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boletim do
fev 2020
em revista
ISSN 1677-437X
Publicação do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil | nº 360
XLIV Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil
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fev 2020
expediente
ISSN 1677-437X
Publicação do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil | nº 360
DIRETORIA EXECUTIVA Presidente: Sérgio Jacomino (SP) Vice-presidente: Jordan Fabrício Martins (SC) Secretário Geral: João Baptista Galhardo (SP) 1º Secretário: Fabiane de Souza Rodrigues Quintão (MG) Tesoureiro Geral: George Takeda (SP) 1º Tesoureiro: Denize Alban Scheibler (RS) Diretora Social: Naila de Rezende Khuri (SP). DIRETORIA NOMINATIVA
Região Sudeste: Kênia Mara Felipetto Malta Valadares (ES), Luciano Dias Bicalho Camargos –(MG), Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza (RJ), Flaviano Galhardo (SP).Suplentes: Jocsã Araújo Moura (ES), Sérgio Ávila Doria Martins (RJ), Jose Celso Ribeiro Vilela de Oliveira (MG), Izaias Gomes Ferro Junior (SP). Região Sul: Gabriel Fernando do Amaral (PR), Cláudio Nunes Grecco (RS), Christian Beurlen (SC). Suplentes: Jose Luiz Germano (PR), Bianca Castellar de Faria (SC), MarcosCosta Salomão (RS).
Pesquisador de Novas Tecnologias: Caleb Matheus Ribeiro de Miranda, Diretor de Relações Institucionais: Daniel Lago Rodrigues (SP), Diretor de Tecnologia da Informação: Flauzilino Araújo dos Santos (SP), Diretor de Relações Internacionais: Ivan Jacopetti do Lago (SP), Diretora da Escola Nacional de Registradores – ENR: Daniela Rosário Rodrigues (SP), Diretor de Assuntos Agrários: Izaías Gomes Ferro Jr. (SP), Coordenador Editorial: Ivan Jacopetti do Lago (SP).
CONSELHO FISCAL
CONSELHO DELIBERATIVO
Titulares: Ademar Fioranelli (SP), Eduardo Sócrates C. Sarmento Filho (RJ), Marcos de Carvalho Balbino (MG). Suplentes: Alexandre Gomes de Pinho (SP), Sergio Neumann Cupolilo (SC), Miguel Angelo Zanini Ortale (SC).
Região Norte: Fabiana Faro de Souza Campos Teixeira (AC), José Marcelo de Castro Lima Filho (AM), Cleomar Carneiro de Moura (PA), Milton Alexandre Sigrist (RO), Mirly Rodrigues Martins (RR), Marlene Fernandes Costa (TO). Suplentes: Rafael Ciccone Pinto (AC), Francisco Jacinto Oliveira Sobrinho (RO), Kênnya Rosaly Lopes Távora (RR), Ionize Rodrigues da Silva (TO). Região Nordeste: Jackson Ivan Paula Torres (AL), Milton Barbosa da Silva (BA), Ana Teresa Araújo Mello Fiúza (CE), Felipe Madruga Truccolo (MA), Walter Ulysses de Carvalho (PB), Carla Carvalhaes Vidal Lobato Carmo (PE), Abmerval Gomes Dias (PI), Aldemir Vasconcelos de Souza Jr, (RN), Estelita Nunes de Oliveira (SE). Suplentes: Neusa Maria Arize Passos (BA), Ana Carolina Pereira Cabral (CE), Fábio Salomão Lemos (MA), Roberto Lucio Pereira (PE), Sérgio Abi-Sáber Rodrigues Pedrosa (SE). Região Centro-Oeste: Manoel Aristides Sobrinho (DF), Angelo Barbosa Lovis (GO), Haroldo Canavarros Serra (MT), Marco Aurélio Ribeiro Rafael (MS). Suplentes: Igor França Guedes (GO), Juan Pablo Correa Gossweiler (MS).
Titulares: Geraldo Augusto Arruda Neto (PR), Marcelo de Rezende C. M. Couto (MG), Jéverson Luís Bottega (RS), Aurélio Joaquim da Silva (MG), Gustavo Faria Pereira (GO). Suplentes: André Villaverde de Araújo (PE), Ynara Ramalho Dantas Mota (PE), Marcos Alberto Pereira Santos (PA). CONSELHO DE ÉTICA
CONSELHO DELIBERATIVO (membros natos) Jether Sottano (SP), Ítalo Conti Júnior (PR), Lincoln Bueno Alves (SP), Sérgio Jacomino (SP), Helvécio Duia Castello (ES), Francisco José Rezende dos Santos (MG), Ricardo Basto da Costa Coelho (PR), João Pedro Lamana Paiva (RS). Sede: Av. Paulista, 2073 – Horsa I – Conjuntos 1201 e 1202 – CEP 01311-300 – São Paulo – SP. Telefones: (11) 3289 3599; 3289 3321 – ww.irib.org.br – irib@irib.org.br Presidente Sérgio Jacomino Editora e jornalista responsável Fatima Rodrigo (MTb 12576) Fotos dos Eventos Carlos Alberto Petelinkar | kpetelink@gmail.com Projeto gráfico, diagramação e edição de arte Patricia Delgado da Costa
Direitos de reprodução: o conteúdo desta publicação pode ser reproduzido mediante expressa autorização dos editores e indicação da fonte.
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EDITORIAL XLIV Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil: registradores aprovam enunciados sobre o ONR PERSPECTIVAS E DESAFIOS DO REGISTRO ELETRÔNICO. ONR.
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Perspectivas e desafios do registro eletrônico. ONR. Marcelo Martins Berthe
Perspectivas e desafios do registro eletrônico. ONR. Antônio Carlos Alves Braga Júnior
Perspectivas e desafios do registro eletrônico. ONR. Flauzilino Araújo dos Santos
Perspectivas e desafios do registro eletrônico. ONR. Luís Paulo Aliende Ribeiro
CONDOMÍNIO EDILÍCIO Vagas de garagem em condomínio edilício Jéverson Luís Bottega
Condomínios de lotes de terreno urbano Renato Martins Silva
INCORPORAÇÃO DESDOBRADA Condomínio de usos diversificados: aspectos relevantes e repercussão no registro imobiliário Marc Stalder
Condomínio Edilício e Incorporação: temas sensíveis aos construtores e aos novos registradores Roberto Lúcio Pereira
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índice NEGÓCIOS FIDUCIÁRIOS
real de aquisição como objeto de garantia 74 Odedireito operação e de penhora em execução de interesse de terceiros
Mauro Antônio Rocha
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A alienação fiduciária de bem imóvel e a reforma da Lei 9.514/1997 José Antônio Cetraro
fiduciária no Registro de Imóveis: qualificação 88 Alienação registral e algumas questões polêmicas Maria do Carmo de Rezende Campos Couto
PROCEDIMENTO DE INTIMAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DA PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA Procedimento de intimação e consolidação da propriedade fiduciária
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Contagem do prazo e outros pontos controvertidos
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Paola de Castro Ribeiro Macedo
José Luiz Germano
Execução da alienação fiduciária quando há averbação de penhora ou de indisponibilidade Flaviano Galhardo
CONSTRIÇÕES JUDICIAIS: INEFICÁCIA, NULIDADE E ANULABILIDADE DE ATOS DIANTE DA LEI 13.097/2015. FÉ PÚBLICA REGISTRAL OU INOPONIBILIDADE
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Constrições judiciais: ineficácia, nulidade e anulabilidade de atos diante da Lei 13.097/2015. Fé pública registral ou inoponibilidade Daniel Lago Rodrigues
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REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA – REFLEXÕES SOBRE AS INOVAÇÕES LEGISLATIVAS
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Regularização Fundiária Urbana: MP / PLV 759/20161
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Regularização Fundiária Urbana: os reflexos e impactos da MP 759/2016
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Legitimação fundiária e legitimação de posse
Sílvio Eduardo Marques Figueiredo
Novas ferramentas de regularização fundiária urbana à luz da MP 759/20161 Rodrigo Numeriano Dubourcq Dantas
Renato Guilherme Góes Gustavo Faria Pereira
Regularização fundiária – reflexões sobre as inovações legislativas João Pedro Lamana Paiva
USUCAPIÃO JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL Usucapião judicial e extrajudicial Eduardo Sócrates Castanheira Sarmento Filho Ata Notarial – Usucapião registral Paulo Roberto Gaiger Ferreira Usucapião judicial e extrajudicial Francisco José Barbosa Nobre Usucapião com visão urbanística José Carlos de Freitas
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190 196 202 208
índice IMÓVEIS RURAIS
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Aquisição de imóvel rural por estrangeiro
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Servidões prediais: aspectos registrais
Alda Lúcia Soares Paes de Souza
A participação do Incra no parcelamento de imóveis rurais à vista das Instruções Normativas 17-B/1980 e 82/2015 Christian Beurlen
Ivan Jacopetti do Lago
Cadastros de imóveis rurais Bruno Berti Filho
APOSTILAMENTO DE DOCUMENTOS PÚBLICOS Apostilamento de documentos públicos Márcio Evangelista Ferreira da Silva
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HOMENAGEM Jürgen Wilhelm Philips
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IRIB presta homenagem a Jürgen Wilhelm Philips, um dos maiores estudiosos do cadastro territorial
HOMENAGEM Nicolau Balbino Filho Nicolau Balbino Filho: uma vida devotada à causa registral
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irib XLIV Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil: registradores aprovam enunciados sobre o ONR
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painel Perspectivas e desafios do registro eletrônico – ONR abriu o XLIV Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, realizado de 30 de maio a 3 de junho de 2017, em Curitiba, no Paraná, que congregou registradores de todo o país. Depois desse primeiro painel, o projeto do ONR – Operador Nacional do Registro de Imóveis eletrônico foi apreciado, e seu encaminhamento aprovado por unanimidade. Foram votados cinco enunciados (quadro), abordando a implantação do ONR; as Centrais de Serviços Estaduais; a interoperabilidade; e a autorregulação da atividade registral em caráter nacional.
Perspectivas e desafios do registro eletrônico. ONR – 1 O desembargador MARCELO MARTINS BERTHE, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, foi o primeiro palestrante do painel sobre o Operador Nacional do Registro de Imóveis eletrônico. Para ele, o objetivo do ONR é transformar o Registro de Imóveis numa instituição “absolutamente moderna e muito mais forte, apoiada em profissionais do direito qualificados e que detêm um sistema de registro à altura dos tempos de hoje”.
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Segundo o magistrado, o Registro de Imóveis deve se inserir na vida moderna para atender demandas sociais e do Estado, valorizando e fortalecendo a instituição registral imobiliária. Do contrário, as unidades espalhadas pelo país perderão relevância bem como a própria instituição registral imobiliária. “O aprimoramento da legislação que trata da regularização fundiária urbana (Lei 11.977/2009) trouxe o comando de que os registros imobiliários deveriam seguir desenvolvendo os meios eletrônicos. Era preciso criar um sistema de regularização fundiária capaz de viabilizar a abertura de milhões de matrículas novas com mais rapidez.” A propriedade imobiliária é o pilar da democracia, um direito fundamental que é guardado pelos registradores imobiliários. É preciso que a migração para os meios eletrônicos se faça de forma segura. “Nasce aí a ideia do Operador Nacional do Registro de Imóveis Eletrônico (ONR), que nada mais é do que o órgão dos registradores, criado para os registradores e pelos registradores, evitando que outras instituições se apropriem dos dados registrais para interesses diversos.”
editorial Perspectivas e desafios do registro eletrônico. ONR – 2
“Apoiem o IRIB, que é o órgão com representação nacional e incumbência legal para conduzir esse processo que promoverá a integração nacional.”
ANTÔNIO CARLOS ALVES BRAGA JÚNIOR, Juiz Substituto em Segundo Grau do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, lembrou que o Operador Nacional do Registro de Imóveis Eletrônico (ONR) é o órgão que tem a incumbência de promover a integração e a inclusão digital de todos os Registros de Imóveis do Brasil, para que haja um patamar mínimo de tecnologia, organização interna e segurança, de modo a garantir a migração do papel para um repositório digital confiável.
Perspectivas e desafios do registro eletrônico. ONR – 3
O ONR é o órgão viabilizador do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis – SREI. “Podemos chegar à produção do documento eletrônico em ambiente digital controlado, com fluxo digital, isto é, a atividade técnica do registrador exercida num ambiente de registro eletrônico balizado, o que evita que atos sejam praticados de maneira avulsa.” A integração nacional é um requisito vital para a atividade, que não pode ficar à margem da tecnologia e dos meios digitais. “De nada adianta falar do valor, da importância, da história secular do registro para nós mesmos. Essas questões precisam ser dialogadas na prática, com todo o Brasil, por meio da prestação dos serviços. Há que se dialogar com órgãos públicos, com interesses privados, com grupos econômicos, com o mercado.”
Para FLAUZILINO ARAÚJO DOS SANTOS, Diretor de Tecnologia da Informação do IRIB, a implementação do registro eletrônico constitui fator estratégico essencial para o desenvolvimento do Brasil e para a competitividade no mercado internacional. “A ideia é modernizar o Sistema de Registro de Imóveis do Brasil, visto que ainda temos procedimentos manuais do século XIX e uma sociedade com demandas digitais do século XXI. E em pouco tempo o mundo analógico será apenas um passado distante.” A partir das profundas transformações induzidas pela tecnologia da informação e comunicação, a sociedade brasileira passou a requerer dos setores de serviços públicos melhores padrões de desempenho e gestão. “Na verdade, não se compreenderia sequer que a sociedade canalizasse recursos financeiros tão importantes para manter uma instituição como o Registro de Imóveis, se sua utilização estivesse dissociada dos sistemas publicitários criados pelo desenvolvimento tecnológico. Nessa sequência, seria perfeitamente dispensável a manutenção da instituição registral, pelo menos no modelo atual, que pouco
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mais representaria do que um gargalo na cadeia dos negócios imobiliários.” O registrador considera que implantar o Registro de Imóveis eletrônico no Brasil é uma necessidade urgentíssima, dentre outros motivos, para a universalização do acesso a todos os cartórios de Registro de Imóveis do país e muito mais. “A economia digital tem transformado radicalmente as formas como as pessoas, empresas e países se relacionam, e não pausará à espera da migração dos cartórios de registro de imóveis para esse modelo.” O SREI foi concebido de forma que a sociedade enxergue a serventia de Registro de Imóveis como sendo um serviço único, porém operado de forma distribuída pelos diversos cartórios. “As centrais de serviços eletrônicos dos Estados e do Distrito Federal deverão trabalhar em conjunto, ou seja, interoperar e prestar o mesmo serviço de modo a garantir que pessoas, organizações e sistemas computacionais interajam para trocar informações de maneira eficaz e eficiente, a partir de uma única central.”
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“O ONR se apresenta como ferramenta a ser manejada pelos oficiais de registro de imóveis para normalização do SREI, a fim de enfrentar o desafio da interoperabilidade entre os diferentes Sistemas de Cartórios (SC).” Na política preconizada pelo ONR em seus estatutos, as Centrais de Serviços Compartilhados são prestigiadas e necessárias à implantação e manutenção do Registro de Imóveis eletrônico. “O que o ONR se propõe a fazer é apenas a correta e necessária conciliação entre a linguagem jurídica aplicável ao SREI (normatização), com a correspondente linguagem tecnológico-operacional (normalização), a fim de propiciar a operação segura do sistema, a interoperabilidade de dados e documentos, a longevidade dos documentos, e o acesso e tráfego de documentos eletrônicos com todas as serventias do país.”
Perspectivas e desafios do registro eletrônico. ONR – 4 O desembargador LUÍS PAULO ALIENDE RIBEIRO, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, entende
editorial que a autorregulação profissional deve ser encarada com coragem, e rapidamente, porque a paciência do Brasil pode estar acabando. “A lei escolheu o IRIB para fazer isso e nós cumprimos a lei. Mas poderia ser outro ente? Visto de fora, com imparcialidade, sempre entendi que a entidade de caráter nacional que melhor representa os registradores de imóveis é o IRIB.”
soa jurídica submetida à fiscalização vertical do Conselho Nacional de Justiça e das corregedorias. Qual a diferença entre o SAEC e as centrais, como por exemplo, a CENSEC, administrada pelo Colégio Notarial do Brasil?” Veja, nesta edição, a íntegra do painel Perspectivas e desafios do registro eletrônico – ONR e das demais palestras apresentadas no XLIV Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil.
“Não vejo nada de estranho nas disposições da Medida Provisória 759/2016, convertida na Lei 3.465/2017, estabelecendo que será criada uma determinada pes-
Sérgio Jacomino Presidente
Enunciados aprovados no XLIV Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil O projeto do ONR – Operador Nacional do Registro de Imóveis eletrônico foi apreciado e seu encaminhamento aprovado, por unanimidade, pelo plenário do XLIV Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, no dia 30 de maio de 2017, após apresentação do painel PERSPECTIVAS E DESAFIOS DO REGISTRO ELETRÔNICO. ONR. O evento congregou registradores de todo o Brasil, prova de representatividade e de importância institucional. O texto aprovado é o seguinte.
ONR – Operador Nacional do Registro de Imóveis eletrônico 1) A implantação do ONR é premissa necessária à plena implementação do SREI a nível nacional. 2) As Centrais de Serviços Estaduais são peças fundamentais do SREI, mas a interoperabilidade, entre si e entre os registradores, não é possível sem uma coordenação centralizada de âmbito nacional. 3) A interoperabilidade pressupõe a existência de normas técnicas de caráter nacional para a padronização das informações transmitidas e recebidas. 4) A autorregulação da atividade registral em caráter nacional somente pode ser exercida por uma única entidade representativa dos registradores. 5) A autorregulação tem por finalidade possibilitar aos registradores exercerem suas atividades de forma uniforme com segurança e eficiência e de acordo com a legislação e normatização do Poder Judiciário. Relator: George Takeda. Enunciados aprovados por unanimidade de todos os presentes à sessão plenária. Curitiba, 30 de maio de 2017.
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PAINEL
Perspectivas e desafios do registro eletrônico. ONR. Marcelo Martins Berthe – Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Transformar o Registro de Imóveis numa instituição absolutamente moderna e muito mais forte, apoiada em profissionais do direito qualificados e que detêm um sistema de registro à altura dos tempos de hoje. Esse é o objetivo do ONR.
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tema proposto a mim decorre do trabalho que realizamos por convite do Ministério das Cidades, relativamente à regularização fundiária urbana, à MP 759 e ao ONR – Operador Nacional do Registro de Imóveis Eletrônico, que surgiu no bojo desse trabalho e está aí colocado como uma perspectiva para o registro eletrônico de imóveis. A questão é complexa. Passei pela Vara de Registros Públicos de São Paulo, na Corregedoria Permanente dos Registros Públicos, e depois pela Corre-
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gedoria Geral da Justiça do Estado, ocasião em que foi promulgada a Lei 8.935/1994, que veio regulamentar o artigo 236 da Constituição Federal. Aquele momento representou uma grande quebra de paradigma. Os serviços notariais e registrais passavam a ser delegados ao particular. Uma ideia que a princípio parecia difícil de compreender, mas que foi se revelando extraordinária, uma escolha feliz do constituinte de 1988.
Perspectivas e desafios do registro eletrônico. ONR.
Essa quebra de paradigma trouxe, no entanto, grande instabilidade para todos que exerciam a atividade. A falta de compreensão a respeito das inovações, a necessidade de realização de concursos públicos para ingresso na atividade, tudo isso representou um desafio. Lembro-me das dificuldades que enfrentamos até a realização do primeiro concurso público do Estado, implementado somente em 1998, com abertura do edital em 1999. Foram precisos alguns anos para que aquela situação se normalizasse e todos percebessem que aquilo não representava ameaça, pelo contrário, tinha o objetivo de fortalecer a instituição. Tudo isso acontecia numa época em que a rede mundial de computadores era incipiente. Os serviços eletrônicos nasciam nessa mesma década de forma ainda muito tímida. Alguns segmentos se adiantaram mais, vimos serviços bancários começarem a modificar os seus padrões de atendimento, vimos alguns outros setores quebrarem paradigmas ao aderirem aos meios eletrônicos. Olhando para trás, é desnecessário dizer o quanto aquelas mudanças impactaram nossa vida. Hoje é inimaginável a integração social, o nosso dia a dia, nossas atividades sem o uso de um smartphone. Na década de 1990, os concursos públicos estavam restritos a alguns poucos estados e muitos outros dependiam de algum impulso para a implementação do certame. Foi quando ingressei no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e recebi, como primeira incumbência, a tarefa de viajar por todo o Brasil para conhecer e fazer
o diagnóstico de todas as unidades extrajudiciais espalhadas por nosso território, para depois elaborar as resoluções que viriam a regulamentar os concursos, como as Resoluções CNJ 80 e 81, de 2009. Tendo em vista a demora de quase dez anos para que esse processo fosse estabilizado no Estado de São Paulo, imaginei que também seria esse o prazo para que os estados começassem a realizar os seus concursos para ingresso na atividade, como pretendeu o constituinte de 1988. Nesse mesmo tempo percebemos que os meios eletrônicos começaram a se insinuar na vida moderna em todas as áreas, como uma água que inunda tudo sem que tenhamos o controle da situação. Os meios eletrônicos foram inundando a vida moderna de forma irreversível, mas uma inundação, se não for canalizada, acaba tornando a vida problemática, desorganiza as coisas. Era preciso que medidas fossem tomadas para a canalização desses meios de modo que se tornassem úteis para o desenvolvimento das atividades notariais e registrais. E os primeiros passos foram dados por meio das Centrais Eletrônicas que hoje fazem o intercâmbio entre o serviço e o usuário, o Poder Judiciário e outros órgãos do Poder Executivo. Outras especialidades deram seus passos. Vimos o Protesto criar a distribuição automatizada, vimos o RTD, o Registro Civil e as Notas criarem suas centrais. E o Registro de Imóveis?
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PAINEL Registro de Imóveis deve atender demandas sociais e do Estado Nossa ideia no CNJ era organizar os serviços. Era preciso deixar bem claro, entretanto, que nada do que se fez nas outras especialidades e nem o que se pretende fazer na atividade registral imobiliária poderá modificar a essência do Registro de Imóveis. Os meios eletrônicos virão, isso é inevitável. Mas virão para valorizar e fortalecer a instituição registral imobiliária. O registrador imobiliário estará fortalecido quando os meios eletrônicos forem utilizados de forma a servi-lo bem e atender às necessidades e demandas do mercado, do Estado, e de quem quer que faça uso do serviço registral imobiliário. Do contrário, as unidades espalhadas pelo país afora, descontroladamente, levariam a uma perda de relevância da própria institui-
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ção registral imobiliária. Somente mediante a organização desses novos meios – que jamais vão substituir a atividade intelectual exercida pelo registrador – a atividade será exercida de forma a atender a demanda da sociedade moderna. O mundo de hoje tem novos paradigmas. Já não vemos mais discos serem vendidos em lojas de discos. Já não alugamos mais filmes em locadoras para assistir em casa. A vida mudou, o caminho é outro. E o Registro de Imóveis deve seguir o mesmo caminho trilhado pelas demais especialidades para se ver inserido na vida moderna, atendendo as demandas sociais e as demandas do Estado que exigem a prestação rápida e acessível. Para isso se pensou na criação do SREI. O Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico surgiu com o
Perspectivas e desafios do registro eletrônico. ONR.
objetivo de promover o nivelamento dos serviços em todo o país. Ocorre que os anos passaram e a aplicação dessa ferramenta não foi tão fácil como se imaginava. Não tivemos a felicidade de poder criar um órgão que pudesse colocar em prática aquilo que se criou. A Lei 11.977/2009, que tratava da regulação fundiária trouxe a ideia de que os registros imobiliários deveriam seguir no rumo do registro eletrônico. Não disse como, mas deu prazo, já vencido, para os registradores imobiliários se organizarem e desenvolverem o registro imobiliário eletrônico. Não foi possível até ali criar um órgão. Havia um comando legal que determinava aos registradores imobiliários um prazo legal para a implantação do registro eletrônico, mas que não determinava especificamente quem seriam os registradores imobiliários responsáveis por essa implantação. Foi quando começamos a desenvolver o SREI como meio para a implantação do registro imobiliário apontado pela Lei 11.977. Não foi possível completar o trabalho em razão das mudanças de administração. Embora o SREI tenha sido instituído por Resolução do CNJ, e ainda que tenhamos criado um fórum de assuntos fundiários com essa finalidade (Resolução CNJ 110), sem vontade política a coisa não caminha. Mais tarde, pensando em reformular e aprimorar a legislação que trata da regularização fundiária urbana (Lei 11.977), nos deparamos com o comando de que os registros imobiliários deveriam seguir desenvolvendo os meios eletrônicos. Esse comando trouxe novos institutos para agilizar os trabalhos. Não seria possível regularizar metade das habitações brasileiras de outro modo. Conforme estatísticas, mais de cem milhões de brasileiros moram em propriedades irregulares. Era preciso criar um sistema de regularização fundiária que pudesse viabilizar com mais rapidez a abertura de milhões de matrículas novas. Mas como fazer essa regularização em grande escala, com qualidade, de forma padronizada em todos os estados? É verdade que com os concursos públicos os profissionais estão mais bem informados, mas os concursos nesses estados ainda não estavam concluídos. Era necessário imaginar um
sistema que pudesse facilitar a vida desses profissionais Brasil afora e trazer para o registro imobiliário esses milhões de imóveis que estão à margem da lei. Desse modo, transformaríamos o Registro de Imóveis em uma instituição absolutamente moderna e muito mais forte, fundada em profissionais do direito qualificados e que detêm um sistema de registro à altura dos tempos de hoje.
Princípios fundamentais do registro imobiliário não devem ser esquecidos A migração para o registro eletrônico há que ser controlada. A publicidade registral há que ser respeitada, não pode se dar de forma desordenada, permitindo o acesso a dados de forma ampla, midiática, em ofensa a outros princípios constitucionais, como o princípio da intimidade. Não é esse o escopo da publicidade registral. A propriedade imobiliária é o pilar da democracia, um direito fundamental que é guardado pelos registradores imobiliários. São eles os guardiães da propriedade privada. Não se pode brincar com esse pilar do Estado democrático de direito. É preciso que a migração para os meios eletrônicos se faça de forma segura. Nasce aí a ideia do Operador Nacional do Registro de Imóveis Eletrônico (ONR), que nada mais é do que o órgão dos registradores, criado para os registradores e pelos registradores. O ONR não comporta receber outro profissional que não seja o registrador imobiliário. A ideia é entregar à instituição que representa nacionalmente os registradores imobiliários – no caso, o IRIB – a incumbência de organizar e implantar o registro eletrônico imobiliário, evitando-se, portanto, que outras instituições se apropriem dos dados registrais para interesses diversos. Nesse sentido, o ONR deverá canalizar para si o que se tem nas centrais e de modo que trabalhem de forma harmônica, e possam, afinal, prestar o serviço indispensável para a afirmação do registro imobiliário no Brasil.
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Perspectivas e desafios do registro eletrônico. ONR. Antônio Carlos Alves Braga Júnior – Juiz Substituto em Segundo Grau do Tribunal de Justiça do Estado de SP
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O Operador Nacional do Registro de Imóveis Eletrônico (ONR) é o órgão que tem a incumbência de fazer a coordenação nacional, promover a integração e a inclusão digital de todos os Registros de Imóveis do Brasil, para que haja um patamar mínimo de tecnologia, organização interna e segurança, de modo a garantir a migração do papel para um repositório digital confiável.
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Perspectivas e desafios do registro eletrônico. ONR.
Neste momento a novidade é o ONR – Operador Nacional do Registro de Imóveis Eletrônico
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esde 2009 falamos sobre o SREI – Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico. Em 2012, havia um projeto pronto para implantação nacional, mas durante esses anos todos só o que temos feito é falar sobre o SREI. Chegamos a um ponto em que não é mais possível falar sobre SREI sem que se inicie sua efetiva implementação. Ninguém aguenta mais ouvir falar em SREI como projeto. Temos, de um lado, o Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (SREI) e, do outro lado, o Operador Nacional do Registro de Imóveis Eletrônico (ONR), que é o órgão viabilizador do SREI. Somente quando ambos estiverem caminhando em paralelo os registradores poderão dizer o que será o SREI. Embora exista um projeto arquitetônico para o SREI, podemos imaginar infinitos níveis de sistemas de registro eletrônico. Podemos ter um sistema de registro eletrônico de imóveis elementar que seja mera reprodução em âmbito nacional das centrais de serviço hoje, que nada mais são do que unidades de troca de documentos eletrônicos. Ou podemos chegar a um patamar infinito que é a produção do documento eletrônico em ambiente digital controlado, com fluxo digital, isto é, a atividade técnica do registrador exercida num ambiente de registro eletrônico balizado, o que evita que atos sejam praticados de maneira avulsa. Os atos somente
poderão ser praticados dentro do ambiente oficial, de um ambiente válido, que é o acervo de cada unidade de Registro de Imóveis. Do primeiro ao octogésimo andar desse edifício os registradores é que terão que dizer qual registro eletrônico o Brasil vai ter. São os registradores que dirão aquilo que se veem capazes de implementar, aquilo que veem conveniente, importante e seguro implementar. Eu acredito que o registro eletrônico deva ser esse do octogésimo andar, que é a plena virtualização da atividade, o livro eletrônico, a imersão completa nos meios digitais.
Integração nacional é essencial para a atividade A questão fundamental que vem antes de toda essa discussão é: o nivelamento dos registros e a integração em nível nacional são um requisito essencial para a atividade? O Provimento CNJ 47/2015 prevê a integração no âmbito dos Estados. Quanto à integração em âmbito nacional, essa pergunta precisa ser respondida antes de qualquer coisa. Por mais que se fale nisso desde 2009/2010, tenho a convicção de que ainda há tempo para responder a essa pergunta. Isso é essencial para a atividade do registro imobiliário. Eu não pergunto se é importante, se é relevante, se é conveniente. Eu pergunto se é essencial, se é vital, se a atividade não poderá existir sem essa integração nacional. Se for só importante, conveniente ou útil, essa questão pode
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PAINEL ser deixada de lado, pode ser deixada para o futuro, quando os recursos forem maiores e a tecnologia mais assimilada. Sendo essencial, precisamos responder a essa pergunta afirmativamente e dar início ao trabalho gigantesco que é sair do térreo rumo ao octogésimo andar. Isso pode levar uma ou duas décadas, mas é necessário começar. A nossa convicção desde o início é afirmativa. Sim, a integração nacional é essencial para a atividade. A atividade não pode se dar ao luxo de ficar à margem da tecnologia e dos meios digitais. De nada adianta falar do valor, da importância, da história secular do registro para nós mesmos. Essas questões precisam ser dialogadas na prática, com todo o Brasil, por meio da prestação dos serviços. Há que se dialogar com órgãos públicos, com interesses privados, com grupos econômicos, com o mercado. Não adianta nos apoiarmos nos valores do registro e das notas, se a sociedade não reconhecer que tem um serviço em dia com o seu tempo.
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Registro de Imóveis ainda não conta com o nível nacional da instância operacional O SREI é ainda muito incompreendido porque o sistema não está definido. O ONR, que é a novidade, é mais ainda incompreendido. Como seria a convivência dessa estrutura com os cenários que hoje conhecemos? São três esferas concêntricas. A esfera maior é a das normas jurídicas que envolvem a Constituição federal, legislações federais, estaduais e municipais, as quais regulamentam e norteiam a atividade dos registradores. Com o advento do ONR nada muda na relação dos registros com essa instância, pois a observância da Constituição, das leis federais e estaduais em nada pode ser alterada. A segunda esfera envolve as normas administrativas e a atuação dos órgãos do Poder Judiciário, CNJ, CGJ, autoridades locais, eventualmente, como o juiz
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corregedor permanente. A atuação nesse âmbito ocorre com o estabelecimento de normas sobre aquilo que a instância mais ampla – Constituição ou legislação – determina ou permite. Obviamente, nenhuma instância normativa pode se sobrepor à lei. É bastante ampla a atividade dos órgãos de normatização da atividade, porém, está balizada pelo que determina ou permite a Constituição ou legislações federais, estaduais e municipais. Nos debates e discussões temos visto uma completa confusão a respeito dessas esferas normativas. A terceira esfera, de menor diâmetro, é a esfera da norma técnica, do dia a dia, do manejo e operação da atividade. Essa é a esfera de atuação do registrador. É exatamente isso que faz o registrador dentro de suas unidades, estabelece normas e procedimentos para operar a atividade de forma efetiva e organizada. A forma como o registrador cuida do seu acervo, dos seus backups, aplica a informatização na atividade, tudo isso recebe um tratamento dentro da unidade, mas também em um âmbito mais amplo com as centrais estaduais de São Paulo desde 2012. Tive a honra de participar da implantação da central estadual de São Paulo com o Provimento da Corregedoria Geral da Justiça. A partir do Provimento 45, a princípio podemos ter 27 centrais no Brasil. Seria interessante que cada Estado e o Distrito Federal tivesse a sua central de serviços, atentas às peculiaridades do Estado. Essa é a esfera dos registradores. É óbvio que a atuação da central está balizada pela norma do órgão Judiciário e pela legislação, no entanto, existe nessa esfera um campo de tomada de decisão dos registradores sobre a sua própria atividade. O que se discute aqui é o terceiro nível dessa instância operacional, que é o nível nacional da instância operacional, que ainda hoje não existe no Registro de Imóveis, mas existe nas demais especialidades. Para que essa instância seja relevante é preciso ter respondido afirmativamente àquela pergunta: o nivelamento dos registros e a integração em nível nacional são um requisito essencial para a atividade? Uma vez sendo essencial, é necessário que haja uma instância nacional produtora de normas e gestora nacional da atividade dos registros
submetida, obviamente, às duas outras esferas.
