Maurícia

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ADRIANO MESSIAS

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VERSÃO SUBMETIDA

Copyright © 2014 by Adriano Messias de Oliveira

EXECUTIVO EDITORIAL

Maria Zoé Rios Fonseca de Andrade

Mário Vinícius Silva

PRODUÇÃO EDITORIAL

Rafael Borges de Andrade

PROJETO GRÁFICO

Marcelo Drummond & Marconi Drummond

ILUSTRAÇÃO & CALIGRAFIA

Marconi Drummond

REVISÃO

Libério Neves

Marilene Lazzarotti

IMPRESSÃO

Paulinelli Serviços Gráficos.

Messias, Adriano M585 Maurícia / Adriano Messias. Belo Horizonte: Baobá, 2014. 124 p.

1. Literatura juvenil. I. Título. CDD: 808.899282 CDU: 869.0(81)-93

Elaborada por: Maria Aparecida Costa Duarte | CRB/6-1047 ISBN: 978-85-66653-43-4

1ª edição, 1ª reimpressão.

Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem o consentimento por escrito da editora.

Todos os direitos reservados à:

EDITORA BAOBÁ LTDA. Rua Helium, 115, 3º andar – Nova Floresta Belo Horizonte – MG – CEP: 31140-280 Telefone: (31) 3653-5217 editorabaoba@editorabaoba.com.br www.editorabaoba.com.br

Impresso no Brasil Printed in Brazil

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Escrever um romance histórico-juvenil, princi palmente tendo nosso país como inspiração, equivale a montar um quebra-cabeça que certamente jamais será visualizado no todo. Muitas “peças” não podem ser recuperadas, outras deverão ser criadas pelo jogador, e há sempre uma insistente lacuna que recobre certas junções, consequência da falta de documenta ção e de registros da memória. No final, eis a obra fic cionada, como não poderia deixar de ser; incompleta, como todo texto, e alinhavada pela melhor intenção. Vários personagens mencionados foram pes soas que realmente existiram. Os lugares, datas, mo dos de vida e muitas expressões e termos idiomáticos que expliquei em notas de rodapé, ao longo do livro, são originais da época em que se passa este romance. Com isso, meu objetivo foi situar o leitor, por meio de uma leitura agradável, em um dos períodos mais pro fícuos da colonização brasileira: os 24 anos da história holandesa em Pernambuco. Bem-vindo ao tempo dos flamengos!

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AVALIAÇÃO.

DE DIVILGAÇÃOVERSÃO SUBMETIDA

-

12 de março de 1537

Recife surge como uma aldeiazinha de pescadores.

1572

Luta dos chamados Países Baixos por autonomia. Eles eram então dominados pela Espanha.1580 a 1640

União das monarquias ibéricas (Portugal e Espanha).

1597

Nascimento de Tobias em Recife, pai de Joaquim Manuel da Silva, o personagem principal do livro.

1612

Os holandeses estão em Guiné e Mouree, na África, onde estabelecem rotas de comércio.

1618

Nascimento de Joaquim.

1593

A capitania de Pernambuco é próspera e possui centenas de engenhos de açúcar.

1606

Nascimento da mãe de Joaquim, Maria do Céu, em um vilarejo da região do Minho, Portugal.

1617

Encontro de Tobias (aos 20 anos) com Maria do Céu (aos 12 anos).

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MATERIAL
À

1623

Nascimento da irmã de Joaquim, Manuela.

1620

Nascimento do irmão de Joaquim, Estêvão.

1629

Manuela, aos 6 anos, vai para um convento.

1624

A Holanda, pela primeira vez, pretende tomar posse de terras brasileiras: tenta invadir a Bahia, mas os habitantes de lá resistem.

14 de fevereiro de 1630

1630-35

Com o período de lutas mais intensas entre invasores e colonos, os engenhos de açúcar praticamente param de funcionar e muitos negros fogem e formam aldeias próprias, chamadas de quilombos.

