitir o amor e o carinho que Lady Sarah tem pela Rainha. Ao passo que Abigail entra na história, torna-se um deleite observar Emma Stone crescer com a personagem, conquistando a todos com seu carisma, sua forma dócil (e porque não oposta a de Sarah) de lidar com a rainha e com as questões inerentes à política.
Mesmo que Lanthimos não assine o roteiro, A Favorita ainda carrega muito de sua essência inquietante. Por mais que o diretor utilize muito de contra-plongées, o artifício tem o seu sentido semântico ao colocar a personagem enquadrada em uma posição de poder, sendo vista de baixo para cima e engrandecendo-a. A opção, mesmo que repetitiva, é consoante com toda a proposta do longa, que a cada sequência traz um novo acontecimento para o jogo de xadrez construído entre as personagens. Há, também, um interessante uso da câmera fisheye pelo diretor de fotografia Robbie Ryan, que alonga ainda mais os compridos corredores do castelo e cria um senso de desconexão da realidade, agregando a narrativa e seu senso de absurdo. Lanthimos traz uma proposta arrojada de movimentos de câmera e enquadramentos, em um claro objetivo de construir um filme que se não é sua obra mais autoral como um todo, é com certeza um trabalho impecável de direção. Não menos impressionante é toda a parte técnica do longa. O design de produção, cenários, figurinos e maquiagem recriam o século XVIII e toda a pompa existente na realeza britânica com esmero, sendo elevados a níveis pitoresco que fizeram a película ser comparada à Barry Lyndon (1975), principalmente nas sequências das festas nababescas e dos jantares extravagantes da realeza, sempre filmadas por uma bonita luz de velas (mais um mérito de Robbie Ryan). A trilha sonora se adequa a cada novo capítulo do longa, se repetindo por vezes e gerando uma inquietação avassa-
ladora, quase que enunciando uma nova ação de Sarah ou Abigail. Com um desfecho carregado interpretação, A Favorita se assume como um drama histórico que trata de ambição, amor e de jogos de poder, sejam eles nas relações políticas ou nos sentimentos mais pessoais. Yorgos Lanthimos entrega um trabalho que se destaca pela forma dura, crua, cínica, cômica e sensual com que retrata os desejos mais íntimos e primitivos da natureza humana. Cada uma destas sensações vem à tona com as impressionantes atuações do trio de protagonistas, que tornam muito difícil escolher verdadeiramente quem é a favorita do espectador. //
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GLENN CLOSE e JONATHAN PRYCE
UMA VIDA EM segundo plano por
CAROLINA CASSESE
diagramação
vics
Parece que Hollywood
OSCAR 2019 I N D I CAÇÃO
MELHOR ATRIZ GLEEN CLOSE
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finalmente se deu conta da importância de retratar pessoas mais velhas nas telas e colocar atores veteranos em destaque. Produções como Grace and Frankie (2015–), Transparent (2015–) e a premiada O Método Kominsky (2018–) se destacam justamente por colocarem questões relativas ao envelhecimento em pauta. Em épocas de movimentos como o Me Too e Time’s Up, a indústria do entretenimento também passou a apostar em filmes que problematizam o machismo e apresentam mulheres fortes como protagonistas. Embarcando nessas duas tendências, o longa A ESPOSA é centrado nos conflitos de um casal da terceira idade – ou, mais especificamente,
no arquétipo da esposa que passa uma vida em segundo plano, enquanto seu marido é prestigiado e vive cortejando outras mulheres. A produção é cotada para as grandes premiações, especialmente por conta da excepcional atuação de Glenn Close, que interpreta a protagonista Joan Castleman. A atriz de fato consegue passar toda a aflição e complexidade de sua personagem com apenas um olhar ou um meio sorriso. O estopim de boa parte dos conflitos é a viagem que o casal realiza a Estocolmo para a cerimônia do Nobel de Literatura que Joe Castleman (Jonathan Pryce), o marido de Joan, receberá. Desde a primeira cena, em que Joe insiste em fazer sexo com sua esposa e faz a sugestão de maneira consideravelmente misógina (acredite se quiser, muitas pessoas no cinema acharam essa insistência engraçada), é bem possível não se simpatizar com o personagem. No entanto, se o desafeto não acontecer “de primeira”, é difícil continuar gostando de Castleman depois de conhecer a fundo a trajetória do casal – inacreditavelmente, há quem justifique todas as ações sexistas do escritor (“ele é movido a testosterona”, “ele faz o que faz porque se sente inseguro”, entre outras). A opressão sofrida pela a personagem de Close acontece em muitos níveis. Joan não só é diminuída publicamente pelo seu marido (que, descaradamente, diz para os amigos “ainda bem que ela não escreve”), como também sofre em casa, já que ela é totalmente responsável pelos cuidados domésticos – Joe não sabe cuidar nem da sua própria toalha de banho. A protagonista precisa aguentar ainda os olhares que seu marido lança para outras mulheres. A pegada feminista de A Esposa é inegável, especialmente a partir da me-
