Aluado e outros contos de alumbramento

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Aluar Editora – Material de divulgação – versão submetida à avaliação.

Adriano Messias

ilustrações de Carlos Caminha


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Adriano Messias

ilustrações de Carlos Caminha

Belo Horizonte 2ª edição Março de 2021


Copyright © 2021 by Adriano Messias EDITOR Mário Vinícius Silva PRODUÇÃO EDITORIAL Rafael Borges de Andrade

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SUPERVISÃO EDITORIAL Maria Zoé Rios Fonseca PROJETO GRÁFICO Mário Vinícius Silva CAPA E ILUSTRAÇÕES Carlos Caminha ASSISTENTE EDITORIAL Olívia Almeida REVISÃO Lílian de Oliveira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD M585a

Messias, Adriano Aluado e outros contos de alumbramento / Adriano Messias; ilustrado por Carlos Caminha. - 2. ed. - Belo Horizonte: Aluar, 2021. 140 p. : il. ; 13,5cm x 20,5cm. ISBN: 978-65-991989-4-6 1. Literatura juvenil. 2. Realismo fantástico. 3. Adolescência. 4. Sobrenatural. I. Caminha, Carlos. II. Título. CDD 028.5 CDU 82-93

2021-642 Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410

2ª edição

Índice para catálogo sistemático: 1. Literatura juvenil 028.5 2. Literatura juvenil 82-93

Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem o consentimento por escrito da editora. Todos os direitos reservados à: ALUAR EDITORA LTDA. Rua Helium, 119 – sala 1 – Nova Floresta Belo Horizonte – MG – CEP: 31140-280 Telefone: (31) 3334-1566 aluareditora@aluareditora.com.br Impresso no Brasil Printed in Brazil


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Sumário

Adolescendo........................................................... 7 1 - Aluado............................................................ 11 2 - A alma do boi................................................. 23 3 - O passarinho de Tiziu..................................... 33 4 - Gente-bovina.................................................. 51 5 - A noite das aleluias......................................... 65 6 - O fêmur do lobo............................................. 83 7 - O pinto que o menino fez crescer................. 105 Paratexto: Assombre-se!..................................... 125


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Sou menino de janeiro criado longe do mar... A noite, quando vem funda, dá vontade de chorar. (do autor)


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Adolescendo Aqui estão sete contos que tratam (também) do mundo Aluar Editora – Material de divulgação – versão submetida à avaliação.

dos adolescentes. São textos de literatura fantástica, com

abordagens tanto de questões existencialistas quanto de

angústias em torno do corpo que se transforma e dos sofrimentos que podem arrebatar o sujeito.

É complexo passar por essa fase da vida. Por um lado,

o mundo cobra posturas e comportamentos. Por outro, oferece ideações e falsos conceitos que seduzem. Estes costumam trazer superficialidade semelhante àquela do espelho d’água de uma poça em que um certo menino-

-lobo buscava se reconhecer. Lá, se ele não se mirar bem, poderá enganar a si mesmo no reflexo pálido do que acreditará ser sua pessoa.

E é justo um menino-lobo-guará que se apresenta como

o primeiro dos personagens adolescentes deste livro. Ele

parece querer se acostumar com a nova condição entre homem e lobisomem, incomodado por descobertas corporais e emocionais que não passarão despercebidas por uma delicada moça, filha de um anônimo vizinho.

Na segunda narrativa, é o lado menos agradável de um avô, que antes dava colo e parecia heroico, que causará desconfiança em um rapazote que via o mundo de cima 7


do telhado de uma casa de sítio. Por lá, também se falava

de uma visagem que percorria as redondezas, um tipo assustador de “boi-da-cara-branca”.

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Em seguida, tem-se um conto um tanto patético, em que

o estranhamento do personagem masculino para com uma avezinha faz com que ele entre em contato com um

lado inesperado de si mesmo, ao mesmo tempo que os

arroubos de um provável primeiro amor se manifestam inesperadamente. Seria preciso o esforço desesperado

em se livrar de um diabinho aprisionado em uma garrafa para que as culpas do rapaz fossem embora de vez?

O quarto conto traz uma família de roceiros que busca refazer a vida na cidade, perdendo, pouco a pouco, a ino-

cência que a morada no campo parecia assegurar. Porém, no decorrer de uma viagem de carro de boi, constatações assombrosas podem surgir.