Joaquim tem 12 anos e presencia a chegada dos holandeses em Pernambuco. No mesmo ano, conhece Eduwart, um jovem oficial de 25 anos que se tornaria seu amigo e mentor no mundo flamengo. Seu pai tinha então 33 anos e sua mãe, 25. Instala-se a chamada Nova Holanda, em um território que ia de Alagoas ao Maranhão. Os holandeses trouxeram consigo vários índios que tinham recebido uma educação europeia na Holanda.

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SUBMETIDA

1631

Joaquim encontra seu irmão indígena de criação, batizado de Cristiano, aos 3 meses de idade. No dia 24 de novembro, Olinda é incendiada pelos invasores holandeses.

1634

Rendição dos habitantes à invasão holandesa. Decreta-se liberdade de culto para católicos e judeus, determinada pelos holandeses, que eram calvinistas.

1630-45

Fase da conquista e do apogeu do domínio holandês naquela capitania.

1635-36

Aumento do número de judeus e cristãos-novos na capitania. 1635-45

Os brasileiros conhecem e saboreiam os diferentes produtos alimentícios holandeses1636

Recife é a primeira cidade brasileira a ganhar ares de “cosmopolita”. Para ela, são trazidos mais negros escravos vindos de Guiné, Mouree, Mina e São Paulo de Luanda. Este ano também marca a primeira referência à existência de uma sinagoga no Recife.

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23 de janeiro de 1637

Chegada do Conde Maurício de Nassau a Pernambuco, na condição de governador. Tem início uma fase de prosperidade, crescimento populacional e econômico. Ocorre o primeiro protesto contra os judeus, já numerosos no comércio local. Nassau funda a Cidade Maurícia (Stad Mauritia) na ilha de Antônio Vaz, próxima ao Recife. Todos os terrenos disponíveis para construção no Recife já se acham ocupados.

1639

Ataque da esquadra do Conde da Torre, um nobre português, aos invasores, mas sem sucesso.

1638

Recife passa a ser a capital da capitania, não mais Olinda. São proibidas novas construções na ex-capital e, até mesmo, a reconstrução de moradias em ruínas. Criam-se, no Recife, taxas para as áreas ocupadas por residências. Os holandeses aumentam o preço do açúcar. Um dos quilombos fundados na região dos Palmares era bastante temido.

1640

D. João IV faz um jogo duplo com os holandeses: mantém um acordo com eles, mas apoia a resistência local. Transplantam-se coqueiros inteiros para os belos jardins de Maurícia. São também cultivados pomares com grandes variedades frutíferas. A vida intelectual, científica e artística é muito incentivada na capitania. Ocorre a expulsão de frades.

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1642

Constrói-se, em Maurícia, o palácio Vrijburg para Nassau trabalhar. Surge um importante mercado no Terreiro dos Coqueiros, na entrada da ilha. É construída também a famosa Igreja Francesa.

28 de fevereiro de 1644

Terminada uma importante ponte entre Maurícia e o Recife, a qual fora iniciada em 1641 e paralisada em 1643.

1643

O casarão Boa Vista, no outro lado da ilha, é ocupado pelo Conde como local alternativo de trabalho e moradia. Dá-se início a uma desvalorização das casas e terrenos em Maurícia. Os impostos cobrados são muito altos. Chegam frades capuchinhos à capitania.

11 de maio de 1644

1646

8.000 holandeses no Recife e em Maurícia esperam ajuda da metrópole para a subsistência. Passam fome e estão doentes. São fundados hospitais no Recife e em Maurícia.

Nassau deixa a capital da capitania acompanhado de seu séquito. Inicia-se a decadência do Brasil holandês.

1645/47/48

Vitórias brasileiras nas campanhas de libertação contra o domínio holandês. Em 13 de junho de 1645, inicia-se a chamada Insurreição Pernambucana, que se estende até o ano de 1654.

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1648

Publicação importante sobre a zoologia e a botânica brasileiras, a partir do trabalho de pesquisadores holandeses.

1650

Uma cheia de rio carrega a famosa ponte dos Afogados. Os soldados holandeses que permanecem na capitania estão sempre esfarrapados e famintos.