tade do longa, quando a mulher começa a se dar conta de toda a opressão que sofreu a vida inteira. Seu despertar é motivado pelo injusto reconhecimento que o marido recebe com o Nobel e pelas investidas de Nathaniel Bone (Christian Slater), um escritor que sabe todos os podres da vida de seu marido e não faz nenhuma questão de escondê-los. A produção pode não agradar algumas feministas, já que, em alguns momentos, Joan se recusa a ser colocada como vítima e até justifica alguns dos equívocos do marido. Em determinados momentos (principalmente considerando o final do longa), fica a impressão de que o próprio filme quer apresentar justificativas para o sexismo de Joe. Pode-se argumentar, no entanto, que a produção se empenha em realizar um retrato verossímil de relacionamentos abusivos, considerando que esses apresentam amarras invisíveis e complexas. A direção de Bjorn Runge oscila entre planos longos e decupagens clássicas. Uma cena em especial chama atenção: a conversa de Joan e Nathaniel em um bar passa a ter seus quadros afunilados e apertados na medida em que a conversa se torna tensa e desconfortável para a protagonista. A presença do filho do casal, interpretado por Max Irons, se torna praticamente um acessório e é facilmente descartada. Seu drama, como um aspirante a escritor ofuscado pelo sucesso do pai, é até interessante, mas se torna pouco explorado na trama e parece não chegar a lugar nenhum. No final das contas, o grande destaque de A Esposa é o show de Glenn Close, que de fato merece todo o prestígio que está recebendo. A atriz, que tem um portfólio e tanto, até hoje não foi premiada com um Oscar, mas tudo indica que 2019 pode muito bem ser o seu ano. Se o longa é intitulado A Esposa, Close carrega o filme fazendo justiça ao peso e força que sua personagem precisa ter, mostrando as nuances de uma mulher forte que se destaca em um mundo misógino. //
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O ENGRAÇADO GUIA DE DESCONSTRUIR PRECONCEITOS por
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joão dicker
diagramação
vics
GREEN BOOK: O GUIA (2018) é, provavelmente, a produção que menos carrega um traço autoral muito demarcado. Por outro lado, é interessante ver como o longa é o que mais se distancia dos trabalhos anteriores de seu diretor, Peter Farrelly, responsável por comandar comédias escrachadas como Débi & Loide: Dois Idiotas em Apuros (1994), Quem Vai Ficar com Mary? (1998) e Os Três Patetas (2012). Continuando na comédia, claramente seu estilo preferido, Green Book: O Guia se destaca pela forma interessante com que utilizada do humor para construir uma jornada
pessoal de aceitação, de seus próprios valores, defeitos e também dos outros ao seu redor. A trama apresenta a história real da viagem realizada por Don Shirley (Mahershala Ali), um consagrado músico erudito, e seu motorista Tony Vallelonga (Viggo Mortensen), pelo chamado deep south, os estados mais ao sul dos EUA, durante os anos de segregação racial, em que a região era justamente o epicentro do contexto. O roteiro co-escrito pelo diretor junto de Brian Hayes Currie e Nick Vallelonga (filho de Tony na vida real), combina convenções de road movies e buddy movies para entregar uma narrativa
convencional e um pouco batida, mas que não se torna boba ou esquecível graças a forma perspicaz com que trabalha a desconstrução do racismo e a descoberta de si mesmo e do outro, dada a partir da relação de amizade criada entre os protagonistas. Mesmo que um pouco clichê, é interessante acompanhar como ao longo das oito semanas de turnê os dois personagens vão se aproximando, criando uma relação de confiança e quebrando barreiras culturais, étnicas, sociais e ideológicas que os separam em mundos muito opostos, principalmente graças as ótimas atuações de ambos atores.