A seguir, o texto perturba pelo elemento sobrenatural e poético em torno de um casarão abandonado, no qual

adentra um rapaz atormentado pelas experiências negativas causadas por uma mãe excessivamente nutridora e

pelos colegas e parentes que não toleravam sua obesidade. O penúltimo conto narra os desencontros de três ado-

lescentes que, em um período de férias, tentaram dar um sentido especial a um objeto que encontraram em um antigo farol à beira-mar. Uma das personagens é uma 8


menina com macacão de mecânico segurando um machado afiado, a qual encantará dois garotos frágeis em uma noite de vento forte e chuva torrencial.

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Como desfecho, temos a história de um menino que um

dia expressou compaixão por um animalzinho manco: um pinto. Tempos depois, Martim tentaria se libertar dos

aparentes determinismos que a vida tentaria lhe impor, tendo como ajuda um monstro imaginário e um bando

de criaturas horrendas que passariam a acompanhá-lo, amorosa e fielmente, por toda a vida.

São sete narrativas que reservam descobertas, estranhamentos, separações e encontros, em meio a uma natureza que participa com força impressionista e até mesmo surreal.

O leitor encontrará fantasmas de outras espessuras, emanados das angústias, mas, também, das soluções criadas

pelos personagens. Esta é, portanto, uma obra que enfatiza o terror e o mistério dotados de carga psicológica.

Se por um lado a adolescência pode parecer assombrosa, ela engendra igualmente a possibilidade de que seu

alumbramento ofereça à vida fortes matizes de poesia e de beleza.

Adriano Messias 9


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Aluado

Nascido e criado à beira da estrada da fazenda, muitas vezes se escondendo no meio de uma casinha de telhas perdida dos olhos dos outros devido à altura do capinzal, aquele menino, em noites de lua gorda, cismava de olhar fundo. Era de um halo borrado o círculo que se fazia em volta do astro vermelho toda vez que iria esfriar. Ele, deitado ao lado do monjolo, renascia de suas pequenas dores ao ver, em um ponto do céu, subir aquela esfera que chamavam lua. Explico: na roça, quando vai fazer frio, vê-se em torno daquele astro um círculo que indica, na certa, que ventos gelados vão cortar os campos. – Estou cansado, avozinha, de ver essa lua que fica vermelha. E também não posso correr pelo pasto, que lua cheia me dá enjoo. 11


A ideia que ele teve foi de abrir um guarda-chu-

va imenso que vivia escondido no paiol. Era daqueles

modelos antigos, com uma ponta projetada para cima, Aluar Editora – Material de divulgação – versão submetida à avaliação.

e os antigos temiam que funcionasse como para-raios. Se era lua cheia, o menino gostava de correr ace-

lerado com o guarda-chuva aberto, arrancando com o pé pequenas touças de capim na terra mole. Era uma tentativa de fugir da estranha mania que a lua

tinha de enfeitiçá-lo. Havia muito céu em volta dele

naqueles arredores cercados pelas copas das árvores tortas do cerrado. As estrelas de nada serviam para protegê-lo.

“Nenhuma estrela me distrai.” – pensava.

O guarda-chuva, como uma máscara totêmica,

ia assustando quem ao longe da estrada passava, uns últimos roceiros voltando das capinas. Porque, na

linha do horizonte, logo acima do capim alto, entre uma árvore e outra, aquilo parecia parte de um bicho

estranho, com um chifre só, unicórnica visagem

prateada pelo luar. E o corno ia célere, flutuante, cortando os arbustos da mata-galeria, lá para os lados do rio, onde muita coisa estranha já se tinha visto. 12


Ponta do guarda-chuva, assombração! Era muito estranha a sensação de ser um garoto afetado pela lua. Naqueles instantes enluarados, Aluar Editora – Material de divulgação – versão submetida à avaliação.

ele ficava pálido, um palito, varapau. Era como um fantasma, um morto errando sobre os campos gerais. Tinha uma luz mortiça tudo aquilo que o envolvia, argentando o imenso campo salpicado às vezes por pirilampos. Um bonito menino de sardas, estrelas no rosto que também cintilavam à força do luar. E, ao redor das sardas, certa noite, começaram a despontar brilhantes pelos, como se uma barba rala insistisse em nascer. E era mesmo uma barba, ora! À força de ser homem – e assim é que seria –, as coisas todas ficariam abandonadas para trás: a gangorra, a pinguela, o cavalo de pau e as balas de coco. Era da alvorada de todo menino tornar-se homem por uma diversa força lupina. Os pelos cresciam por toda parte onde um rapaz os devesse ter. Não só no rosto, mas nos braços, nas pernas, no escondido da nudez. 13


