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4. OS PROBLEMAS DA INTERPRETAÇÃO BÍBLICA

EXEGESE BÍBLICA

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OS PROBLEMAS DA INTERPRETAÇÃO BÍBLICA

Se a construção dos significados se dá em uma determinada sociedade, a partir de sua experiência e de sua práxis social, torna-se importante reconhecer o contexto histórico de produção dos discursos por meio dos quais se constroem esses significados.

A redação da Bíblia Sagrada, totalizando 66 livros, sendo 39 no Antigo Testamento e 27 no Novo Testamento, foi escrita num período de 1500 anos, teve cerca de 40 autores, das mais variadas profissões e atividades, viveram e escreveram em países, regiões e continentes distantes uns dos outros, em épocas e condições diversas, entretanto seus escritos formam uma harmonia perfeita. Dois dos escritores eram reis (Davi e Salomão), dois eram sacerdotes (Jeremias e Ezequiel). Lucas era médico. Dois eram pescadores (Pedro e João). Dois eram pastores (Moisés e Amós). Paulo era fariseu. Daniel era político. Mateus era cobrador de impostos. Josué era soldado. Esdras era escriba. Neemias era mordomo. A pluralidade de autores muito contribuiu para a riqueza do próprio texto, o qual deixa de apresentar o ponto de vista de um indivíduo ou grupo, e passa a representar crenças de um povo ao longo de muitos séculos.

Além das qualidades literárias, inclusive poéticas, que a Bíblia apresenta em muitos de seus textos, temos também informações históricas e lingüísticas da maior importância. Mesmo porque a organização que lhe deram seus compiladores e editores acabaram gerando novas informações.

Os cinco primeiros Livros do Antigo Testamento foram escritos por Moisés, por volta de 1400 a.C., e o último Livro da Bíblia, foi escrito pelo apóstolo João por volta de 90 d.C. Portanto alguns dos Livros foram escritos há mais ou menos 3400 anos, sendo que o último deles há cerca de 1900 anos. Isto mostra a dificuldade que temos que transpor para compreender a Palavra de Deus. Em meio a essa di-

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versidade cronológica, cultural, geográfica, idiomática, vários abismos se apresentam pelo fato de termos em mãos um Livro tão antigo.

4.1 O ABISMO CRONOLÓGICO

A Bíblia foi escrita há séculos atrás. Seu último Livro foi escrito no final do primeiro século da Era Cristã, o que nos separa temporalmente em dois milênios. Como não estávamos presente quando estes textos foram escritos, não podemos perguntar aos autores o que eles queriam dizer quando escreveram. A história da interpretação das Escrituras visa mostrar como, desde cedo, o estudioso da Bíblia procurou condições de transpor esse abismo temporal.

4.2 O ABISMO GEOGRÁFICO

Os lugares onde ocorreram os fatos das Escrituras estão distantes da maior parte dos seus leitores. Foi no Oriente Médio, no Egito e nas nações mediterrâneas e meridionais da Europa, de hoje, que os personagens bíblicos viverem e peregrinaram.

4.3 O ABISMO CULTURAL

O mundo em que os escritores da Bíblia viveram não é o mesmo da atualidade. Seus costumes, tradições e crenças estão num passado distante. A falta de conhecimento de tais hábitos gera interpretações errôneas. Os intérpretes das Escrituras devem observar atentamente os traços culturais, onde o texto sagrado foi gerado, da qual preserva vestígios significantes.

4.4 O ABISMO LINGÜÍSTICO

Além dos abismos cronológico, geográfico e cultural, o intérprete vai se deparar com o abismo lingüístico. A forma de falar e de escrever dos autores sagrados já não existe. Não se fala mais o hebraico, o aramaico e o grego bíblicos nos dias de hoje,

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mesmo em países onde as Escrituras foram escritas. Para se ter uma noção, os verbos e substantivos que se referem a um mesmo núcleo de significados derivam de uma mesma raiz. Assim, por exemplo, as três consoantes MLK formam o substantivo MeLeK (rei) ou a forma verbal MaLaK (ele reinou). Para reconhecer qual das duas formas deve ser lida numa determinada passagem, o intérprete, sem os recursos da escrita vocálica, não tem alternativa senão recorrer ao contexto. As formas para indicar tempo e pessoa se formam mediante flexão interna e flexão por prefixação, sufixação ou de infixo: MeLaK-TeM (vós reinastes), HiMLîK (ele fez reinar) etc.

Qualquer estudante de hebraico sabe como é difícil algumas vezes identificar a raiz de uma forma verbal. Não é de admirar que o próprio texto bíblico apresente algumas vezes duas leituras variantes, ocasionadas pela diferente identificação da raiz verbal.