ONR: coordenação nacional para promover a integração e inclusão digital de todos os Registros de Imóveis do Brasil A novidade nessa esfera é o ONR, órgão que tem a incumbência de fazer a coordenação nacional, promover a integração e a inclusão digital de todos os Registros de Imóveis do Brasil, para que haja um patamar mínimo de tecnologia, organização interna e segurança, de modo a garantir a migração do papel para um repositório digital confiável. Nessa esfera, sim, se espera uma mudança. Do contrário, não haveria razão nenhuma para a criação do ONR. Quanto à necessidade ou indispensabilidade do ONR para responder àquela pergunta fundamental – nivelamento e integração são essenciais? –, digamos que a resposta majoritária seja sim, que essa gestão do IRIB encontra o apoio maciço do Brasil para implementar essa transformação. Ainda assim, cabe a pergunta sobre a essencialidade da atividade. O ONR é indispensável? Digo que não, em princípio. Não precisaríamos depender de um órgão que dita normas e define regras de operação da atividade. Assim como digo que os registradores não precisariam depender de provimento do CNJ ou da Lei 11.977/2009 dizendo o que os senhores têm que fazer. Essa iniciativa deveria ser inerente ao próprio registro. Os registradores precisam implantar o registro eletrônico a partir da sua própria organização. Isso não aconteceu, por isso a criação da Lei em 2009 com prazo até 2014, que não foi atendido. Veio a Recomendação do CNJ em 2014, que não foi atendida. Veio o Provimento 47, que definiu as centrais estaduais e estabeleceu o prazo de 360 dias, que venceu no ano passado. Os registradores não dependem de norma nenhuma para mergulhar nos meios digitais, para incorporar-se às novas tecnologias. Diante desse quadro em que, passados todos esses anos a integração não se mostrou possível, a resposta é sim, um órgão como o ONR é absolutamente necessário e indispensável para que
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PAINEL ocorra essa mudança. O Ofício Eletrônico é um serviço criado dentro do ambiente da Arisp, no Estado de São Paulo, que entrou em funcionamento em maio de 2005. Até ontem foram feitas 666 milhões de requisições. O serviço eletrônico no Registro de Imóveis tem início nas décadas de 1980 e 1990 com a chegada dos computadores. O Ofício Eletrônico é, no entanto, a primeira iniciativa de integração dos cartórios, com um mínimo de nivelamento. Foi uma necessidade reconhecida pelos registradores que recebiam uma massa enorme de requisições oficiais que lhes geravam custos gigantescos. Eles entenderam que era necessário simplificar o processo, baratear os custos para viabilizar o atendimento pleno daquela crescente demanda sob pena de serem responsabilizados por omissão. Da necessidade surgiu o conceito de Ofício Eletrônico que foi colocado em prática em 2005. O Ofício Eletrônico poderia ser a espinha dorsal do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico, poderia ter sido reconhecido como uma ferramenta necessária a todos os Estados do Brasil e por iniciativa dos próprios registradores, antes de qualquer imposição
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normativa. Hoje, após doze anos, o portal de recepção de requisições oficiais poderia estar instituído em todo o Brasil e teríamos um robusto sistema de registro de imóveis eletrônico. Por razões várias isso não aconteceu, mas fica o registro. Eu sempre cito a evolução e a subida exponencial do sistema que iniciou sua operação em maio de 2005. Em maio de 2011, em um evento em São Paulo, um computador registrou o número de 25 milhões de requisições em um período de seis anos. De 2011 até hoje, 666 milhões de requisições foram feitas nesse sistema. Vejam a curva exponencial. Estou vendo o dia de batermos um bilhão.
Internet e a transformação do mundo Mas, afinal, em que ponto estamos neste momento? Podemos lembrar os últimos vinte anos e pensar o que teremos para os próximos dez anos. Pelo tamanho da instituição do Registro de Imóveis, num paralelo com o tribunal, os prazos de transformação são de dez anos.
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Há vinte anos, a internet estava recém-chegada ao Brasil. Aquilo que até então era uma ferramenta militar se tornou uma internet comercial aberta a toda a sociedade civil. Muita gente enxergava um futuro extremamente promissor para a internet, mas não se sabia o que seria a internet. A Microsoft cometeu um enorme erro, que depois foi corrigido, ao dizer que a internet não seria usada pelas pessoas em geral, mas que seu uso seria restrito a ambientes científicos ou acadêmicos. E foi assim mesmo que ela começou a ser utilizada, na integração de universidades. Depois de perceber o erro, a Microsoft refaz o conceito e desenvolve o Internet Explorer para se posicionar no mercado. Hoje em dia não há uma só atividade que não esteja permeada pela internet direta ou indiretamente. Em 1997, a internet tinha 36 milhões de usuários no mundo. Já era um fenômeno. Hoje são 3,7 bilhões de pessoas, o que equivale a mais de 50% dos seres humanos conectados à internet. A mudança digital de que tanto se fala ainda não aconteceu. As grandes mudanças nem começaram. Agora é que temos a base instalada da tecnologia digital. Há vinte anos as pessoas davam seus primeiros passos na internet. Hoje os novos computadores são os smartphones. Em países como o Quênia, onde os habitantes não possuem sequer conta em banco ou dinheiro a movimentar, têm celulares conectados à internet. Operadoras de telefonia estão servindo para a transferência de créditos. Ou seja, a pessoa não tem renda mínima para custear uma conta bancária, mas pode fazer pagamentos com os créditos telefônicos. As operadoras de telefonia enxergaram esse filão. Isso é inclusão digital. Há hoje uma tremenda base instalada de tecnologia digital em todo o mundo. O Brasil é um dos campeões, chegando à marca de 300 milhões de linhas celulares, mais de 60% são linhas utilizadas em smartphone, ou seja, que possibilitam o acesso a serviços. Há mais linhas telefônicas no Brasil do que habitantes. A enorme capacidade de computação disponível hoje nos celulares é infinitamente superior à capacidade dos computadores que levaram o homem à lua. Faz cem vezes mais o que os computa-
dores da época faziam graças à enorme capacidade computacional distribuída e à enorme capacidade de armazenamento. Ninguém mais fala de problemas de armazenamento. Hoje temos espaços gratuitos de alocação que disponibilizam gigabytes e terabytes em nuvem. Não temos um limitador no processamento, não temos um limitador no armazenamento. Temos aplicações muito avançadas, bases digitais gigantescas instaladas. Agora é que a coisa começa para valer. Os processos foram extremamente rápidos até aqui e serão mais rápidos ainda. As transformações ocorrerão em prazos cada vez menores. Um livro que estou lendo dá um nome para esse acontecimento: becoming, ou tornando-se, em português. Ingressamos numa sociedade em que estamos sempre nos tornando alguma coisa, mas nunca chegamos lá porque não dá tempo, no que diz respeito às novas tecnologias. Novas plataformas, novas formas de fazer as coisas, novas ferramentas, e no processo de assimilação disso surge uma nova tecnologia que nos obriga a passar para a próxima. Essa é a realidade. Estamos sempre transitando de uma tecnologia para outra. Esse é o processo, estar sempre em trânsito, sempre a caminho. Um tópico que coloco nesse cenário é um texto do site wired.co.uk, de maio/2017, que diz “The future of banking is mobile only”, traduzido como “O futuro dos bancos é apenas móvel”. Os bancos tendem a ser exclusivamente uma interface, sem agências, sem nada. O artigo explica as razões dizendo que esse é o futuro dos bancos. Esse é o presente. Onde é que o registro está hoje e onde estará em 2027? O ONR é apenas e tão somente o que foi criado na Medida Provisória, uma janela de oportunidade que poderá ser usada ou não. Quem definirá isso são os registradores. Se a resposta àquela pergunta fundamental for afirmativa, apoiem o IRIB, que é o órgão com representação nacional e incumbência legal para conduzir esse processo que promoverá a integração nacional.
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PAINEL
Perspectivas e desafios do registro eletrônico. ONR. Flauzilino Araújo dos Santos - Diretor de Tecnologia da Informação do IRIB e registrador de imóveis em São Paulo
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A implementação do registro eletrônico constitui fator estratégico essencial para o desenvolvimento do Brasil e sua competitividade no mercado internacional, com reflexos no risco Brasil e no custo Brasil.
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ostaria de começar com uma frase que resume o propósito da gestão de SÉRGIO JACOMINO na presidência do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil – IRIB, da qual sou colaborador, no tocante à modernização das atividades registrais: “Vamos trabalhar com recursos eletrônicos para melhorar o ambiente de negócios imobiliários do país e a vida das pessoas”. Esta é nossa missão, paixão e obsessão. A ideia é modernizar o Sistema de Registro de Imóveis do Brasil, visto que nós ainda temos procedimentos
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manuais do século XIX e uma sociedade com demandas digitais do século XXI. Providencialmente, nós somos a geração responsável para fazer a transição do Registro de Imóveis para a economia digital, porque dentro de pouco tempo o mundo analógico será apenas um passado distante. Pergunta-se: Por que, apesar da mudança a partir de 1º de janeiro de 1976 do sistema de transcrição para o fólio real continuamos com a escrituração manuscrita? Por quê? É realidade que tendo entrado em
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vigência a Lei de Registros Públicos grande número de cartórios de registro de imóveis passou a utilizar livros com folhas soltas, porém, sem abrir mão da escrituração manuscrita. Pior. Em algumas unidades da Federação, mesmo em plena vigência da Lei nº 6.015, de 1973, houve obrigatoriedade normativa, por força de provimentos para manutenção de livros encadernados, para compor o Livro 1 – Protocolo, o Livro 2 – Registro Geral, e o Livro 3 – Registro Auxiliar. Desse modo, em plena vigência da Lei nº 6.015/1973 que instituiu o novo sistema de registro imobiliário brasileiro, atribuindo individualmente ao imóvel um fólio real (matrícula), a evolução tecnológica era a escrituração mecânica com máquina de escrever. No entanto, utilizada, maiormente, apenas para emissão de certidões, pois os atos inscritivos eram escriturados manualmente em livros com folhas encadernadas. Depois passou-se a utilizar processadores de texto e impressoras, porém, também, somente para emissão de certidões, mantidos em muitos cartórios os procedimentos de escrituração do século XIX. À época da elaboração da Lei de Registros Públicos, este era o sentir geral, sob o escudo da “segurança jurídica”, como argumentou o Prof. AFRÂNIO DE CARVALHO, autor do Anteprojeto, em seu festejado livro Registro de Imóveis (Rio de Janeiro: Forense, 1982, 3ª ed., p. 14), a propósito da substituição de livros de folhas encadernadas, por livros compostos por folhas soltas, destinadas à escrituração mecanizada (Lei 6.015/1973, art. 173, parágrafo único, art. 3º, § 2º e art. 4.º), a saber: “Com esta segunda franquia criou-se desnecessariamente um risco constante para os direitos inscritos, porque, de um lado, as folhas soltas se desgastam celeremente no manuseio diário e, de outro, se prestam a extravio, casual e fraudulento, bastando lembrar, a propósito deste último, que, preenchíveis a máquina pelo registrador, são também autenticáveis pela rubrica dele, que assim tem um domínio absoluto sobre a escrituração, podendo, quando desonesto, substituir qualquer delas sem deixar o menor vestígio de fraude.”
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Antes, o saudoso e não menos brilhante ELVINO SILVA FILHO já havia defendido com veemência a possibilidade de escrituração dos livros registrais em folhas soltas, em sua obra “A unidade móvel ‘fólio real’ e a mecanização dos registros no Brasil (São Paulo – Campinas, 1974), ideia que recebeu a seguinte reprimenda do autor do Anteprojeto: “Não se argumente com a possibilidade de reconstituição da folha solta em caso de extravio, como fez brilhante, mas incauto, monógrafo paulista ao responder a esse tópico da minha crítica à primeira versão da Lei.” Passados quarenta e três anos desse episódio e quase trinta anos da “abertura das fronteiras” do país, com o fim da reserva de mercado de informática, parece-nos que, realmente, ainda remanesce a lição de casa para os registradores brasileiros, que é ultrapassar os procedimentos manuais do século XIX e responder aos requerimentos e demandas digitais do século XXI, atendendo a expectativa da sociedade de informação, hiperconectada. É obrigação que pesa sobre os Registradores e seus Reguladores (Poder Judiciário), pois a implementação do registro eletrônico constitui fator estratégico essencial para o desenvolvimento do Brasil e sua competitividade no mercado internacional, com reflexos no risco Brasil e no custo Brasil. Nem seria necessário frisar que a Administração Eletrônica é um direito do consumidor dos serviços públicos, assim como também o direito de acesso remoto ao conteúdo dos arquivos dos Órgãos Públicos, respeitadas as regras pertinentes, por exemplo, instância, privacidade, satisfação de emolumentos etc. A realidade é que os cidadãos estão elevados à condição de consumidores dos serviços públicos, com direito a acesso remoto, segurança e previsibilidade e com isso, diminuindo os riscos inerentes aos intercâmbios pessoais, degradando riscos e custos. De acordo com o Ministério do Planejamento, uma transação em um serviço digital é 97% mais barata do que uma transação entregue no balcão.1
Brasil Eficiente reduz custos para Estado e cidadãos. Link: http://twixar.me/Jrw1.
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PAINEL Diante das profundas transformações induzidas pela tecnologia da informação e comunicação, a sociedade brasileira passou a requerer dos setores de serviços públicos melhores padrões de desempenho e gestão, como observou Win Oosterom, da PricewaterhouseeCoopers: “Entretanto uma corrente crescente de cidadãos e empresas, habituada ao fornecimento otimizado de serviços pelo setor privado, considera o setor público igual a qualquer outro ‘provedor de serviços’ – serviços que serão pagos através de impostos. Para dar solução a esse problema, o setor público deverá encontrar meios para melhorar a eficiência e a eficácia dos serviços que fornece. Isso significa proporcionar maior valor pelos recursos empregados, através da melhoria da qualidade dos serviços (universalização do acesso e apresentação de resultados satisfatórios para os usuários), além da redução dos custos da prestação desses serviços.”2 Ademais, a “publicidade registral” exige a utilização de meios instrumentais vocacionados e estruturalmente orientados para proporcionar a comunicação do usuário com o Registro de Imóveis, para o tráfego de documentos eletrônicos e o conhecimento das situações registrais decorrentes, por meio da Internet. Em um sistema de registro constitutivo, como sucede entre nós, em especial por força do disposto no art. 1.245 do Código Civil, o ato de registro, fazendo parte componente do suporte fático de que depende a validade do negócio, é essencial que a realidade registral seja acessível para terceiros, pois é para o público que os registros públicos existem. Parece-nos que não basta, porém, que exista a possibilidade de conhecer previamente eventual existência de títulos oponíveis erga omnes. É necessário,
para que a instituição tenha a relevância pretendida e seja eficaz no tempo, que os terceiros tenham a garantia de acessibilidade do que está inscrito no Registro, de forma simples, célere e desburocratizada, como sempre pretendeu o legislador pátrio, mesmo antes das facilidades decorrentes da tecnologia da comunicação e informação. Na verdade, não se compreenderia sequer que a sociedade canalizasse recursos financeiros tão importantes para manter uma instituição como o Registro de Imóveis, se sua utilização estivesse dissociada dos sistemas publicitários criados pelo desenvolvimento tecnológico. Nessa sequência, seria perfeitamente dispensável a manutenção da instituição registral, pelo menos no modelo atual, que pouco mais representaria do que um gargalo na cadeia dos negócios imobiliários, como não poucas vezes tem sido acentuado por importantes setores públicos e privados. Em suma, implantar o Registro de Imóveis Eletrônico no Brasil é uma necessidade urgentíssima, dentre outros motivos para: [1º] digitalização desse setor do serviço público; [2º] implantação do Código Nacional de Matrícula (CNM), que corresponde à numeração única de matrículas imobiliárias em todo o território nacional;3 [3º] universalização do acesso a todos os cartórios de Registro de Imóveis do país, pela internet; [4º] Acesso pela administração pública federal às informações do SREI por meio do Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais – SINTER (Lei 13.465, art. 76, §7º); [5º] melhorar o ambiente de negócios imobiliários no País4, propiciando padronização de documen-
O Futuro da Prestação de Serviços Públicos: Atendendo às expectativas do cidadão. LINS, João & MIRON, Paulo (coord.) – Gestão Pública – Melhores Práticas – São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 45.
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O CNM funcionará como Chave Primária/Primary Key (PK). A matrícula passa a ser um identificador unívoco nacional. Dessa forma, com o número da matrícula é possível identificar um imóvel no território nacional. É o CPF do imóvel.
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O Brasil é o país 109, de uma lista de 190, no ranking Doing Business 2019, criado pelo Banco Mundial para monitorar os ambientes de negócios das economias mundiais. O Doing Business publica indicadores quantitativos sobre as regulações das atividades comerciais e sobre
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tos imobiliários e de procedimentos de registro, redução de prazos etc. e, assim, contribuir para conferir maior segurança jurídica e agilidade na formalização dos negócios imobiliários; [6º] controle no desenvolvimento de programas habitacionais no País, mediante a formação de um banco de dados de todos os beneficiários de subsídios, evitando-se desvio de finalidade pela participação em diversos programas pela mesma pessoa; [7º] suporte na realização da Regularização Fundiária Urbana e Rural ;5 [8º] obtenção via internet de informações e certidões imobiliárias, bem como remessa e recepção de documentos eletrônicos pela Administração Pública, Poder Judiciário, empresas e cidadãos; [9º] fornecimento de elementos para auxiliar a instrução de processos que visam o combate ao crime organizado, tornando o Estado brasileiro mais eficiente no combate à corrupção, à lavagem de dinheiro, identificação, indisponibilidade e recuperação de ativos de origem ilícita; e, [10ª] viabilização ao Banco Central do Brasil a consulta unificada das informações relativas ao crédito imobiliário, notadamente, acesso às informações referentes às garantias constituídas sobre imóveis e aos documentos necessários ao desempenho de suas atribuições legais, nos termos da Resolução nº 4.088, de 24/5/2012, visando a fiscalização das instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar; [11º] fornecimento de indicadores e estatísticas
de abrangência nacional, relevantes para orientação do mercado e tomada de decisões em políticas públicas.6
Até quando a sociedade brasileira ainda vai esperar pela implantação do Registro de Imóveis eletrônico? As inovações digitais que surgiram nos diversos níveis da administração pública produziram reflexos imediatos na visão dos usuários dos serviços de registro de imóveis, que passaram a exigir mudanças significativas em todas as suas dimensões, a partir dos bons exemplos no setor público, comparando experiências nacionais e tendências globais. Por outro lado, pode ser afirmado que a sociedade brasileira tem sido paciente com os oficiais de Registro de Imóveis, pois entende-se que desde a edição da Medida Provisória 2.200-2, de 2001, que instituiu a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil, e criou o documento eletrônico, os registradores passaram a ter os insumos jurídicos e as especificações tecnológicas necessárias para implantação do Registro de Imóveis eletrônico. Em tese, não havia necessidade de edição de legislação ou ato normativo sobre essa matéria para que os registradores pudessem avançar na digitalização de seus serviços. Seguiu-se, porém, a edição de outras normas dispositivas7 que deveriam ter sido lidas pelos oficiais de registro e seus reguladores como uma advertência do tipo “preste atenção” para a direção em que as águas estão correndo.
a proteção dos direitos de propriedade. No item “Registro de propriedades” nosso país ocupa o desconfortável 137º lugar. Fonte: http:// portugues.doingbusiness.org/pt/rankings. Dispõe o § 1º do art. 76, da Lei 13.465/2017 que “O procedimento administrativo e os atos de registro decorrentes da Reurb serão feitos preferencialmente por meio eletrônico, na forma dos arts. 37 a 41 da Lei no 11.977, de 7 de julho de 2009”. Somente com procedimentos inteligentes de Registro Eletrônico será possível atender a Regularização Fundiária de forma satisfatória.
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Por exemplo, pergunta-se: Qual a área do território brasileiro ocupada por imóveis rurais de propriedade de pessoas estrangeiras? E de imóveis rurais arrendados ou em parceira agrícola com pessoas estrangeiras? Onde esses imóveis estão localizados? Qual a nacionalidade estrangeira que ocupa maior área do território nacional? Essas áreas estão concentradas em áreas estratégicas da produção nacional ou na Amazônia Legal?
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Norma Dispositiva (facultativa) é aquela que se limita a declarar direitos, autorizar condutas, ou atuar em caso duvidoso, ou omisso.
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PAINEL Outro momento que deveria ter chamado a atenção foi a publicação da Lei nº 11.419, de 2016, que dispôs sobre a informatização do processo judicial. Em seu art. 18, a Lei do Processo Eletrônico previu a possibilidade de os tribunais disciplinarem, por norma interna, sobre livros eletrônicos, norma que permitiria a edição de atos administrativos disciplinando os livros eletrônicos do Registro de Imóveis. Seguiu-se, todavia, a edição de normas cogentes, como evidência de “paciência esgotada”. Dentro desse sentir, em 2009, o Poder Executivo Federal editou a Medida Provisória nº 459, de 25/3/2009 (art. 42), convertida na Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009 (art. 39), e fixou prazo de cinco anos para o funcionamento do registro eletrônico. Transcorreu-se, todavia, in albis, o termo legal estipulado para a implantação do registro eletrônico, sob o entendimento, equivocado, de que havia necessidade de edição de normas complementares que padronizassem o sistema, atendendo, ademais, ao item interoperabilidade, quando o legislador deixou claro que o prazo seria contado “a partir da publicação desta lei” (parte final do art. 39). 8
Na realidade, o corpo de registradores de imóveis poderia, via autorregulação, padronizar as especificações técnicas dos sistemas a serem utilizados, desenvolvê-los e colocá-los em pleno funcionamento, atendendo ao comando legal, como tive a oportunidade de defender no XL Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, realizado de 23 a 27 de setembro de 2013, em Foz do Iguaçu (PR). Nessa linha de coercitividade, em 2015, a Corregedoria Nacional de Justiça baixou o Provimento nº 47, de 18 de junho de 2015, fixando o prazo de 360 dias para o funcionamento de centrais de serviços eletrônicos compartilhados em todos os estados e no Distrito Federal, a fim de realizar “o intercâmbio de informações entre os ofícios de Registro de Imóveis, o Poder Judiciário, a administração pública e o público em geral, para eficácia e celeridade da prestação jurisdicional e do serviço público”. 8
A verdade é que desde então tínhamos o arcabouço jurídico para implantar o Registro de Imóveis eletrônico, bem como as tecnologias especificadas e publicadas pelo Instituto de Tecnologia da Informação – ITI, com o qual o IRIB firmou Acordo de Cooperação Técnica, desde 2006. Mas, também, podemos dizer que a sociedade brasileira está com a paciência esgotada porque até esta data os registradores não implantaram o Registro de Imóveis eletrônico. Em palestras anteriores sempre apresentei um slide com a imagem de uma tela de computador, com a seguinte pergunta: O que acontecerá se não implantarmos o registro eletrônico? Já temos uma experiência pretérita com o registro da emissão de debêntures. Em determinado momento Governo e Mercado simplesmente disseram que as debêntures não seriam mais registradas no Registro de Imóveis porque era muito demorado e caro, atribuindo competência para a CVM – Comissão de Valores Imobiliários. Por incrível que pareça, a Lei 6.015, de 1973, mantém, tanto no art. 167, como no art. 178, dispositivos onde constam que a emissão de debêntures é registrada no Livro 3 do Registro de Imóveis. Por que o legislador deixou essa lembrança gráfica na Lei nº 6.015? Parece-me que o legislador deixou essa lembrança para que os registradores não se esqueçam de que essa competência foi perdida por incompetência em entender que havia necessidade de um novo modelo de registro. Com efeito, os últimos diplomas legais priorizam os registros de novos títulos em sistemas de registro e de liquidação financeira, administrados por entidades autorizadas pelo Banco Central do Brasil e pela CVM, mesmo os títulos originados de direitos imobiliários registrados no Registro de Imóveis e, mesmo quando representam a mudança da titularidade de domínio direitos reais, que ocorre extra registro. Cabe uma reflexão: Por que o legislador age desse modo mesmo sendo o Registro de Imóveis um patrimô-
Norma Cogente (obrigatória) é aquela que constrange a quem se aplica, tornando seu cumprimento obrigatório de maneira coercitiva; não pode ser afastada pela vontade das partes.
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nio jurídico nacional? Realmente, o Registro de Imóveis brasileiro está ancorado em um conjunto legislativo sólido e escoimado no tempo de imperfeições, ilegalidades e inconstitucionalidades. É formado por um corpo de profissionais especializados em Direito Imobiliário, selecionados por concurso público. O quesito “segurança jurídica” conta com pacífica jurisprudência e sólida doutrina a respeito dos principais direitos imobiliários registráveis. Ademais, os cartórios constituem a maior rede jurídica de atendimento aos cidadãos e empresas do país. Então, por que essa ojeriza? É de ser relembrado que em 22/10/2008, o Poder Executivo Federal editou um decreto sem número, publicado no Diário Oficial da União do dia seguinte, criando o Grupo de Trabalho Interministerial sobre os Serviços Notariais e de Registro, legitimado pela Portaria 0150, de 4 fevereiro de 2009, do Ministro da Justiça, com o objetivo de revisar a legislação atual e elaborar propostas para o aperfeiçoamento e a modernização dos serviços. Ao que consta, esse GT, formado por notáveis, depois de vários estudos, audiências públicas, visitas aos sistemas de Espanha e Portugal, concluiu pela mudança do sistema de delegação por concurso público para pessoa física, para concessão administrativa de um lote de serventias, por licitação para pessoa jurídica. Essa proposta não prosseguiu, porém, serve como sinalização estratégica para que a atividade seja repensada, sob a iluminação da Economia Digital. É preciso perquirir o porquê dessas conjecturas. Pergunta-se: A necessidade de contextualização da atividade registral é maior que sua credibilidade institucional, a ponto de anular ou minimizar o valor desta última? Parece-me que há um dever de casa a ser feito com a máxima urgência pelos oficiais de registro, afim de que sejam alcançados patamares de excelência na prestação de serviços registrais online. Esse é um desafio real que deve estar na primeira página da agenda dos registradores capitaneados por suas entidades representativas, bem como dos reguladores da atividade – leia-se Tribunais de Justiça, em instâncias dos Estados e do Distrito Federal, e Conselho Nacional de Justiça (CNJ), na instância federal. O primeiro passo nesse caminho é acelerar a
transformação digital dos serviços, colocando os usuários do serviço público delegado (cidadãos e empresas) como o centro das atenções da atividade registral, e redesenhar estruturas, processos e sistemas, a partir dessa perspectiva, buscando a simplificação e a oferta de serviços por meio de canais digitais inteligentes. A economia digital tem transformado radicalmente as formas como as pessoas, empresas e países se relacionam, e não pausará à espera da migração dos cartórios de Registro de Imóveis para esse modelo.
Momento decisivo para implantação do SREI – Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico Os estudos para especificação do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (SREI) estão concluídos e foram publicados pela Corregedoria Nacional de Justiça no ano de 2014. É que entre 2009 e 2012 o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) desenvolveu o Projeto SREI – Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (SREI), para especificação técnica do sistema. O projeto SREI foi realizado no âmbito da presidência do CNJ, mas os estudos foram assimilados e publicados pela Corregedoria Nacional de Justiça em 2014, como “Recomendação Corregedoria nº 14/2014”. Destaca-se que embora a Lei nº 11.977/2009 tenha imposto aos oficiais de registro a obrigação de implantar o registro eletrônico, todavia, não disciplinou a forma como eles se organizariam para implantar o registro eletrônico. Essa lacuna foi solucionada com a publicação da Medida Provisória nº 759/2016, convertida na Lei nº 13.465/2017, que autorizou a criação do Operador Nacional do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico – ONR. Essa lei vinculou todos os cartórios de Registro de Imóveis do País (Art. 76, § 5º) ao ONR, a fim de que o Registro de Imóveis eletrônico seja implantado em todo o território nacional, como um serviço padronizado e interoperável, migrando, assim, de um sistema analógico, para um sistema digital. Há uma nova classe de disjuntores digitais que está transformando os negócios e o futuro das orga-
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PAINEL nizações. A história das corporações comprova que as atividades que são excluídas, porque inadequadas com um mundo hiperconectado, nunca mais voltarão a compor o mercado. Poder-se-á dizer que temos o suporte tecnológico e normativo para implementação do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (SREI), ante a legislação em vigor e o conjunto de especificações técnicas que integram a Recomendação CNJ 14, de 2014. Em que consiste esse Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (SREI)? A Recomendação CNJ 14/2014 diz que o Registro de Imóveis eletrônico pode ser entendido como um sistema distribuído, sendo estruturado em duas camadas principais: [1º] a camada dos Sistemas dos Cartórios (SC); e, [2º] a camada do Sistema de Atendimento Eletrônico Compartilhado (SAEC). O Sistema do Cartório (SC) corresponde ao sistema existente em cada cartório de Registro de Imóveis. É responsável por automatizar as atividades internas dos cartórios, manter o registro eletrônico, auxiliar no atendimento de solicitações de usuários presenciais, realizar o atendimento de solicitações eletrônicas encaminhadas através da SAEC e interagir com outras entidades. Penso que o primeiro módulo do Sistema do Cartório (SC) deveria ser a organização da fila. O SC deve trazer nativamente a organização da fila para emissão de senha e controle do art. 11 da Lei 6.015? O SC, na forma como estudada por especialistas
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em direito e em tecnologia, prevê a recepção de documentos eletrônicos, sua importação para o sistema e processamento, bem como a desmaterialização dos livros, certidões e informações registrais. Cerca de 80% das especificações técnicas do SREI constantes da Recomendação CNJ 14/2014 dizem respeito apenas aos Sistemas de Cartórios. Isso significa que a camada Sistemas dos Cartórios (SC) é a camada de maior importância na implementação do SREI.
Sistemas dos Cartórios (SC) e Sistema de Atendimento Eletrônico Compartilhado (SAEC) Como visto, a camada do SC tem por finalidade informatizar os processos administrativos internos da serventia (gestão e procedimentos registrais), tendo em vista maior agilidade e dinamicidade dos recursos humanos que ficarão centrados na qualificação registral, evitando-se o retrabalho de digitação. Isso implica implementar livros eletrônicos, matrículas eletrônicas, certidões eletrônicas, gerar estatísticas e informações eletrônicas capazes de orientar a tomada de decisões corporativas e políticas públicas. Implica, ainda, criar repositórios confiáveis de dados e documentos eletrônicos, locais e externos, com requisitos e características técnicas capazes de aferir confiabilidade, integridade e segurança aos objetos digitais. Embora a serventia seja o ambiente primário e natural para hospedagem dos dados eletrônicos, com
Perspectivas e desafios do registro eletrônico. ONR.
o aumento da produção de documentos eletrônicos é primordial o investimento em ambiente externo de infraestrutura tecnológica adequado para garantia de armazenamento, preservação e acesso, a fim de garantir plano de continuidade de negócios, sob controle do Oficial Registrador e da Corregedoria Geral da Justiça, porque a CGJ vai aplicar a pena de perda da delegação e o oficial, irado, pode querer apagar todos os dados, o que lhe custará, no máximo, um processo e o pagamento de algumas cestas básicas, o que seria a desmoralização do registro imobiliário no Brasil. O Sistema do Cartório pode ser implantado utilizando uma das seguintes alternativas: [1º] sistema totalmente local; e, [2º] sistema hospedado em um provedor conforme Recomendação 14/2014 da Corregedoria Nacional de Justiça (SREI Parte 1 – Introdução ao Sistema de Registro Eletrônico Imobiliário v1.0.r.7 ,3.4., p.18.) Curial que uma pequena serventia não precisa ter um sistema totalmente local, ante a falta de infraestrutura, de recursos humanos, e de proteção aos dados, para evitar invasão e sequestro de dados, podendo acessar Sistema de Cartório (SC), customizado para essa serventia, hospedado na nuvem, com as vantagens inerentes. A camada do Sistema de Atendimento Eletrônico Compartilhado (SAEC) começou a ser desenvolvida no estado de São Paulo em 2005, por meio da associação dos registradores desse estado, inicialmente, com o objetivo de promover a interação dos Registros de Imóveis com o Poder Judiciário, Administração Pública, bancos, empresas e cidadãos na protocolização eletrônica de títulos e no acesso às certidões e informações registrais. O SREI foi concebido de forma que a sociedade enxergue a serventia de Registro de Imóveis como sendo um serviço único, porém operado de forma distribuída pelos diversos cartórios. A obrigatoriedade do oferecimento de serviços eletrônicos advinda da Lei 11.977/2009 e a popularização do acesso à internet abre a oportunidade de estabelecimento de ponto único de contato para oferecimento de serviços eletrônicos imobiliários, conforme preconizado na Recomendação CNJ 14/2014: “O Sistema de Atendimento Eletrônico Compar-
tilhado (SAEC) disponibiliza um ponto único de contato para solicitação de serviços na forma eletrônica para qualquer cartório do Brasil. Atende a solicitantes via internet, realiza troca de informações com entidades externas e consolida dados estatísticos sobre dados e operação dos cartórios”. De fato, o usuário não pode ser obrigado a ingressar em diferentes ambientes da internet para acessar o mesmo serviço público. Ademais, como sistema, o Registro de Imóveis brasileiro é uno. A sua operacionalidade é que é fracionada, por meio das diversas unidades de serviços denominadas cartórios ou ofícios, onde os dados registrais estão locados. Nesse ponto, o Provimento CNJ 47 foi absolutamente perfeito ao disciplinar a forma de prestação de serviços registrais pela internet, determinando que as centrais estaduais prestem os mesmos serviços; que sejam interoperáveis entre si; e que observem as especificações técnicas do modelo de sistema digital para implantação de sistema de Registro de Imóveis eletrônico, segundo a citada Recomendação CNJ 14/2014. Todos os que são gestores de sistemas das centrais de serviços compartilhados e de empresas que prestam serviços para cartórios devem atentar para a Recomendação CNJ 14/2014, sob pena de seus sistemas não serem recepcionados pelo SREI.
Premissas para o acesso centralizado de dados descentralizados Por imperativo legal os dados devem permanecer alocados em suas bases primárias (cartórios), sob a guarda e responsabilidade exclusivas dos respectivos oficiais, que também respondem pela sua ordem e conservação. A plataforma destinada ao Serviço de Atendimento Compartilhado (SAEC) deve ser apenas um barramento integrador de dados de todas as serventias do território nacional, cujos dados poderão estar na mesma infraestrutura, ou serão remotamente acessados em servidores da serventia locados em data center diverso, via webservice. As centrais de serviços eletrônicos dos Estados e
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PAINEL do Distrito Federal deverão trabalhar em conjunto, ou seja, interoperar e prestar o mesmo serviço de modo a garantir que pessoas, organizações e sistemas computacionais interajam para trocar informações de maneira eficaz e eficiente, a partir de uma única central, ou seja, entrou em uma, entrou em todas. Para propiciar a operação segura do sistema e a interoperabilidade de dados e documentos, além da longevidade dos documentos eletrônicos, os softwares destinados ao SREI deverão atender um conjunto de requisitos técnicos e operacionais de TI, que serão definidos em Instruções Técnicas, a partir dos estudos especificados na Recomendação CNJ 14/2014, que deverão ser revistos, ampliados e atualizados. É nesse quesito que o Operador Nacional do Registro de Imóveis Eletrônico (ONR) se apresenta como uma ferramenta que será manejada pelos oficiais de Registro de Imóveis para normalização do SREI, a fim de enfrentar o desafio da interoperabilidade entre os diferentes Sistemas de Cartórios (SC). A interoperabilidade entre os Sistemas dos Cartórios (SC), o Sistema de Atendimento Eletrônico Compartilhado (SAEC), e as Centrais de Serviços Eletrônicos Compartilhados dos Estados e do Distrito Federal, e destas entre si, exige a utilização de soluções informáticas técnicas harmonizadas e standards, conformes com a arquitetura e-PING (Padrões de Interoperabilidade de Governo Eletrônico). A arquitetura e-PING define um conjunto mínimo de premissas, políticas e especificações técnicas que regulamentam a utilização da Tecnologia de Informação e Comunicação (TIC) no governo federal, estabelecendo as condições de interação com os demais poderes e esferas de governo e com a sociedade em geral. Permite racionalizar investimentos em TIC por meio de compartilhamento, reuso e intercâmbio de recursos tecnológicos. “A normalização da utilização do Sistema de Registro Eletrônico Imobiliário é fundamental para
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propiciar a operação segura do sistema, a interoperabilidade de dados e documentos e a longevidade dos documentos”9 Na política preconizada pelo ONR em seus estatutos, as Centrais de Serviços Compartilhados são prestigiadas e necessárias à implantação e manutenção do Registro de Imóveis eletrônico. Obviamente, num país de dimensões continentais como o Brasil, não seria crível se falar em operação nacional de registro de imóveis eletrônico, sem o necessário concurso das centrais de serviços e das entidades estaduais. Tenho a esperança de que este evento do IRIB sirva para aclarar alguns conceitos que estão poluindo o ambiente de discussão da criação do ONR, conforme veremos adiante.