1653

Guerra da Holanda com a Inglaterra.

1654

Assinatura da rendição holandesa em Campina da Taborda, Pernambuco.

1661

Os holandeses, enfim, reconhecem a perda de suas possessões no Brasil. É o ano em que Joaquim, o personagem principal deste livro, escreve suas memórias.

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MANUSCRITO PRIMEIRO

MANUSCRITO SEGUNDO

22 30 35 39 46 53 58 63 65 EDITORA BAOBÁMATERIAL DE DIVILGAÇÃOVERSÃO SUBMETIDA À AVALIAÇÃO.

MANUSCRITO TERCEIRO MANUSCRITO QUARTO

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EPÍLOGO

104 112

72 79 89
99
114 115 119EDITORA BAOBÁMATERIAL DE DIVILGAÇÃOVERSÃO SUBMETIDA À AVALIAÇÃO.
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SUBMETIDA

MAURITIOPOLIS

Frans Post, 1612-1680

(Amstelodami : Typographeio Ioannis Blaev, 1645)

Acervo: Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin Universidade de São Paulo - USP.

Vista de Mauriciópolis, na ilha de Antônio Vaz, e do Recife, ambos na Capitania de Pernambuco. Estão representados a ponte Maurício e os fortes Ernesto, Wardenburch, Frederich Henrich, São Jorge, do Brum e do Mar. Ao fundo, à direita, observa-se ainda Olinda.

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21 MANUSCRITO PRIMEIRO EDITORA BAOBÁMATERIAL DE DIVILGAÇÃOVERSÃO SUBMETIDA À AVALIAÇÃO.

Doze anos não parecia ser muito, mas eu já conhecia bem as agruras dos canaviais naquela época. Se existisse uma engenhoca que pudesse colocar as imagens do mundo em movimento, talvez ela funcio nasse em minha cabeça agora, enquanto minha mão esquerda passeia sobre este manuscrito. Hoje estou no ano de 1661 e o tempo passa lentamente ante meus olhos. Vislumbro o ontem, o amado e temido tempo dos flamengos... E, ao me lembrar de tudo, sin to esta enorme vontade de contar. Quase uma irresis tível obrigação que me imponho, afinal, muito do que a gente lembra é para narrar...

Em 1634, morávamos eu, meu pai Tobias e minha mãe Maria do Céu no Recife, localidade que existia há quase cem anos. Meu pai, com trinta e três anos, era um homem cansado, impaciente, grisalho nos tufos de cabelos sobre as orelhas, e cheio de falhas nos dentes que apodreciam. Poderia se dizer que era um homem vivido. De qualquer forma, não se vive muito para além dos quarenta anos, em especial nesta terra austral de lutas inglórias, doenças palustres, más

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intenções, velhacaria, sol tórrido, e a insistência do fa cão dos traidores a roubar-nos a vida pelas costas. Eram as mãos de meu pai calejadas, cober tas por veias altas, com alguns sulcos desaparecen do rumo aos dedos tortos. As unhas sempre negras de terra, os braços e pernas lanhados pelas folhas das canas, dos capins altos, das plantas espinhentas e ve nenosas. Seu rosto era pesado, parecendo indício de quando iria chover muito e o Capibaribe1 inundaria as terras cultivadas. Como nuvens tempestuosas, suas rugas se dobravam em expressão sisuda. Os pés, ape sar de sempre nus, eram cobertos, dos calcanhares às solas e dedões, por uma crosta permanente, cheia de cortes que sangravam todos os dias. Às vezes, his sopo2 com sal em água morna na gamela aliviava as dores, como dizia minha mãe, sempre tão zelosa. Ah, sim!... Minha mãe era a antítese de meu pai. Portuguesa de nascimento, órfã e miserável minhota3, teve na misericórdia dos jesuítas seu fado: viajar para a colônia, onde faltavam mulheres parideiras, de ancas largas e braços fortes para a labuta. Ela me contara que quase tinha morrido na viagem, ficando muito tempo alojada no porão de uma nau de porte mé dio. Por semanas ela se estendeu febrilmente sobre o feno que se acumulava fétido sobre as pedras que

