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NR 09

Ano: 2010 . nr 09 . Mês: Outubro . Mensal . Director: António Serzedelo . Preço: 0,01 €

www.jornalosul.com

Xeque “Fraco rei faz fraca a forte gente”

era o que nos dizia Camões, em alturas semelhantes às que hoje vivemos. Camões é uma múmia, bafienta e poeirenta, esmagada pelo peso das gerações que lhe sucederam ao longo de já cinco séculos. Queriam que ele se transformasse em símbolo, como forma de perdurar para além da carne putrefacta, mas aqueles que o queriam, já estão também tão mortos que são agora celebrados em centenário (o da implantação da república). Cantados, cantados, em rigor, nem por isso, uma vez que essas comemorações são apenas promovidas pela governança, colhendo total indiferença dos cidadãos. Esses cidadãos que estão entretidos no exercício do impossível - “Será possível passar pela chuva sem me molhar?” - perguntam as famílias portuguesas. Apesar da esperança alimentar sonhos do absurdo, a resposta é clara, “Não!” Não, não é por esse caminho que se constrói a utopia, a nossa utopia, hóstia lusitana de comunhão partilhada entre nós e os egrégios avós. Não, não nos devemos continuar a alienar numa amnésia colectiva

luxuriosamente desejada, doce analgésico social. Não, não porque o egotismo há muito deveria ter sido enquadrado na sua justa medida; hoje todos trajamos em medidas grandes. Não, não porque fugir furiosamente em frente é nunca parar para saber assumir as responsabilidades e viver com elas. É tempo de nos determos, é a altura de olhar para as consequências do que fizemos, ou do que deixámos que fizessem em nosso nome e assumir responsabilidades. É este o tempo de andar à chuva! As múmias da cultura portuguesa demonstram-nos que esta estrada já foi por nós trilhada. Financeiramente a fórmula mágica é cortar nas despesas e aumentar nos ganhos. Aliás, para isso aparecem os tipos de fato luzente, cabelo empastado, títulos académicos ostensivamente pendurados na lapela, quais messias salvadores. O blá é sempre o mesmo, mas é do nosso desespero que lhes advém credibilidade. Fazem parecer que a lógica merceeira seja o objectivo que todos devemos almejar. Contradizem e contradizem a própria base da economia. Por este credo vendilhão continuamos alienados e atemorizados, mansos. A ansiedade

torna-nos surdos e cegos e broncos. Onde fala o Ouro, cala-se a Razão. A verdadeira resposta para os duros, bem duros próximos dois anos que vamos viver, não radica em neo-sebastiães de pacotilha, mas na convicção que cada um de nós tem nas suas capacidades, no uso dessas faculdades em prol de si e em prol da sua comunidade, entendendo e praticando que o indivíduo é apenas uma pequena parte do todo. Quanto mais depressa compreendermos esta realidade elementar, mais depressa recuperaremos a humildade que nos leva a um sentimento de equidade. Daí, a solidariedade é resposta lógica às necessidades. E é solidária e igualitariamente que podemos atingir a tão procurada liberdade. É tempo de abandonar atalhos, os esquemas, num país de esquemáticos anedotizados. Camões e as outras múmias da cultura portuguesa, mesmo mortos e enterrados, não negam nenhum do seu brilho nem força a quem os procura hoje; nós, os vivos, desorientados apresentamo-nos esfarrapados. É tempo de andar à chuva! José Luís Neto


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