Normalização: envolve tanto os requisitos técnicos aplicáveis à operação dos sistemas como a forma de operação desse software Dispõe o art. 76, da Lei 13.465, de 11/7/2017, que “O Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (SREI) será implementado e operado, em âmbito nacional, pelo Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (ONR)”. Essa disposição legal recuperou os objetivos do Projeto SREI, então desenvolvido pela Presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), quais sejam: otimizar a utilização da Tecnologia da Informação e promover a interconexão dos Registros de Imóveis do país. De conformidade com a Recomendação 14/2014, a normalização do SREI deve envolver tanto os requisitos técnicos aplicáveis à operação dos sistemas de softwares, quanto a forma de operação desses softwares. O ONR se propõe a cumprir requisitos para o funcionamento do SREI, na adoção de Governança de TI10, inclusão digital de serventias registrais de pequeno
ecomendação 14/2014, da Corregedoria Nacional de Justiça – SREI Parte 1 – Introdução ao Sistema de Registro Eletrônico Imobiliário v1.0.r.7, R 1, p.7.
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Perspectivas e desafios do registro eletrônico. ONR.
porte, e em promover um barramento nacional de integração, interoperabilidade e de acesso às bases de dados das serventias, que, repita-se, devem permanecer incólumes em suas bases primárias, sob a cura do oficial de Registro de Imóveis. O foco de toda oposição à criação do ONR tem sido a notória confusão de conceitos, entre normatização e normalização. Nem seria necessário se dizer que há compreensão plena de que normatização corresponde à edição das normas de direito formal do SREI, que são expedidas em âmbito federal pela Corregedoria Nacional de Justiça e, em âmbito estadual, pelas Corregedorias da Justiça dos Estados e do Distrito Federal, e pelos Juízes Corregedores locais. A normalização diz respeito tão somente à elaboração, difusão e implementação de normas de tecnologia, visando a solução ou prevenção de problemas, com a cooperação de todos os oficiais de Registro de Imóveis do Brasil (Lei 13.465/2017, Art. 76, § 5º). No estabelecimento dessas regras recorre-se à tecnologia como o instrumento para estabelecer, de forma objetiva e neutra, as condições que possibilitem que o produto, projeto, processo, sistema, pessoa, bem ou serviço atendam às finalidades a que se destinam, sem se esquecer dos aspectos de segurança. O que o ONR se propõe a fazer é apenas a correta e necessária conciliação entre a linguagem jurídica aplicável ao SREI (normatização), com a correspondente linguagem tecnológico-operacional (normalização), a fim de propiciar a operação segura do sistema, a interoperabilidade de dados e documentos, a longevidade dos documentos, e o acesso e tráfego de documentos eletrônicos com todas as serventias do país.
Premissas para a edição de instruções técnicas (normalização) pelo ONR Número 1: As Instruções Técnicas são delimitadas aos requisitos técnicos aplicáveis à operação dos siste10
mas informáticos. Não são, pois, normas de Direito, mas pressupostos da interoperabilidade do SREI. Número 2: Conceitualmente, são consideradas atividades típicas de normalização a imputação de especificações que tenham como objetivo estabelecer critérios padronizados de dados informáticos. Número 3: As Instruções Técnicas deverão atender aos requisitos da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil, à arquitetura e-PING (Padrões de Interoperabilidade de Governo Eletrônico), aos termos da Recomendação CNJ 14/2014, e de outros atos administrativos que forem baixados pela Corregedoria Nacional de Justiça. O grande desafio para implantação do registro de imóveis eletrônico em caráter nacional é a inclusão de pequenas serventias no Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (SREI). Afortunadamente, o Grupo de Trabalho encarregado pelo CNJ para desenvolver esses estudos, se valeu de um órgão técnico de grande envergadura em nosso país – o Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia – CENSIPAM, sucessor do SIVAM, que foi consultado sobre as questões ligadas a pontos escuros, sem acesso à internet, em algumas localidades do território nacional, notadamente em áreas da Amazônia Legal. Conforme minuta do Estatuto do ONR apresentada à E. Corregedoria Nacional de Justiça pela ANOREG-BR e o IRIB, a interligação das serventias será feita por meio da respectiva central estadual de serviços compartilhados, ou diretamente da unidade de Registro de Imóveis com a infraestrutura do ONR, onde não houver central de serviços em operação. Por fim, agradeço a todos pela paciência de me ouvirem e deixo como reflexão a seguinte frase: “Computadores e softwares não fazem funcionar ou fracassar o Registro de Imóveis. O elemento-chave é o resultado da equação pessoas + princípios jurídicos”.
“Governança de TI é um conjunto de práticas, padrões e relacionamentos estruturados, assumidos por executivos, gestores, técnicos e usuários de TI de uma organização, com a finalidade de garantir controles efetivos, ampliar os processos de segurança, minimizar os riscos, ampliar o desempenho, otimizar a aplicação de recursos, reduzir os custos, suportar as melhores decisões e consequentemente alinhar TI aos negócios” (João R. Peres, prof. GV).
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PAINEL
Perspectivas e desafios do registro eletrônico. ONR. Luís Paulo Aliende Ribeiro – Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
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Há espaço para a autorregulação profissional. Isso está sendo proposto de forma regular e legítima e tem que ser bem visto com coragem, e rapidamente, porque a paciência do Brasil pode estar acabando.
A
o nos reunirmos para redigir o Provimento 612/1998, que foi a semente dos concursos públicos, vivíamos um momento crucial de mudança de paradigma. Hoje vivemos uma situação semelhante, porém a mudança de paradigma vem com atraso, já devia ter acontecido. Essa mudança de paradigma pode vir a ser atropelada, se não se realizar um trabalho bem feito de atendimento ao usuário. O texto que eu trazia para a exposição de hoje, na
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verdade, está escrito desde 2008. Tudo a respeito do que foi escrito e proposto ao Executivo na edição da MP 759, em especial com relação ao ONR, foi escrito na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e levado para verificação e aprovação de uma banca de Direito Administrativo. Esse trabalho tinha o objetivo de demonstrar a coerência que existe na Constituição, no art. 236, e na Lei 8.935/1994, a Lei dos Notários e Registradores, que
Perspectivas e desafios do registro eletrônico. ONR.
delega um serviço público para o exercício privado. Essa delegação especial tem uma regulação feita pelo Poder Judiciário, e em âmbito nacional, a Corregedoria Nacional de Justiça. Isso é o que chamo de Regulação da Função Pública Notarial e de Registro. Eu costumo dizer que quando escrevi isso algo me deixou um pouco entristecido porque eu achei que estava trazendo algo novo, mas pouca gente leu. No final desse trabalho há o que chamo de autorregulação privada da atividade notarial e de registro. O tema básico é a regulação estatal feita por determinação constitucional que entendo que incumbe às corregedorias gerais e nacional. É uma regulação estatal vertical. Quando se compõe o tipo regulatório – e nisso eu busco os trabalhos de Vital Moreira – existe uma regulação vertical com autoridade e regramento. Costumo defender que a atividade notarial de registro é tão peculiar que, além da regulação vertical, depende da autorregulação profissional. Ou seja, autorregulação profissional – assim como a regulação estatal – é uma regulação externa à própria atividade, feita pelos próprios agentes regulados que se reúnem, consensualmente ou por força de uma determinação impositiva legal, para exercer a regulação de si próprios. Vital Moreira defende que autorregulação profissional há de ser feita pelas entidades de classe representativas dos profissionais, neste caso, o Instituto de Protestos, o Colégio Notarial, a Arpen, o IRIB e o Instituto de Registro de Títulos e Documentos. Cada uma dessas entidades trata do que é peculiar à sua especificidade. O Provimento 15 trouxe as centrais estaduais, mas faltava a unificação, uma coordenação nacional. A parte complicada para a autorregulação do serviço de Registro de Imóveis não está no SAEC – Serviço de Atendimento Eletrônico Compartilhado previsto na documentação técnica do SREI, mas na difusão de parâmetros uniformes do que vai ser o serviço eletrônico de imóveis, algo que será construído dia a dia, com muito trabalho e com base na figura do registrador. Esse trabalho vem sendo feito há muitos anos e foi incorporado numa Medida Provisória que resolve um
dos maiores problemas da autorregulação profissional, a questão de ser realizada por um único ente regulador. Há um certo monopólio da autorregulação e isso é necessário para o sistema. A lei escolheu o IRIB para fazer isso e nós cumprimos a lei. Mas poderia ser outro ente, por exemplo, o Instituto de Registro de Títulos e Documentos, o Instituto de Protestos ou o Colégio Notarial? Alguma dessas entidades representa o registrador imobiliário brasileiro mais do que o IRIB? Parece-me que não. Visto de fora, com imparcialidade, sempre entendi que a entidade de caráter nacional que melhor representa os registradores de imóveis é o IRIB. O regramento todo para a implementação dos serviços está na Constituição. O serviço é público, a função é pública, mas o exercício é privado. Quem deve fazer isso são as entidades representativas de classe. Não vejo nada de estranho nas disposições da Medida Provisória 759, que estabelece que será criado uma determinada pessoa jurídica. Na forma como está colocado pela MP, em que tudo vai ser submetido a uma fiscalização vertical do Conselho Nacional de Justiça e das corregedorias, qual a diferença entre o SAEC e as centrais, como por exemplo, a CENSEC, administrada pelo CNB? Eu não consigo ver muita diferença. Peço a paciência dos senhores para ler dois ou três trechos do que escrevi há dez anos. A minha função principal neste painel não é trazer as dificuldades e as questões técnicas relativas ao Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico. O que eu gostaria de deixar expresso é um registro de que o Direito acolhe essa questão como colocada na Medida Provisória 759.
Autorregulação profissional privada: forma legítima de promover a passagem para o meio eletrônico e um avanço importantíssimo Eu busquei o interessante livro do Vital Moreira, Autorregulação Profissional e Administração Pública. A regulação desempenhada pelo Judiciário em face das atividades notariais e registrais é, como toda regulação estatal, uma heterorregulação. É exercida
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PAINEL por uma instância estatal sobre agentes prestadores de um serviço público. Vital Moreira desenvolve o tema da autorregulação profissional em face da regulação da autonomia. Lembra que a distinção entre organismos reguladores e sujeitos regulados é essencial para a regulação pública, que pode se dar em virtude da administração direta ou por intermédio de instâncias públicas de regulação mais ou menos independentes, como as agências reguladoras.
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O PROVIMENTO 15 TROUXE AS CENTRAIS ESTADUAIS, MAS FALTAVA A UNIFICAÇÃO, UMA COORDENAÇÃO NACIONAL. A PARTE COMPLICADA PARA A AUTORREGULAÇÃO DO SERVIÇO DE REGISTRO DE IMÓVEIS NÃO ESTÁ NO SAEC, MAS NA DIFUSÃO DE PARÂMETROS UNIFORMES DO QUE VAI SER O SERVIÇO ELETRÔNICO DE IMÓVEIS.
Os regulados, entretanto, podem ser também os reguladores, caso em que a regulação se apresenta como autorregulação. Efetivamente, essa atuação se dá por esquemas organizatórios adequados, necessariamente por meio de decisões ou acordos estabelecidos por e entre as suas organizações associativas ou representativas.
A autorregulação, que na sua definição mais elementar é a regulação levada a cabo pelos próprios interessados, caracteriza-se, conforme Vital Moreira, por três traços: é uma forma de regulação e não a ausência dela, seria uma espécie do gênero regulação; uma forma de regulação coletiva que envolve uma organização coletiva e que estabelece e impõe aos seus membros certas regras e certa disciplina. Não existe autorregulação individual. Isso é autocontenção, uma forma de regulação não estatal, autorregulação de competência dos próprios agentes do setor, simultaneamente autores e destinatários da regulação. Não é menos artificial que a regulação estatal e também implica na formulação de normas, e sua implementação, de modo a influenciar, condicionar, proibir, constranger a atividade dos agentes sujeitos a essa forma de regulação. Não é exclusiva da ordem econômica e pode existir em outros setores da regulação social, o que inclui os serviços profissionais independentemente de sua natureza
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pública ou privada. O que se nota a partir do modo como se vinculam os interessados voluntários na autorregulação privada imposta por instância oficialmente reconhecida pelo Estado e dotada de estatuto e poderes públicos na autorregulação pública. Ambas podem funcionar como instâncias de autorregulação.
Vital Moreira adverte ainda que as associações com funções de autorregulação são também organizações de representação profissional, isto é, são grupos que têm por objetivo a defesa e a promoção dos interesses profissionais de seus membros, razão pela qual, em regra, prevalece o fim de representação sobre funções de regulação.
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Independentemente da adoção de formas mais simples ou mais complexas de organização, apresentam, em especial, quando oficialmente impostas ou reconhecidas, problemas organizatórios relativos. Há impossibilidade de que o Estado reconheça mais de uma instância autorregulatória, do que resulta a situação de monopólio da autorregulação. Da mesma forma que a regulação estatal, a autorregulação abrange a definição de normas e as ações correspondentes à sua aplicação e cumprimento. As relações entre autorregulação privada e autorregulação estatal são definidas pelo doutrinador português em três ordens: preempção, uma dispensa a outra; substituição, uma toma o lugar da outra; e adição, a primeira acresce à segunda. Nesse ponto Vital Moreira define que os sistemas regulatórios podem ser classificados segundo a repercussão das tarefas em duas coordenadas: uma vertical e uma horizontal. Com todas essas questões técnicas que fui buscar em Portugal, embora sejam completamente aplicáveis
Perspectivas e desafios do registro eletrônico. ONR.
no Brasil, defendi que as noções apresentadas permitiam, em 2008, verificar no Brasil a falta de uma organização privada de notários e registradores que exerça autorregulação privada. Temos em relação aos serviços notariais e de registro uma regulação forte, resultado natural da obrigação de garantia assumida pelo poder público ao estabelecer o exercício privado da função pública. Essa regulação estatal é imprescindível e não se sujeita à dispensa ou substituição em face da implantação de efetiva autorregulação privada das atividades notariais e de registro. Defendi que o que se apresentava viável e necessário, já naquela época, na regulação das atividades notariais e de registros, é um acréscimo de regulação, ou seja, a efetiva instituição de organismos de autorregulação que venham acrescer à regulação estatal para alcançar situações nas quais podem se apresentar mais eficientes. A efetiva instituição de uma legítima organização de autorregulação de notários – no caso, de registradores – para uma atuação conjunta e complementar à regulação estatal seria útil também para o fortalecimento institucional das notas e dos registros. Quis fazer essa leitura para demonstrar que não estou inventando nada, que não estou trazendo uma ideia a partir da leitura da MP 759. Acredito piamente
que o que está colocado aqui e que diz que o ente regulador (§ 4º) é a Corregedoria Nacional de Justiça refere-se à regulação estatal vertical, àquela regulação que vai verificar, inclusive, se a entidade de classe escolhida está atuando para os fins necessários e de forma correta. Tanto é que o trabalho que foi apresentado à Corregedoria pela entidade de classe definida passa por uma avaliação do ente regulador estatal. Em poucas palavras, entendo que o pessoal que fez essas proposições na medida provisória escolheu avançar brutalmente para o aperfeiçoamento das notas e dos registros. Escolheu uma forma bastante legítima de promover a passagem para o meio eletrônico, a autorregulação profissional privada. É um avanço importantíssimo no paradigma das notas e dos registros. Quando escrevi esse texto tinha o sonho de ver um sistema notarial e de registro equilibrado, fundado na Constituição e que pudesse oferecer, ao Brasil e aos usuários desse serviço público exercido em caráter privado, uma utilidade e uma segurança que são a razão da existência desses serviços. Há espaço para a autorregulação profissional. E isso está-lhes sendo proposto de forma regular e legítima. Isso tem que ser bem visto com coragem e com pressa porque a paciência do Brasil pode estar acabando.
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PAINEL
Vagas de garagem em condomínio edilício
Jéverson Luís Bottega – Oficial de Registro de Imóveis em São Lourenço do Sul (RS) e membro da Comissão do Pensamento Registral Imobiliário
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O tema é complexo por ser extremamente técnico. Sua compreensão exige o conhecimento da legislação e, em especial, da NBR 12.721. Criada pela ABNT, as Normas Brasileiras visam aumentar a segurança do processo e a qualidade final do produto. A NBR 12.721 determina as condições técnicas e econômicas nos projetos de condomínios, para venda total ou parcial, e estabelece critérios para a descrição das unidades a serem vendidas. O objetivo dessa norma é fixar o procedimento pelo qual são calculadas as áreas totais dos edifícios e as áreas das unidades autônomas que as compõem.
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Condomínio Edilício
Introdução
O
s temas correlatos ao instituto do Condomínio Edilício são complexos e, não raro, geram mais de uma corrente doutrinária. O regime jurídico das vagas de garagem não foge à regra.
Em que pese o reconhecimento de que o estudo do direito relativo às vagas de garagem seja bastante técnico, a compreensão adequada da base teórica que lhe dá suporte é fundamental para a correta aplicação das normas técnicas que lhes são próprias. Nesse contexto, no presente estudo, propõe-se a análise do regime jurídico das vagas de garagem, no âmbito de Condomínio Edilício, em duas partes. Inicialmente, o estudo será voltado à base teórica do direito relativo às vagas de garagem, com o objetivo de identificar as suas principais características, espécies, naturezas jurídicas e implicações no direito material. Posteriormente, a finalidade do estudo será identificar os aspectos registrais relacionados à constituição e à transmissão das vagas de garagem1.
I. Base teórica I.1 Conceito “Vaga de garagem”2 ou “abrigo para veículo”3 é o espaço destinado à guarda de veículos4, coberto ou descoberto, cujas espécie e natureza jurídica são defi-
nidas no instrumento de instituição, ou pré-instituição, da propriedade horizontal. As regras quanto ao cálculo das áreas e frações ideais das vagas de garagem foram definidas pela Associação Brasileira de Normas Técnicas, que, seguindo o comando previsto no artigo 53, da Lei n° 4.591/1964, editou a Norma Brasileira n° 12.7215.
I.2 Espécies de vaga de garagem6 e seu regramento técnico-jurídico básico I.2.1 V aga de garagem como parte de uso comum (artigo 1.331, § 2º, do CCB) Segundo a Norma Brasileira n° 12.721 (item 3.7.2.2.3.), a vaga de garagem de uso comum “é a área coberta e/ou descoberta de estacionamento comum e indeterminado de veículos, demarcada e identificada em projeto tão somente para efeitos de quantificação e disponibilidade”. Como parte de uso comum, o instrumento de instituição da propriedade horizontal não vincula a vaga de garagem a determinada unidade autônoma, motivo pelo qual esta espécie é tratada, tecnicamente, como área de uso comum de divisão proporcional7. Nessa espécie, como a vaga de garagem é parte de propriedade comum, há divisão de uso entre os condôminos, e o direito de usar a vaga de garagem decorre do direito de propriedade da unidade autônoma. Em razão disso, essa espécie não possui matrícula pró-
1
O que se diz sobre vaga de garagem vale para os depósitos construídos em edifício de apartamentos.
2
Terminologia usada na ABNT NBR n°12.721.
3
No Código Civil Brasileiro, artigos 1.331, § 1º e 1.338, as vagas de garagem são denominadas de “abrigo para veículos”.
4
FRANCO, J. Nascimento. Garagem. Enciclopédia Saraiva do Direito. Volume 39. São Paulo: Saraiva, 1977. p. 310.
5
Norma Brasileira n° 12.721 visa atender ao que foi prescrito à ABNT pela Lei Federal nº 4.591/1964 e, segundo o disposto no item 1.2, “aplicaA se aos edifícios com unidades autônomas dispostas em pavimentos, conjuntos de residências unifamiliares isoladas ou geminadas, conjunto de edificações que sejam objeto de incorporação imobiliária, bem como as edificações que, mesmo não tendo sido incorporadas na forma da Lei nº 4.591/1964, Título II, submetam-se posteriormente à forma condominial disposta na legislação aplicável para perfeita uniformização dos procedimentos que regem as disposições do condomínio edilício”.
6
ONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Tratado de direito predial. Volume II. 2. ed. Rio de Janeiro: José Konfino, 1953. p. 176; FRANCO, P J. Nascimento. Garagem. Enciclopédia Saraiva do Direito. Volume 39. São Paulo: Saraiva, 1977. p. 310.; SILVA FILHO, Elvino. Questões de condomínio no registro de imóveis. São Paulo: Malheiros, 1999.
7
Segundo a NBR 12.721 (item 3.7.2.3), a área de uso comum é a “área coberta e descoberta situada nos diversos pavimentos da edificação e fora dos limites de uso privativa, que pode ser utilizada em comum por todos ou por parte dos titulares de direito das unidades autônomas”.
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PAINEL pria e as áreas a ela destinadas não são computadas no cálculo das frações ideais das unidades autônomas. Na NBR n° 12.721, a vaga de garagem de uso comum integrará a soma da área de uso comum de divisão proporcional real total, prevista na coluna 358, do quadro II9. As normas de uso da vaga de garagem de uso comum são previstas, em regra, na convenção de condomínio, e não no instrumento de instituição da propriedade horizontal, que se limitará a descrever a vaga de garagem existente no empreendimento. Cabe destacar, entretanto, que, se a vaga de garagem de uso comum for atribuída, por decisão da assembleia geral, ao uso exclusivo de um ou de alguns condôminos, as despesas que o uso exclusivo da vaga gerar devem ser suportadas pelos condôminos beneficiados10.
I.2.2 Vaga de garagem como unidade autônoma (artigo 1.331, § 1º, do CCB) Segundo a Norma Brasileira n° 12.721 (item 3.7.2.2.2.), a vaga de garagem como unidade autônoma é a “área coberta e/ou descoberta de estacionamento privativo de veículo automotor, demarcada
e identificada em projeto arquitetônico, com acesso que independe da ocupação das demais vagas consideradas unidades autônomas ou a outras vagas de uso comum e indeterminado”, e que, a critério do empreendedor, “será considerada unidade autônoma, com atribuição de fração ideal própria no terreno e partes comuns do edifício”. Nessa hipótese, a vaga de garagem é parte de propriedade exclusiva, utilizada de forma independente entre os condôminos. Para ser unidade autônoma11, a vaga de garagem deve atender ao seguinte12: a) o projeto de construção (e, se já for o caso, o habite-se) e o instrumento de instituição da propriedade horizontal devem prever que a vaga de garagem é unidade autônoma; b) a vaga de garagem deve ter acesso próprio à via pública; c) à vaga de garagem deve ser atribuída uma fração ideal13 no terreno e nas coisas comuns do edifício; d) a descrição da vaga de garagem, no instrumento de instituição da propriedade horizontal, deve aten-
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Se a vaga de garagem for coberta, a área a ela correspondente será indicada na coluna 32 do quadro II da NBR n° 12.721. Se, entretanto, for descoberta, a área correspondente à vaga será indicada na coluna 33 do mesmo quadro. A soma das colunas 32 e 33 forma a coluna 35 do quadro II da NBR n° 12.721.
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Considerando que o quadro IV-B da NBR n° 12.721, utilizado, em regra, na qualificação registral dos instrumentos de instituição da propriedade horizontal, não contém a discriminação das áreas de uso comum (de divisão não proporcional e de divisão proporcional), entende-se que o quadro II, destinado ao cálculo das áreas das unidades, permite que as disposições relativas ao empreendimento e as suas unidades autônomas sejam melhor compreendidas.
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Conselho da Justiça Federal, na III Jornada de Direito Civil, editou o enunciado número 247 com o seguinte teor: “Art. 1.331: No condomínio O edilício é possível a utilização exclusiva de área “comum” que, pelas próprias características da edificação, não se preste ao “uso comum dos demais condôminos” (destaque nosso). A diretiva prevista no enunciado é complementada e ao mesmo tempo complementa o disposto no artigo 1.340, do CCB, que prevê que “as despesas relativas a partes comuns de uso exclusivo de um condômino, ou de alguns deles, incumbem a quem delas se serve”.
11
NBR n° 12.721 (item 3.6.) define unidade autônoma como “parte da edificação vinculada a uma fração ideal de terreno e coisas comuns, A sujeita às limitações da lei, constituída de dependências e instalações de uso privativo e de parcela das dependências e instalações de uso comum da edificação, destinada a fins residenciais ou não, assinalada por designação especial numérica ou alfabética, para efeitos de identificação e discriminação”.
12
SILVA FILHO, Elvino. Questões de condomínio no registro de imóveis. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 32.
13
NBR n° 12.721 (itens 3.13 e 3.14) define a fração ideal como a “fração expressa de forma decimal ou ordinária, que representa a parte ideal do A terreno e coisas de uso comum atribuídas à unidade autônoma, sendo parte inseparável desta”. Nos quadros que compõem a NBR n° 12.721, a fração ideal é representada pelo coeficiente de proporcionalidade, que é a “proporção entre a área equivalente em área de custo padrão total da unidade autônoma e a área equivalente em área de custo padrão global da edificação”. Por sua vez, o coeficiente de proporcionalidade (itens 5.8.2 “m”) é obtido dividindo-se os totais das áreas equivalentes de divisão não proporcional de cada unidade pela soma total das áreas de divisão não proporcional.
36
Condomínio Edilício
der ao princípio da especialidade dos direitos reais14;
ma, computada na área privativa.
e) à vaga individual ou coletiva (também conhecida como “garajão” ou “pavimento-garagem”) deve ser aberta matrícula própria.
Antes da análise específica de cada uma dessas modalidades, convém destacar os aspectos gerais da vaga de garagem como parte acessória da unidade autônoma.
Por ser unidade autônoma, à vaga de garagem são atribuídas todas as áreas (privativa, comum de divisão não proporcional, comum de divisão proporcional e total) e a fração ideal no terreno e nas partes comuns previstas no quadro II da NBR n° 12.721.
I.2.3 Vaga de garagem como parte acessória da unidade autônoma (artigos 1.339 do CCB. Derrogação dos §§ 1º e 2º, do artigo 2º, da Lei n° 4.59119/64) Em que pese o artigo 1.339, do CCB, não estabelecer o conceito de parte acessória, a sua leitura conjunta com as normas da NBR n° 12.721 permite concluir, no que diz respeito à vaga de garagem, pela existência de duas modalidades: a) vaga de garagem como parte acessória da unidade autônoma, computada na área de uso comum de divisão não proporcional, e b) vaga de garagem como parte acessória da unidade autôno-
14
Nessa espécie, não há matrícula própria para a vaga de garagem e a área a ela correspondente, ao contrário do que ocorre com a vaga de garagem de uso comum, integra o cálculo da fração ideal da unidade autônoma a qual está vinculada. Conforme NBR n° 12.721, nota “1”, do item 3.7.2., o responsável pelo cálculo deve informar a vinculação correspondente da parte acessória à principal, com suas respectivas áreas e a correspondente parcela na composição do coeficiente de proporcionalidade da unidade autônoma15. Por estar vinculada16 à unidade habitacional (apartamento, sala comercial, etc.) pela fração ideal, a vaga de garagem como parte acessória não possui autonomia em relação a esta17. Por outro lado, mesmo estando vinculada à unidade, a vaga, por ser parte acessória18 ,
perfeita descrição e caracterização das unidades autônomas no registro atende ao princípio de especialidade dos direitos reais, o qual exige A que se possa individualizar concretamente a coisa que constitui objeto do direito. Segundo Menezes Leitão, “o princípio da especialidade refere-nos que, para se poder constituir um direito real, as coisas corpóreas sobre que o mesmo incide têm que se encontrar determinadas, ter existência presente, e ser autónomas de outras coisas.” LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direitos Reais. 3ª edição. Coimbra: Almedina, 2012. p. 25. Ainda segundo a NBR n° 12.721, nota “2”, do item 3.7.2., a vinculação de área a uma unidade autônoma constitui-se em opção do empreendedor. Não havendo a vinculação explícita, os depósitos, vagas e demais áreas assemelhadas podem constituir uma unidade autônoma principal, desde que atendidos os requisitos legais de acesso direto e viabilidade de delimitação física e as respectivas frações ideais no solo e nas outras partes comuns, ou podem ainda compor as partes comuns da edificação.
15
16
o trabalho intitulado “Questões de condomínio no registro de imóveis” (São Paulo: Malheiros, 1999. p. 50), Elvino Silva Filho utiliza a N denominação vaga de garagem vinculada à unidade autônoma para se referir à vaga de garagem que não pode ser vendida separadamente da unidade. Segundo o citado autor, “a vaga de garagem será vinculada ao apartamento quando ela não puder, em hipótese alguma, ser alienada a qualquer outra pessoa, mesmo a outro condômino proprietário de unidade habitacional no mesmo edifício, por se tratar de um todo considerado incindível ex vi legis.” Em sentido oposto, Frederico Henrique Viegas de Lima, no trabalho cujo título é “As vagas de garagem” (Revista de Direito Imobiliário. Revista dos Tribunais, São Paulo, n.28/49, jul./dez.1991. p. 58), afirma que a vaga de garagem acessória sempre é vinculada e que a possibilidade de alienação encerra outra problemática, mas em que é prescindível a distinção entre a vaga ser vinculada ou não. Cumpre referir, entretanto, que a discussão foi travada na vigência do § 1º, do artigo 2º, da Lei n° 4.59119/64, que previa a hipótese de “vaga vinculada à unidade habitacional”. Contudo, considerando a derrogação do citado dispositivo legal pelos artigos 1.339 e 1.340, do CCB, considerando que o novo diploma legal não repetiu a nomenclatura do parágrafo derrogado do artigo 2º, da Lei 4.591/1964, e considerando que as regras gerais previstas nos §§ 1º e 2º, do artigo 1.331, e § 2º, do artigo 1.339, ambos do CCB, proíbem a alienação das vagas de garagem constituídas pelo regime de propriedade horizontal, neste estudo optou-se por não utilizar a expressão “vinculada” para designar espécie de vaga de garagem.
17
LOPES, Miguel Maria de Serpa. Tratado de Registros Públicos. Volume IV. 4. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1960. p. 288. Acessório: 1. Que não é fundamental; secundário. 2. Que se acrescenta a uma coisa, sem fazer parte integrante dela; suplementar, adicional. (...). FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário da língua portuguesa. 5. ed. Curitiba: Positivo, 2010. p. 33.
18
37
PAINEL não integra a unidade autônoma19. Vistos os aspectos gerais, passa-se à análise de cada uma das duas modalidades: a) vaga de garagem como parte acessória da unidade autônoma, computada na área de uso comum de divisão não proporcional: Segundo a NBR n° 12.721 (item 3.7.2.2.3.), a vaga de garagem de uso comum de divisão não proporcional configura-se quando o direito de uso de vaga(s) de garagem de uso comum é atribuído ao proprietário de determinada unidade autônoma. Nesse caso, a vaga é tratada como área de uso comum de divisão não proporcional20 e integra a soma da área de uso comum de divisão não proporcional real total prevista na coluna 2821, do quadro II da NBR. Ainda que tenha a denominação de área de uso comum, não há divisão de uso da vaga entre todos os condôminos, pois é parte de propriedade comum de uso exclusivo de um ou alguns deles (formando, assim, um condomínio pro diviso, que, excepcionalmente, é especificado na escrituração da matrícula da unidade autônoma a qual a vaga está vinculada). Nessa qualidade, a vaga é vinculada à unidade habitacional individualmente (uma vaga para uma unidade) ou coletivamente (uma vaga para duas ou mais unidades).
A criação dessa modalidade de vaga de garagem, com a definição da(s) unidade(s) a(s) qual(is) está(ão) vinculada(s) e eventuais limitações de uso, deve estar prevista no instrumento de instituição de condomínio, que, ao especializá-la, poderá tratá-la de forma determinada (vinculação da unidade a uma vaga específica) ou indeterminada (vinculação da unidade ao direito de usar uma vaga não específica)22. b) vaga de garagem como parte acessória da unidade autônoma, computada na área privativa: Segundo a NBR n° 12.721 (item 3.7.2.2.1.), a vaga de garagem vinculada à unidade autônoma “é a área coberta e ou descoberta de estacionamento privativo de veículo automotor, demarcada e identificada em projeto arquitetônico e vinculada à área privativa principal da unidade autônoma por direito de propriedade, sem atribuição de fração ideal específica no terreno e partes comuns do condomínio”23. Nesse caso, a área correspondente à vaga integra a soma da área de uso privativo real total prevista na coluna 2324, do quadro II da NBR. Em que pese à área da vaga de garagem ser, nessa modalidade, computada na área privativa da unidade autônoma, por estar localizada em local diverso na estrutura do empreendimento, está a ela vinculada
19
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 45.
20
S egundo a NBR n° 12.721 (item 3.7.2.4.), a área de uso comum de divisão não proporcional é “a área coberta e/ou descoberta situada nos diversos pavimentos da edificação e fora dos limites de uso privativo que, por sua finalidade, tenha sua construção, localização e uso atribuídos à responsabilidade de parte dos titulares de direito de unidades autônomas, ou mesmo por todos (quando o seu uso não depender de qualquer relação de proporcionalidade com as respectivas áreas privativas da unidade autônoma considerada)”.
21
Se a vaga de garagem for coberta, a área a ela correspondente será indicada na coluna 25 do quadro II da NBR 12.721. Se, entretanto, for descoberta, a área correspondente à vaga será indicada na coluna 26 do mesmo quadro. A soma das colunas 25 e 26 forma a coluna 28 do quadro II da NBR 12.721.
22
SILVA FILHO, Elvino. Questões de condomínio no registro de imóveis. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 23.
23
S egundo a NBR nº 12.721, (item 3.7.2.1.) as áreas de uso privativo são “as áreas cobertas ou descobertas que definem o conjunto de dependências e instalações de uma unidade autônoma, cuja utilização é privativa dos respectivos titulares de direito”. Subdividem-se em áreas privativas principais e áreas privativas acessórias. A área privativa principal é “a área da unidade autônoma de uso exclusivo, destinada à moradia, atividade ou uso principal da edificação, situada em determinado andar ou em dois ou mais andares interligados por acesso também privativo”. A área privativa acessória é “a área da unidade autônoma de uso exclusivo, situada fora dos limites físicos de sua área privativa principal, destinada a usos acessórios, tais como: depósitos, box de lavanderia e vagas de garagem”. (destaque nosso) Se a vaga de garagem for coberta, a área a ela correspondente será indicada na coluna 20 do quadro II da NBR n° 12.721. Se, entretanto, for descoberta, a área correspondente à vaga será indicada na coluna 21 do mesmo quadro. A soma das colunas 20 e 21 forma a coluna 23 do quadro II da NBR n° 12.721.
24
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Condomínio Edilício
sem, contudo, fazer parte integrante dela. Se estivesse localizada junto à unidade, a sua especialização seria dispensada, conforme o disposto no artigo 7º, da Lei n° 4.591/1964, e a vaga seria tratada como umas das partes internas da unidade.