1 Rio que banha o Recife.

2 Planta medicinal muito usada no Brasil ainda em nossos dias.

3 Proveniente da região do Minho, em Portugal.

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asseguravam equilíbrio à quilha4 da embarcação. Em terra, os marinheiros descarregavam tudo e usavam os contrapesos para a construção de casas de alve naria e de fortes, levando de volta o “ouro verde” – o açúcar – com carregamentos fartos de pau-brasil e, às vezes, índios que dariam bons pajens na Europa. Tinha minha mãe doze anos quando aportou próximo ao Recife, ainda uma pacata vila pernambucana. Meu pai, oito anos mais velho, logo que a viu enfileirada na praia, junto a outras cinco moçoilas, sentiu por ela um desejo muito forte. Assustadas, as meninas olhavam para baixo, envergonhadas ante tantos olhares de ho mens barbudos e de aparência feroz, e de gentios que vieram rodeá-las.

Confinada, junto às colegas, em uma casa pro visória para “moças casadoiras”, resolveu minha mãe, que tinha o bonito nome de Maria do Céu, sair cer ta noite às escondidas para fugir um pouco do calor abafado de janeiro e tomar a fresca5. Afastou-se do olhar sonolento da madre superiora que era a respon sável por ela, até que, no breu da madrugada morna, foi surpreendida por alguém. A apenas alguns metros da residência onde se hospedava, surgiu um homem que a conduziu à força até um matagal fechado das redondezas. Isso tudo fiquei sabendo pelos lábios de

4 Peça de madeira na parte inferior de um navio, a qual vai da popa até a proa.

5 Expressão que significa “tomar o ar fresco da noite”; refrescar-se.

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outrem, seu Jorge Pereira, um velho judeu já falecido que de tudo sabia daqueles tempos confusos. Ante a tentativa de resistência da donzela, o jovem desferiu uma pancada em sua delicada nuca. Em breve, suas louras madeixas se sujaram de sangue, assim como as alvas coxas, que tiveram apenas a relva por testemunha do que se passara.

Violada e imunda, retornou à “casa forte”e se viu obrigada a narrar sua desdita à madre que, into lerante, a expulsou de lá com apenas uns trapos para vestir-se e dois pedaços de pão preto6

Sozinha e praticamente ensandecida ao raiar do dia naquela vila estranha, Maria do Céu fora acolhi da por um jovem maltrapilho de olhos verdes na saída do vilarejo, no exato istmo que liga o Recife a Olinda. O tal moço era o mesmo que a violara e que ela jamais reconhecera. Da desgracenta união eu nasci, bem en colhido em uma choça coberta de palha, deitado em um estrado de taquaras forrado por paina. De lá, eu via parte das estrelas piscando sobre minha cabeça toda noite. Tenho essa doce lembrança até hoje.

Meu pai era de fato miserável, filho de um por tuguês fidalgo que perdera tudo em jogos de azar na própria capitania. Meu avô afogara a esposa no rio dos Afogados7 e depois dera cabo da própria vida com um

6 Naquela época, era muito comum durante o período colonial e imperial.

7 Outro nome do rio Capibaribe.

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bacamarte8, caindo dentro do mesmo curso d’água. Conforme fiquei sabendo, seu corpo foi encontra do dias depois, todo inchado e coberto por seres do mangue. Testemunhas da época disseram que, no lu gar do buraco no crânio, havia um pequeno chifre. O corpo de minha avó jamais foi encontrado, e sabe-se que as lavadeiras sempre tiveram medo de ficar até altas horas lavando peças de roupa à beira daquele rio. Elas acreditavam que as almas danadas flutuavam do fundo do leito até a superfície para exigirem justiça. Não raro, viam uma mulher vestida com um camiso lão branco estendendo a mão para os passantes nas horas mortas, pairando sobre o espelho das águas em noites de lua cheia... Parecia pedir ajuda e era branca e açucarada, como dizem ter sido minha avó.