O hebraico é uma língua relativamente pobre em adjetivos. Carece também de formas específicas para expressar o comparativo e o superlativo. Em seu lugar utiliza a forma do construtor ou outro tipo de expressão. Assim, por exemplo, “o Santo dos Santos”, designa o espaço mais sagrado do Templo e “o Cântico dos Cânticos”, o cântico por antonomásia.

Além disso, tanto o hebraico quanto o aramaico são lidos da direita para a esquerda, e não da esquerda para a direita. Ademais, não havia separação entre as palavras. As palavras escritas nessa língua bíblica emendavam-se umas às outras.

As cópias do Novo Testamento chegaram até nossos dias em uma quantidade incomparavelmente maior do que qualquer outra obra do mundo clássico. “Conhecem-se cerca de 5.000 manuscritos gregos do Novo Testamento, aos quais é preciso acrescentar uns 10.000 manuscritos das distintas versões antigas, assim como milhares de citações nos Padres da Igreja”.12 Outra dificuldade imposta pelo abismo lingüístico é o fato de que as línguas bíblicas originais continham expressões incomuns de sentido obscuro, difíceis de compreender em nosso idioma. A ciência que busca descobrir quais textos são originais é conhecida pelo nome de crítica textual.

12. BARRERA, Julio Trebolle. A Bíblia Judaica e a Bíblia Cristã. 2ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1999, p.397.

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4.5 O ABISMO LITERÁRIO

A Bíblia Sagrada é um conjunto de escritos produzidos por pessoas reais que viveram em épocas históricas diferentes. Essas pessoas usaram suas línguas nativas e as formas literárias então disponíveis para a auto-expressão, criando, no processo, um material que pode ser lido e apreciado nas mesmas condições que se aplicam à literatura em geral, onde quer que seja encontrada, sem jamais se esquecer que as Escrituras é um repositório da verdade religiosa.

A Bíblia não é um Livro no sentido comum do termo, mas uma antologia – um conjunto de seleções de uma biblioteca de escritos religiosos e nacionalistas produzidos ao longo de um período de 1500 anos. Não houve uniformidade de condições na composição dos Livros da Bíblia. Uns foram escritos na cidade, outros no campo, no palácio, em ilhas, em prisões e no deserto. Apesar de tantas diferentes condições a mensagem das Escrituras é sempre única.

Embora a Bíblia seja, num sentido geral, literatura, tais como o são os produtos dos escritos modernos, as suas formas literárias são bastante diferentes das nossas para exigir um estudo particular. Os estilos e formas de escrita dos tempos bíblicos são diferentes do mundo ocidental moderno. Os escritores bíblicos, naturalmente, estavam cônscios disso, de modo que escolheram as palavras e formas literárias que melhor poderiam transmitir o significado pretendido.

Quando o propósito era compartilhar informações de natureza histórica, a melhor forma era a narrativa, como, por exemplo, as de Paulo, Pedro e João. Vários Livros das Escrituras empregaram este gênero (de Gênesis à Ester e de Mateus a Atos). Até mesmo na linguagem profética encontramos narrativa, como por exemplo, em Jeremias 26-29; 32-45; 52; Ageu 1-2; Daniel 1-6. Vale, ainda, ressaltar que em muitas narrativas há, também, poesia (Êxodo 15; Juízes 5; 1 Samuel 2). Está claro, portanto, que existem várias formas literárias na Bíblia, cada uma com suas próprias regras de interpretação.

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4.6 O ABISMO ESPIRITUAL

O fato de sermos pecadores impõe limites à nossa capacidade de interpretar as Escrituras. Quem não é salvo está cego espiritualmente (2 Coríntios 4.4) e morto espiritualmente (Efésios 2.1). O apóstolo Paulo escreveu sobre isso dizendo: “Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente. Porém o homem espiritual julga todas as coisas, mas ele mesmo não é julgado por ninguém” (1 Coríntios 2.14-15).

Deus, que é infinito, não pode ser plenamente compreendido pelo que é finito. As Escrituras descrevem os milagres de Deus e suas predições sobre o futuro. Ela também faz menção de verdades difíceis de ser assimiladas, por exemplo, a doutrina da Trindade, as duas naturezas de Cristo, a soberania de Deus e a vontade humana. Transpor o abismo causado pela queda é certamente o ponto de partida para a correta interpretação da Bíblia.

Existem outros abismos que dificultam a compreensão da Bíblia, mas estes são suficientes para demonstrar os graves problemas que qualquer intérprete enfrenta ao buscar compreender a Palavra de Deus. Isso não nos isenta de buscarmos compreender de forma mais exata e completa a revelação que Deus fez de si mesmo. Com muita oração - o estudo dos princípios de interpretação da Bíblia e outros meios disponíveis - podemos receber iluminação do Espírito Santo de Deus para aclarar muitas passagens difíceis contida nas Escrituras, mas sua mensagem básica é suficientemente simples para qualquer individuo compreender.

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