I.2.4 Vaga em edifício-garagem O regramento do edifício-garagem, cujo fim principal é o abrigo para veículos, está previsto no artigo 2º, parágrafo 3º, da Lei n° 4.591/1964 (que, por não ter dispositivo correspondente no CCB, entende-se que não foi derrogado25). O referido dispositivo legal prevê que, nos edifícios-garagens, às vagas são atribuídas frações ideais de terreno específicas, fazendo surgir, assim, as unidades autônomas e, consequentemente, as matrículas individuais. Tendo em vista que a vaga é tratada como unidade autônoma, a ela são atribuídas todas as áreas (privativa, comum de divisão não proporcional, comum de divisão proporcional e total) e fração ideal no terreno e nas partes comuns, previstas no quadro II da NBR n° 12.721. Cumpre referir que, se for a intenção dos proprietários, o edifício destinado ao abrigo para veículos poderá permanecer indiviso, aplicando-lhe as regras do condomínio geral (artigos 1.314 e seguintes do CCB). Pelo exposto, verifica-se que as vagas em edifício-garagem são, ao fim e ao cabo, unidades autônomas. Contudo, optou-se por classificá-las como espécie independente, pois possuem algumas diferenças, quanto ao regime jurídico, que serão destacadas no item I.4 deste estudo.
25
I.3 Natureza jurídica I.3.1 Direito real de uso autônomo Essa forma de regramento foi prevista no projeto da Lei n° 4.591/1964 (artigo 2º, parágrafo único), mas o parágrafo foi vetado. Um dos argumentos utilizados para o veto é a impossibilidade de alienação do direito real de uso, o que se mantêm no atual Código Civil Brasileiro, no artigo 1.413, combinado com o artigo 1.393. Diante disso, conclui-se que não é possível atribuir a qualquer uma das espécies de vaga de garagem a natureza de direito real de uso autônomo.
I.3.2 Direito de uso decorrente dos direitos que integram a propriedade horizontal É o caso da vaga de garagem como parte de uso comum. Nessa espécie, conforme já foi dito, como a vaga de garagem é parte de propriedade comum, há divisão de uso entre os condôminos. Assim, o direito de usar essa espécie de vaga de garagem decorre do próprio direito de propriedade sobre as unidades autônomas.
I.3.3 Direito real autônomo É o caso da vaga de garagem (a) como unidade autônoma e (b) em edifício-garagem. O direito real autônomo em causa é a propriedade horizontal, e não a propriedade tradicional. Conforme indicado no artigo 1.331, do CCB, pode haver, em edificações, partes que são propriedade exclusiva e partes que são propriedade comum. Ao estabelecer que pode ser criado um direito composto de parte de uso privativo e de partes de uso comum, o legislador afastou a propriedade horizontal da forma tradicional de propriedade individualizada, criando no
S egundo a doutrina majoritária, a Lei nº 4.591/1964 não foi revogada pelo Código Civil de 2002. Assim, os artigos que não dispõem em contrário do previsto na lei civil de 2002 seguem em vigor (artigo 2º, § 1º, da LINDB). LOBO JR, Hélio. O Novo Código Civil e o Registro de Imóveis: o condomínio edilício e o novo Código Civil. Porto Alegre: SAFE, 2004. p. 25.
39
PAINEL direito brasileiro uma nova espécie de direito real. Como consequência da afetação do imóvel ao regime jurídico da propriedade horizontal, os atributos que integram o direito de propriedade (usar, fruir, transformar e dispor) são limitados por normas preestabelecidas por lei ou por convenção dos condôminos (dentro dos parâmetros legalmente admitidos)26. Nas limitações impostas pela lei, há nítida prevalência do interesse coletivo, do condomínio, sobre o individual, dos proprietários 27. Verifica-se, assim, ainda que em breve explicação, que a substância do direito é diferente na propriedade tradicional em relação à propriedade horizontal, justificando a teoria do direito real autônomo28. Importa referir, ainda, que a definição da propriedade horizontal como direito real autônomo não fere os princípios da taxatividade e tipicidade29 dos direitos reais30. Isso porque, a propriedade horizontal (propriedade com partes de uso privativo e partes de uso comum) está prevista no artigo 1.331, do CCB (princípio da taxatividade) – ainda que o legislador não tenha usado essa nomenclatura, mas sim a de Condomínio Edilício. E as características do tipo “propriedade horizontal” estão previstas no CCB e na Lei n° 4.591/1964 (princípio da
tipicidade), os quais, quando não as definem de forma imperativa, criam regras reguladoras do limite da autonomia de vontade das partes na configuração do direito.
I.3.4 Direito real relativamente autônomo Caso da vaga de garagem como parte acessória da unidade autônoma. Nas duas modalidades dessa espécie (computada na área comum de divisão não proporcional ou na área privativa), a vaga de garagem deve ser classificada como direito real relativamente autônomo. Isso porque, ainda que seja possível identificá-la, estruturalmente, de forma apartada da unidade, a formalização jurídica dessa espécie de vaga a vincula de tal forma à unidade autônoma, por meio da fração ideal, que impede que o titular do direito exerça, de forma independente, todos os atributos do seu direito sobre a coisa (impossibilidade, por exemplo, de dar em garantia a vaga acessória de forma apartada da unidade sem descaracterizá-la). Ademais a falta de autonomia da vaga acessória não permite a sua caracterização como direito real autônomo, por não atender ao princípio da especialidade dos direitos reais. Ao tratar do princípio da especiali-
26
NETO, Abílio. Manual da propriedade horizontal. 3. ed. Coimbra: Coimbra editora, 2006. p. 9 e 10.
27
LOBO JR., Hélio. Condomínio edilício e o novo código civil. Revista de Direito Imobiliário, Revista dos Tribunais: São Paulo, n. 55, jul./dez.2003. p. 25.
28
Sobre a propriedade horizontal como direito real autônomo, ler Jéverson Luís BOTTEGA: A propriedade horizontal em perspectiva de direito comparado – Portugal e Brasil. Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra-PT para a obtenção do grau de mestre em direito. 2016.
29
Sobre os princípios da tipicidade estrita e da taxatividade (numerus clausus), cabe destacar a lição de Luciano de Camargo Penteado: “Dizer que direitos reais são numerus clausus significa afirmar que apenas e tão somente são direitos reais aqueles desenhados segundo este regime em lei. (...). No Brasil, em matéria de rol taxativo, há um rol bastante minucioso no CC 1.225, embora não esgote todos os direitos reais que nosso sistema civil admite. Há outros direitos reais em leis especiais, mas que não fogem nem podem fugir do sistema comum criado pelo Código, que dá o regime geral do direito real. (...). Além do princípio de numerus clausus, está o de tipicidade estrita. Alguns autores confundem as duas noções, outros acabam mesmo por equipará-las diante da semelhança que apresentam. Há, entretanto, diferenças em números suficientes para que se possa mesmo extrair duas características distintas dos direitos reais. A tipicidade estrita é uma exigência adicional à do numerus clausus. Pode existir sistema de numerus clausus sem tipicidade estrita. Esta diz da impossibilidade de alterar as situações reais, parcialmente, mediante modelação negocial. Um particular não pode criar direito real por negócio jurídico em virtude do princípio de numerus clausus, mas não pode modificar elementos constitutivos de um determinado direito real, afastando a incidência da norma que o disciplina, em virtude do princípio de tipicidade estrita. (...). Inexiste, no plano do direito das coisas, quanto à constituição da situação jurídica e quanto às normas que a regulam, direito dispositivo.” PENTEADO, Luciano de Camargo. Direitos das coisas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 94.
30
ale dizer que os demais princípios (especialidade, elasticidade, transmissibilidade e publicidade) e características (caráter absoluto, V inerências, sequela, prevalência) dos direitos reais também são identificados na propriedade horizontal.
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dade dos direitos reais, o autor português Luís Manoel Teles de Menezes Leitão31 assim estabelece: “Um outro princípio dos direitos reais é o princípio da especialidade, o qual exige que se possa individualizar concretamente a coisa que constitui objecto do direito real. Efectivamente, vimos já que os direitos reais têm necessariamente por objecto coisas corpóreas. O princípio da especialidade refere-nos que, para se poder constituir um direito real, as coisas corpóreas sobre que o mesmo incide têm que se encontrar determinadas, ter existência presente, e ser autónomas de outras coisas.” (destaque nosso) Ao tratar da autonomização, que determina que, “para existir um direito real, o mesmo não poderá incidir apenas sobre partes de uma coisa, tendo que incidir sobre coisas autónomas”, o autor português prevê algumas atenuações, no que se refere às servidões, “em relação às quais se pode estabelecer a parte do prédio sobre que podem ser exercidas”. No que se refere ao direito relativo à vaga de garagem acessória, a impossibilidade de autonomização da mesma impede a sua classificação como direito real autônomo. Porém, por ser permitida a atenuação desse subprincípio, a descaracterização não seria total, possibilitando a sua classificação, conforme expressão cunhada por Pontes de Miranda, como direito real relativamente autônomo32 . Analisando as duas modalidades que integram a espécie de vaga de garagem como parte acessória, temos o seguinte: a) quando a vaga é computada na área comum de divisão não proporcional, ainda que a sua vinculação à unidade habitacional a exclua da comunhão, a falta de atribuição de fração ideal própria impede a sua autonomia; b) quando computada na área privativa, a autonomia estrutural, decorrente do fato de não estar localizada junto à unidade, não é suficiente para lhe atribuir a natureza de direito real autônomo, pois a sua área e fração ideal são somadas às da unidade autônoma, vinculando a vaga à unidade.
A antítese que poderia ser apresentada à classificação ora proposta seria no sentido de defender que o direito relativo à vaga de garagem acessória da unidade autônoma, por não atender ao princípio da especialidade dos direitos reais, deve ser tratado no âmbito do direito obrigacional. Contudo, entende-se que essa tese não se sustenta, pois à vaga acessória é atribuída fração ideal de terreno, de modo a torná-la mais do que um direito de pessoal, oponível inter partes. Ainda que a fração ideal da vaga acessória seja somada à da unidade autônoma, essa atribuição é suficiente para tornar a vaga um bem corpóreo (coisa imóvel), sobre o qual recai o poder de titularidade de uma pessoa, com oponibilidade erga omnes, caracterizando, assim, o direito real, ainda que relativamente autônomo.
I.4 Implicações no direito material I.4.1 A venda da vaga de garagem Quanto às regras de transmissão, as vagas de garagem podem ser classificadas em não autônomas, autônomas e relativamente autônomas. a) vaga de garagem não autônoma (vaga de uso comum): A venda da vaga de garagem de uso comum é realizada juntamente com a própria unidade. Portanto, não há o que acrescentar. b) vaga de garagem autônoma (unidade autônoma e edifício-garagem): A venda da vaga de garagem como unidade autônoma está prevista no artigo 1.331, do CCB: “Art. 1.331, do CCB. Pode haver, em edificações, partes que são propriedade exclusiva, e partes que são propriedade comum dos condôminos. § 1º As partes suscetíveis de utilização independente, tais como apartamentos, escritórios, salas, lojas e sobrelojas, com as respectivas frações ideais no solo e nas outras partes comuns, sujeitam-se a propriedade exclusiva,
31
LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direitos Reais. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2012. p. 25.
32
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Tratado de direito predial. Volume II. 2. ed. Rio de Janeiro: José Konfino, 1953. p. 176.
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PAINEL podendo ser alienadas e gravadas livremente por seus proprietários, exceto os abrigos para veículos, que não poderão ser alienados ou alugados a pessoas estranhas ao condomínio, salvo autorização expressa na convenção de condomínio. (...).” (destaque nosso) A redação do parágrafo 1º foi alterada pela Lei nº 12.607/201233. Na origem, não havia a limitação relativa à venda ou à locação. A única limitação existente no CCB era a relativa ao direito de preferência do condômino no caso da locação da vaga (artigo 1.338, do CCB)34. Portanto, a partir da citada alteração, a regra geral é a vedação da alienação ou locação35 da vaga de garagem autônoma a pessoas estranhas ao condomínio. Todavia, essa norma poderá ser excetuada por regra expressa prevista na convenção de condomínio36. Antes da entrada em vigor do CCB de 2002, existia discussão doutrinária quanto à venda das vagas de garagem, fossem elas unidades autônomas, fossem partes acessórias das unidades. A vertente encabeçada por Caio Mário da Silva Pereira, ao contrário da corrente defendida por, dentre outros, J. Nascimento Franco, identificava na leitura conjunta dos parágrafos 1º e 2º, do artigo 2º, da Lei n° 4.591/1964, impedimento à venda da vaga de garagem a não condômino: “Art. 2º, da Lei 4.591/64. Cada unidade com saída para a via pública, diretamente ou por processo de passagem comum, será sempre tratada como objeto de propriedade exclusiva, qualquer que seja o núme-
ro de suas peças e sua destinação, inclusive (VETADO) edifício-garagem, com ressalva das restrições que se lhe imponham. § 1º O direito à guarda de veículos nas garagens ou locais a isso destinados nas edificações ou conjuntos de edificações será tratado como objeto de propriedade exclusiva, com ressalva das restrições que ao mesmo sejam impostas por instrumentos contratuais adequados, e será vinculada à unidade habitacional a que corresponder, no caso de não lhe ser atribuída fração ideal específica de terreno. § 2º O direito de que trata o § 1º dêste artigo poderá ser transferido a outro condômino, independentemente da alienação da unidade a que corresponder, vedada sua transferência a pessoas estranhas ao condomínio.” (destaque nosso) Segundo o autor do anteprojeto da Lei n° 4.591/1964, o parágrafo 1º, do artigo 2º, tratava tanto das vagas de garagem acessórias da unidade (“o direito à guarda de veículos... será tratado como objeto de propriedade exclusiva”), quanto das vagas de garagem unidades autônomas (“no caso de não lhe ser atribuída fração ideal específica no terreno”). Assim, como o parágrafo 2º, do mesmo artigo, ao vedar a transferência da vaga a pessoas estranhas ao condomínio, faz referência ao direito de que tratava o parágrafo 1º, a limitação atingiria as duas espécies de vaga de garagem. A corrente contrária aos argumentos apresentados por Caio Mário da Silva Pereira entendia que a limitação prevista no artigo se aplicava apenas às vagas
33
ntes mesmo da alteração legislativa, o Conselho da Justiça Federal, na I Jornada de Direito Civil, editou o enunciado número 91 com o A seguinte teor: “Art. 1.331: A convenção de condomínio ou a assembléia-geral podem vedar a locação de área de garagem ou abrigo para veículos a estranhos ao condomínio”.
34
Conselho da Justiça Federal, na I Jornada de Direito Civil, editou o enunciado número 320 a fim de orientar que o direito de preferência na O locação seja assegurado também na hipótese de venda da garagem. O enunciado 320 possui seguinte teor: “Arts. 1.338 e 1.331: O direito de preferência de que trata o art. 1.338 deve ser assegurado não apenas nos casos de locação, mas também na hipótese de venda da garagem”.
35
S obre a locação de vagas autônomas de garagem, ler Samuel Belluco Silveira Santos: A locação de vagas autônomas de garagem ou de espaços para estacionamento de veículos. Revista de Direito Imobiliário. Revista dos Tribunais, São Paulo, n.78/59, jul./dez. 2015.
36
iante da alteração do § 1º, do artigo 1.331, do CCB, pela Lei nº 12.607/2012, poderia surgir o seguinte questionamento: a Súmula 449 do STJ D (Resp 1057511 e Resp 876011), que estabelece que “a vaga de garagem que possui matrícula própria no registro de imóveis não constitui bem de família para efeito de penhora” foi desconstituída? A resposta é, evidentemente, negativa. Contudo, diante da alteração do § 1º, do artigo 1.331, do CCB, a súmula 449 do STJ deve ser interpretada de acordo com as limitações constantes do citado dispositivo legal. Ou seja, em que pese à vaga de garagem ser passível de penhora, dependendo da situação (inexistência de permissão da convenção de condomínio para alienação da vaga a pessoas estranhas ao condomínio), a venda judicial só poderá ser realizada a quem for condômino.
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de garagem acessórias da unidade autônoma37, sendo livre a alienação das vagas quando configuradas como unidades autônomas. Foi esse o entendimento que predominou nos tribunais e que, possivelmente, levou o legislador a alterar o parágrafo 1º, do artigo 1.331, conforme referido acima. No que toca ao edifício-garagem, não deve haver qualquer limitação à venda das vagas que o integram, pois, nessa espécie, o edifício possui destinação única (depósito de veículos), e não mista (habitação e depósito de veículos), como nos outros casos. Assim, como as vagas de garagem são o objeto principal dessa espécie de empreendimento, o proprietário é livre para transmiti-las a qualquer pessoa, inclusive a quem não é condômino. Entende-se, também, que a vedação da alienação ou locação das vagas de garagem a pessoas estranhas ao condomínio não deve atingir os edifícios-garagens localizados nos conjuntos de edifícios, também chamados de supercondomínios38. Isso porque, conforme estipulado no artigo 8º, da Lei nº 4.591/1964, cada um dos subcondomínios terá autonomia estrutural, sendo discriminada a parte do terreno e das coisas comuns que serão de uso exclusivo de cada edifício, evitando, assim, que os proprietários das vagas no edifício-garagem tenham acesso às áreas condominiais dos outros subcondomínios (residencial e/ou comercial) que integram o empreendimento. c) vaga de garagem relativamente autônoma
(parte acessória da unidade): Para a venda da vaga de garagem como parte acessória da unidade autônoma (computada na área de uso comum de divisão não proporcional ou na área de uso privativo da unidade autônoma), o CCB também possui disciplina própria. O artigo 1.339 assim estabelece: “Art. 1.339. Os direitos de cada condômino às partes comuns são inseparáveis de sua propriedade exclusiva; são também inseparáveis das frações ideais correspondentes as unidades imobiliárias, com as suas partes acessórias. § 1º Nos casos deste artigo é proibido alienar ou gravar os bens em separado. § 2º É permitido ao condômino alienar parte acessória de sua unidade imobiliária a outro condômino, só podendo fazê-lo a terceiro se essa faculdade constar do ato constitutivo do condomínio, e se a ela não se opuser a respectiva assembléia geral.” (destaque nosso) Verifica-se, portanto, que o parágrafo 2º, do artigo 1.339, do CCB, permite a alienação da parte acessória a outro condômino e a terceiro estranho ao condomínio, se, nesse caso, a convenção de condomínio autorizar e a ela não se opuser a assembleia geral. Conforme referido acima, o sistema anterior ao CCB vedava a alienação da vaga de garagem acessória da unidade autônoma a pessoas estranhas ao condomínio (artigo 2º, § 2º, da Lei n° 4.591/1964) e, diferentemente do que ocorria com a vaga de garagem unidade autônoma, não havia discussão doutrinária a respeito39.
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Sobre a análise do artigo 2º, da Lei 4.591/1964, ler A. B. Contrin Neto: Vagas de garagem em condomínio. Revista de Direito Imobiliário. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 4/37, jul./dez. 1979.
38
T ERRA, Marcelo. Supercondomínio (Uma tentativa de Delineamento do Conceito e da Sistemática Registrária do “Desdobramento da Incorporação Imobiliária). Registro de Imóveis – estudos de direito registral imobiliário – XXII Encontro de Oficiais de Registro de Imóveis / 1995. Sérgio Jacomino (Coordenador). Cuiabá: SafE/IRIB, 1997.
39
Segundo Pontes de Miranda, a venda da vaga acessória a não condômino era nula e ineficaz, em razão do objeto ser impossível. MIRANDA, Pontes. Tratado de direito predial. Volume II. 2. ed. Rio de Janeiro: José Konfino, 1953. p. 176. Sobre a venda da vaga de garagem acessória a não condômino, Serpa Lopes, ao identificar que a garagem também podia estar compreendida entre as partes acessórias, assim se manifestou: “É necessário considerar, ainda, que como coisas acessórias também se compreendem garagens, com a condição de que tais dependências fiquem submetidas ao uso exclusivo de cada um dos co-proprietários, e não em seu conjunto. São, porém, partes distintas, embora vinculadas ao apartamento, e assim nada obsta a que o proprietário deste, que seja dono de uma garagem exclusiva, não sujeita à comunhão, disponha deste espaço, transferindo-o, não a um terceiro, pois não se compreenderia essa cessão sem a qualidade de proprietário de apartamento, senão pelo menos a um outro co-proprietário, para passar aquela parte distinta, mas dependendo do apartamento como vinculada a um outro apartamento. Em tais casos, e porque se trate de um acessório do apartamento, mas excluído da
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PAINEL I.4.2. A limitação de venda imposta pela lei é constitucional? Existe direito de propriedade autônomo com limitação/restrição de alienação e fruição? Para responder a essas perguntas é necessário lembrar que, ao tratar de vaga de garagem em condomínio edilício, o direito que está em causa é a propriedade horizontal. Conforme já dito, ao estabelecer o regime jurídico próprio para o instituto (artigos 1.331 e seguintes, do CCB), o legislador criou características específicas para o tipo, encaminhando-o a uma espécie nova de direito real. Essa espécie de direito real possui características semelhantes à propriedade tradicional, mas dela se distancia em razão de algumas características, dentre as quais se cita, como exemplo, as limitações ao livre e incondicionado exercício dos direitos de proprietário singular. É justamente aí que as limitações à alienação e à fruição existentes nas vagas de garagem encontram guarida. Essas limitações não apenas são constitucionais como servem de justificativa para a classificação da propriedade horizontal como direito real autônomo. Vale dizer, ainda, que a venda da vaga de garagem de forma independente da unidade habitacional também pode ser limitada por norma municipal de direito urbanístico (limitação administrativa ao direito de propriedade)40. Veja-se a seguinte hipótese: se a lei municipal, para aprovar certo empreendimento, exigir que cada apartamento tenha, pelo menos, uma vaga de garagem, a alienação isolada da vaga estará limitada pela norma urbanística municipal. Nesse caso, por estar na gênese da propriedade horizontal, a restrição deve ser averbada na matrícula da unidade e não poderá ser afastada por deliberação da assembleia de condôminos.
II. Aspectos registrais II.1 Constituição do direito A constituição jurídica da vaga de garagem, em qualquer de suas espécies (de uso comum, autônoma, acessória ou em edifício-garagem), ocorre com o registro do instrumento de instituição da propriedade horizontal. Além dos aspectos teóricos e técnicos até agora tratados, tem destaque, na formalização da instituição, a especialização da vaga de garagem. A perfeita descrição e caracterização do empreendimento no registro atende ao princípio da especialidade objetiva que norteia a atividade registral imobiliária. Em razão desse princípio, é função do oficial de registro, ao qualificar o título, verificar se o bem imóvel objeto do direito a registrar está corretamente descrito e individualizado. Com relação à especialização da vaga de garagem, diante da omissão da Lei n° 4.591/1964, primeira parte, e do CCB, o dispositivo legal a ser usado é o artigo 32, “p”, da Lei nº 4.591/1964, localizado no título destinado à incorporação imobiliária. “Art. 32. O incorporador sòmente poderá negociar sôbre unidades autônomas após ter arquivado, no cartório competente de Registro de Imóveis, os seguintes documentos: (...); p) declaração, acompanhada de plantas elucidativas, sôbre o número de veículos que a garagem comporta e os locais destinados à guarda dos mesmos. (...)” (destaque nosso) A norma acima transcrita deve ser lida em conjunto com o artigo 176, da Lei n° 6.015/1973, que define as regras gerais de escrituração do livro 2-RG: “Art. 176 - O Livro nº 2 - Registro Geral - será destinado, à matrícula dos imóveis e ao registro ou averbação dos atos relacionados no art. 167 e não atribuídos ao
comunhão, um acessório de natureza especial, cumpre que haja escritura pública constatadora do ato, que deverá ser averbado na nova transcrição do apartamento, cancelando-se da transcrição do em que figurava, como acessório”. (destaque nosso). LOPES, Miguel Maria de Serpa. Tratado de Registros Públicos. Volume IV. 4. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1960. p. 288. 40
SILVA FILHO, Elvino. Questões de condomínio no registro de imóveis. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 52.
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Livro nº 3. § 1º A escrituração do Livro nº 2 obedecerá às seguintes normas: (...); II - são requisitos da matrícula: (...) 3) a identificação do imóvel, que será feita com indicação: b - se urbano, de suas características e confrontações, localização, área, logradouro, número e de sua designação cadastral, se houver. (...)” (destaque nosso) Diante dos dispositivos legais transcritos, entende-se que o instrumento de instituição da propriedade horizontal, além de indicar a espécie de vaga de garagem, deve especializá-la da forma mais individualiza-
da possível. Quando a vaga de garagem for unidade autônoma, o instrumento de instituição deve indicar o seguinte: designação numérica ou alfabética da unidade, denominação e endereço do edifício, localização da vaga dentro do terreno ou prédio, bem como a informação sobre o fato de a vaga ser coberta ou descoberta, a capacidade de veículos que comporta, as medidas perimetrais, as confrontações, as áreas e a fração ideal no terreno e nas coisas de uso comum.
Modelo de escrituração IMÓVEL: Vaga de Garagem nº 01 do Condomínio Edilício denominado “xxxxxxxxxxxxxx”, situado no bairro xxxxxx, rua xxxxxxxxx, nº xxxxx, localizada à esquerda de quem ingressar no condomínio, coberta, com capacidade para um veículo, medindo xx m de frente, confrontando-se com xxxxxx, e xx m de frente a fundos, confrontando-se com xxxxxx. A unidade autônoma possui as seguintes áreas e fração ideal: área privativa real de xxx m², área de uso comum de divisão não proporcional real de xxx m², área de uso comum de divisão proporcional real de xxx m², área real total de xxx m², cabendo-lhe individualmente uma fração ideal de xxx no terreno e nas coisas de uso comum. PARTES DE USO COMUM: São partes de utilização comum pelos condôminos, inalienáveis e indivisíveis, além das demais já expressamente enumeradas no artigo 3º da Lei nº 4.591/1964 e no artigo 1.331, § 2º, do Código Civil Brasileiro, todas aquelas que, por sua natureza ou função, sejam de uso comum, dentre elas: uma piscina e um salão de festas, além do terreno onde se assenta o condomínio, a saber: (descrição do terreno conforme matrícula de origem). NÚMERO DO CADASTRO MUNICIPAL: xxxxxxxxxxx. PROPRIETÁRIA: (denominação), inscrita no CNPJ/MF sob nº xxxxxxxx e com sede social na cidade xxxxxxxxx, bairro xxxxxx, rua xxxxxxx, nº xxxxxx. REGISTRO ANTERIOR: Registro nº xxxxx, matrícula nº xxxx, livro 2-Registro Geral, de (data), deste Serviço de Registro de Imóveis. Emolumentos: xxxxxxxxxxxxxxx Selo de fiscalização: xxxxxxxxxxxxxx. Oficial de Registro. Se a vaga de garagem não for unidade autônoma (caso de vaga de garagem como parte de uso comum ou como parte acessória), recomenda-se que a sua escrituração contenha, pelo menos: a localização dentro do terreno ou prédio, a capacidade de veículos que comporta, se é coberta ou descoberta e, se for o caso, a que unidade autônoma está vinculada, com a indicação das áreas, medidas perimetrais, confrontações e a correspondente parcela na composição do coeficiente de proporcionalidade da unidade autônoma. Se a vaga de garagem for de uso comum, será indicada na matrícula junto com as demais coisas de uso comum.
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PAINEL Modelo de escrituração IMÓVEL: Casa nº 01 do Condomínio Edilício denominado “xxxxxxxxxxxxxx”, situado no bairro xxxxxx, rua xxxxxxxxx, nº xxxxx, localizada à esquerda de quem ingressar no condomínio, com área privativa real de xxx m², área de uso comum de divisão não proporcional real de xxx m², área de uso comum de divisão proporcional real de xxx m², área real total de xxx m², cabendo-lhe individualmente uma fração ideal de xxx do terreno e das coisas de uso comum. PARTES DE USO COMUM: São partes de utilização comum pelos condôminos, inalienáveis e indivisíveis, além das demais já expressamente enumeradas no artigo 3º da Lei nº 4.591/1964 e no artigo 1.331, § 2º, do Código Civil Brasileiro, todas aquelas que, por sua natureza ou função, sejam de uso comum, dentre elas: uma piscina, um salão de festas e cinco vagas de garagem, localizadas à esquerda de quem ingressar no condomínio, cobertas, cada uma com capacidade para um veículo. Também integra as partes comuns o terreno onde se assenta o condomínio, a saber: (descrição do terreno conforme matrícula de origem). PARTE DO TERRENO OCUPADA PELA EDIFICAÇÃO: Com área superficial de xxx m², possui as seguintes medidas e confrontações: xxxxxxxx. NÚMERO DO CADASTRO MUNICIPAL: xxxxxxxxxxx. PROPRIETÁRIA: Carioca Incorporações e Construções LTDA., empresa brasileira, inscrita no CNPJ/MF e com sede social na cidade do Rio de Janeiro/RJ, rua, número. REGISTRO ANTERIOR: Registro nº, matrícula nº, livro 2-Registro Geral, de (data), deste Serviço de Registro de Imóveis. Emolumentos: xxxxxxxxxxxxxxx Selo de fiscalização: xxxxxxxxxxxxxx. Oficial de Registro.
No caso da vaga de garagem como parte acessória da unidade – por se tratar de direito real relativamente autônomo, que pode ser alienado separadamente da unidade autônoma, mas cuja fração ideal está computada junto com a unidade a que está vinculada – recomenda-se, tanto para o caso de parte acessória computada na área de uso comum de divisão não proporcional, quanto no caso de parte acessória computada na área privativa da unidade, que a sua indicação na matrícula seja realizada em item específico e que a descrição da vaga contenha a informação de que a sua área foi computada na fração ideal da unidade41 .
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S egundo a NBR nº 12.721, nota “1”, do item 3.7.2., “o responsável pelo cálculo deve informar a vinculação correspondente da parte acessória à principal, com suas respectivas áreas e a correspondente parcela na composição do coeficiente de proporcionalidade da unidade autônoma.”
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Modelo de escrituração IMÓVEL: Casa nº 01 do Condomínio Edilício denominado “xxxxxxxxxxxxxx”, situado no bairro xxxxxx, rua xxxxxxxxx, nº xxxxx, localizada à esquerda de quem ingressar no condomínio, com área privativa real de xxx m², área de uso comum de divisão não proporcional real de xxx m², área de uso comum de divisão proporcional real de xxx m², área real total de xxx m², cabendo-lhe individualmente uma fração ideal de xxx do terreno e das coisas de uso comum. PARTES DE USO COMUM: São partes de utilização comum pelos condôminos, inalienáveis, indivisíveis e acessórias, além das demais já expressamente enumeradas no artigo 3º da Lei nº 4.591/1964 e no artigo 1.331, § 2º, do Código Civil Brasileiro, todas aquelas que, por sua natureza ou função, sejam de uso comum, dentre elas: uma piscina e um salão de festas além do terreno onde se assenta o condomínio, a saber: (descrição do terreno conforme matrícula de origem). PARTE ACESSÓRIA DA UNIDADE AUTÔNOMA: É parte acessória da unidade autônoma desta matrícula a vaga de garagem nº 01, localizada à esquerda de quem ingressar no condomínio, coberta, com capacidade para um veículo, com área de xxx m² (computada na área privativa ou na área comum de divisão não proporcional da unidade), medindo xx m de frente, confrontando-se com xxxxxx, e xx m de frente a fundos, confrontando-se com xxxxxx. Como parte acessória, a área relativa à vaga de garagem foi computada na composição da fração ideal da unidade autônoma, na proporção de xxxxxxx. PARTE DO TERRENO OCUPADA PELA EDIFICAÇÃO: Com área superficial de xxx m², possui as seguintes medidas e confrontações: xxxxxxxx. NÚMERO DO CADASTRO MUNICIPAL: xxxxxxxxxxx. PROPRIETÁRIA: Carioca Incorporações e Construções LTDA., empresa brasileira, inscrita no CNPJ/MF e com sede social na cidade do Rio de Janeiro/RJ, rua, número. REGISTRO ANTERIOR: Registro nº, matrícula nº, livro 2-Registro Geral, de (data), deste Serviço de Registro de Imóveis. Emolumentos: xxxxxxxxxxxxxxx Selo de fiscalização: xxxxxxxxxxxxxx. Oficial de Registro.
A perfeita especialização da vaga de garagem evita a eventual responsabilização do empreendedor/ alienante decorrente de ação ajuizada por comprador, alegando, por exemplo, o fato de caber apenas um carro pequeno na vaga, como aconteceu no Resp 488297. No caso, o STJ não atendeu ao pedido do comprador e manteve a decisão de primeiro e de segundo graus. Para a Corte, como a vaga estava devidamente escriturada, existindo jurídica e fisicamente, não cabe a pretensão de abatimento do preço do imóvel residencial.
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PAINEL II.2 A venda da vaga de garagem Em se tratando de unidade autônoma, inclusive integrante de edifício-garagem, o título (escritura pública, ato judicial ou instrumento particular) e o modo (ato de registro) são idênticos a qualquer espécie de transmissão. Por sua vez, a vaga de garagem não autônoma (vaga de uso comum) é transmitida junto com a unidade. Alguma dúvida poderia surgir, entretanto, quanto aos requisitos do título e à técnica registral a ser aplicada na hipótese de venda da vaga de garagem relativamente autônoma (parte acessória). Considerando que essa espécie de vaga de garagem possui natureza jurídica de direito real relativamente autônomo, a sua transmissão, quanto à forma, exige escritura pública (a depender do valor, nos termos do artigo 108 do CCB), e o ato a ser praticado é de registro42. Considerando, ainda, que a área destinada a essa vaga contribui para o cálculo da fração ideal da unidade a qual está vinculada, ao transmitir a vaga, o alienante também transmite fração ideal ao adquirente, negócio jurídico que, além de estar sujeito ao recolhimento do ITBI, gera a alteração nas áreas e frações ideais das unidades envolvidas. Para que tais alterações sejam lançadas na matrícula, deve ser apresentado trabalho técnico realizado por profissional habilitado, com apresentação de ART43. Feitas essas considerações, quanto à escrituração registral referente à venda de vaga de garagem
relativamente autônoma para condômino, sugere-se que a transmissão seja: a) registrada na matrícula da unidade a qual a vaga deixa de estar vinculada; b) averbada na matrícula da unidade a qual a vaga passa a estar vinculada. Destarte, a forma que se propõe neste estudo é a transmudação da vaga de garagem, então parte acessória, em unidade autônoma, com a criação de matrícula própria, de modo a permitir o registro da transmissão a terceiro não condômino. Essa alteração quanto à espécie de vaga é necessária, pois, no regime da propriedade horizontal, não há direito autônomo sem fração ideal de terreno correspondente45. Entende-se, assim, que, com a alteração da espécie de vaga de garagem, é possível compatibilizar o disposto no artigo 1.339, do CCB, com o sistema da propriedade horizontal46. Nesse caso, as únicas diferenças em relação à venda de vaga de garagem relativamente autônoma para condômino são: a) previsão na convenção de condomínio de permissão para alienação da parte acessória a pessoa estranha ao condomínio; b) necessidade de aprovação pelo órgão competente do município; c) necessidade de retificação da instituição da propriedade horizontal, com abertura de matrícula própria para a nova unidade; d) inexistência de oposição da assembleia geral de condôminos47.
42
SILVA FILHO, Elvino. Questões de condomínio no registro de imóveis. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 28.