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No rio que cortava o campo adiante, onde a lua

também se fazia penetrar, as águas tocavam de leve os pés do menino-lobo, e as aves assustadas, cheias Aluar Editora – Material de divulgação – versão submetida à avaliação.

de penugem, saíam em revoada, incomodadas pela presença ameaçadora de um quase-cão.

Ai, que ardente era o calor que lhe cobria a face

naquelas noites de lua vermelha! Aquele anel em volta do astro, coisa que se vê antes na roça do que na

cidade, era também uma aura que firmava seus pés no chão. Fincava-os bem na terra, e depois, a contragosto, passava a girar e a esfregar o ventre sobre o

capim baixo, em movimentos de vaivém. Contorcia-se convulso, e era como se uma pequena morte o invadisse após o frenesi. Apesar de prazeroso, era assustador começar a entender das coisas de lobo.

Foi a moça da casa do vizinho que certa vez o

vira daquele jeito, ela bem escondida atrás das treliças de uma janela colonial. Ele estava tão desolado

e solto. Um brilho fosforescente empalidecia ainda mais sua nudez. Quando a percebeu de soslaio, quis fugir, mas talvez fosse tarde. Seus dentes estavam

protuberantes, assim como a cauda, que se levantava 15


em direção ao céu. As orelhas encompridaram, as unhas precisavam de aparo e o nariz... ah, aquilo já era um focinho comprido, gelado, sentindo mil odoAluar Editora – Material de divulgação – versão submetida à avaliação.

res ao mesmo tempo: os cheiros das moitas já bem orvalhadas, o olor das moças lavadas de há pouco, o perfume das madressilvas pisadas ao lado do capim-guiné, distantes dele mais de um quilômetro. Quando o rapaz era menor, meninote mesmo, a cismar olhando para a noite de lua gorda, seu pai gritava, impaciente: – Aluado! Era um ralhar. Naquele tempo, “aluado” era qualquer menino que só ficasse nos livros, enveredando-se por coisas difíceis, pelas muitas letras. A leitura parecia uma espécie de alienação perante a bela e boa ignorância. Somente a avó, preocupada e doce com a mão nas cadeiras, conseguia vê-lo daquele jeito, a correr, a correr para lugar nenhum bem de tardinha, tentando se ocultar sob o guarda-chuva furado de ponta perigosa, sumindo e sumindo para as bandas do brejo. 16


“Me deixa.” – gritava por dentro, escutando o

pai. – “Me deixa.”

Era só dizer aquilo e gorduchas lágrimas lhe

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desciam pelo rosto, pela barba em penugem, pelos pelos dos braços, pelas coxas, e chegavam ao chão para incomodar formiga.

Porque “aluado” era uma palavra forte que ouvira

por tempo demais. Por tempo demais mesmo. Talvez, de fato, ele tivesse se tornado, pela força daquele sig-

nificante, o que o pai tanto queria evitar. Porque uma praga, por si mesma, já é desejo realizado. “Aluado! Vai ficar aluado!” E já o era, pois.

Tornava-se muito cansativo pensar nas pala-

vras-coisas que o fizeram se chatear vida afora: – Aluado! Canhoto! Coisa-ruim!

Também nas tais palavras-valise, que depois

descobriu terem sido sempre uma gostosa brincadei-

ra de escritores franceses. As dele, nos entrementes, eram vociferadas pelo pai bradador:

– Aluado-coisarudo! Cachorro-estrela! Foci-

nhudo-moço-o-velho!

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Quando enfim o rapazinho subiu a colina que

tanto desejava, em uma nova noite de lua sangrenta, mal se escondendo sob o guarda-chuva, suas roupas Aluar Editora – Material de divulgação – versão submetida à avaliação.

ficaram para trás. Treze anos se perderam, sumiram

do nada. Era bom começar a ser homem de vez. Porém, em cada menino – descobrira de vez naquele

momento – se escondia um lobo imenso e negro. Um urso quase. Ours-garou!