OSCAR 2019 I NDI CAÇÃO
MELHOR FILME MELHOR ATOR
MELHOR ROTEIRO ORIGINAL
VIGGO MORTENSEN
NICK VALLELONGA PETER FARRELLY
MELHOR ATOR COADJUVANTE
MELHOR MONTAGEM
MAHERSHALA ALI
PATRICK J. DON VITO
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Enquanto o músico vai aprendendo com a simplicidade e com o comportamento de brucutu malandro de Tony, o motorista italo-americano se torna uma pessoa mais sensível e empática ao presenciar as inúmeras situações nojentas de racismo escancarado e velado que o artista passa na viagem. Se Shirley é um artista cultuado e aplaudido quando está no palco, fora dele é só mais um dos milhares de afro-americanos que sofreram com as leis e costumes segregacionistas vigentes no sul dos EUA na época – e essa distinção de tratamento em que os brancos dão ao músico, separando o "artista negro" do "cidadão negro", escancara com perfeição o quão naturalizado e enraizado era (e mesmo que com algum progresso, ainda seja) o preconceito no mundo. Desta jornada estrada a fora, ambos os personagens tem seus arcos desenvolvidos, com os atores brilhando de forma estupenda, seja na ótima e bem humorada química que criam, ou nas performances individuais. Viggo Mortensen dá doçura e compaixão para toda a ignorância e malandragem de Tony
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Viggo Mortensen e Mahershala Ali estrelam Green Book: O Guia, cuja performances garantiram indicações para os dois nas maiores premiações da indústria.
"Lip" Vallelonga, trazendo nuances de empatia e sensibilidade na medida em que o brucutu vai aprendendo com seu chefe e colega de viagem. Já Mahershala Ali entrega, mais uma vez, uma interpretação intensa e profundamente carregada de emoções. A presença de tela de Ali é magnética, seja na caracterização de um Don Sherley arrogante, erudito e virtuoso, ou na desconstrução do personagem, evidenciando os efeitos do preconceito sofrido pelo músico negro inserido em um ambiente majoritariamente branco (tanto no exercer profissional quanto no consumo de sua arte), mas também da própria repressão que o artista exercer em si mesmo, se mantendo em uma claustrofobia sentimental angustiante. A cena da chuva em que ele finalmente exala estes sentimentos é bonita e arrebatadora, impactando
pela facilidade com que o ator traz uma fragilidade profunda ao pianista, desnudando seus anseios e sentimentos mais íntimos no olhar de solidão e desespero com que encara seu motorista. Outro ponto interessante da atuação de Mahershala é a forma inteligente e sensível com que o ele muda gradativamente alguns trejeitos corriqueiros e repetidos de seu personagem – note que a cada apresentação o músico não só toca seu piano com mais raiva e peso sobre seus ombros e dedos (o que torna ainda mais especial a sequência de apresentação no bar para negros), além de se dirigir a plateia sem os sorrisos de satisfação.
No que diz respeito a direção, Peter Farrelly parece ter se preocupado mais em deixar o ótimo material humano de seu longa trabalhar, do que tentar ousar em planos e enquadramentos. Sem uma proposta estética mais arrojada, o diretor acaba tornando a película em um "filme de ator", aproveitando de duas performances impecáveis e que asseguraram virtudes capazes de sobressair ao roteiro genérico para transformar Green Book: O Guia em uma bonita e envolvente história de descoberta e crescimento pessoal. Se Tony e Don precisam acompanhar um guia de viagem para negros que pretendem passar pelo sul dos EUA, o filme se assume como um bom guia de como aprender a ter empatia ao próximo, a desconstruir seus preconceitos e, não só a respeitar as diferenças, mas também se conectar por meio delas. //
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O
TESTEMUNHO p or joão dicker
DE UMA
FAMÍLIA
diagramação vics
A
filmografia de Hirokazu Koreeda tem mostrado que as relações familiares são mais do que um tema para seu cinema, mas sim um meio. O cineasta japonês, responsável por outros ótimos trabalhos recentes que chegaram a ser exibidos no Brasil como O Que Eu Mais Desejo (2011), Pais e Filhos (2013) e Depois da Tempestade (2016), vem trabalhando de forma recorrente com os detalhes mais simples de um núcleo familiar, mas explorando-os com profundidade e usando-os como forma de desnudar valores culturais do Japão e costumes familiares. Com a estreia de seu
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OSCAR 2019 INDIC AÇ ÃO
MELHOR FILME ESTRANGEIRO