43
MEZZARI, Mário Pazutti. Condomínio e incorporação no registro de imóveis. 3. ed. Porto Alegre: Norton Editor, 2010. p. 107.
44
MEZZARI, Mário Pazutti. Condomínio e incorporação no registro de imóveis. 3. ed. Porto Alegre: Norton Editor, 2010. p. 107.
45
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 45.
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m julgamento realizado pela Terceira Turma do STJ (Resp 954861), os ministros destacaram que, como direito acessório, a vaga de garagem E adere à unidade, sendo, contudo, desta destacável para efeito de sua cessão a outro condômino. Para eles, apesar de a vaga ser bem acessório à unidade condominial, é admissível a sua transferência para outro apartamento do mesmo prédio.
47
Conforme o disposto nos artigos 1.352 e 1.353, ambos do CCB, salvo quando exigido quórum especial, as deliberações da assembleia serão tomadas, em primeira convocação, por maioria de votos dos condôminos presentes que representem pelo menos metade das frações ideais e, em segunda convocação, a assembleia poderá deliberar por maioria dos votos dos presentes, salvo quando exigido quórum especial.
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Em que pese, em regra, à alteração nas coisas comuns (gerada, no caso, pela criação de nova unidade) depender da aprovação unânime dos condôminos, o disposto no parágrafo 2º, do artigo 1.339, do CCB, parece excetuar a exigência da unanimidade48.
não deve interferir na decisão das partes, mantendo o necessário distanciamento da formalização jurídica do título que será apresentado para registro.
Conclusão
CHALHUB, Melhim Namem. Da incorporação imobiliária. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
Identificar a espécie de vaga de garagem e o regime jurídico adequado às necessidades do condomínio edilício que se formará é tarefa complexa. Os fatores que interferem nesse juízo são vários e podem mudar de acordo com as especificidades de cada unidade da federação.
Referências bibliográficas
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Os custos de projetos, escritura, registro e impostos , ao se optar por vagas de garagem como unidades autônomas, podem ser mais elevados do que seria se fosse o caso de vagas como parte de uso comum ou parte acessória da unidade. De outro lado, se a intenção for permitir a alienação das vagas de garagem a pessoas estranhas ao condomínio, tratá-las como unidade autônoma poderá facilitar o processo.
FRANCO, J. Nascimento. Garagem. Enciclopédia Saraiva do Direito. Volume 39. São Paulo: Saraiva, 1977.
Diante de tais especificidades, a definição sobre a melhor forma de constituição das vagas de garagem para determinado condomínio edilício deve ser realizada pelo empreendedor, no momento em que estabelece as características do empreendimento. Para que a escolha seja realizada de forma consciente e com pequena margem de erro, recomenda-se que o empreendedor seja assessorado por um tabelião e/ou um advogado especialista em direito imobiliário.
LOBO JR, Hélio. O Novo Código Civil e o Registro de Imóveis: o condomínio edilício e o novo Código Civil. Porto Alegre: SAFE, 2004.
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O registrador, por sua vez, tem a obrigação de conhecer os regimes jurídicos existentes e de esclarecer as eventuais dúvidas dos empreendedores e dos profissionais que os assessoram. Contudo, para realizar a qualificação registral de forma isenta, o registrador
LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direitos Reais. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2012. LIMA, Frederico Henrique Viegas. As vagas de garagem. Revista de Direito Imobiliário. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 28/49, jul./dez. 1991.
LOPES, Miguel Maria de Serpa. Tratado de Registros Públicos. Volume IV. 4. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1960. MEZZARI, Mário Pazutti. Condomínio e incorporação no registro de imóveis. 3. ed. Porto Alegre: Norton Editor, 2010. NETO, Abílio. Manual da propriedade horizontal. 3. ed. Coimbra: Coimbra editora, 2006. PENTEADO, Luciano de Camargo. Direitos das coisas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
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Chegou-se a essa conclusão após debate com os colegas Ademar Fioranelli, Fábio Ribeiro dos Santos e Adelle Ribeiro Coelho Sandri no XLIV Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil.
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Conforme estabelece o artigo 11, da Lei nº 4.591/1964, “para efeitos tributários, cada unidade autônoma será tratada como prédio isolado, contribuindo o respectivo condômino, diretamente, com as importâncias relativas aos impostos e taxas federais, estaduais e municipais, na forma dos respectivos lançamentos”.
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PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Tratado de direito predial. Volume II. 2. ed. Rio de Janeiro: José Konfino, 1953. SANTOS, Samuel Belluco Silveira. A locação de vagas autônomas de garagem ou de espaços para estacionamento de veículos. Revista de Direito Imobiliário. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 78/59, jul./ dez. 2015. SILVA FILHO, Elvino. Questões de condomínio no registro de imóveis. São Paulo: Malheiros, 1999. TERRA, Marcelo. Supercondomínio (Uma tentativa de Delineamento do Conceito e da Sistemática Registrária do “Desdobramento da Incorporação Imobiliária). Registro de Imóveis – estudos de direito registral imobiliário – XXII Encontro de Oficiais de Registro de Imóveis / 1995. Sérgio Jacomino (Coordenador). Cuiabá: SafE/IRIB, 1997.
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Condomínios de lotes de terreno urbano Renato Martins Silva – Oficial de Registro de Imóveis em Caçador (SC)
Renato Martins Silva analisa a possibilidade de desenvolvimento dos condomínios de lotes de terreno urbano, independentemente de previsão em lei federal. Cerca de um mês após o XLIV Encontro, a MP 759 foi convertida na Lei 13.465/2017, que permitiu a introdução do artigo 1.358-A no Código Civil, viabilizando expressamente a possibilidade de desenvolvimento de condomínios de lotes. Embora superadas as controvérsias relativas à falta de lei federal e à possibilidade de se regularizar empreendimentos como esses com fundamento apenas em lei municipal, permanece válida e contributiva a exposição dos fundamentos jurídicos relativos ao tema, uma vez que continuarão dando sustentação jurídica aos condomínios de lotes editados com suporte em leis municipais.
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eria possível o desenvolvimento de condomínios de lotes em âmbito urbano, mesmo sem previsão expressa na legislação federal? A Medida Provisória 759 vai permitir a introdução de um artigo no Código Civil que viabilizará expressamente a possibilidade de desenvolvimento de condomínios de lotes. Como o cerne da nossa tratativa é no sentido de que essa modalidade de empreendimento pode ser desenvolvida independentemente de previsão em lei federal, com a introdução desse artigo no Código Civil a controvérsia estará superada.1 Mas precisamos realmente de uma lei federal para o desenvolvimento desses empreendimentos? As leis municipais não seriam suficientes? Existindo essa lei municipal estaria ela maculada por vício de inconstitucionalidade? De onde viria eventual alegação de inconstitucionalidade? Alguns compreendem que constitui competência exclusiva e privativa da União o tratamento de tema afeto às políticas de desenvolvimento urbano. Outros entendem que o desenvolvimento dessa modalidade de empreendimento estaria viabilizando a criação de um novo modelo de propriedade. Com todo o respeito, acho que não seria a expressão mais pertinente, porque propriedade é direito. O direito de propriedade é único. Não existem modelos diversos de propriedade, salvo a submissão de determinados empreendimentos às regras de condomínio edilício e de outros ao regramento do condomínio ordinário ou comum. É possível
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debater também se não estaríamos criando um novo tipo “de objeto” do direito de propriedade, embora estejamos a tratar, sempre, um bem de raiz. Para aqueles que entendem que estaria ocorrendo uma invasão de competência legislativa, a lei municipal estaria então maculada pelo vício de inconstitucionalidade.
Lotes são unidades privativas no contexto dos condomínios edilícios A verdade é que a lei nem sempre consegue acompanhar o desenvolvimento dos fatos. A necessidade dos condomínios e empreendimentos fechados, principalmente em decorrência da carência de segurança efetiva, é uma realidade fática consolidada e sem retorno. Todos nós conhecemos empreendimentos com essas características, fechados, com mais de 200, 300 casas edificadas, e isso tudo ainda está pendente de pacificação quanto à fundamentação jurídica das suas implementações. Nós sempre esperamos algo da União, talvez pelo fato de o rol taxativo das suas competências, privativas ou exclusivas, ser muito extenso. Se analisarmos
A Medida Provisória 759, de 22 de dezembro de 2016, foi convertida na Lei 13.465, de 11 de julho de 2017. (NE)
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PAINEL os artigos 21 e 22 da Constituição, nós temos de tudo. Quando vamos buscar as competências legislativas dos estados, elas são remanescentes (art. 25, § 1°) e as competências municipais se limitam a algumas indicações nos artigos 29 e 30, além do artigo 182. Em geral, fazemos essa análise começando pelas competências legislativas da União, pelo fato de essas, em especial as exclusivas, indicarem que para o estabelecimento de diretrizes gerais de desenvolvimento urbano a União precisa se manifestar. Parece-nos que ocorre um vício de compreensão, no sentido de que, salvo se a União já tivesse tratado do tema, não poderíamos avançar com uma legislação municipal. Que tal experimentar essa análise dos dispositivos constitucionais de trás para a frente, começando pelo artigo 182 ao invés do artigo 21? Iniciando pelo artigo 182 creio que estaria garantida a compreensão de que o município é dotado dessa autonomia para legislar sobre o tema. Existe um questionamento no sentido de que o principal fundamento para o desenvolvimento dos condomínios de lotes está assentado no Decreto-lei 271/67, artigo 3°, mas para alguns esse Decreto-lei teria sido revogado. Nossa compreensão é diversa, em especial pelo fato de que recentemente uma lei federal foi editada para alterar a redação de um artigo desse decreto (artigo 7º). Corrobora essa interpretação o fato de que o tema versado no artigo 3° não foi tratado na Lei Federal 6.766/1979. Essa lei trata do regramento de parcelamento do solo para fins de ocupação urbana, nas modalidades loteamento e desmembramento, mas não trata de um empreendimento submetido ao regramento dos condomínios edilícios. Teremos a oportunidade de apresentar a jurisprudência dos tribunais sobre o tema, e de fazer a indicação de algumas leis municipais já existentes, que 2
contemplam o desenvolvimento de empreendimentos dessa natureza. Prosseguindo, destacamos que a tratativa dessa modalidade de empreendimento está prevista em outros três projetos de lei que tramitam pela Câmara dos Deputados, e por um que tramita pelo Senado Federal, dentre os quais se destacam o Projeto de Lei 3.057/2000, da Câmara, e o PL 208/2015, do Senado Federal. Já o PL 12/2017 – projeto de lei de conversão da Medida Provisória 759 – vai permitir a introdução do artigo 1.358-A2 no Código Civil, trazendo expressamente o empreendimento de condomínio de lotes, nos seguintes termos: Artigo 1.358-A. Pode haver, em terrenos, partes designadas de lotes que são propriedade exclusiva e partes que são propriedade comum dos condôminos.
Isso, sem dúvida alguma, será suficiente para que essa modalidade de empreendimento possa ser desenvolvida sem maiores questionamentos de natureza jurídica. Com a introdução desse dispositivo no nosso Código Civil fica superada, finalmente, a celeuma quanto ao reconhecimento de que também “lotes” podem ser considerados unidades privativas no contexto de condomínios edilícios, e não somente aqueles objetos elencados, exemplificativamente, no § 1º do artigo 1.351.
Condomínios de lotes: não há que se falar em criação de um novo direito Arruda Alvim destacava que preencher o conteúdo de um direito é diferente de se criar uma nova modalidade de direito. Não se está criando um novo modelo de propriedade, tampouco um novo direito real, mas apenas se preenche de uma forma diversa e mais proveitosa o conteúdo do direito de propriedade. Essa possibilidade de preencher o conteúdo dos
O artigo 1.358-A foi incluído no Código Civil pela Lei 13.465, de 11 de julho de 2017. (NE)
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direitos é exercida diariamente na nossa atividade quando nos deparamos com os institutos do usufruto, da servidão e da superfície. A bem da verdade, os direitos estão catalogados na codificação civil, mas o seu conteúdo acaba sendo definido pelas partes que se põem a contratar certa modalidade de negócio jurídico. Da mesma forma, na hipótese de criação dos condomínios de lotes, não há que se falar em criação de um novo direito. Francisco Loureiro também reconhece a existência de uma taxatividade rígida na nossa legislação pátria quanto aos direitos reais. Contudo, ainda que haja uma catalogação exaustiva desses direitos reais, existe a possibilidade de se trabalhar com uma tipicidade elástica para viabilizar o preenchimento do conteúdo desse direito de forma mais proveitosa, considerando os aspectos de ordem econômica, que são afetos ao direito de propriedade, bem como considerando os aspectos contemporâneos de ordem fática, a exemplo da busca atual por uma segurança efetiva. Há muito tempo Pontes de Miranda já destacava o instituto da comunhão pro diviso e do condomínio. Na comunhão pro diviso, o que seria o diviso? Seriam as partes integrantes que não deixaram de ser do todo. Cada um se desligou dos demais divisos, porém ficou atado a partes integrantes indivisas. É um misto de comunhão e não comunhão, de divisão e indivisão. Pontes de Miranda traz essa abordagem no contexto da discussão acerca da admissibilidade ou não da existência de comunhões pro diviso e condomínios em áreas absolutamente sem edificação, em solo nu. E há uma indicação de Pontes de Miranda de que desde o Direito Romano havia a constatação dessa possibilidade. Quanto aos aspectos de ordem registral, algumas indagações se impõem. Para aqueles que eventualmente entenderem não ser possível o desenvolvimento dessa modalidade de empreendimento sem que haja prévia previsão em lei federal, a aprovação pelo município e a apresentação do empreendimento para registro oportunizará ao oficial de Registro de Imóveis a denegação do pleito, se valendo para tanto da sua compreensão de que se trataria de uma lei maculada por vício de inconstitucionalidade?
A eventual recusa do oficial registrador alegando a inconstitucionalidade poderia ser discutida no âmbito de um procedimento de suscitação de dúvida? Nós acreditamos que não. Por não se tratar do instrumento adequado para a discussão acerca da constitucionalidade de uma lei, temos, para nós, com todo o respeito às opiniões contrárias, que não haveria muita sorte em se promover a denegação desse registro, acaso verificadas, repise-se, a respectiva lei municipal, editada em consonância com seu plano diretor, bem como a prévia aprovação emitida pelo município.
Diferença entre loteamento fechado e condomínio de lotes Muito importante deixar um esclarecimento acerca da diferença entre loteamentos fechados e condomínios de lotes. Há uma confusão muito grande, inclusive com relação à designação. Muitos chamam os condomínios de lotes de loteamentos fechados e vice-versa. Qual é a diferença substancial que precisamos compreender com nitidez? Ao falarmos em loteamento fechado estamos falando de um empreendimento que, previamente, em uma primeira etapa, constituiu-se por um loteamento normal, aprovado sob o regramento da Lei Federal 6.766/1979, de maneira que, com o registro do empreendimento, uma parcela daquela propriedade, que era integralmente privada, foi afetada ao domínio público, e, a partir de então, constituiu uma comunhão entre coisas públicas e coisas privadas. Em seguida a segunda etapa, através de concessão para o fechamento desse empreendimento, com fundamento nas disposições do artigo 7° do Decreto-lei 271/1967, que permite que seja instituída a concessão de uso de terrenos públicos para fins específicos de urbanização, e a partir de quando, também, vê-se deflagrado o conflito de dois direitos fundamentais: o direito fundamental à segurança, a uma moradia segura, e o direito à liberdade de locomoção. Essa a razão
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PAINEL de nos depararmos com tantos empreendimentos fechados que sofrem questionamentos acerca da sua legalidade, ou seja, não foram aprovados com fundamento no artigo 3° do Decreto-lei 271/1967, mas com fundamento no artigo 7°, ou seja, empreendimentos que num primeiro momento se constituíam, apenas, por loteamentos comuns, e no âmbito dos quais remanescem áreas de domínio público.
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IMPORTANTE DESTACAR QUE AS LEIS MUNICIPAIS PODERÃO IMPOR LIMITES À UTILIZAÇÃO DESSA MODALIDADE DE EMPREENDIMENTO. SE ESSE LIMITE NÃO VIER A SER ESTABELECIDO DIFICILMENTE ALGUÉM IRÁ OPTAR PELO FRACIONAMENTO DO SOLO PARA FINS DE OCUPAÇÃO URBANA SE VALENDO DO REGRAMENTO ESTABELECIDO NA LEI 6.766...
A grande precariedade dessas concessões está assentada no fato de que elas são outorgadas pela edição de uma lei municipal, ou até mesmo por um mero decreto municipal, e com a troca da composição da Câmara de Vereadores ou do chefe do Poder Executivo a compreensão sobre o tema poderá ser alterada. Poderá ocorrer a proposição de uma lei revogando aquela concessão de utilização de solo de domínio público, de uso comum do povo, mas concedido para fins de utilização privativa, ocorrência essa que, por certo, comprometerá a estabilidade jurídica do empreendimento.
Principais características do condomínio de lotes Segundo a proposta do Projeto de Lei 208/2015, do Senado Federal, a formalização do condomínio de lotes se dará por meio da respectiva instituição de condomínio, de maneira que a cada unidade (lote) caberá uma fração ideal no terreno e nas demais partes comuns. Essa fração ideal sempre será proporcional ao número de lotes que vai compor o empreendimento, independentemente da dimensão do lote ou da obra que vier a ser edificada sobre essa unidade autônoma. A edificação a ser erigida sobre o lote certamente
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deverá respeitar os limites da convenção de condomínio do empreendimento, bem como as demais normas de ordem urbanística. Nenhuma parte do imóvel será atingida pelo domínio público, justamente porque não se trata de loteamento, mas de condomínio edilício de lotes, e não havendo o atingimento de uma parcela do empreendimento aos interesses públicos não haverá que se falar em conflito de direitos fundamentais, incongruência verificada nos loteamentos fechados, como visto.
Importante destacar que as leis municipais poderão impor limites à utilização dessa modalidade de empreendimento. Se esse limite não vier a ser estabelecido dificilmente alguém irá optar pelo fracionamento do solo para fins de ocupação urbana se valendo do regramento estabelecido na Lei Federal 6.766/1979, bem como nas respectivas leis estaduais de parcelamento do solo, até porque, em alguns estados da federação, até 35% da área ficará afetada ao domínio / interesse públicos.
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O Poder Municipal poderá estabelecer os respectivos regramentos e limites, a exemplo das zonas da cidade em que esse tipo de empreendimento poderá ser utilizado, e, em cada uma dessas zonas, qual o percentual admitido. Para o equilíbrio dos eventuais aspectos de ordem urbanística a lei municipal poderá exigir, ainda, uma contrapartida, a exemplo da reserva de áreas para destinação de interesse público. Nós acreditamos que essa contrapartida será menor se comparada às de um loteamento comum, até porque não haverá a necessidade de reserva de área para as vias públicas, que se constituem pelo elemento mais oneroso em termos de reserva de áreas públicas.
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Essa contrapartida poderá se dar, segundo a redação do PL 201/2015, mediante a reforma de bens públicos ou ainda pela destinação de parte da área para atender a interesses do município. É importante destacar que essa destinação de área não poderá se localizar no contexto interno do empreendimento, para não voltarmos a ter o conflito de utilização de algo que é de uso comum do povo para fins exclusivos ou privativos daqueles que detêm unidades autônomas (lotes) no empreendimento. Merece destaque ainda o fato de que a responsabilidade pelas despesas de manutenção das coisas e das dependências comuns ficará a cargo exclusivo dos proprietários das unidades autônomas (lotes). A título de curiosidade, uma reflexão se impõe. Será que é a primeira vez que teremos na legislação pátria uma modalidade de empreendimento de condomínio edilício em que a unidade privativa não se constitui por uma edificação? Sempre que se fala em condomínio edilício se pressupõe uma edificação, ao menos no que pertine às coisas privativas. O doutor Gilberto Valente da Silva, em 1995, no Encontro Nacional de Registradores, destacou que a existência de unidades autônomas privativas “sem área construída” no contexto dos condomínios edilícios não é novidade para o direito imobiliário e nem para as serventias prediais. As vagas de estacionamento, quando constituídas por unidades privativas, são um “espaço”, ou seja, a unidade privativa se constitui apenas por “um espaço reservado”. A existência de edificação se limita ao piso e nada mais.
Competências legislativas do município relativas ao direito urbanístico Diversos artigos discorrem sobre o nosso modelo de pacto federativo, e a ideia é a de que temos hoje um pacto federativo meramente formal. No nosso pacto federativo é quase sempre a União ditando as regras, e sempre restringindo os recursos para os entes federados, em especial para os municípios. Portanto, é sintomática essa compreensão de que estamos sempre a depender da União para avançarmos, o que inclui o
avanço legislativo sobre alguns temas. A comprovação de que temos um pacto federativo meramente formal decorre da própria Constituição, que socialmente até é democrática, mas politicamente muito centralizadora, a exemplo dos artigos 153 e 157, que tratam das competências tributárias e da repartição de receitas orçamentárias, em que nitidamente prevalecem os interesses da União. Como dito antes, talvez a dúvida em se admitir que os municípios já são dotados de plena competência legislativa para o desenvolvimento da sua política urbana decorra do extenso rol de competências legislativas atribuídas à União (artigos 21 e 22), num contraponto nítido ao restrito rol de competências legislativas atribuídas aos estados e aos municípios, bem como decorra do fato de que quando tratamos do tema os dispositivos constitucionais correlatos (artigos 21 e 24, que tratam de competências nominalmente da União, e artigos 30 e 182, que tratam de competências nominalmente do município) são analisados em uma ordem sequencial crescente, ou seja, comumente o ponto de partida é o artigo 21, senão vejamos. Art. 21. Compete à União: IX - elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social;
E o artigo 24 reforça: Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: I - direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico;
Importante destacar que os municípios não são citados como legitimados para tratar dos temas elencados no artigo 24, remanescendo como indicativo constitucional suficiente a habilitá-los para tratar dos temas afetos ao ordenamento do território, ao direito urbanístico e ao desenvolvimento da política urbana o artigo 182. A polêmica relativa ao artigo 22, no que diz respeito à competência privativa da União para legislar sobre direito civil, está superada. Estamos tratando de uma
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PAINEL matéria de direito urbanístico, e não de direito civil. Segundo Floriano de Azevedo Marques Neto, o coeficiente básico ou mínimo de aproveitamento do direito de propriedade sempre será matéria de direito civil, enquanto o coeficiente máximo de aproveitamento de um direito de propriedade é matéria afeta ao direito urbanístico. Superadas algumas premissas, chegamos então ao panorama legal que justifica a competência legislativa do município para o desenvolvimento da matéria de direito urbanístico. Há extensa quantidade de dispositivos legais que se relacionam com o tema, em especial com as matérias de desenvolvimento dos planos diretores. A título de exemplo, o artigo 29 da Constituição Federal, que atribui aos municípios o poder de autogoverno, autoadministração e auto legislação. Já o artigo 30, inciso II, dispõe: Art. 30. Compete aos Municípios: II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;
Da análise desse último, destaque-se, deriva a impressão de que o município não detém autonomia para tratar do tema, ou seja, ele somente poderia complementar aquilo que eventualmente tivesse sido tratado de maneira deficitária pela União. Já o artigo 30, inciso I, dispõe que compete aos municípios “legislar sobre assuntos de interesse local”, apontamento esse suficiente, acreditamos, para afastar a dúvida veiculada pelos termos do inciso II, já que impositivo o reconhecimento de que o melhor desenvolvimento do ordenamento do território e da política urbana de um município é do seu substancial interesse. Há ainda dois artigos que, sob a nossa ótica, reforçam essa competência autônoma dos municípios para versar sobre a matéria de direito urbanístico. O primeiro deles, o artigo 30 da Constituição Federal. Art. 30. Compete aos Municípios: VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;
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José Afonso da Silva destaca que as normas urbanísticas municipais são as mais características, porque é justamente nos municípios que se manifesta a atividade urbanística na sua forma mais concreta e dinâmica. Marcos Aurélio Viana, advogado mineiro, destaca que não haveria sentido em atribuir o planejamento urbano ao município e lhe negar as ferramentas necessárias para tanto. Seria disponibilizar ao município a finalidade sem disponibilizar os meios, o que seria uma incongruência. O segundo deles, o artigo 182 da Constituição Federal, pontua que “a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público Municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.” Esse o principal fundamento que atribui competência legislativa ao município para tratar das matérias de direito urbanístico, em especial as relativas ao ordenamento do território e ao desenvolvimento da política urbana. É como se as leis federais e estaduais, que têm autonomia para tratar tão somente das normas gerais afetas à matéria de direito urbanístico, viessem a receber concretude pela legislação municipal. A União jamais poderá determinar, ou eventualmente proibir, o desenvolvimento de empreendimentos com as características dos condomínios de lotes porque não é matéria afeta aos seus interesses. Para alguns municípios o desenvolvimento do condomínio de lotes poderá ser interessante, poderá trazer prosperidade e progresso, enquanto para outros poderá representar uma ordem de desinteresse absoluto. Não há como a União tratar desse tema de maneira uniforme, estabelecendo regras universais para serem aplicadas a todos os municípios. O artigo 2° do Estatuto da Cidade acompanha a orientação do artigo 182 da Constituição Federal. O artigo 182, § 1°, dispõe que o plano diretor é “o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana” e sempre deverá ser desenvolvido de forma a respeitar as funções sociais da propriedade.
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Merece esclarecimento o fato de que o artigo 21 da Constituição Federal não atribui nem legitima uma competência exclusiva da União em direito urbanístico, mas apenas impõe diretrizes gerais, normas muito abstratas a serem observadas pelo verdadeiro legitimado, qual seja, o município, e essa legitimação municipal se funda, em especial, nos artigos 182 e 30 inciso VIII, da Constituição Federal. Para Hely Lopes Meirelles, nada impede que os municípios editem normas urbanísticas adequadas a essas urbanizações. Também abraçam essa tese da legalidade dos condomínios de lotes, independentemente de previsão em lei federal, alguns colegas de atividade, como o advogado Melhim Namen Chalhub e os registradores João Pedro Lamana Paiva, Eduardo Pacheco Ribeiro e Mário Pazutti Mezzari.
Jurisprudência O Recurso Extraordinário 607.940/DF, com repercussão geral reconhecida, pontuou que “os municípios com mais de vinte mil habitantes e o Distrito Federal podem legislar sobre programas e projetos específicos de ordenamento do espaço urbano por meio de leis que sejam compatíveis com as diretrizes fixadas no plano diretor.” Essa é a principal jurisprudência a abrir caminho para o reconhecimento da competência legislativa municipal para o desenvolvimento dos condomínios de lotes, bastando a previsão em plano diretor e em lei municipal específica para tanto. De modo geral, a jurisprudência pacificou os seguintes aspectos: a) a constitucionalidade das leis municipais em razão da sua autonomia normativa sobre política urbana e sobre ordenamento territorial, tudo com fundamento no princípio da prevalência do interesse local,
que decorre do nosso modelo de pacto federativo, em especial fundado nas disposições dos artigos 30, incisos I, II e VIII, e 182 da Constituição Federal, bem como decorre da ausência de afronta ao artigo 22, inciso I, que trata da competência privativa da União para versar sobre direito civil, como também da ausência de afronta ao artigo 24, inciso I, que versa sobre a competência concorrente da União para legislar sobre a matéria afeta ao direito urbanístico; b) o plano diretor deverá observar as diretrizes da política urbana constantes do artigo 2° do Estatuto da Cidade, e a lei municipal deverá estar conforme o plano diretor; c) essa espécie de empreendimento não precisa, necessariamente, constar do plano diretor, bastando constar de lei específica que esteja consoante com as diretrizes do plano diretor; d) não há necessidade de participação popular na elaboração dessa lei específica que venha a versar sobre a possibilidade de criação dos condomínios de lotes, mas tão somente a participação popular para a elaboração do plano diretor do município; e) o direito fundamental à segurança prevalece sobre o de liberdade de locomoção. Não se trata de incoerência, uma vez que essas jurisprudências3 se referem tanto a empreendimentos de condomínios de lotes como de loteamentos fechados; f) a liberdade de locomoção é tolhida pela falta de segurança pública e não pelo fechamento das ruas; g) a necessidade de desenvolvimento desse modelo de empreendimento deriva do medo da violência, e não do instinto de segregação. Finalizando, eu deixo à disposição algumas leis municipais4. Nós identificamos condomínios de lotes de terreno urbano nas leis municipais dos municípios indicados. Posso assegurar que nenhuma dessas leis trata de loteamento fechado, mas de condomínios de lotes.
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Vide http://www.irib.org.br/palestras/view/condominio-de-lotes-de-terreno-urbano
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Vide http://www.irib.org.br/palestras/view/condominio-de-lotes-de-terreno-urbano
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INCORPORAÇÃO DESDOBRADA Condomínio de usos diversificados: aspectos relevantes e repercussão no registro imobiliário Marc Stalder – Advogado especialista em Direito Registral Imobiliário pela PUC MG/IRIB. Especialista em Direito Empresarial UniFMU. Membro da MDDI – Mesa de Debates de Direito Imobiliário. Membro da Comissão de Direito Notarial e de Registros Públicos da OAB/SP. Sócio da área de negócios imobiliários do KLA | Koury Lopes Advogados. Professor convidado do curso de especialização em Direito Imobiliário COGEAE PUC-SP. Membro da MDDI – Mesa de Debates de Direito Imobiliário. Mentor no programa de orientação para jovens advogados do ILN – International Lawyers Network. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário – IBRADIM.
Desde a concepção até a instituição total de um condomínio de usos diversificados há uma série de situações a serem consideradas. Todas elas são passíveis de serem recepcionadas no Registro de Imóveis em benefício do empreendimento e do seu desenvolvimento como um todo, mas conforme as respectivas aprovações urbanísticas.
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respeito do condomínio edilício de usos diversificados, quero apresentar e comentar os fatores que entendo como relevantes e as suas respectivas repercussões no registro imobiliário. Não importa o tamanho do condomínio, mas a diversidade dos usos previstos para as suas diferentes edificações. Ou seja, pode ser um condomínio gigantesco de uso industrial, logístico ou shopping center com torres comerciais, lajes corporativas, um hotel e torres residenciais, ou aquele centro comercial térreo com uma torre residencial agregada. Um único condomínio, mas com diferentes usos. É interessante notar que a partir da análise da origem desse tipo de empreendimento vão nascendo conceitos e características próprias, que vão ter o seu reflexo tratado mais adiante. Esse tipo de empreendimento nasce de uma motivação empresarial específica, a qual se compõe de diversos fatores. Alguns desses fatores são de maior importância para criar essa base legal e fática por onde vamos transitar com esses conceitos e analisar, consequentemente, as suas repercussões no Registro de Imóveis. Por exemplo, pensa-se em um único condomínio quando o parcelamento do solo está fora de cogitação. Quer pelo tamanho do terreno que não comporte o parcelamento, quer em razão da obrigatoriedade da execução de obras de infraestrutura, doação de áreas, etc. Quando o desmembramento representar perda de potencial construtivo pela necessidade de observância de recuos ou o próprio zoneamento e as leis de uso e ocupação do solo podem ser impeditivas
se, cuidadosas no trato da mobilidade urbana, zelarem por evitar o nascimento das chamadas ilhas inacessíveis. Também, quando outras modalidades não forem aplicáveis. Por outro lado, é possível pensar em alguns pontos positivos de um único empreendimento, como o ganho de escala na construção de diferentes edificações num mesmo conjunto ao mesmo tempo, bem como, na possibilidade de usar o direito de denúncia das incorporações dentro do prazo de carência, valendo-se das regras atinentes à implantação desdobrada do empreendimento em diferentes fases consoante as regras estabelecidas na Lei 4.864/1965. Por que não considerar a comodidade ofertada aos consumidores de um local de trabalho intimamente conectado ao local de lazer e de moradia? Ou seja, é fácil notar que as motivações empresariais são fartas e variadas. Sejam quais forem as motivações empresariais, é preciso verificar a viabilidade do empreendimento sob o aspecto da legislação municipal, Lei de Zoneamento e Ocupação do Solo. As questões do planejamento urbano e da mobilidade urbana devem ser levadas em consideração e esses aspectos, dentre tantos outros, como o impacto de vizinhança e o impacto viário, são tratados pela Legislação Municipal e devem ser observados na concepção do empreendimento para sua aprovação. É a aprovação municipal que dá o tom para todas as demais providências, notadamente, para o registro imobiliário de um empreendimento de tal magnitude. Se a lei municipal possibilita a aprovação desse conjunto de edificações com diferentes usos,
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PAINEL para implantação de suas diferentes partes em diferentes momentos, essa viabilidade urbanística vai ser refletida no Registro de Imóveis, porque a partir dela estão disponíveis todas as outras normas básicas que permitem a sua recepção no registro. Depois da legislação municipal, o Código Civil, art. 1.331 e seguintes, que dispõem a respeito da administração e de todas as demais características do condomínio. Particularmente o art. 44, que trata da personalidade jurídica, impondo-se lembrar que inscrição no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas do Ministério da Economia não é fator determinante de personalidade jurídica, como muitos creem ou querem fazer crer. Para que fique claro, condomínio não tem personalidade jurídica e de tal situação decorrem inúmeros desdobramentos. Aliás, atualmente, até um determinado setor condominial pode ter tal inscrição, ainda que na qualidade de uma filial por equiparação. Desenrolando a trama da legislação básica aplicável, para implantação de um condomínio de usos diversificados, senão fundamental, é recomendável antecipar a possibilidade de venda de suas futuras unidades, coerentemente com as diferentes etapas idealizadas para a sua implantação, mediante a incorporação imobiliária. Assim, nos deparamos com as disposições da Lei nº 4.591/1964 a respeito e, notadamente, da Lei nº 4.864/1965 – Lei de Incentivo à Construção Civil. Fica evidente a característica da incorporação imobiliária como uma atividade na qual a Lei 4.864/1965 se insere como chave para a solução de todos os problemas jurídicos inerentes à sua implantação em fases distintas. O seu artigo 6° estabelece que é possível estipular o desdobramento da incorporação em várias incorporações. Ou seja, em fase prévia à existência do condomínio propriamente dito, que é a incorporação imobiliária, existe a possibilidade de implantação em diferentes fases de cada uma, ou de mais de uma, das diferentes edificações que compõem o conjunto desse condomínio. A Lei 6.015/1973 – Lei de Registros Públicos – trata dos atos de registro e dos atos de averbação aplicáveis à recepção no fólio real do empreendimento e do seu encaminhamento de acordo com as respectivas etapas. Interessante notar a ordem dos aconteci-
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mentos registrários relacionados ao empreendimento de usos diversificados, dentre os quais destacam-se o registro da incorporação, acompanhado da declaração a respeito da submissão ao regime do patrimônio de afetação, a averbação do início das vendas de determinada fase, a averbação da revalidação do registro de outra fase, inclusive para fins de início do cômputo do respectivo prazo de carência, o registro da garantia ao financiamento à construção de determinada fase, a averbação da construção e assim em diante. Em São Paulo, as Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça (Seção VIII do Capítulo XX) trazem um item específico a respeito do condomínio, do conjunto de edificações, da implantação desse condomínio em diferentes fases, coerentemente com aquilo que dispõe o art. 6° da Lei 4.864/1965. As corregedorias de alguns outros estados também têm normas a esse respeito. No entanto, salvo engano, o Estado de Mato Grosso não tem nenhuma norma a respeito. Obviamente, essa falta de previsão normativa no âmbito administrativo não significa que não é possível a recepção dos instrumentos formadores do registro de uma incorporação imobiliária de um empreendimento para implantação em diferentes fases, com prazos de carência distintos, pelo registro imobiliário. A estruturação jurídica desse tipo de empreendimento vem de todo esse arcabouço legal. Os conceitos para essa análise são baseados fundamentalmente na unicidade, ou seja, uma única matrícula, representativa de um único imóvel, destinado a um único projeto de construção de um conjunto de edificações, ainda que para implantação em diferentes fases. No futuro vamos vislumbrar um único condomínio. Esse terreno, esse imóvel único, vai ser destinado ao empreendimento que compreende um conjunto de edificações idealizadas pelo empresário de acordo com um projeto de construção viável sob o ponto de vista urbanístico. A partir daí esse projeto único de construção com diversos usos para diferentes edificações constitui um conjunto único com uma única licença administrativa de construir. Porém, a legislação municipal precisa ter previsão de emissão parcial de alvarás ou de renovação parcial de um alvará único para que essa implantação seja desdobrada no tempo,
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bem como, para que a repercussão jurídica dessa implantação desdobrada tenha os efeitos esperados no Registro de Imóveis dos quais, por óbvio, surgirão os direitos a comercializar. Assim, no futuro haverá uma única convenção de condomínio que receberá as diferentes fases implantadas e servirá para regular as relações de copropriedade sob uma representação única. Isso pode parecer muito complicado, mas o desafio de conciliar os diferentes interesses das diferentes edificações desse conjunto deve ser superado por uma convenção de condomínio hierarquicamente organizada e estruturada. Os diferentes usos para os quais as diferentes edificações foram licenciadas estarão nesse único núcleo de estipulações de direitos e obrigações que é a convenção condominial. Ou seja, é preciso estabelecer todas as regras a regularem o complexo no futuro, notadamente, as hipóteses de alterações nas características de suas edificações, nessa convenção condominial, que é um dos principais instrumentos informativos do registro imobiliário da incorporação.