E a avó, que o pegara no colo alguns anos antes

para embalá-lo, cantava molemente ainda, assoprando as brasas do fogão:

– Lulu, lululu... Lulu, lululu... O “lu” do lobo, claro. Loup.

Finalmente o menino se pôs de pé e uivou para

a lua gestante.

A mesma moça da vizinhança o acompanhara

de longe, sentindo-se frágil perto de tanta testosterona. Tentava olhar para dentro dele com ternura.

Ter sido tantas vezes chamado de aluado ga-

nhava suas explicações naquele corpo seminovo, cuja

sombra podia cobrir, lânguida, quase a extensão de um lado a outro da várzea abaixo, que tinha um breji18


nho povoado por sapos amorosos entre verdes ramas

prateadas. Coisa bonita de se ver. Bastava estar no alto de uma colina, sob o farol do luar, para que sua Aluar Editora – Material de divulgação – versão submetida à avaliação.

sombra se espichasse, ameaçando tudo lá embaixo. Menino magricela, encompridado. Varapau!

A avó ficou para trás, assim como os mais anti-

gos de seus anos.

Era interessante tornar-se um homem, sentir

dentro um fogo vermelho como aquele que deveria existir no aro em torno da lua.

Uma vez um velho apontou o planetoide com

um dedo de taquara, dizendo: “vai cair geada... veja, pois...”.

Vermelho e quente, estranhamente invocando o

frio da invernada que havia de ser. Geada para breve. Os pedaços das roupas rasgadas, tiras, bainhas,

mangas, ficaram todos no chão. Bichão crescido, pouco restara da vestimenta de antes. Os trapos foram apanhados pela moça e mais tarde arderam no fogão à lenha.

Nunca mais ela veria coisa tamanha: um me-

nino que do nada se fez grande, pulou sobre a terra, 19


eriçou os pelos e uivou para a lua, com aquele olhar

pesado e ferino. O mesmo olhar que a surpreendera. Ele estava entre a ternura e o desafeto, entre o incôAluar Editora – Material de divulgação – versão submetida à avaliação.

modo e a elegância.

“Não me olhe mais assim!” – transmitiu a ela

em pensamentos.

A moça começou a chorar, talvez por ter se dado

conta da presença maligna em que ele se tornava, um ex-menino de sardas que virava lobo em noites de lua sangrenta.

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O rapaz, imenso e bruto, percorreu as freguesias,

campeou, desbravou, deixou-se pertencer ao mundo. Ele era da vida, da mata, do brejo. Tinha o céu como Aluar Editora – Material de divulgação – versão submetida à avaliação.

teto, os sapos como companhia.

Aquele menino, que era magro e fino, tornou-

-se, enfim, de fato, um aluado.

Aluado, enluarado, cheio de prata e de pelos.

Foi por isso que deixou o velho sítio dos avós

um dia e quis ser jornalista.

Menino-moço, pedaço melhor de uma vida.

“Mas eu inda te espero chegar, Mariazinha, fei-

to um bicho escondido na noite”, disse a ela, sempre por pensamentos, uma última vez. E depois foi ser gente.

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A alma do boi Vida que resplendes porque passas, e que és amada porque findas Henriqueta Lisboa

Vejo meu avô aqui de cima. Há um vento co-

nhecido soprando nesta tarde. Meus cabelos quase podem ser tocados pelo céu sisudo. Folhas e farpas passam por mim, carregadas do cheiro do feno e do capim seco, tanto do gordura quanto do lapiê. E sobre as bananeiras, que agitam em desespero suas

mais tenras folhas, brotos e corações arroxeados, pairam mil fagulhinhas da fogueira que a comadre Nhá Carola acendera para queimar o último tição da Se-

mana Santa. Tão desesperada quanto as bananeiras, ela também agitava os braços e o avental encardidos, bramindo qualquer coisa aos céus, que se tornavam escuros e densos.

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Eu quis ir embora. Pressentia algo ruim com a

vinda da chuva. Mas me dava um dó ver meu avô na rede, balançando na ignorância de seu tempo inteAluar Editora – Material de divulgação – versão submetida à avaliação.

rior. Uma vez pra lá, outra pra cá... enquanto os ga-

tos corriam atrás dos filhotes dos cachorros e a mãe

cadela ladrava alto, mais atrás, rodeando os felinos, protegendo as crias.