mais novo filme, ASSUNTO DE FAMÍLIA, que lhe rendeu o Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2018, Koreeda usa de um olhar naturalista, cru e seco para tratar das nuances existentes nas relações familiares, evocando questionamentos quanto a o que é exatamente uma família, o que é preciso para cultivar o sentimento de união e carinho e quais os efeitos, sejam afetivos ou profundamente pessoais, nas crianças. O longa traz a essência do cinema japonês, sempre muito sutil, contemplativo e com um viés lírico para tratar de narrativas que vista por um olhar desatento, não enxergam a beleza e
profundidade do que está sendo exibido. Koreeda domina com maestria o ritmo lento, compassado e contemplativo de seu filme, utilizando de uma câmera parada que coloca o espectador na posição de testemunha ocular da história daquela família. Se visto por um olhar mais descuidado, podemos dizer que Assunto de Família é sobre um núcleo familiar formado por uma avó (Kirin Hiki), um pai chamado Osamu (Lily Franky), uma mãe chamada Nobuyo (Sakura Andô), uma filha adulta (Aki, vivida por Mayu Matsuoka) e um jovem garoto chamado Shota (Kairi Jo). Com uma vida dura, simples e pobre,
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eles vivem em uma minúscula e precária casa em Tóquio. Passando por uma evidente situação de pobreza e com uma relação problemática com dinheiro, Osamu desenvolve sua relação de pai com Shota a partir do ensinamento de pequenos furtos em lojas de conveniência e supermercados, criando uma dinâmica com a criança que ao mesmo tempo que lhes conecta de alguma forma, a faz de um jeito questionável e perigoso. É justamente voltando de um desses delitos que se deparam com a pequena Yuri (Miyu Sasaki), uma criança machucada e largada na área externa de uma casa, levando Osamu a carregar a garota para dentro de seu núcleo familiar. Mesmo que dentro do contexto ao qual estão inseridos, seria essa a melhor forma de educar e criar um filho e também de dar assistência a mais uma criança? Em outro ponto da trama, Aki se mostra como uma filha já adulta e madura a ponto de ter seu próprio emprego, mesmo que seja um que foge totalmente do convencional e que sofra de um preconceito ainda maior na sociedade oriental. Sua relação com a avó e o constante questio-
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namento da mãe, também mostram a disfuncionalidade daquela família, que durante as 2 horas de projeção e com os acontecimentos da trama só vai conseguindo se manter unida graças a mudança no núcleo que foi a chegada de Yuri. O que permeia de forma muito interessante toda a projeção é a sensação de que Koreeda quer
HIROKAZU KOREEDA, DIRETOR DE ASSUNTO DE FAMÍLIA FOI O GRANDE VENCEDOR DO PALMA DE OURO DE 2018, PRÊMIO MÁXIMO ENTREGUE PELO FESTIVAL DE CINEMA DE CANNES, QUE ACONTECE ANUALMENTE NA CIDADE FRANCESA
levantar questionamentos quanto ao comportamento de suas personagens e, consequentemente, problematizar toda a temática envolvendo os laços familiares, mas a sua escolha por uma câmera contemplativa torna tudo em uma experiência sem julgamentos. O trabalho do diretor de fotografia Ryûto Kondô é imprescindível para o lirismo complacente do filme, que é sustentado pelo jogo de câmeras paradas que somente observa as personagens em seu dia a dia, quase que em um tom documental cru, captando os detalhes e sutilezas mais intrínsecas de uma relação familiar. É uma forma de convidar o espectador a presenciar cada acontecimento em sua forma mais verdadeira e crua, para a partir dai ele tomar suas decisões e julgamentos. E é justamente a partir das tomadas de decisões que a o roteiro apresenta algumas revelações não muito surpreendentes, mas poderosas. O impacto dos acontecimentos na união de uma família disfuncional, que se mantinha unida por um sentimento pouco verbalizado, vem a tona em um desfecho forte e duro. É a maneira sútil, interessante e marcante
do diretor, que também assina o roteiro, de falar sobre família sem que muitas palavras sejam ditas. A falta de som é também imperativa no filme, com pouquíssimas sequências acompanhadas por trilha sonora, dando espaço para os sons diegéticos de uma Tóquio diferente, mais suja, vazia e mórbida do que a metrópole tecnológica e povoada comumente exibida no cinema. Com um narrativa que anuncia um provável contra-tempo para a família, seja pela procura por Yuri, pela falta de dinheiro ou pelos pequenos roubos de Shota e Osamu, o filme traz um desfecho que soa um pouco desconexo com toda a construção ao longo de sua exibição. Koreeda entrega respostas concretas para perguntas que funcionam melhor sem serem respondidas, mas o faz de uma forma condizente com a dureza e seriedade com que trata seus discursos no filme. Ao final, Assunto de Família traz uma poderosa e impactante história a respeito das intimidades de uma família, nos levando a questionar quais os limites, certezas e incertezas de uma das relações mais universais de todas. //
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