Nomenclatura proposta O que sempre me preocupou nesse assunto é o uso de uma nomenclatura adequada e que não colida com a terminologia das normas a respeito. Por exemplo, ao tratar do condomínio para implantação desdobrado não podemos perder o conceito de que condomínio é o todo composto pelo conjunto das edificações. O síndico é o único representante legal do condomínio, afinal, impõe o Código Civil que cada condomínio seja representado por um síndico. Pessoa física ou jurídica, condômino ou não, mas apenas um. E subsíndico? É o substituto legal do síndico, vale dizer, uma espécie de “vice-síndico” e por isso o uso do termo subsíndico para se referir ao gestor de uma das partes do conjunto ou de um “subcondomínio” não me parece adequado. Já o setor condominial refere-se a determinada parte do conjunto das edificações à qual é atribuída uma fração ideal correspondente à somatória da fração ideal de todas as unidades que compõem esse setor. Tem-se,
então, a atribuição de uma área de utilização exclusiva ou não, conforme definição legal. Nessa estrutura hierarquizada da administração dentro da convenção de condomínio, vamos encontrar o administrador de setor, que pode receber por delegação os poderes para gerir os assuntos daquele setor específico, com interesses igualmente específicos que não dizem respeito aos demais setores. Portanto, a convenção condominial é essa estrutura complexa e apta a regular o condomínio como um todo em seus diferentes setores, num primeiro nível, tratando dos assuntos de interesse de todo o complexo e, em nível secundário e ao primeiro subordinado, dos interesses específicos do setor condominial. A assembleia é o órgão máximo de deliberação e de decisão do condomínio. É preciso que haja uma previsão coerente sobre a forma de realização das assembleias, quer por setores, quer pelo condomínio como um todo, dependendo do tipo de administração. É importante que esse aspecto da administração condominial seja tratado da forma mais inteligente possível, sem perder a legalidade. Dessa legalidade advém a solenidade da assembleia do condomínio (e não do setor condominial), que pode ser, por exemplo, realizada pelos administradores de cada setor com os respectivos votos colhidos em seus setores, tendo-se um quórum de setor para aprovação dos assuntos de interesse exclusivo do setor e, do condomínio como um todo, para os assuntos de interesse geral. O quadro de áreas nos termos da NBR 12.721 é peça fundamental na estruturação jurídica de um empreendimento dessa natureza. É nele que, de acordo com as características do projeto de construção aprovado, estarão estabelecidas as partes de propriedade exclusiva ou unidades autônomas e as partes de propriedade comum, geral, de todo o condomínio, ou especiais, de um ou mais de um dos setores condominiais, tudo de acordo com as definições que foram dadas pelo empreendedor. Por exemplo, área comum de uso geral, de uso de todos os condôminos de todos os setores. Há aí uma pequena discussão, se é realmente necessário que essa área exista no condomínio de usos diversificados. Eventualmente, de acordo com a
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PAINEL lei e pelo fato de que essa área vai ter uma expressão irrelevante em termos de despesa ou de representatividade da função no condomínio, pode ser defensável que ela não é necessária. Existem ainda as áreas comuns de uso exclusivo de um determinado setor condominial ou uma área comum de uso exclusivo de mais de um setor condominial. As possibilidades estão sempre vinculadas àquilo que o projeto de construção aprovado permite e àquelas regras que são preestabelecidas pelo empreendedor, coerentemente com a previsão legal.
Incorporação desdobrada Na implantação desse conjunto de edificações em etapas, a incorporação imobiliária ganha relevo. Para a incorporação imobiliária de um conjunto de edificações o termo incorporação desdobrada é comum. Diz respeito ao empreendimento que se efetiva em diferentes etapas no tempo e no espaço. A efetivação no tempo é fácil de entender, pois é autoexplicativa. E no espaço? Ao me referir ao espaço, quero remeter o leitor à necessidade de delimitar dentro desse terreno destinado ao empreendimento de usos diversificados o espaço que vai receber cada uma das partes das diferentes edificações do conjunto. E o condomínio como um todo? De novo, se a Lei 4.865/1965 indica que a incorporação será desdobrada em várias incorporações, ela se refere à atividade. Quando se fala em atividade, o termo é coerente com aquilo que vai ser realizado antecipadamente ao condomínio, que vai existir com a obra pronta. É inexorável o fato de que em algum momento futuro todas as edificações estarão concluídas e o condomínio integralmente constituído. Aqui um parêntese se faz necessário, pois, eventualmente, podemos alcançar um momento e uma hipótese de não ter todas as edificações concluídas. Essa hipótese também precisa ser tratada num primeiro momento, logo nos instrumentos informativos do registro da incorporação imobiliária, especialmente nas disposições transitórias a respeito da implantação na minuta da futura convenção condominial. A instrução do registro imobiliário do empreendi-
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mento de tal natureza depende, também: - da apresentação do cronograma de implantação acompanhado das obrigações atinentes à observância dos prazos de vigência das licenças ou de suas revalidações; - do estabelecimento das disposições especiais, coerentemente com o cronograma, relacionadas ao exercício do direito de denúncia da incorporação de determinado setor e seus efeitos, inclusive na hipótese de alteração do projeto para aquele setor, conciliando-se o art. 43 da Lei 4.591/1964 com o desdobramento da incorporação, e na hipótese de desistência definitiva.
Memorial de incorporação e minuta da convenção condominial são fundamentais É importante que o prazo para a implantação das diferentes etapas do empreendimento, assim como a solução para algumas situações que podem ser deveras problemáticas, estejam presentes nos instrumentos formadores do registro imobiliário. Se a licença de construir caducar, por exemplo, é preciso tratar de sua revalidação e dos efeitos que essa caducidade pode gerar para o empreendimento. Na minuta da futura convenção condominial é preciso tratar das disposições especiais coerentemente com o cronograma de implantação. Além de todos esses diferentes aspectos a serem conciliados nessa estruturação complexa também se faz necessário conciliar eventual exercício do direito de denúncia da incorporação dentro do prazo de carência. O exercício do direito de carência e a possibilidade de alteração do projeto visa proteger o empreendedor e, até mesmo, o desenvolvimento urbano do município, a permitir o seu uso, inclusive, para adequação do projeto a um novo produto. O exercício do direito de denúncia na incorporação impõe medidas que têm reflexo no Registro de Imóveis, como a alteração do projeto de determinado setor. Sintetizando, dentre todos os documentos que informam o registro imobiliário (art. 32 da Lei 4.591/1964), é fundamental que o memorial de incorporação e a mi-
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nuta da futura convenção condominial prevejam todas as regras necessárias ao exercício de tal direito e à mudança do projeto de construção. É óbvio que tudo aquilo que se dispõe de acordo com os projetos e os quadros de área, por sua vez elaborados com base nesse projeto, encontram limites no que a lei estabelece. Esse material organizado é submetido à qualificação do Oficial e a ela está sujeito. Não deverá o Oficial adentrar àquilo que cabe ao empreendedor, mas se ater ao exame da legalidade de toda restruturação jurídica do empreendimento.
Atos registrários na incorporação desdobrada Nessa linha de implantação desdobrada do condomínio, os atos de registro na matrícula de origem do empreendimento se desenvolvem a partir do registro imobiliário da incorporação. A incorporação imobiliária com todas as suas características e disposições; a instituição parcial atinente à primeira etapa de implantação do condomínio e da convenção condominial, seguindo-se aos registros da instituição parcial das etapas que se seguirem. O condomínio vai sendo instituído nas suas diferentes etapas, parcialmente, até a instituição total. E cada etapa de instituição é um registro. Por sua vez, os principais atos de averbação nesse caminho de implantação do condomínio compreendem aquele atinente à conclusão das obras, ao habite-se de cada uma das etapas de implantação do condomínio e assim por diante. Interessante é a averbação típica desse tipo de empreendimento correspondente ao comunicado de lançamento. É necessário comunicar ao Registro de Imóveis o lançamento de determinada etapa e a averbação desse comunicado tem que ser precedida, se aplicável, à revalidação de todos os documentos instrutores da incorporação imobiliária. E esse comunicado de lançamento é o termo inicial do prazo de carência. Em relação à abertura das matrículas, a prática mais comum no Estado de São Paulo é que as matrículas recipiendárias das unidades autônomas
integrantes das etapas concluídas sejam abertas no momento de instituição do condomínio. As matrículas do imóvel – unidade autônoma – vão ser abertas quando houver o registro da instituição do condomínio, quer seja por conta de um primeiro ato de registro, um contrato de comercialização levado a registro, ou por requerimento do próprio interessado.
Copropriedade anterior ao registro imobiliário da incorporação e a divisão atípica A copropriedade no terreno anterior ao registro imobiliário da incorporação é a do condomínio geral prevista no Código Civil, na qual diferentes pessoas são coproprietárias do imóvel nas suas determinadas partes ideais. A partir do registro imobiliário da incorporação, as futuras unidades autônomas nele previstas passam a ser objeto de direito, pois, afinal, é possível vendê-las. Se assim o é, é possível onerá-las ou dividi-las. Aí surge a divisão atípica para os fins de extinção da copropriedade sobre as futuras unidades e sua atribuição à propriedade exclusiva de uma determinada pessoa. Essa extinção é feita em equivalência aos quinhões de copropriedade no terreno que se reflete nos quinhões de copropriedade das futuras unidades de determinados setores. Ou seja, o empreendedor A tem uma fração ideal de terreno de 45% e o empreendedor B tem fração ideal de 55%, sendo que as unidades residenciais somam uma fração ideal de 45% e as unidades comerciais uma fração de 55%. Faz-se a extinção dessa situação, para fins de atribuição da propriedade plena das futuras unidades dos setores do empreendimento para cada pessoa em correspondência aos seus quinhões originais. O registro dessa divisão atípica parece-me ter lugar na matrícula de origem do empreendimento, podendo ser feitas anotações nas fichas complementares de forma a levar para o Registro de Imóveis a informação a respeito dessa propriedade. Coerentemente com a vocação do empreendedor é interessante notar o efeito da divisão atípica fazendo com que cada um dos antes coproprietários se sub-rogue nos direitos e obrigações, nas vantagens
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PAINEL e nas responsabilidades da incorporação que assumiu a propriedade plena dentro desse contexto da incorporação desdobrada. O empreendedor A, que ficou com as unidades daquele setor para comercialização e com o recebimento do resultado da venda, vai ter que fazer frente aos custos de construção e assume a responsabilidade por aquela incorporação.
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AS MATRÍCULAS DAS UNIDADES AUTÔNOMAS VÃO SER ABERTAS QUANDO HOUVER O REGISTRO DA INSTITUIÇÃO DO CONDOMÍNIO, QUER SEJA POR CONTA DE UM PRIMEIRO ATO DE REGISTRO, UM CONTRATO DE COMERCIALIZAÇÃO LEVADO A REGISTRO, OU POR REQUERIMENTO DO PRÓPRIO INTERESSADO.
Por se tratar de divisão, ainda que atípica, nessa operação não há transmissão de propriedade por se tratar de atribuição de propriedade plena antes detida pelos que eram os coproprietários no condomínio geral, no terreno. Por óbvio, não há incidência do Imposto de Transmissão.
Nesse contexto eu ouso afirmar que a responsabilidade entre os incorporadores é uma questão absolutamente afastada do registrador e da sua responsabilidade. Se a responsabilidade não decorre da vontade dos incorporadores e não decorre da lei – porque a lei, permitindo o desdobramento da incorporação e diferentes incorporações, permite essa sub-rogação de diferentes pessoas nessas diferentes incorporações –, então não há solidariedade, salvo se as partes assim convencionarem ou se, perante o adquirente das unidades, um participa da oferta do outro e se obriga perante o consumidor.
Alienação dos setores do empreendimento por implantar A outra questão que se coloca diz respeito à alienação dos setores do empreendimento por implantar. Não se trata mais de copropriedade, mas de uma situação em que um único incorporador fez o registro imobiliário da incorporação e aliena a fração ideal total vinculada àquelas futuras unidades que
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representem a integralidade de um determinado setor condominial para outro empreendedor. Este, por sua vez, assume os direitos e obrigações da incorporação imobiliária desse setor determinado. Esse ato demanda uma averbação.
Uma vez existindo a figura de um novo incorporador para determinada incorporação, é óbvio que ele precisa cumprir todos os requisitos do art. 32, e do restante da Lei 4.591/1964, em relação à documentação que deve instruir esse registro. Nessa hipótese vislumbro um registro na “matrícula mãe”, na matrícula de origem do empreendimento, com transmissão de propriedade e, por óbvio, deve ser feito mediante a comprovação do recolhimento do correspondente Imposto de Transmissão. Aqui parece-me haver mais clareza quanto à assunção dos direitos e obrigações da incorporação imobiliária desse setor determinado e à separação das responsabilidades. As hipóteses de responsabilidade solidária ficam para o caso de participação na oferta ou para a existência de algum tipo de interferência entre um e outro na comercialização do empreendimento.
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É importante dizer que essa venda das frações ideais vinculadas às futuras unidades com a sub-rogação pelo adquirente dos direitos e obrigações de determinada incorporação imobiliária não significa venda de unidades futuras, não significa que se concretizou a incorporação imobiliária. Se não se concretizou, se não significa venda de futuras unidades, aquele incorporador está sujeito às mesmas regras do comunicado de lançamento, de se valer do direito de denunciar a incorporação imobiliária daquele setor dentro do prazo de carência, etc., como vimos até aqui. Há um aspecto interessante quando falamos de shopping center num empreendimento como esse, aspecto que se desdobra em duas situações diferen-
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tes. A primeira delas é a situação de um centro comercial com comercialização de unidades lojas, ou seja, uma exploração da atividade comercial pulverizada. O empreendedor vende as futuras unidades lojas para diferentes pessoas interessadas em abrir seus respectivos negócios, investir, etc. Casos concretos desse contexto mostram que convergir os interesses de diferentes proprietários, ainda que em uma convenção de condomínio bem preparada, é muito difícil. A grande dificuldade reside no estabelecimento da diversidade de lojas desse shopping center, muitas vezes restritiva do direito de propriedade, de usar, fruir, gozar e livremente dispor. As situações se desenrolam normalmente em prejuízo do empreendimento, que deixa de ser atrativo e passa a ser fonte de inúmeros problemas. Na segunda hipótese não existe comercialização de lojas. O empreendedor constrói o shopping para explorar. Esse shopping vai ter grandes unidades, por exemplo, duas: uma unidade autônoma estacionamento e uma unidade autônoma lojas. Nesse caso, o empreendedor administra como quiser essa unidade autônoma. Ele pode aumentar ou reduzir o tamanho das lojas porque tem mobilidade. A experiência mostra que esse modelo tem sido mais relevante para o sucesso de um empreendimento e o desenvolvimento de todo o entorno. Se cabe ao Oficial na qualificação do título para registro prevenir litígios, poderia ele adentrar nesse emérito e, eventualmente, impedir o acesso ao registro de um empreendimento idealizado no primeiro modelo. Creio que não, apesar de imbuído da melhor das intenções.
Patrimônio de afetação e registro da incorporação desdobrada Há uma preocupação dos empreendedores com relação ao patrimônio de afetação e registro imobiliário da incorporação desdobrada. Tão importante quanto a possibilidade de se dispor de diferentes fases para a implantação do empreendimento e de prazos de carência para cada uma dessas fases, é que se possa submetê-los ao regime do patrimônio de afetação. A solução está na redação
do art. 31-B, da Lei 4.591/1964, que dispõe que o regime do patrimônio de afetação é constituído mediante averbação, a qualquer tempo, no Registro de Imóveis. E num conjunto de edificações, tal como definido no art. 8° da mesma lei, é possível usar patrimônio de afetação para cada um dos setores da incorporação desde que essa opção esteja informada no memorial de incorporação. Uma última anotação diz respeito à capacidade jurídica, àquilo que se vislumbra quando pensamos no art. 44 do Código Civil. Essa desejada autonomia funcional de cada um dos diferentes setores está numa linha muito tênue que a separa das limitações legais e, às vezes, da própria ilegalidade. O que é fora do contexto civil e registral é a unicidade do condomínio. Ou seja, se o condomínio é único, sujeito a uma representação centralizada, ainda que o poder do síndico possa ser delegado a pessoa jurídica, isso não dá ao condomínio personalidade jurídica, muito menos aos seus setores condominiais. Não é a inscrição no CNPJ, não é a capacidade postulatória, não é a capacidade de contratar, não é nada disso que vai dar ao condomínio personalidade jurídica. Ele vive nesse regime de exceção, ele tem capacidade postulatória porque a lei lhe atribui essa capacidade. Em dezembro de 2016, a Receita Federal deixou esse assunto ainda mais interessante. A Instrução Normativa RFB 1.684 equiparou o setor condominial à condição de filial, permitindo sua inscrição no CNPJ. Os efeitos práticos disso podem ser: reduzir a burocracia, facilitar a administração de determinado setor que precisa emitir nota por conta de exploração de estacionamento, etc. No entanto, manteve-se inalterada a circunstância a respeito da personalidade jurídica do condomínio. Da constituição até a instituição total de um condomínio como esse, eu gostaria de passar a ideia dessa diversidade de situações. A meu ver, todas elas – se tratadas de acordo com as normas legais, com as normas relacionadas ao direito do consumidor e com as normas fiscais – podem ser recepcionadas no Registro de Imóveis em benefício do próprio empreendimento e do desenvolvimento como um todo.
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Condomínio Edilício e Incorporação: temas sensíveis aos construtores e aos novos registradores Roberto Lúcio Pereira – Oficial de Registro de Imóveis em Recife (PE) e membro da Comissão do Pensamento Registral Imobiliário (CPRI)
Por que revalidar o memorial de incorporação imobiliária se houve renúncia do incorporador ao prazo de carência do art. 34 da Lei 4.591/1964? Por que registrar instituição de condomínio se há incorporação imobiliária registrada e não há mudança no projeto? O palestrante comentou essas e outras questões levantadas por construtores ou relacionadas à atuação prática nas serventias. 68
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emos muitas coisas que conversar sobre o condomínio edilício, mas eu me lembrei de que temos recebido novos colegas na atividade. Eu mesmo estou há oito anos no Registro de Imóveis, por isso gostaria de compartilhar alguns aspectos que me parecem importantes ou curiosos, notadamente para aqueles que estão chegando nas serventias e vão ter que lidar com uma atuação prática. Quando iniciei a minha atividade, em Pernambuco, eu assumi um cartório na capital e era um pouco arredio em relação aos construtores, advogados e pessoas que militavam no mercado imobiliário. Eu estava com medo! Algum tempo depois, um registrador de mais experiência foi conversar comigo e me disse que eu tinha que receber as pessoas e esclarecer as questões; que nem sempre o que as pessoas querem é que a vontade delas prevaleça, mas elas desejam ser ouvidas e precisam ser esclarecidas. Logo em seguida, recebi um convite para ir a um almoço na Associação das Empresas do Mercado Imobiliário de Pernambuco – ADEMI/PE e decidi comparecer. Havia muitos construtores presentes e eles me deram a palavra. Eu fiz uma pequena apresentação com muito receio. Ao terminar, um construtor daqueles que eu não atendi e que já não gostam de cartório mesmo quis fazer algumas perguntas. Ele disse: “Estou com um empreendimento para terminar a regularização lá na serventia do senhor. Foi tudo feito: a incorporação imobiliária, o prédio está pronto, temos o habite-se. E agora o senhor quer uma tal de instituição de condomínio. E tudo o que o senhor está pedindo está no memorial de incorporação, não houve nenhuma alteração de projeto. E outra, existem colegas seus que simplesmente averbam a construção e nós temos as unidades, e o senhor agora está criando um entrave. A não ser que seja o senhor usando a sua inteligência para poder tirar mais dinheiro do construtor.” Eu fiquei quieto e ele emendou a segunda pergunta. “E tenho uma segunda pergunta. Tenho um em-
preendimento em construção. É lá no cartório do senhor. Vendemos uma unidade, o usuário foi lá registrar e o senhor agora quer que eu faça a incorporação imobiliária de novo, o que já está feito e registrado há mais de um ano. O senhor chama de revalidação. Fui pesquisar. É porque há um prazo de carência e eu poderia me arrepender. Eu respondi à exigência do senhor dizendo expressamente no memorial que eu afastei a possibilidade de direito de arrependimento sem prazo de carência. Mas mesmo assim o senhor insiste em revalidar o memorial de incorporação, sendo que há colegas seus que nem sabem o que é isso nem nunca fizeram. A não ser que o senhor esteja usando o conhecimento do senhor para tirar mais dinheiro do construtor.” Eu poderia ter dito a ele para me respeitar, porque estava me tratando como mercenário, levantar e sair. Mas o bom senso não me deixou fazer isso. Eu respondi: “Eu quero agradecer a oportunidade de conversarmos temas que são tão relevantes para a vida da construção civil e do Registro de Imóveis. E eu preciso fazer um reconhecimento aqui. Não se espera e nem é dever do senhor ter que estudar e ver esses detalhes meio etéreos de instituição de condomínio e de revalidação”. Essas duas questões que aquele senhor me fez, e que eram da maioria, são muito sensíveis aos construtores e penso que é muito importante respondê-las. Ou seja, por que registrar uma instituição de condomínio se há uma incorporação imobiliária que está registrada e não há mudança alguma do projeto? Depois de construir, chega o habite-se, e estaria tudo pronto, não é mesmo?
Por que registrar instituição de condomínio? Foi importante conversar com aqueles construtores para poder dizer: “O senhor sabe qual é o conceito de incorporação imobiliária na Lei 4.591/1964 e o primeiro esclarecimento que há no art. 28? É que a incorporação imobiliária é uma atividade. É uma atividade para o construtor construir e vender uma coisa que não existe. Isso é incorporação. Sem a incorporação imobiliária o senhor não pode pôr à venda um aparta-
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POR QUE REVALIDAR O MEMORIAL DE INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA SE HOUVE RENÚNCIA DO INCORPORADOR AO PRAZO DE CARÊNCIA DO ART. 34 DA LEI 4.591/1964? ELE RENUNCIOU AO DIREITO DE ARREPENDIMENTO.
mento que não existe porque está sujeito à criminalização. A incorporação existe para que o senhor possa fazer uma coisa que ninguém pode fazer, que é vender algo que não existe. A incorporação lhe permite isso. E ela tem sim todo um regramento porque é preciso dar um mínimo de segurança a essa atividade, com o senhor dizendo que tem condições e idoneidade para construir e os adquirentes verificando que as coisas são de fato assim, confiando na sua palavra, mas confiando também em todo aquele protocolo de intenções regularmente registradas. Mas a incorporação, diferentemente do que o senhor possa imaginar, não cria as unidades autônomas do condomínio edilício. O que cria as unidades autônomas, juridicamente, é a instituição de condomínio com a averbação do habite-se da construção”.
E aqui eu não vou entrar no debate a respeito da possibilidade do registro de instituição de condomínio antes do habite-se porque eu sei que suscita muitos debates. Muitos estados já normatizaram essa questão. Neste parêntese termino com a sabedoria do IRIB: “recomendamos que verifiquem as normas dos seus estados” – se houver, pode seguir. Fecho aqui o parêntese. Então, eu disse ao construtor: “A instituição de condomínio é que criará a sua unidade autônoma, que agora passa a ter existência jurídica própria porque é assim que está descrito na Lei 4.591/1964 e na Lei 6.015/1973, ou seja, como sendo registros distintos: incorporação e instituição. É assim que está no nosso Código Civil.”. E apenas para reforçar essa primeira tese eu leio, no Processo 1403-94, decidido na Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo: “O registro da incorporação, que antecede a edificação do prédio e serve antes de tudo a viabilizar o início da negociação das unidades autônomas a serem erigidas, em nada se
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relaciona com o nascimento jurídico dessas unidades do condomínio, ainda não instituído. Ele não pode prestar-se a suprir o registro posterior da instituição e especificação condominial.”
Eu aprendi que vale a pena parar para esclarecer os construtores a respeito de pontos que são sensíveis a eles. E não pensem que a questão é trivial. Uma importante unidade da Federação teve uma decisão da Corregedoria, em tempo pretérito, dizendo que, se há incorporação imobiliária, não é preciso fazer registro de instituição de condomínio, bastando o habite-se, certamente por desconhecer a distinção clara entre os dois institutos jurídicos previstos na legislação.
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Renúncia ao prazo de carência: por que revalidar o memorial de incorporação? A segunda questão daquele construtor então foi: por que revalidar o memorial de incorporação imobiliária se houve renúncia do incorporador ao prazo de carência do art. 34 da Lei 4.591/1964. Ele renunciou ao direito de arrependimento. Ora, no período de 180 dias, o incorporador pode desistir de incorporar por diversas razões, dentre as quais as dificuldades do próprio empreendimento. E ele dizia: “Se eu renunciei ao direito de me arrepender, se eu afastei expressamente o prazo de carência, então eu já disse que vai sair esse prédio de qualquer jeito. Eu não volto atrás. Então não há que se falar em concretização da incorporação nem de o senhor querer revalidar, salvo se o senhor quiser tirar dinheiro do construtor.” Então eu fiz uma pergunta. “Esse prazo de carência protege quem: o incorporador ou o adquirente? A lei estabeleceu isso para proteger quem?”.
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Ele ficou assim, meio quieto. Eu disse: “É um prazo para proteger o incorporador, para proteger o senhor. O senhor pode arquitetar um empreendimento e lançá-lo, mas se o mercado for tão arredio ao empreendimento que em 180 dias ele não deslancha, então há uma proteção para o senhor desistir. Só que o senhor está pensando com o raciocínio do prazo de carência, que é a proteção do incorporador, mas o senhor precisa se lembrar de que a lei estipula um prazo de 180 dias para a proteção do adquirente.” São duas coisas distintas. O art. 33 e o art. 34 da Lei 4.591/1964 são coisas diametralmente opostas. O chamado prazo de validade do memorial de incorporação, de 180 dias, é uma proteção do adquirente. Os 180 dias do prazo de carência do direito de arrependimento é uma proteção do incorporador. Então eu dizia para ele: “O senhor está cheio de boas intenções, o senhor quer construir, o senhor renuncia ao direito de arrependimento. Mas em 180 dias o senhor não só não vende, como o senhor não constrói, como, pior, ocorrem coisas esquisitas no cenário macroeconômico e de repente a sua empresa é laçada pelos problemas da vida e não tem mais idoneidade. Imaginemos isso. O senhor pode deixar de lado esse memorial de incorporação e daqui a um ou dois anos querer começar essa mesma incorporação registrada para poder vender? Não, porque agora vem a proteção do adquirente. Depois desses 180 dias sem conseguir fazer nada, se o senhor ainda quiser construir e vender as unidades na planta, o senhor tem que provar que mantém a idoneidade, o senhor tem que provar que mantém o projeto, o senhor tem que revalidar porque agora é benefício do adquirente.” Alguém que registrou uma incorporação imobiliária há dois anos pode não ter mais condição de registrá-la hoje. E mais uma vez, para encerrar, depois do relacionamento iniciado naquele dia eu não posso dizer que aquele construtor hoje goste de cartório, mas ele vai conversar comigo várias vezes – e como ele gosta de explicações!
Aqui, para reforçar o ponto, eu quero ler o trecho do acórdão da Apelação Cível 525-6/8, de São Paulo: “O artigo 34 da mesma Lei faculta a fixação de prazo pelo incorporador para efetivação da incorporação, dentro do qual este poderá desistir do empreendimento. Este prazo dentro do qual é possível desistir do empreendimento, é denominado prazo de carência. Não se confunde prazo de carência com prazo de validade do registro. A regra do citado artigo 33 é aplicável tanto na hipótese de fixação do prazo de carência, quanto na hipótese na qual não se estabelece carência.”
E se o registrador não exigiu revalidação do memorial de incorporação? E se não exigiu instituição de condomínio após a incorporação imobiliária? Eu vou comentar agora alguns aspectos práticos das serventias. Como agir quando encontramos no acervo aquelas situações que não são tão adequadas? Por exemplo, o caso de uma incorporação que ficou esquecida em 2000, mas em 2010 o registrador anterior começou a registrar. A incorporação foi reativada de alguma forma sem revalidar, sem essa nova configuração de idoneidade subjetiva e objetiva tanto do incorporador quanto da obra. O registrador anterior não exigiu a revalidação do memorial de incorporação, registrou contratos após os 180 dias do prazo de validade do art. 33 da Lei 4.591/1994, e vêm sendo feitas transferências. Ou seja, aquela incorporação que não foi concretizada não permitiria que cinco anos depois começassem a chegar os primeiros contratos, mas o registrador aceitou e os contratos estão lá registrados. E se o registrador anterior não exigiu a instituição de condomínio após a incorporação imobiliária e todas as unidades já estão edificadas e descritas em matrículas próprias, com convenção de condomínio registrada? Ele tinha aquela lógica de que a incorporação imobiliária faria as vezes de instituição de condomínio. Ele já averbou o habite-se e registrou convenção de condomínio sem instituição.
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PAINEL Você chega na serventia e essas situações estão lá. O que fazer? Vou ler um pequeno trecho de acórdão da Apelação Cível 525-6/8, de São Paulo, que enfrentou situação bastante semelhante a que eu mesmo encontrei quando há três anos assumi interinamente o serviço de Registro de Imóveis no meu Estado. “Registro de Imóveis – Dúvida – Registro de escritura de compra e venda de unidade autônoma negado, sob alegação de que é necessário revalidar o registro da incorporação – Recusa indevida – O descumprimento da exigência do artigo 33 da Lei nº 4.591/64 não deve impedir o registro de título no qual o imóvel nele negociado não é mais da titularidade do incorporador.”
Vamos ver qual é a situação aqui e qual é o bom senso jurídico nesse julgado a respeito do tema. Aquele incorporador não se desincumbiu do seu mister de revalidar sua incorporação imobiliária – ela ficou lá esquecida e anos depois, sem demonstrar a sua idoneidade subjetiva e objetiva, ele começou a vender os imóveis na planta. Ele vendeu para o José e o José foi ao cartório e registrou. E agora você é o novo registrador. Você verifica que é uma situação meio esquisita, que você jamais teria feito daquele modo. O José, que adquiriu o bem e o registrou de uma forma que você não registraria, vende agora para a Maria. Se fosse uma unidade autônoma, ainda em nome da incorporadora, seria razoável pedir a revalidação. Mas, se já foi registrado em nome do José, que usou essa certidão para poder vender para uma terceira pessoa, e eu exigir do José que ele revalide a incorporação, eu vou criar uma “sinuca de bico” sem solução. Aqui é uma questão de bom senso. É óbvio que um erro pretérito não justifica um erro futuro. Não é assim: “o antigo registrador registrava”. Não é justificativa. Se o registrador antigo errou, pedimos perdão, você vai perdoar e vamos fazer certo daqui para a frente. Mas nós precisamos usar algum bom senso jurídico para lidar com situações peculiares como essas. E nós temos o princípio da fé pública, da publicidade registral, da eficácia erga omnes, da validade dos regis-
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tros até que eles sejam judicialmente anulados na certidão que foi emitida, permitindo que o José vendesse aquela unidade. Não é razoável agora pedir para o José que ele revalide o memorial de incorporação, uma vez que não foi esse o tratamento dado na gestão passada, antes que ele registrasse em seu nome. O mesmo princípio eu usaria para aquela situação por mim enfrentada. O registrador anterior tinha uma compreensão jurídica de que a incorporação imobiliária fazia as vezes da instituição de condomínio. E ele não só abria as matrículas, como averbava construção, registrava convenção de condomínio. Agora eu tenho uma pluralidade de vendas registradas. O que fazer, indisponibilizar o empreendimento? Talvez isso não seja razoável depois que terceiros se valeram da fé pública, da publicidade e da presunção de legitimidade de todos os nossos atos para realizar as suas compras e vendas, sendo que até mesmo a convenção de condomínio foi registrada. Em resumo, considerando situações, como as acima descritas, não me parece razoável e, na verdade, atenta contra os princípios da fé pública, legitimação e publicidade registral, o novo registrador formular exigências atualmente que, por não terem sido formuladas anteriormente, já permitiram a abertura de matrícula, o aperfeiçoamento de atos, a constituição de direitos reais e a alienação a terceiros. É preciso garantir a validade jurídica das matrículas e atos constantes do registro de imóveis, enquanto não declarada a sua nulidade em processo específico.
Registro de títulos: prédio antigo, habitado, sem habite-se nem instituição de condomínio Como lidar com prédios antigos, fruto de incorporação imobiliária, já completamente habitados, mas sem habite-se emitido, em razão do descumprimento de regra urbanística municipal? Teria a incorporação prazo de validade após sua concretização inicial? Encontro situações de prédios com incorporações registradas ainda em um tal livro oito antigo (antes da
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Lei 6.015/1973). Nunca foi levado o habite-se ao cartório, nem a instituição de condomínio, mas com base naquela incorporação vêm sendo realizados os registros dos títulos. Você conhece, passa por lá e vê o prédio antigo, as pessoas moram lá e a única coisa que existe é uma incorporação. Será que ao chegar um novo título você registraria a transferência de uma unidade futura naquele prédio de trinta anos? É uma situação peculiar, não?