Tudo muito confuso porque uma mão de vento

levantou, desde lá da porteira, o pó vermelhão que

tingiu todos os arredores da casa velha com seu carmim embaçado e deixou Nhá Carola vencida em sua luta por limpar e varrer.

Era inverno. Minha avó sempre inventava no

tricô umas peças estranhas. Envergava o dorso toda

vez que o novelo se desmanchava no chão. Deixava o café coando quando se aproximavam as cinco da tarde. Sem muita pontualidade, coava-o tão quente

que a bebida queimava a ponta da língua das visitas.

Lentamente ela ia conhecendo o ocaso da vida.

Nas horas mais abjetas, escrevia, sobre a penteadeira, uns versos. Versos que sabia que ninguém jamais le-

ria. Coisas de mulher que usava touca para dormir e 24


que não tinha companhia para a missa. Ficava horas assentada em frente à janela, cuja vidraça sempre estava por ser polida. Aluar Editora – Material de divulgação – versão submetida à avaliação.

Do outro lado, o jardim esquisito com um pouco de tudo: pés de couve amarelando nos canteiros tortos até romãs apodrecidas nos galhos, antúrios em privadas velhas, malvas cheirosas em bules de estanho, jasmins despencados da treliça, roseiras entristecidas no meio de pneus cortados para as formigas não marcharem ao encontro das folhas... Ah, eu me lembro do dia em que apanhei um lambarizinho de nada e quis fazê-lo nadar para sempre naquele corte de pneu cheio de água amornada pelo sol. Ele seria meu bichinho de estimação. O gato preto que apareceu teve mais comiseração e o devorou antes que se sufocasse sem oxigênio. Eu, pequenino, nada sabia direito. Mais ao fundo do terreiro, ficava a cisterna que produzia seu eco torpe toda vez que um sussurrante balde em modorra era descido. As tranças que vovó amarrava em volumoso coque estavam sempre mui25


to limpas e perfumadas. Suas formas me faziam lem-

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brar das cordas que atavam o balde.

Às vezes, eu me atrasava para o café da tarde

mais do que de costume. Tinha por regra não me

preocupar com os horários. Voltaria justo na hora de me trancar no quarto e esperar a boca da noite trazer

seus animalejos flutuantes... Como eu amava ver as

aleluias perderem as asas após o mundaréu d’água

das tempestades, mesmo que o mágico fenômeno, no dia seguinte, desse tanta dor de cabeça para as vassouras.

Retorno das lembranças.

As últimas fagulhas da fogueira se entristece-

ram no céu, enquanto minha avó pensava em levar 26


a comadre para dentro de casa. Nhá Carola, minha avó, mais meu avô eram as três tristes figuras que habitavam aquele ermo. Aluar Editora – Material de divulgação – versão submetida à avaliação.

Não espere de meus avós muito de coisa algu-

ma. Meu avô foi à guerra, levou consigo três irmãos, que lá morreram: dois de malária e um que segurou

uma granada por um tempo mais do que o necessá-

rio. Daí, quando retornou, ainda moço, vovô apresentou uma zoeira no ouvido esquerdo que, segundo minha avó, era sinal de demência precoce. Coisa de quem chegava dos campos de batalha.

Dia sim, dia não, meu avô pegava mania de ati-

rar com a espingarda de chumbinho. Mirava o céu, as

nuvens, o sol, dava uns estalos, assustava Nhá Carola.

Gritava absurdamente com raiva. “Cai, diacho! Cai!” Mas nada caía. Com tal hábito, em pouco tempo o

passaredo sumiu das redondezas. Nem as rolinhas

parvas que bicavam o restinho do fubá no moinho tinham vontade de voltar.

Quis, entretanto, fazer uma vírgula nessa his-

tória, virar para a esquerda da casa velha e buscar ao longe os depósitos de forragem. E fui para atrás do 27


celeiro... Lá, existia uma pocilga. Atrás da pocilga, uma charneca, atrás da charneca, o matadouro dos

porcos. Nunca nos referíamos assim àquele lugar. Aluar Editora – Material de divulgação – versão submetida à avaliação.

Abrandavam o nome. Quando era dia de matança, chegavam os compadres de meu avô, amolavam o machado e diziam: “mais logo tem panela cheia...”.

Eu era muito menino. Não entendia quase

nada, mas desconfiava muito das coisas.