Mas, o que dessa história macabra restou foi um menino sem irmãos que sobreviveu no Recife a poder de biscates e trabalho duro na lavoura de sub sistência. Meu pai tomou posse de um pequeno terre no às margens do Capibaribe e lá ergueu sua palhoça, à maneira indígena, coberta de palhas e cercada por taquaras que deixavam o vento zunir feito assombra ção. E como dizia o velho ditado lusitano, “avô rico, filho nobre, neto pobre”. O resto da família de meu pai talvez vivesse na metrópole, mas ele nunca sou be onde exatamente; jamais havia recebido notícias

8 Arma de fogo de cano longo e mais alargado na boca, comum nos séculos XVIII e XIX.

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de ninguém, nem mesmo de um irmão ou primo da grande família Silva, que se multiplicaria rapidamente pela colônia.

Dois anos depois de mim, nascia Estêvão, após um parto difícil que se fez com muita reza e mastruz9 Foi a benzeção de uma velha tupi que salvou minha mãe e o bebê que, segundo dissera a própria indígena, não queria nascer. Meu irmão veio ao mundo cheio de doenças do tempo, de virações, de coisas das terras podres e malsãs, como diziam os frades ao se referi rem sobre a natureza da capitania.

Três anos mais tarde foi a vez de conhecer a luz minha irmã Manuela, de ares risonhos. Confesso ter sido ela a predileção de meus pais, a alegria do lar. Minha mãe, muito branca, de olhos verdes, cabelos compri dos e dourados ao sol, sempre bem trançados, era toda candura com seus rebentos. Suas faces eram róseas como as da imagem de um anjo que vi um dia em uma procissão em Olinda. O corpo era gentil e os quadris bem largos. Ela usava sempre um vestido que lhe cobria quase todo o corpo. Gostava de assentar-se em uma pedra na entrada de nossa choupana para debulhar mi lho e costurar para as mulheres de mais posses. Várias vezes, eu a vi parar o que fazia para ficar pensando lon ge, como se guardasse uma inconfessável mágoa. No fundo, eu achava que minha mãe não gostava daquela terra, mas vivia conformada com seu destino. Quando

9 Uma planta medicinal muito comum no Brasil.

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eu me achegava até seus braços e a indagava sobre o que estava cismando, ela parecia querer se afastar e só respondia docemente: “Não é nada, filho. Não é nada...”.

Na palhoça que nos abrigava ficavam empilha das, no chão batido, algumas gamelas leves. Tínha mos também outros utensílios de cozinha, como duas panelas de pedra e colheres. Um pequeno fogão de adobe, duas redes para adultos e mais duas menores, sendo uma só para Manuela, configuravam o restante da moradia. Havia um mourão central de sustentação no qual todas as redes mantinham uma das extremi dades amarrada. As outras pontas eram atadas a mou rões menores, nas paredes. Uma arca quase apodre cida guardava umas roupas que eram mais molambos do que qualquer outra coisa, e uma ou outra manta para as friagens repentinas do “inverno”, no tempo das águas. Um facão pendia numa viga, próximo a uns sa cos vazios de açúcar com os quais minha mãe criava roupas compridas para os filhos, à semelhança de ves tidinhos retos. Fiquei feliz quando, aos dez anos, meu pai viu, quando eu me banhava no rio, que já virava rapazote. Aí, ele encomendou um calção de algodão grosso, encardido e cru a um alfaiate judeu. Sentia -me crescido e passava menos vergonha. Era também mais admirado por meus colegas. Meu pai, como deixei claro, não era comer ciante nem artífice de nada, muito menos senhor de engenho. Era lavrador, plantava umas roças de milho e mandioca na várzea do Capibaribe. Vivíamos da graça

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de Deus, como dizia minha mãe, que, além das costu ras, às vezes, vendia umas abóboras ou limões doces para as boas damas na porta de qualquer igreja. Eu aos doze, Estêvão aos dez e Manuela aos sete, meu pai com seus trinta e três e minha mãe com vinte e cinco. Eram estas, nossas idades quando, para nós, começou o chamado “tempo dos flamengos”.

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