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VOCÊ NÃO FAZ SURGIR JURIDICAMENTE E FORMALMENTE AS UNIDADES ENQUANTO NÃO HOUVER INSTITUIÇÃO DE CONDOMÍNIO E HABITE-SE PARA AVERBAR, MAS VOCÊ TAMBÉM NÃO NEGA VALIDADE JURÍDICA À INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA REGISTRADA.
A incorporação imobiliária foi registrada, ela foi concretizada, tem inclusive registros, já se passaram cinco, dez, quinze, vinte, trinta anos e você sabe que as pessoas habitam o imóvel. Mas eu quero trazer um dado novo. Você sabe que o habite-se não foi emitido por um problema urbanístico. Isso é comum na nossa cidade. O prédio pode ter a idade que for, mas agora a prefeitura quer uma acessibilidade perfeita para portadores de deficiência física, por exemplo. E há prédios em que isso é impossível. Como se faz? O caminho seria: “traga o habite-se, vamos instituir esse condomínio, vamos regularizar de uma vez por todas”. E se não há habite-se? Você vai dizer: “eu não registro”. Eu sei que está pronto, eu sei que as pessoas moram lá, a prefeitura sabe que a obra está concluída e só não emite o habite-se porque há um problema urbanístico. A minha pergunta é: poderíamos atrair uma nova restrição de validade à incorporação? Eu encontrei um desses julgados que me ajudaram a resolver o caso concreto, decisão da Apelação Cível 500-6/4, de São Paulo. “Registro de Imóveis – Dúvida procedente – Escritura pública de venda e compra de frações ideais de terreno objeto de incorporação – Ausência de “habite-se” que possa dar lastro à exigência de prévia averbação da construção das edificações e, daí, ao registro da instituição do condomínio edi-
lício – Comunicação da Prefeitura ao INSS, noticiando “conclusão de obra”, que não tem força de “habite-se” inscritível, observada a divergência de área construída, que sinaliza alteração da planta aprovada e arquivada na serventia predial – Qualificação registrária, ademais, jungida ao caráter formal, que afasta considerações em torno de elementos extratabulares – Registro viável – Recurso provido.”
O caso desse processo é exatamente o que eu comentei. O prédio é antigo, as pessoas já moram lá. Eles até conseguiram essa declaração de que a obra foi concluída, mas que não tem habite-se. Pagaram o INSS, mas há restrições. O habite-se não é emitido, não se averba a construção. Pode o registrador adentrar nesses aspectos extratabulares para dizer: “Eu não posso mais registrar porque ele não está mais em processo de construção”?
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Nesse julgado a compreensão é de que a incorporação imobiliária, uma vez concretizada, não teria novo prazo de validade. Você não faz surgir juridicamente e formalmente as unidades enquanto não houver instituição de condomínio e habite-se para averbar, mas você também não nega validade jurídica à incorporação imobiliária registrada.
Conclusão Certamente, é função do Registrador Imobiliário conhecer e se manter atualizado quanto às normas de regência de sua atividade, mas é importante ir além, dedicar-se a esclarecer, em linguagem acessível e com muito respeito, as dúvidas manifestas pelos nossos usuários sem, contudo, abandonarmos o bom senso de, em situações específicas, notadamente quando há mudança de titularidade, agir com prudência e sabedoria para, de um lado, não preservar erros do passado e de outro, não criar entraves intransponíveis àqueles que se valeram da presunção de legitimidade dos atos outrora praticados na serventia.
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O direito real de aquisição como objeto de garantia de operação e de penhora em execução de interesse de terceiros Mauro Antônio Rocha – coordenador jurídico de Contratos Imobiliários da Caixa Econômica Federal
Com a inclusão dos direitos reais de aquisição na lista de bens penhoráveis cresceu o interesse de terceiros na sua expropriação judicial para posterior alienação e satisfação de obrigações não cumpridas. Entretanto, as consequências – patrimoniais, civis e registrais – da penhora e alienação forçada desse direito real ainda precisam ser esclarecidas.
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Negócios Fiduciários
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mbora não esteja aqui como representante da Caixa Econômica Federal é por força das funções exercidas naquele banco que me dedico, todos os dias, ao estudo da alienação fiduciária em garantia de bem imóvel.
em sentido figurado – que o porto da alienação fiduciária foi construído com calado adequado para receber as operações de financiamento imobiliário e, durante a maré alta, algumas outras operações financeiras e comerciais de maior porte.
Sei que ao falar da CAIXA, todos vão se lembrar imediatamente do SFH, SFI, do Programa Minha Casa, Minha Vida e do uso de FGTS para a compra da casa própria, programas que, pelo caráter nacional, nos permite manter contato direto com centenas de oficiais de Registro de Imóveis dos maiores centros econômicos e das menores e mais distantes comarcas do país e reconhecer suas virtudes e dificuldades.
Pretender, todavia, abrigar operações pesadas e de maior calado sem aprofundar o canal, o que, neste caso, significa alterar profundamente o texto legal (parcialmente transmudado no final de 2017 com a edição das Leis nº 13.465 e 13.476), é submeter-se ao risco de encalhe, alijamento ou naufrágio.
Calha destacar, no entanto, que a CAIXA é um dos cinco maiores bancos comerciais do Brasil e atua fortemente no crédito comercial, utilizando a alienação fiduciária como garantia também de operações de extrema complexidade e que envolvem montantes inimagináveis de recursos – aqui bastando citar o financiamento das obras da Copa da Fifa e das Olimpíadas de 2016. Há uma crescente insatisfação do mercado com as regras postas da alienação fiduciária de bem imóvel em garantia, especialmente quanto aos limites legais do instituto, alguns ranços impróprios e típicos das hipotecas, além da dificuldade demonstrada pela Justiça para entender plenamente seus mecanismos, a ponto de já ter sido diagnosticada em processo de morte lenta. Costumo discordar desse diagnóstico e dizer –
Aproveitamento do direito real de aquisição pode se dar por cessão ou caução Tratando especificamente de nosso tema, no final da década passada e anos iniciais desta década as instituições financeiras enfrentaram uma situação inusitada: apesar da abundância de recursos destinados ao financiamento de bens e à concessão de empréstimos em geral – cumulada com a existência de uma enorme carteira de clientes potencialmente dispostos à captação desses recursos – os negócios permaneciam travados face à escassez de garantias reais provocada, em grande parte, pela adoção massiva da alienação fiduciária como garantia preferencial – e, em geral, excessiva – dos negócios jurídicos. Para melhor compreensão, necessário recorrer ao conceito de “garantia ideal” elaborado pelos franceses Laurent Aynés e Pierre Crocq, definindo os qua-
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PAINEL tro requisitos da garantia ideal: (1) constituição simples e pouco onerosa; (2) adequação à dívida, evitando o desperdício de crédito do devedor; (3) eficácia quanto ao recebimento; (4) execução fácil, célere e módica no caso de inadimplemento. Submetida aos requisitos propostos a alienação fiduciária de bem imóvel mostra-se adequada ao conceito, sendo de constituição simples e pouco onerosa – passível de contratação por instrumento particular e sem a incidência imediata de tributos imobiliários; contar com meios eficazes de recebimento; e, no caso de inadimplemento contratual, dispor de procedimento executivo extrajudicial célere e simplificado. Nada obstante, revelará como fragilidade principal a excessiva oneração patrimonial do devedor e consequente desperdício de garantia prejudiciais ao desempenho dos mercados financeiros e de capitais. Na impossibilidade, naquele momento, de constituição de propriedades fiduciárias sucessivas e com diferentes graus de preferência, tal como admitido e praticado no período de prestígio da garantia hipotecária, aquelas instituições buscavam, então, alguma forma de aproveitamento desse gap patrimonial – até ali reconhecido doutrinariamente e conceituado como direito expectativo de aquisição – como objeto de garantia suficiente para atender ao risco do negócio e necessária para cumprir as condições de crédito impostas pelo Banco Central do Brasil. A solução então encontrada foi negociar com o Poder Executivo a explicitação desse direito expectativo como direito real de aquisição mediante alteração da lei civil, o que ocorreu com a adoção da Medida Provisória nº 651, de 9 de julho de 2014, convertida posteriormente na Lei nº 13.043, de 13 de novembro de 2014, que introduziu ao Código Civil o art. 1368-B, nos seguintes termos: A alienação fiduciária em garantia de bem móvel ou imóvel confere direito real de aquisição ao fiduciante, seu cessionário ou sucessor.
Dessa forma, aquele direito expectativo foi transformado em direito real de aquisição, que na contratação de garantia fiduciária é atribuído ao fiduciante, permitindo que a propriedade plena do bem seja re-
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cobrada após o adimplemento da obrigação contraída e que – por ser direito disponível, com conteúdo patrimonial – pode ser cedido, utilizado como garantia de negócios em geral e também, ser objeto de constrição judicial, já incluído no rol de bens penhoráveis disposto no art. 835 do CPC. Infelizmente, quando o remédio chegou a fartura de recursos já se transformara em carência e o benefício esperado não pôde ser desfrutado da maneira desejada. Não há dúvida de que o direito real de aquisição é suscetível de cessão, exigida a anuência expressa do credor fiduciário, conforme prevê o art. 29 da Lei nº 9.514/1997, assumindo o adquirente cessionário todos os direitos e obrigações e passando a figurar como fiduciante na relação contratual. A cessão do direito real de aquisição pode ser feita por instrumento público ou particular, constitui fato gerador do ITBI, implica na cessão das posições de devedor no contrato principal e de fiduciante na alienação fiduciária e, para produzir efeitos em relação a terceiros, deve ser levada a registro no Ofício de Imóveis. Além da cessão, o aproveitamento do direito real de aquisição pode se dar também pela caução, admitida nos termos dos arts. 17, III e 21 da Lei nº 9.514/1997, que pode ser feita por instrumento público ou particular e ser constituída tanto em favor do credor fiduciário quanto de outro credor qualquer, mediante registro no Ofício de Imóveis do contrato que lhe serve de título, conferindo ao credor “direito real sobre o direito real de aquisição pertencente ao devedor caucionante”. Parece-me dispensável a anuência do credor fiduciário para a caução dos direitos reais de aquisição pelo simples fato de se tratar de mera garantia, não caracterizando cessão ou qualquer outra forma de alienação de direitos, ressaltando, contudo, que os contratos de alienação fiduciária geralmente contêm cláusula que penaliza com o vencimento antecipado da dívida os casos de alienação, caução ou penhora dos direitos reais do fiduciante. Na caução, diferentemente do que ocorre na alienação fiduciária, a cobrança por eventual inadim-
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plemento das obrigações assumidas pelo devedor caucionante será feita mediante execução judicial, podendo a penhora incidir, preferencialmente, sobre os mesmos direitos caucionados. Nas hipóteses da cessão ou da caução o valor econômico da transação é apurado por meio de operação matemática simples – valor atribuído ao imóvel menos o saldo devedor da dívida que deu origem à alienação fiduciária – ajustado, evidentemente, de acordo com os interesses e critérios negociais dos envolvidos – e será suficiente para orientar as pretensões dos interessados. Uma terceira possibilidade, atualmente admitida pela doutrina e jurisprudência e convalidada pelo artigo 1420 e parágrafos do Código Civil, reside na constituição de alienação fiduciária da propriedade superveniente, isto é, daquela que o devedor vier a adquirir quando do pagamento da dívida originária. A alienação fiduciária de propriedade superveniente a rigor, não diz respeito ao direito real de aquisição, embora se espelhe diretamente em seu valor econômico e, a despeito da nomenclatura adotada, tem características de garantia pessoal com potência de garantia real. Sua contratação não implica na oneração dos direitos reais de aquisição deferidos ao fiduciante no negócio fiduciário original que, por isso mesmo, poderão ser cedidos ou caucionados para terceiros, ao fiduciário presente ou ao próprio fiduciário superveniente, se diverso (garantias sucessivas). Dessa forma, a adoção sem ressalvas da alienação fiduciária da propriedade superveniente pode dar vazão à sua contratação em operações sucessivas e concomitantes, com graduação semelhante à utilizada para a hipoteca, criando um vínculo obrigacional tendente à infinitude. A alienação fiduciária da propriedade superveniente só terá eficácia após verificada a condição suspensiva que enseja a aquisição da propriedade por parte do devedor-fiduciante, com a averbação no Registro de Imóveis do termo de quitação da dívida garantida pela propriedade fiduciária anteriormente constituída, ou seja, só a partir do cancelamento estará
o segundo credor investido na propriedade fiduciária em garantia. Essa possibilidade, descrita em detalhes pelo Dr. Melhim Namem Chalhub e prestigiada pela doutrina foi adotada pelo Enunciado 506, na V Jornada de Direito Civil, nos seguintes termos: Estando em curso contrato de alienação fiduciária, é possível a constituição concomitante de nova garantia fiduciária sobre o mesmo imóvel, que, entretanto, incidirá sobre a respectiva propriedade superveniente que o fiduciante vier a readquirir, quando do implemento da condição a que estiver subordinada a primeira garantia fiduciária; a nova garantia poderá ser registrada na data em que convencionada e será eficaz desde a data do registro, produzindo efeito ex tunc. Não foi, no entanto, recepcionada com o mesmo entusiasmo pelos Registradores de Imóveis que – naquilo que sabemos – têm denegado o registro e encaminhado os interessados ao Poder Judiciário por meio da suscitação de dúvida. No Poder Judiciário – no Estado de São Paulo, pelo menos – a recepção também não tem sido amigável e cito, nesse sentido, a decisão administrativa da 1ª Vara de Registros Públicos da Capital de São Paulo (proc. 1111191-68.2016.8.26.0100) que julgou procedente a dúvida suscitada pelo Oficial que se negara a proceder ao registro do título, entendendo ser imprescindível o cancelamento da alienação anterior, enquanto inexistente previsão legal de registro de alienação fiduciária condicional ou de propriedade superveniente. Embora sem entrar no mérito da validade da alienação fiduciária superveniente a referida decisão denega o registro, impede o efeito ex tunc e inviabiliza a contratação.
Direito real de aquisição conferido ao fiduciante por força do art. 1368–B do CC Por outro lado, estimulado pela inclusão dos direitos reais de aquisição na lista de bens penhoráveis disposta no art. 835 do CPC, é crescente o interesse de terceiros – também credores – na sua expropria-
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PAINEL ção judicial, para posterior alienação e satisfação de obrigações não cumpridas. Entretanto, as consequências – patrimoniais, civis e registrais – da penhora e alienação forçada desse direito real não são inteiramente conhecidas – e carecem de ser esclarecidas. Peço vênia para, desde logo, discordar daqueles que entendem que o arrematante desse direito assume, automaticamente, a posição que o devedor possuía no contrato, na condição de fiduciante e com a obrigação de honrar o saldo da dívida.
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A ASSUNÇÃO DO DÉBITO E A CONSEQUENTE SUBSTITUIÇÃO DO DEVEDOR FIDUCIANTE PELO ARREMATANTE SOMENTE OCORRERÁ SE, E QUANDO, O CREDOR FIDUCIÁRIO CONCORDAR E DEPENDERÁ, TAMBÉM, DA ANUÊNCIA DO PRÓPRIO FIDUCIANTE QUE, APESAR DA CONSTRIÇÃO DE DIREITOS, NÃO ESTARÁ OBRIGADO A CEDER SUA POSIÇÃO CONTRATUAL.
Ora, o direito aquisitivo derivado de alienação fiduciária em garantia, de que trata o inciso XII do art. 835 do CPC é – exatamente – o direito real de aquisição conferido ao fiduciante por força do art. 1368–B do Código Civil. Porém, esse direito real de aquisição, consistente em pretensão restitutória subordinada ao implemento da condição, é apenas um dos direitos deferidos ao fiduciante, que se completa com o direito inerente à posse direta do bem gravado, assegurada pelo adimplemento das obrigações contratuais assumidas nos contratos principal e acessório originais. Parece claro que a penhora abrange o conteúdo jurídico e econômico do direito real de aquisição, mas não alcança e nem inclui a posse direta do imóvel e tampouco promove qualquer alteração nos negócios jurídicos antecedentes e vigentes, restando o arrematante titular de direitos que poderão ser exercidos – unicamente – no tempo e nas condições contratuais e legais. Dessa forma, a assunção do débito e a consequente substituição do devedor fiduciante pelo arrematante somente ocorrerá se, e quando, o credor fiduciário concordar e dependerá, também, da anuência do próprio
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fiduciante que, apesar da constrição de direitos, não estará obrigado a ceder sua posição contratual. Dou como exemplo comum situações em que, apesar da penhora dos direitos reais de aquisição para a satisfação de créditos condominiais, o fiduciante – mantida a posse direta – continua pagando as prestações mensais do financiamento imobiliário e, muitas vezes, também a solver as quotas mensais de contribuição condominial.
Cumpre notar que já tivemos a oportunidade de acompanhar na justiça paulista o caso emblemático de arrematação de direitos reais de aquisição – tratada com esse viés de assunção automática de posição contratual – que resultou em prejuízo milionário ao arrematante em razão da extrema ignorância acerca do instituto – demonstrada por todos os envolvidos, especialmente pelo arrematante e seus advogados, pelo perito avaliador, pelo leiloeiro e, com todo o respeito, pelos magistrados das varas jurisdicional e administrativa especializada em registros públicos. Portanto, sua eventual arrematação insere um terceiro interessado na relação jurídica, de forma que: (a) O credor fiduciário continua titular de seus créditos e da propriedade fiduciária do imóvel; (b) O devedor fiduciante permanece obrigado a realizar a liquidação dos débitos contratados sob pena de execução extrajudicial da dívida e, no caso de venda forçada do bem, a ele será destinado o valor que sobejar aos créditos do fiduciário e do arrematante; (c) Ao arrematante, a aquisição dos direitos reais de aquisição implicará – apenas – na transmissão da titularidade de direitos, que somente poderão ser realizados quando da liquidação da dívida ou naquilo que
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sobejar à dívida em eventual venda do imóvel em leilão. Cumpre ao Oficial de Registro, portanto, averbar a penhora e a posterior arrematação do direito, sem que isso importe em qualquer modificação na titularidade do imóvel, instituindo uma relação tripartite de interesses. O arrematante, apenas por arrematar, não assume – nem estará obrigado a fazê-lo – qualquer obrigação contratual de pagamento do saldo devedor do contrato originário. Mas, é certo que poderá, a seu critério e conveniência, sub-rogar-se no crédito mediante pagamento ao credor do saldo devedor contratado ou, ainda, assumir o débito – mediante cessão do devedor acordada com o credor. Por outro lado, a sub-rogação, que decorre da cessão dos direitos creditórios feita pelo credor originário ao arrematante, resultará na automática sucessão na propriedade fiduciária e correspondente extinção – por confusão – dos direitos de aquisição arrematados, consolidando a propriedade, numa situação absolutamente imprevista e atípica para os procedimentos da lei. O mesmo ocorrerá na hipótese de adjudicação. Conforme já vimos, o valor patrimonial do direito real de aquisição apurado em operação matemática simples – valor atribuído ao imóvel menos o saldo devedor da dívida que deu origem à alienação fiduciária – é suficiente para orientar as pretensões dos interessados nos casos de cessão ou da oneração de direitos em garantia. Diferentemente, sua avaliação econômica para fins de penhora exige perícia que considere inclusive a probabilidade da ocorrência de eventos danosos subsequentes e inexiste critério técnico razoavelmente aceitável para a avaliação desse ativo nesse caso o que, consequentemente, deturpará a indicação do preço mínimo para venda nos termos do art. 886 do CPC, além de induzir eventuais interessados na arrematação ou adjudicação ao erro na aquisição. A ocorrência de inadimplemento contratual ou existência de cláusula de vencimento antecipado da dívida no contrato principal, suscitará a automática
consolidação da propriedade na pessoa do credor, que estará obrigado a observar os procedimentos de liquidação previstos na Lei nº 9.514/1997, inclusive com a realização, se necessário, de um segundo leilão para venda do imóvel pelo valor da dívida, cujo sucesso anulará o efeito econômico positivo da arrematação ou adjudicação. Na hipótese de arrematação ou adjudicação, o melhor dos mundos estará na imediata sub-rogação dos direitos e obrigações do contrato principal pelo arrematante, mediante ajuste com o credor fiduciário e devedor fiduciante. De outro lado, nessas hipóteses, o credor cessionário estará obrigado a respeitar o contrato regularmente cumprido e, recebido o valor da dívida, fornecer o termo de quitação para cancelamento da propriedade fiduciária. Finalmente, uma possível arrematação desvinculada da sub-rogação de débitos ou créditos proporcionará ao arrematante a titularidade de direito real de aquisição de valor indeterminado, cujo exercício se fará quando da liquidação da dívida pela via normal – em concorrência com o fiduciante – ou pela execução extrajudicial, no caso de inadimplência que justifique a consolidação da propriedade, limitado ao valor que sobejar. Por tudo isso, parece-me bastante oportuna a proposta de lei, de autoria do Dr. Melhim Namem Chalhub, alterando o art. 1364 do Código Civil para a inclusão de parágrafo único para dispor que: “os direitos reais de garantia ou constrições, inclusive as averbações de bloqueios e indisponibilidades de qualquer natureza, incidentes sobre o direito real de aquisição do bem móvel ou imóvel de que seja titular o fiduciante não obstam sua consolidação no patrimônio do credor e sua venda, mas sub-rogam-se no direito do fiduciante à percepção do saldo que eventualmente remanescer do produto da venda do bem.”
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A alienação fiduciária de bem imóvel e a reforma da Lei 9.514/1997 José Antônio Cetraro – Consultor Jurídico da Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança – Abecip
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É preciso evitar a desvirtuação do processo extrajudicial. A lei não se justifica se, para cada processo extrajudicial houver uma correspondente ação judicial. Essas possibilidades precisam ser inibidas não apenas para proteger o devedor, mas principalmente para proteção do instituto.
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abe a mim falar sobre as propostas de reforma que estão em processo legislativo. Ainda não temos uma redação definitiva, falta a votação no Senado. Se isso não ocorrer, o tema vai ficar prejudicado pela caducidade da Medida Provisória 759, que incorporou essas emendas no Projeto de Conversão de Lei 12/20171. Para analisar o que é fundamental alterar na Lei 9.514/1997 entendo necessário voltar à origem e ao conteúdo do próprio dispositivo no momento histórico do início de sua vigência. A Lei 9.514 surgiu praticamente de um impasse que o Sistema Financeiro da Habitação (SFH) experimentava à época, em 1997, pelos excessivos questionamentos judiciais e pela judicialização do procedimento extrajudicial de execução da hipoteca, que era a garantia padrão do sistema. Era preciso um novo marco regulatório que não apenas acrescesse ao direito positivo um instituto de garantia real, mas principalmente um sistema que fosse alternativo ao tradicional SFH. O SFH tem suas principais operações extremamente reguladas no que diz respeito a reajuste, amortização e taxa de juros – questões que se tornaram fonte de questionamentos no Judiciário. Algumas dessas questões só foram pacificadas recentemente pelo mecanismo dos recursos repetitivos no Superior Tribunal de Justiça (STJ) quando se decidiu por amortizar antes ou depois do reajustamento; se a taxa de juros era 10% ou 12% na redação da Lei 4.380/1964; o questionamento do próprio indexador, a TR, que mais tarde ficou mais conveniente e vantajosa para o devedor em relação ao que eles pretendiam, que era a aplicação do INPC; enfim, o impasse fez com que se pensasse em um novo sistema. Esse sistema veio exatamente para dar a liberdade que o Sistema Financeiro da Habitação não conferia aos agentes, como a liberdade para aplicação de acordo com as premissas estabelecidas pelo art. 5° da Lei nº 9.514.
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Um dispositivo fundamental é a efetiva restituição do capital mutuário, um problema enfrentado pelo SFH, principalmente no tempo em que contava com o chamado Fundo de Compensação de Variações Salariais, em que a União resgataria o saldo residual e a obrigação do mutuário ficava restrita às prestações.
Lei 9.514/1997: um novo instituto de garantia com execução extrajudicial A fonte de captação desse novo sistema precisava ser revista, repensada, daí porque a securitização, que veio junto com a própria Lei 9.514/1997, como instrumento de captação de recursos no mercado para efeito de aplicação pelo Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI). E é exatamente voltado para o SFI que o art. 39, nas disposições finais da Lei 9.514/1997, dispõe: Art. 39. Às operações de financiamento imobiliário em geral, a que se refere esta Lei: I - não se aplicam as disposições da Lei nº 4.380, de 21 de agosto de 1964, e as demais disposições legais referentes ao Sistema Financeiro da Habitação - SFH; II - aplicam-se as disposições dos arts. 29 a 41 do Decreto-Lei nº 70, de 21 de novembro de 1966, exclusivamente aos procedimentos de execução de créditos garantidos por hipoteca.
O inciso I, de não aplicação das regras do SFH, deixa claro que se trata de dois sistemas; e o inciso II, dispondo que seriam aplicáveis os dispositivos do Decreto-lei 70/1966, diz respeito à execução extrajudicial de hipotecas. Isso era óbvio porque a alienação estava nascendo na própria lei e as operações que dariam início ao Sistema Financeiro Imobiliário também poderiam ser feitas através de hipoteca. Mas o Decreto-lei 70 limitava a execução de hipotecas ao SFH. Por essa razão, abriu-se a possibilidade de procedimento extrajudicial de execução de hipotecas para o SFI e, ao mesmo tempo, o dispositivo principal, que era a alienação fiduciária, também como um procedimento extrajudicial.
A Medida Provisória nº 759, de 22 de dezembro de 2016, foi convertida na Lei nº 13.465, de 11 de julho de 2017.
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HOUVE UM FATO INUSITADO EM RELAÇÃO À ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. EM 2014, RECONHECEU-SE A POSSIBILIDADE DE O DEVEDOR PURGAR A MORA DEPOIS DA CONSOLIDAÇÃO DA PROPRIEDADE, NO MOMENTO EM QUE JÁ SE BUSCA RECUPERAÇÃO DO CRÉDITO, TENDO EM VISTA A REDAÇÃO DA NOVA LEI 9.514 (STJ-RESP 1.433.031 – DF, JULGAMENTO: 03.06.2014).
Assim surge um novo instituto de garantia com um procedimento próprio extrajudicial. Evidentemente há uma distinção fundamental entre o Decreto-lei 70 e a alienação fiduciária nos artigos que tratam do procedimento (arts. 26 a 30), porque os institutos jurídicos não têm nada em comum. Na alienação fiduciária, com a consolidação da propriedade extingue-se o contrato, a dívida, e a questão passa a ser apenas a recuperação do crédito com acerto de contas com o devedor fiduciante. E na hipoteca, a propriedade se mantém com o devedor até o limite, que é a expropriação judicial ou extrajudicial, a adjudicação ou arrematação. No Decreto-lei 70 há previsão expressa de que o devedor pode efetuar o pagamento até esse limite. Consequentemente, se confere o direito de pagar até o limite da expropriação, no caso extrajudicial.
julgamento que está interrompido desde 2011. A alienação fiduciária sofreu os mesmos questionamentos. Não havia intervenção do Judiciário na fase crítica de perda da propriedade. Assim como no Decreto-lei 70, a alienação fiduciária vale-se do Judiciário na sua parte final para promover a desocupação do imóvel.
Esses questionamentos partiram da inconstitucionalidade relativa à expropriação de bens sem o devido processo legal e se disseminaram para questões formais como a notificação do devedor, a previsão de editais, o reconhecimento ou não do cabimento da intimação por editais, a intimação dos leilões – uma vez que a essa altura não se duvidava da posição do Judiciário quanto ao Decreto-lei 70, no que diz respeito à necessidade de intimação pessoal.
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Como era de se esperar, uma legislação inovadora haveria de ser questionada no Judiciário desde o início de sua vigência. Com a alienação fiduciária não foi diferente. Os primeiros questionamentos tinham como fonte inspiradora alguns julgados que eram próprios do Decreto-lei 70.
Hoje não é tão frequente questionar a constitucionalidade da Lei 9.514/1997, mas são sempre questionados: a notificação do devedor por edital quando a decisão é administrativa; o local incerto e não sabido; e a falta de avaliação do imóvel no momento crítico do início do procedimento. Como se sabe, há um valor de avaliação contratual que fica previsto na contratação e pode gerar dúvidas quanto à sua legitimidade em relação à expropriação de um bem, o que poderá ocorrer por um preço vil e pecar por eventual nulidade.
O Decreto-lei 70 enfrentou a questão da constitucionalidade em várias instâncias, tribunais e no Supremo Tribunal Federal (STF). Quando se acreditava que o reconhecimento estaria consolidado, inclusive perante a nova Constituição de 1988, sobreveio uma declaração de repercussão geral em um Recurso Extraordinário perante o STF e estamos aguardando esse
Houve um fato inusitado em relação à alienação fiduciária. Em 2014, reconheceu-se a possibilidade de o devedor purgar a mora depois da consolidação da propriedade, no momento em que já se busca recuperação do crédito, tendo em vista a redação da nova Lei 9.514 (STJ-RESP 1.433.031 – DF, julgamento: 03.06.2014).
Alienação fiduciária: questionamentos judiciais
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A consolidação da propriedade, uma vez averbada no Registro de Imóveis, investe o credor fiduciário na propriedade plena, portanto ele passa a ter a legitimidade e a titularidade das obrigações em relação ao imóvel. O devedor nessa altura, tecnicamente, não é nem devedor do contrato. Essa decisão foi extremamente inovadora e de certa forma se reproduziu. Houve um processo um pouco invertido porque a jurisprudência começou de cima para baixo e hoje é adotada em tribunais ainda que as consequências jurídicas, principalmente no Registro de Imóveis, não tenham sido muito avaliadas quando dessas decisões pioneiras que foram seguidas por outras decisões da Terceira Turma. Hoje é praticamente uma orientação dessa turma do STJ reproduzida em Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça, em especial no TJSP que é o Estado que detém o maior percentual de ativos financeiros garantidos por alienação fiduciária. Isso representou um golpe maior na segurança jurídica que a alienação fiduciária estava conferindo. Aponta-se que ela foi a principal responsável pela retomada do mercado imobiliário até o início desta crise conjuntural. Consequentemente, isso abalou bastante o instituto da alienação fiduciária que hoje é a garantia de 97% dos contratos de financiamento habitacional. Ainda assim, a alienação fiduciária é adotada em outras operações bancárias, operações do mercado imobiliário em geral, securitização e entre particulares, uma vez que não é privativa do Sistema Financeiro Imobiliário ou da Habitação, mas apenas uma ferramenta para que ele pudesse decolar com uma garantia mais eficaz para a recuperação do crédito.
Propostas de reforma da Lei 9.514/1997 Todo processo de revisão de um dispositivo torna-se necessário, seja pela posição que a jurisprudência firma, seja pela própria aplicação prática. Parece tudo muito igual, se compararmos o Decreto-lei 70/1966 e a Lei 9.514/1997. Houve apenas uma substituição sa-
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lutar em que saiu a figura do agente fiduciário – que era mais uma instituição financeira – e colocou-se o Registro de Imóveis, que tem muito mais senioridade para conduzir o processo de notificação, ainda que com poderes de delegar o ato ao Registro de Títulos de Documentos, e ainda participar do procedimento de realização dos leilões legalmente previstos. A reforma da lei em si se tornou necessária. Ela já tinha sofrido reforma de alguns dispositivos a partir da Lei 10.931/2004, mas iniciativas legislativas mesmo somente duas: o Projeto de Lei de Conversão nº 12/2017 (MP 759)2, que no art. 67 incorpora sugestões de alteração que partiram do mercado imobiliário, uma condição para os técnicos do governo apreciarem ou avaliarem essas sugestões. Ou seja, deveria haver consenso do mercado para que fosse assumido pelo Executivo, ainda assim com direito a avaliação de determinadas sugestões. Exemplo disso é que algumas sugestões fundamentais não foram aproveitadas, mas pelo menos constam do PL 6.525/2013 que hoje está na Comissão de Desenvolvimento Urbano. E que propostas são essas? A primeira é para harmonizar posições que a jurisprudência tem assumido; e outras são resultantes da própria aplicação prática, das dificuldades que os senhores enfrentam quando da notificação do devedor para efeito da purgação da mora.
Valor mínimo do imóvel para o primeiro leilão Voltando um pouco ao que eu disse, teríamos aquela figura da avaliação contratual para o primeiro leilão e o valor da dívida para o segundo leilão. Num contrato entre vinte e trinta anos, com garantia de alienação fiduciária, a possibilidade de distorção desse valor é muito grande. O inadimplemento não necessariamente ocorre no início da amortização da dívida, e quanto mais distante for essa ocorrência, maior será a possibilidade de distorção. Então, imaginou-se aí que uma nova avaliação ou alternativas que envolveriam a participação do devedor seriam inviáveis.
A Medida Provisória nº 759, de 22 de dezembro de 2016, foi convertida na Lei nº 13.465, de 11 de julho de 2017.
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PAINEL A proposição é de que o valor mínimo para esse primeiro leilão seja aquele que foi utilizado como base de cálculo do ITBI, que é algo próximo da consolidação da propriedade. É um valor que poderia ser considerado atual porque é determinante da arrecadação do tributo pelo município. Há, portanto, uma presunção de interesse que esse valor reflita tanto quanto possível a realidade do mercado. A primeira sugestão é estabelecer esse valor mínimo como base para a licitação do imóvel no primeiro leilão. Evidentemente, se o valor contratual for maior é o que irá prevalecer.
rigir-se e ser atendido pelo credor. E se o devedor pretender negociar o débito, esse prazo certamente decorrerá sem a purgação da mora ou a formalização da renegociação.
Intimação do devedor por hora certa e entrega da notificação na portaria
Leilões: comunicação por correspondência até eletrônica
A segunda proposta é a intimação do devedor. Os senhores sabem bem a dificuldade em diligenciar a intimação pessoal, localizar o devedor, principalmente quando ele se sabe inadimplente, e do prazo extremamente rigoroso de quinze dias para purgação da mora. Por outro lado, essa dificuldade não pode ser superada de forma simplista pela aplicação do que já consta na lei, a intimação por edital. É nesse ponto que se toma por empréstimo do Código de Processo Civil, a ferramenta da intimação por hora certa.
Quanto aos leilões, cabe aqui um pequeno comentário em razão de ter sido criado o direito de preferência que dá forma legal ao reconhecido pelo STJ, no sentido de que é possível o pagamento da dívida após a consolidação.
Sabemos que hoje a grande maioria dos empreendimentos é de condomínios com acesso controlado, o que dificulta a entrega pessoal de uma notificação ao devedor. O CPC (arts. 252 e 254) possibilita a intimação por hora certa e a entrega da notificação ao responsável pelo recebimento das correspondências no condomínio. Essa ferramenta é uma nova possibilidade de se agilizar o procedimento e torná-lo mais eficaz. O prazo para a purgação da mora é de quinze dias, mas é bom lembrar que a alienação fiduciária de programas como o Fundo de Arrendamento Residencial, Minha Casa, Minha Vida e outros programas habitacionais atinge uma camada de pessoas com grandes dificuldades de informação e de logística. Constatou-se que dependendo do perfil do devedor e do empreendimento, após notificado, o devedor irá despender parte do prazo de quinze dias para di-
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A ideia é fazer com que o prazo seja maior para os financiamentos habitacionais, que haja 30 dias adicionais de tal forma que o notificado – por qualquer uma das modalidades – possa ter 45 dias para pagar o débito ou propor uma recomposição da dívida, o que também demanda um rito relativamente demorado a depender de cada instituição.