O que estou querendo lhe dizer, mas contorno

as palavras para fazê-lo, é: meu avô não foi nenhum herói. Não o foi para criança nenhuma. Sua história não merecia estar em um livro para ser lida. Se não

fosse essa minha vontade de ver as coisas como elas deveriam ter sido, talvez eu não estivesse aqui hoje.

Ainda agora, o vento sopra pequenas maldades

em torno de todos no sítio, levanta a poeira, come os ninhos dos pintassilgos com suas lufadas, derruba os espantalhos.

Diziam, por isso, e há bastante tempo já, que

aquele lugar era a morada do tinhoso. Era assombra-

do há muito. Ouvia-se, berrando nos pastos perto do matadouro, um bicho estranho e brabo, babento e 28


bruto. Ninguém quase conseguia ver. Dizia-se. Suspeito.

Eu me desvencilhei noites de quaresma inteiras

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daquilo que era chamado de “a alma do boi”, apari-

ção desenfreada que percorria aqueles campos. Eu

via tudo do alto do telhado quando todos dormiam. Sentia-me enorme e redondo como a lua, empoleirado feito coruja em uma quina entre as telhas francesas. Minha avó, coitada, só fazia ter roncos. Meu avô, a ter pesadelos.

“Boi branco é assombração de porteira e de

encruzilhada”, dizia um tal de Aparício, que, vez ou outra, vinha comer arroz-doce na casa de vovó aos domingos.

“O bicho corre disparado atrás das almas viven-

tes, procurando pedaços de vida para guardar em sua barriga”, informava.

“Do nada, esse boi cerca o passante, afugenta

os cavalos, derruba o cavaleiro e sua dama. O povo

só dá carreira, cai no valo, enfia o pé no barro e na bosta quente das vacas desgarradas. Uma coisarada só. Raça muito ruim daquele coisarudo bovino”. 29


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Eu campeei um bom tempo em busca des-

se boi maldito para enlaçá-lo. Duvidoso, olhava de

soslaio para qualquer pau torto caído, achando ser Aluar Editora – Material de divulgação – versão submetida à avaliação.

ele. Buscava o coiso tanto na lua grande quanto na

minguada. Fuçava daqui e dali pelo vau do rio Piau, início dos sertões, atolando-me em água salobra até os joelhos.

Tanto percorria que me sentia galopante até.

Minha avó e Nhá Carola de nada daquilo davam notícia.

Seu Aparício acreditava tanto na visagem bovi-

na que havia gente na venda do arraial que dizia que ele virava a própria coisa.

“Ai, seu Aparício, espeta esses dentões de ju-

mento no queijo e fica quieto”, dizia Tiana, a mulher

do dono da venda, esbaldando-se em gargalhadas indecentes.

Se era ele o trem-ruim, nunca descobri.

Mas foi na Sexta-feira da Paixão que eu vi a

alma do boi branco, gelatinosa e plasmada, quase

uma nuvem de aterradora aparência. Quando divisei

a cara do bicho... “boi, booi, boooi da cara branca”, 31


quase que nem na cantilena, caí de bunda no chão gritando.

Juro por Deus que o que aqui narro é mais do

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que verdade. Era ele! Sim, era a carantonha dele, não do boi, mas a de meu avô, imenso e tardio, desvestido em bovino.

Ruminei um bocado, arqueei o cocuruto e fui-

-me embora.

Meu avô – segredo meu e dele – era, para mim,

o boi branco que afugentava passante de todo pasto daqueles gerais.

Meu avô, amor quase-primeiro, pai segundo, é

assombração que muito amei.

32

continua...


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A adolescência, segundo as narrativas deste

livro, se parece com um tufo de interrogações que cresce na palma da mão. Daí, deixamo-nos ser levados por galopes furtivos em nossa noite interior, em deliciosas metamorfoses de lobo, de boi, de pássaro... A animália fantástica de Adriano Messias mostra ao leitor que, na vida, tudo está em constante transformação. O mundo flui. Ser aluado é sentir-se arrebatado por coisas

que, no fundo, falam de nós mesmos, ainda que queiramos transformá-las em assombros que venham de fora. Por isso, no redemoinho dos pensamentos, temos quase certeza de que alguém bateu à porta – mas foi só o vento... Estranhe-se também com esses inusitados contos de passagem.

ISBN: 978-65-991989-4-6

9

786599

198946


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