A decisão do STJ ocorreu em situação extrema. No caso da alienação fiduciária esses casos se deram em situações críticas em que o devedor fiduciante queria pagar a totalidade da dívida e não apenas o débito representado por prestações vencidas. Não estamos mais falando de purgação da mora e sim do pagamento integral da dívida. O argumento fundamental da decisão foi no sentido de que se é o valor da dívida que vai balizar o lance mínimo no segundo leilão – porque o objetivo do credor não é auferir ganhos imobiliários, mas sim recuperar o capital mutuado, no caso concreto entendeu o STJ que a recuperação do crédito estaria assegurada seja pelos recursos do devedor ou de um eventual arrematante. Assim, nada mais justo que se privilegie o devedor que vai manter a aquisição imobiliária e ao mesmo tempo satisfazer o crédito, que seria objeto do procedimento. No entanto, essa concessão legal, que em verdade afronta a interpretação do art. 39, § 2º, criou a falsa conclusão de que o Decreto-lei 70 se aplica subsidiariamente à legislação fiduciária, o que não é verdade. A solução encontrada foi a criação de um direito de preferência que assegure ao devedor a possibilidade
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de pagamento da totalidade da dívida como sendo o preço do imóvel para readquiri-lo, uma vez que a sua propriedade encontra-se consolidada em nome do credor , de tal forma que ele não dependa mais do Judiciário para exercer sua pretensão de pagamento da dívida integral. Essa proposta tenta dar uma solução formal ao problema, qual seja, uma nova transmissão pela qual o devedor estaria readquirindo o imóvel por preço equivalente ao valor da dívida. Essa é a solução encontrada na proposta que consta do projeto em andamento, para que se contenha a judicialização. Outra questão é a distorção em que a redação da lei incorreu ao dispor que não sendo mais exigível do devedor o pagamento da dívida contratual, mas prosseguindo na ocupação do imóvel, ele teria que pagar uma taxa de ocupação a partir da realização do leilão. Na redação atual da lei, essa taxa de ocupação tem início na arrematação, mas a prática nos ensinou que pode não haver leilão. Uma liminar que suspende o leilão inviabiliza a aplicação desse dispositivo. Não havendo arrematação, não há exigibilidade desse valor. Isso é sinônimo de morar de graça porque não se questiona a transferência dos encargos tributários, fiscais e condominiais ao credor fiduciário. Não há como se exigir isso do mutuário, ainda que ocupante. E ao mesmo tempo, a taxa não incidiria porque ele estaria protegido por alguma ordem judicial, o que impede o início do cômputo desse desembolso. A proposta, então, foi ajustar essa incidência a partir da consolidação, caso ele não venha a exercer o direito de preferência. Portanto, a partir da consolidação, será exigível a taxa de ocupação que, acredita-se que será um desestímulo à judicialização porque estará em curso uma obrigação exigível até a data da desocupação do imóvel.
Demandas judiciais após a consolidação da propriedade Algumas demandas são movidas com propósitos jurídicos legítimos, outras nem tanto. Uma delas é proposta quando se procura criar uma situação de discus-
são judicial após a consolidação, às vezes até após a desocupação, seja por alguma questão anulatória, seja por uma questão declaratória ou mesmo revisional. E a jurisprudência acolhe perfeitamente as demandas revisionais, mesmo estando quitado o contrato. A demanda que visa desconstituir uma arrematação por terceiros ou a consolidação da propriedade gera insegurança jurídica numa situação em que o imóvel foi recolocado no mercado mediante novo financiamento. No momento em que se tem uma ordem judicial que põe em risco esses atos aquisitivos praticados por terceiro está gerada a insegurança jurídica para o arrematante, que adquire o imóvel pela necessidade que se tem de recolocá-lo no mercado. No caso das instituições financeiras, trata-se de determinação legal. A ideia foi imaginar que haja uma solução financeira – perdas e danos –, caso essas demandas sejam acolhidas. Uma vez não acolhidas, pelo menos na sua fase de tramitação elas não vão gerar insegurança jurídica para os adquirentes.
Indisponibilidade do direito real de aquisição Uma questão exaustivamente colocada é a indisponibilidade do direito de aquisição por alguma constrição judicial ou mesmo extrajudicial que pode, em algumas situações concretas, suspender o processo de realização da garantia da alienação fiduciária até que se resolva a indisponibilidade. A proposta tem o condão de fazer com que esse direito expectativo – que vai desaparecer em função da consolidação da propriedade – opere a sub-rogação no produto resultante da venda do imóvel em leilão em favor do devedor fiduciante. Este teria a indisponibilidade transferida para o crédito que poderia resultar de procedimentos de leilão cujo valor excedesse ao da dívida. A principal questão proposta no Projeto de Lei 6.525/2013 era tratar os financiamentos habitacionais diferentemente das demais operações quando se invoca a exoneração da dívida.
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PAINEL De certa forma, a redação do atual Código Civil prevê a continuidade da obrigação de pagamento quando o imóvel não satisfaz a obrigação, assim como ocorre no processo de execução judicial. Ou seja, o bem levado a leilão não satisfaz a dívida e prossegue a execução em outros bens do devedor.
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A ideia era que o instituto da alienação fiduciária contasse com essa proteção legal. Hoje a exoneração é para qualquer tipo de operação – das megaoperações que envolvem alienação como uma das garantias até o humilde adquirente da casa própria do programa Minha Casa, Minha Vida. O benefício é o mesmo, mas quem merece proteção é aquele que está adquirindo
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imóvel para fins de moradia. No caso de aquisição de imóvel para fins comerciais, as partes são muito bem assessoradas e não dependem dos benefícios concebidos para financiamentos individuais voltados para a moradia própria. Na verdade, o que se quer é resgatar um pouco da segurança jurídica e da eficácia que teve a aliena-
ção fiduciária no início da sua aplicação, a partir do ano 2000, quando os bancos assumiram a alienação fiduciária para valer. Queremos assegurar essa efetividade e a transparência em relação ao devedor fiduciante. A lei prevê mecanismos de punição financeira do credor fiduciário que não der quitação quando o devedor for exonerado da dívida, com 0,5% do saldo devedor. O que se quer é apenas assegurar maior transparência, daí a importância da comunicação dos leilões. Afinal, se o devedor tem agora o direito de pagar é importante que ele saiba que o limite desse direito é o segundo leilão. Uma vez instaurado o processo, não há dúvida nenhuma de que o devedor tem conhecimento do que está acontecendo. Às vezes, exatamente por saber, ele se oculta para dificultar a realização dos leilões por conta da intimação formal que no Decreto-lei 70 tem que ser pessoal. O STJ flexibilizou a questão da notificação do devedor em caso de financiamento de automóveis, considerando legítima uma simples remessa da notificação extrajudicial para o endereço do devedor como prova de que ele tem conhecimento da inadimplência e seus efeitos. No caso do SFH, com muito mais razão. É preciso limitar o tratamento diferenciado aos que necessitam do benefício. Infelizmente é um dispositivo que não foi incorporado ao projeto de conversão. Outra questão fundamental é restabelecer a segurança jurídica desse instituto, que sofreu alguns abalos, mas não está totalmente comprometida como se pretende entender. É preciso evitar que o processo extrajudicial seja desvirtuado. A lei não se justifica se, para cada processo extrajudicial houver uma correspondente ação judicial. Essas possibilidades precisam ser inibidas não apenas para proteger o devedor, mas principalmente para proteção do instituto.
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Alienação fiduciária no Registro de Imóveis: qualificação registral e algumas questões polêmicas Maria do Carmo de Rezende Campos Couto – Oficiala de Registro de Imóveis em Atibaia (SP)
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Verifica-se a existência de inúmeras questões que demandam, ainda, muito estudo. Não podemos esquecer que cabe aos registradores a qualificação dos títulos dentro dos princípios registrais. E em questões duvidosas devem decidir com seu juízo prudencial.
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alienação fiduciária sobre bens imóveis foi introduzida em nosso ordenamento jurídico pela Lei Federal nº 9.514 de 20.11.1997. É, portanto, um instituto relativamente novo, de apenas 20 anos. Todavia, no início foi muito pouco utilizada. Efetivamente, podemos dizer que somente nos meados da década de 2000 é que as instituições financeiras passaram a utilizá-la, passando a ser um título corriqueiro nos cartórios de Registro de Imóveis. Com a sua utilização começaram a surgir questões polêmicas, dúvidas no exame dos títulos e na aplicação desse instituto. Neste trabalho vamos tratar de algumas dessas questões.
1. Quem pode contratar e forma do título A redação original do artigo 38 da Lei 9.514/1997 apenas dispunha que os contratos resultantes da aplicação da lei, celebrados com pessoa física beneficiária final da operação, poderiam ser formalizados por instrumento particular não se lhe aplicando a exceção prevista no Código Civil (art. 134, II, do CC/1916 e art. 108 do atual CC). O entendimento na época era que somente as entidades autorizadas a funcionar no SFI – Sistema Financeiro Imobiliário – poderiam utilizá-la, e contratando apenas com pessoas físicas e para os fins de financiamento imobiliário. Esse artigo foi alterado pela MP 2.223/2001, que a tornou mais abrangente, citando expressamente a sua aplicação em quaisquer contratos previstos na lei ou resultante de sua aplicação. Quando da conversão da MP na Lei 10.931 de 2004 houve pequena alteração na redação permanecendo, todavia, a dispensa da escritura pública. Nova redação foi dada em 2004, pela Lei 11.076, pela qual os atos e contratos referidos na lei e resultantes de sua aplicação, mesmo aqueles que visem a constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis poderão ser celebrados por escritura pública ou por instrumento particular
com efeitos de escritura pública. Assim, podem ser celebrados por escritura pública ou por instrumento particular a compra e venda, a promessa de venda, a hipoteca, a caução de direitos aquisitivos, a cessão fiduciária, a alienação fiduciária, enfim, os atos e contratos relacionados à comercialização de imóveis e à constituição de garantias imobiliárias previstas na Lei nº 9.514/1997 ou resultantes dela. Do mesmo modo, a compra e venda decorrente do leilão poderá ser celebrada por instrumento particular, pois essa venda é ato resultante da aplicação do art. 27 da Lei nº 9.514/1997. (CHALHUB, Melhim Namem. Negócio Fiduciário, Ed. Renovar, Rio de Janeiro – São Paulo – Recife, 2009, p. 234-235, cujo entendimento foi seguido na orientação dada pelo IRIB no Boletim Eletrônico n. 4118, de 09/11/2011). Seria muito bom se esses contratos somente fossem formalizados por escritura pública, pois a atuação do tabelião evitaria muitos erros que ocorrem, tais como a correta qualificação das partes, entre outros. No Estado de São Paulo, houve uma decisão da 1ª Vara de Registros Públicos no sentido de que os contratos de compra e venda com alienação fiduciária somente poderiam ser por instrumento particular se retratassem a compra e venda e financiamento nas condições do sistema financeiro imobiliário, feito por entidades financeiras autorizadas a operar no SFI, relacionada no art. 2º da Lei nº 9.514/1997. Do contrário, seria necessária a escritura pública. (Proc. nº. 0006136-24.2011.8.26.0100 da 1ª VRPSP, j. em 11/5/2011). Todavia, a Corregedoria Geral de Justiça paulista negou um pedido do Colégio Notarial propondo a utilização do instrumento particular apenas por entidade integrante do SFI, conforme pode ser visto no Processo n. 131.428/2012, decisão de 07/03/2014, DJ de 19/3/2014, cuja ementa é a seguinte: NORMAS DE SERVIÇO DA CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA – CAPÍTULO XX – Requerimento apresentado pelo Colégio Notarial do Brasil, Seção São Paulo – Alienação fiduciária de imóveis – Forma – Escritura pública ou instrumento particular para quaisquer dos contratos previstos na
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PAINEL Lei nº 9.514/97 ou resultantes de sua aplicação – Proposta de utilização do instrumento particular com efeitos de escritura pública apenas nos lavrados por entidade integrante do SFI – Não acolhimento.
A decisão aponta que todos os contratos compreendidos na Lei nº 9.514/1997 – ou resultantes da sua aplicação – podem ser lavrados por escritura pública ou instrumento particular com efeitos de escritura pública. E, como nem todos os contratos previstos nessa lei são privativos das entidades que compõem o sistema financeiro, não há como vincular a utilização do instrumento particular apenas quando o negócio for lavrado por entidade integrante do SFI. Assim, qualquer pessoa física ou jurídica pode utilizar do instrumento particular. O Juiz auxiliar da CGJSP que emitiu o parecer 069/2014 no Proc. 131.428/12 foi o mesmo que deu a sentença da 1ª VRPSP. No Parecer ele expressamente reviu seu posicionamento anterior. Essa orientação atualmente está no item 230, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, que dispõe que a alienação fiduciária pode ser contratada por qualquer pessoa, física ou jurídica e não é privativa das entidades que operam no SFI. Decisão recente do STJ deixa muito clara a questão: REsp 1542275 / MS – Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA – DJe 02/12/2015 – Decisão: 24/11/2015 RECURSO ESPECIAL. AÇÃO ANULATÓRIA DE GARANTIA FIDUCIÁRIA SOBRE BEM IMÓVEL. CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO. DESVIO DE FINALIDADE. NÃO CONFIGURAÇÃO. GARANTIA DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. COISA IMÓVEL. OBRIGAÇÕES EM GERAL. AUSÊNCIA DE NECESSIDADE DE VINCULAÇÃO AO SISTEMA FINANCEIRO IMOBILIÁRIO. INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 22, § 1º, DA LEI Nº 9.514/1997 E 51 DA LEI Nº 10.931/2004. ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA. VEROSSIMILHANÇA DA ALEGAÇÃO. AUSÊNCIA. (grifei)
No mesmo sentido o decidido:
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AgInt no AREsp 711778 / MS: Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO – DJe 29/09/2016 – Decisão: 22/09/2016 AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO REVISIONAL. CONTRATO BANCÁRIO. CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO COM CLÁUSULA DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BEM IMÓVEL. AUSÊNCIA DE VINCULAÇÃO DA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE IMÓVEIS AOS FINANCIAMENTOS HABITACIONAIS (SFI). INTELIGÊNCIA DO ART. 22 DA LEI 9.514/97. PRECEDENTE ESPECÍFICO. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. AgRg no AREsp 553145 / PR: Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO – DJe 02/02/2016 – Decisão: 15/12/2015 AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE GARANTIA POR ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. ALEGAÇÃO DE OFENSA AO ART. 421 DO CC. FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO. ÓBICE DA SÚMULA 282/STF. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. INSTITUTO NÃO PRIVATIVO DAS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS. AGRAVO CONHECIDO PARA, DESDE LOGO, NEGAR SEGUIMENTO AO RECURSO ESPECIAL.
E ainda, Alienação fiduciária de imóvel, prevista na Lei 9514/97, não é restrita ao sistema de financiamento imobiliário – (TJSP – Agravo de Instrumento nº 2216087-28.2014.8.26.0000 – São Paulo – DJ 18.02.2015). Alienação Fiduciária de Imóvel – Possibilidade de o contrato ser firmado por pessoa jurídica que não integre o SFI – Contrato que pode validamente revestir formas pública ou particular – Arts. 22 e 38 da Lei 9.514/97, e item 230, Capítulo XX, das NSCGJ – Precedente – Recurso Desprovido. (Proc. CG n° 049648-26.2012.8.26.0002 – Parecer 156/2016-E – DJE de 11/8/2016).
Dessa forma, a alienação fiduciária pode ser utilizada por qualquer pessoa, física ou jurídica, entre elas as incorporadoras e loteadoras nas alienações de unidades imobiliárias. Ressalta-se que em relação às empresas loteadoras a Lei n. 6.766/1979 exige, para fins de registro de loteamento, que deve ser apresentado o contrato padrão de “promessa de compra e venda” contendo as
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cláusulas previstas naquela legislação. Nada impede, todavia, que a loteadora também deposite no memorial do loteamento um segundo contrato-padrão, de vendas por meio de alienação fiduciária, contendo as disposições exigidas pela Lei n. 9514/1997, pois não estão proibidas de vender diretamente o imóvel com esse tipo de garantia. Em ambos os contratos-padrão devem ser mencionadas as condições específicas do negócio envolvido, bem como as eventuais restrições convencionais porventura impostas ao loteamento.
dívida. Esse valor não se confunde com o valor do imóvel, que deve ser fixado para fins do primeiro leilão. O contrato deve conter todos os itens do art. 24, inclusive o critério de revisão do valor do imóvel para fins de leilão, podendo para tanto utilizar índices de medição da depreciação monetária ou outros indicadores que sirvam de parâmetro para aferição dos preços no mercado imobiliário. (Ap. Civ. n. 580-6/8)
2. Exame das cláusulas do contrato pelo registrador
Devem ser mencionados o valor da dívida ou do crédito concedido, o prazo, as condições de pagamento, a data do vencimento das obrigações e menção à taxa de juros se houver.
2.1 Cláusulas gerais Necessário definir até onde vai o dever de qualificar as cláusulas existentes no contrato. Há um consenso geral de que cabe ao registrador, em obediência ao princípio da legalidade, examinar se o contrato contém todas as cláusulas exigidas pela Lei 9.514/1997 ou que a afrontem. Entendemos que está entre as atribuições do registrador verificar se houve o cumprimento às determinações do art. 24, da Lei nº 9.514/1997. Deve-se ficar especialmente atento para verificar se houve cumprimento dos requisitos do artigo 24 (valor do imóvel para fins de leilão) bem como da existência de disposições acerca do regular procedimento do leilão extrajudicial (art. 27). Nesse sentido o item 236, do Cap. XX, das Normas de Serviço da CGJ de São Paulo, bem como diversas decisões do Conselho da Magistratura paulista (Ap. Civ. n. 254-6/0, Ap. Civ. n. 580-6/8, Ap. Civ. n. 1.259-6/0, Ap. Civ. n. 0007834-05.2008.8.26.0348, Ap. Civ. n. 0000348-12.2013.8.26.0471). Exemplo de cláusulas a serem verificadas: a) Valor da dívida1 : deve ser indicado o valor da
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b) Prazo e as condições de reposição do empréstimo ou do crédito do fiduciário.
Esses requisitos estão previstos no artigo 176, inciso III, 5, da LRP, e também no artigo 24, incisos I, II e III, da Lei nº 9.514/1997. O contrato que serve de título ao negócio fiduciário conterá o valor principal da dívida; o prazo e as condições de reposição do empréstimo ou do crédito do fiduciário e a taxa de juros e os encargos incidentes. (Ap. Civ. nº 000034812.2013.8.26.0471 – j. em 16/10/2014) Alienação Fiduciária. Crédito rotativo. Ausência de previsão no contrato das taxas de juros, valor de cada prestação e vencimento da primeira e última prestações, nos termos do artigo 24 da Lei 9.514/97. Quebra da Legalidade, vez que a lei exige a menção a esses requisitos. De acordo com a credora fiduciária, o contrato envolve futuras transações comerciais, ou seja, não existem parcelas fixas para reposição do empréstimo, uma vez que este somente se concretizará com o faturamento de motos e peças. Alega, ainda, que pela inexistência de parcelas vencidas e vincendas o crédito é rotativo. Isso não afasta as exigências que configuram requisitos indispensáveis de validade e eficácia do contrato, uma vez que a ausência do valor das prestações, juros e demais encargos impossibilita a constituição em mora do devedor ou a verificação de sua purgação. (1ª VRPSP, Processo 1049051-95.2016.8.26.0100 –
T ratando-se de dívida em crédito rotativo, que será garantida por ativos financeiros e valores mobiliários, houve alteração nos requisitos conforme consta na Lei 13.476 de 28/08/2017. Vide nota de rodapé n. 9, no tópico sobre garantia fiduciária e crédito rotativo.
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PAINEL Dje de 18.7.2016)
c) Cláusula de livre utilização: assegurando ao fiduciante a livre utilização do imóvel, enquanto adimplente. d)Valor do imóvel e procedimento para fins dos leilões: deve haver a indicação do valor do imóvel para fins de venda em leilão público, e dos critérios para a respectiva revisão, que devem seguir os parâmetros fixados pela Lei 9.514/97.2 Não é possível cláusula tal como a que disponha que por ocasião da alienação no segundo leilão somente será aceito lance inferior ao valor da dívida, desde que seja igual ou superior a um percentual do valor do imóvel, ou que subsistirá a dívida se o imóvel for vendido por valor inferior ao dela. Alienação fiduciária em garantia – Cláusulas contratuais ajustadas em desacordo com normas imperativas – Ofensa aos arts. 24 e 27, §§ 2º, 5º e 6º, da Lei n.º 9.514/1997 – Inaceitável e contraditória previsão contratual admitindo a venda em segundo leilão por preço inferior ao valor da dívida – Convenção prevendo inadmissivelmente a possibilidade de subsistência do débito em caso de venda em segundo leilão – Inobservância de legítimas limitações impostas ao princípio da autonomia privada – Sopesamento entre princípios realizado com precedência pelo legislador ordinário – Juízo de desqualificação registral confirmado – Violação dos princípios da legalidade e da segurança jurídica – Dúvida procedente – Recurso desprovido.(Ap. Civ. nº 1002050-5.2015.8.26.0073, da Comarca de Avaré – DJE de 20/6/2016)
Portanto: - O contrato deve conter uma cláusula específica que disponha sobre o procedimento para fins da consolidação da propriedade indicado no art. 27, conforme consta no art. 24, inciso VII. (Ap. Civ. 254-6/0, 580-6/8
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e 1.259-/0). As cláusulas não podem contrariar o disposto no § 1º do art. 27 da Lei nº 9.514/1997. (Ap. Civ. 580-6/8) - Não fica à vontade das partes dispor da forma como se processará o segundo leilão. Assim, não pode ser aceita cláusula que autoriza a venda do imóvel no segundo leilão por valor inferior ao da dívida, ou que fixe regras diferentes das legais (Ap. Civ. 0007834-05.2008.8.26.0348, Ap. Civ. nº 100205035.2015.8.26.0073). e) Cláusula-mandato – constituindo o credor como procurador: a cláusula mandato é aquela na qual o devedor constitui o credor como seu procurador. Essa cláusula tem sido considerada abusiva especialmente se ficar evidenciado o conflito de interesses. Cláusula-mandato: Contrato de consórcio. Aditivo assinado somente por uma das partes (credor fiduciário) em virtude de cláusula mandato existente no título original. Cláusula abusiva (artigo 51, IV e VIII, do CDC, e artigo 122 do CC) contrária ao dever de cooperação e à confiança característica da procuração; ofensiva, enfim, ao princípio da boa-fé objetiva, ainda mais porque evidenciado o conflito de interesses. Princípio da legalidade ferido. (Proc. CG n. 146.225/2013 – Parecer 524-2013)
f) Cláusula-mandato – constituindo os devedores procuradores entre si: já a cláusula-mandato constituindo os devedores procuradores entre si tem sido considerada válida e tem determinado que sejam expedidas tantas intimações quantos forem os devedores, mas aquele que for encontrado será considerado procurador dos demais. (...) Cláusula que nomeia procuradores recíprocos entre os devedores-fiduciantes. – Não cabe no procedimento administrativo examinar a validade de eventual abusividade de cláusulas contratuais, notadamente daquelas pertinentes às procurações reciprocamente outorgadas (...). (Proces-
Lei 13.465 de 11/07/2017 introduziu o parágrafo único ao artigo 24 da Lei 9.514/1997, do seguinte teor: “Caso o valor do imóvel convencionado A pelas partes nos termos do inciso VI do caput deste artigo seja inferior ao utilizado pelo órgão competente como base de cálculo para a apuração do imposto sobre transmissão inter vivos, exigível por força da consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário, este último será o valor mínimo para efeito de venda do imóvel no primeiro leilão.”
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so CG n° 0006918-55.2016.8.26.0100. DJe de 11/10/2016) (...) Devedores/fiduciantes que, no contrato de financiamento imobiliário, constituem-se procuradores recíprocos – Legalidade da cláusula que deve ser analisada na via jurisdicional (...) A validade desta cláusula deve ser discutida judicialmente, e não na esfera administrativa. Somente pela via jurisdicional é que se pode, eventualmente, declarar a nulidade da cláusula. Até lá, a intimação, feita na pessoa de um dos devedores/ fiduciantes, ainda que sejam cônjuges, estende-se ao outro. (Processo CG 136.042/2014. DJe de 23/10/2014).
Nesses dois processos decidiu-se que a validade da cláusula só pode ser discutida judicialmente. Sendo assim, uma vez existente no contrato deve-se admiti-la. g) Cláusulas que afrontem o Código de Defesa do Consumidor O STJ vem firmando orientação no sentido de que a Lei 9.514/1997 é lei especial e posterior ao CDC, cabendo a aplicação da lei especial naquilo que confrontar com o CDC. Assim, com relação às consequências do inadimplemento do devedor, não cabe a devolução das prestações adimplidas previstas no artigo 53 do CDC, aplicando-se a regra dos §§ 4º, 5º e 6º, do art. 27, da Lei nº 9.514/1997. Nesse sentido: AgRg no AgRg no REsp 1.172.146 – Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA – DJe 26/06/2015 – Decisão: 18/06/2015 ...3. A Lei n. 9.514/1997, que instituiu a alienação fiduciária de bens imóveis, é norma especial e também posterior ao Código de Defesa do Consumidor – CDC. Em tais circunstâncias, o inadimplemento do devedor fiduciante enseja a aplicação da regra prevista nos arts. 26 e 27 da lei especial. 4. Agravo regimental improvido e embargos de declaração não conhecidos.
matéria. Reconhece-se que, com a vigência da Lei n. 9.514/1997, a hipótese de inadimplemento por parte do devedor fiduciante sofreu inúmeras críticas da doutrina, mormente porque, em tese, a previsão dos arts. 26 e 27 dessa lei contrariava a regra do art. 53 do CDC. Entretanto, ao se deparar com a matéria no julgamento do caso concreto, esta Corte Superior posicionou-se no sentido de que o conflito normativo, nessa hipótese, deve-se resolver pelos critérios da cronologia e da especialidade, prevalecendo-se, portanto, a lei especial que disciplina os negócios jurídicos de alienação fiduciária em garantia de bens imóveis.
2.2 Alienação fiduciária garantida por vários imóveis A Lei 9.514/1997 não proíbe que vários imóveis garantam uma única dívida. Assim, é possível que em um mesmo contrato de mútuo com constituição de alienação fiduciária vários imóveis sejam dados em garantia. A dúvida que existe é em relação ao procedimento de eventual execução extrajudicial. Nessa hipótese, o contrato deverá conter algumas informações complementares para possibilitar eventual constituição em mora, tais como a menção ao valor que cada imóvel responde pela dívida e o valor de cada um deles para fins de leilão (CSMSP, Ap. Civ. 5806/8). Isso porque, na hipótese de haver segundo leilão, o § 2º do art. 27 da Lei nº 9.514/1997 estabelece que será aceito o maior lance desde que igual ou superior ao valor da dívida. É possível, ainda, estabelecer-se valor único para todos os imóveis, com o esclarecimento de que o leilão será um só, para todos.
(...)
Se os imóveis estão situados em comarcas diversas, o contrato será registrado em todas elas, e por isso deverá disciplinar como a execução se fará, devendo contemplar todas as fases, com as devidas averbações em todas as comarcas.
Portanto, não sendo caso de simples compra e venda de bem imóvel, as disposições do CDC não podem ser aplicadas de forma indistinta, tendo em vista a existência de norma específica que rege a
Mas há quem entenda não ser possível essa previsão de cindibilidade de garantia. Ou seja, o contrato não pode indicar o valor que cada imóvel garante e
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PAINEL nem pode haver fases. Assim, se houver vários imóveis e ocorrer a consolidação da propriedade em relação a todos eles, todos devem ir a leilão, ainda que o valor da dívida seja inferior ao valor de todos os bens ou que somente um deles cubra a dívida. Soluções possíveis: a) dívida divisível: quando no contrato houver expressa previsão do valor global da dívida e do valor que cada imóvel garante, a constituição em mora poderá ser pelo valor da dívida em cada circunscrição (como se fossem várias dívidas). b) dívida indivisível: a questão fica tormentosa quando no contrato a dívida for garantida por vários imóveis sem identificar especificamente o quantum da dívida que cada imóvel garante. Qual seria o procedimento para eventual execução extrajudicial? - em princípio, s.m.j., a constituição em mora deverá ser de toda a dívida perante cada um dos Registros de Imóveis envolvidos, devendo ser apresentado um demonstrativo da dívida global perante todos. - Mas, como fica a questão do prazo para pagamento? Será contado em cada unidade, dependendo da data da prenotação do pedido de intimação? E se um cartório encontrar o devedor e os outros não? - Não há dúvida de que o cartório que encontrar o devedor para fins de intimação poderá receber todo o valor da dívida. Entregue o valor ao credor compete a este cancelar o pedido de constituição em mora nas demais unidades. - E se não houver a purgação da mora ou o devedor não for encontrado? Haverá a constituição em mora, ou isso depende da conclusão do ciclo notificatório em todas as unidades de registro? Merece menção que há registradores que entendem pela possibilidade de no contrato haver indicação do Oficial competente para a execução extrajudicial, numa espécie de nomeação de foro de eleição. Essas são questões tormentosas, ainda sem solu-
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ções definidas, sobre as quais devemos nos debruçar para estudar.
3. Outras questões 3.1 Alienação Fiduciária e hipoteca O imóvel hipotecado pode ser objeto de alienação fiduciária, desde que no contrato conste o gravame de forma clara, esclarecendo ao credor fiduciário as condições do negócio. Tratando-se de hipotecas com regras especiais, como as do SFH, bem como hipotecas cedulares (C. Crédito Rural, Industrial, Comercial e à Exportação) é necessária a anuência do credor hipotecário (art. 292 da Lei 6.015/7373) (BE do IRIB n. 4472). O imóvel alienado fiduciariamente pode ser hipotecado? - Embora a propriedade fiduciária da Lei 9.514/1997 seja um direito acessório, com intuito de garantia, o credor fiduciário poderá hipotecar. O art. 1359 do Código Civil permite a constituição de ônus reais sobre a propriedade resolúvel. Já o devedor fiduciante não tem como hipotecar o “imóvel”. Mas há quem defenda a possibilidade de ele dar seus direitos à propriedade superveniente como hipoteca futura. (art. 1487, CC)
3.2 Alienação Fiduciária e Bem de Família a) Bem de Família em imóvel alienado fiduciariamente: não é possível o registro de Bem de Família de imóvel que foi dado em alienação fiduciária, mesmo que a escritura de instituição tenha data anterior ao contrato de financiamento e constituição da propriedade. Isso porque o devedor não é mais o proprietário do imóvel. Registro escritura pública de instituição de bem de família convencional – imóvel alienado fiduciariamente à Caixa Econômica Federal para garantia de dívida – impossibilidade. (...) No caso em tela houve o registro na matrícula sob nºs 05 e 06 da alienação fiduciária, constituindo como proprietária do imóvel a Caixa Econômica Federal. Diante
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disso, não pode o suscitado requerer o registro do bem que não tem a propriedade, detendo apenas a posse direta. (1ª VRPSP, Proc. 106205250.2016.8.26.0100 – Dje de 09/8/2016)
b) Alienação fiduciária de imóvel instituído como bem de família: o imóvel instituído como bem de família não pode ser dado em alienação fiduciária sem autorização judicial. Se houver filhos menores, há necessidade de nomeação de curador especial para eles (art. 1692 CC), pois esse ato importará em extinção do benefício (Processo 0039081-64.2011.8.26.0100 da 1ª VRPSP). Estando o imóvel registrado como bem de família, não é possível o registro de constituição de propriedade fiduciária, mesmo que este contrato tenha data anterior à lavratura da escritura de bem de família. Se à época em que apresentada a alienação fiduciária a registro, preexistia o registro do bem de família o registro não poderá ser feito, cabendo ao interessado obter o desfazimento judicial da instituição. Aplica-se à hipótese o teor do artigo 252 da LRP. Contudo, somente decisão judicial poderá considerar ineficaz ou desconstituir o registro do bem de família, não sendo possível estas providências na via administrativa. Por fim, o prédio constituído como bem de família não pode ter destino diverso ou ser alienado sem o consentimento dos interessados e seus representantes legais, ouvido o Ministério Público (art. 1712 e 1717 do CC). ( Ap. Civ. n.° 0039081-64.2011.8.26. 0100 – DJE de 29/01/2013)
3.3 Alienação fiduciária e indisponibilidade a) Alienação Fiduciária de imóvel de bem indisponível Se os bens estão indisponíveis ou se há penhora em execução fiscal da Fazenda Nacional não se admite registro de alienação fiduciária, porque o adquirente não poderá dar o imóvel em alienação voluntária. Sequer poderá ser feito o registro da compra e venda e da alienação fiduciária para depois averbar a indisponibilidade dos direitos do fiduciante, pois a existência da indisponibilidade impede a constituição da propriedade fiduciária a favor do credor. Também não é possível cindir o título e registrar somente a compra e venda, e depois averbar a indisponibilidade, pois esse tipo de
instrumento (CV com AF) possui negócios dependentes e conexos que não admitem a cindibilidade. Recusa de ingresso de escritura de compra e venda – Bens declarados indisponíveis – Impossibilidade de registro de alienação voluntária – Irrelevância de a decretação ter ocorrido depois da lavratura do negócio jurídico – Precedentes deste Conselho. (Ap. Civ. nº 300570669.2013.8.26.0223 – DJe de 08/7/2016) Registro de escritura pública de alienação fiduciária – Declaração de ineficácia e penhora em favor do INSS – Indisponibilidade, nos termos do art. 53, § 1º, da Lei nº 8.212/91 – Negativa de registro da escritura, em face da indisponibilidade – Impossibilidade de alienação voluntária – Precedentes do Conselho Superior da Magistratura – Recurso desprovido. (Ap. Civ. nº 100341887.2015.8.26.0038 – DJe de 20/6/2016)
b) Indisponibilidade decretada no decurso da execução extrajudicial do artigo 26: - Não há, na Lei 9.514/1997, disposição acerca da prenotação ou não do procedimento de pedido de intimação. Tratando-se de um “procedimento” e não de um título, há quem entenda pela dispensa de prévia prenotação. Todavia, em face dos efeitos e por segurança, é de rigor que haja a prenotação. O artigo 26 da Lei 9.514/1997 prevê o andamento do procedimento de intimação no Registro de Imóveis. Mas, ao fazê-lo, deixou em aberto essa questão que tem se mostrado difícil. Especialmente quando já há uma alienação fiduciária registrada, com processo de intimação para purgação da mora em andamento e é recebida uma ordem de indisponibilidade dos bens e direitos do devedor. Em princípio, embora se trate de um procedimento em andamento no Registro de Imóveis, ele deve obter prenotação, até para garantir a prioridade inerente a esse ato. No Estado de São Paulo, há expressa previsão no item 244, cap. XX, das Normas de Serviço da CGJ, para que o requerimento de intimação seja prenotado e autuado, formando um processo para cada execução extrajudicial. Estando o procedimento de intimação prenota-
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PAINEL do, essa prenotação garante a sua prioridade em relação àquela indisponibilidade, que somente poderá ser averbada após o resultado do procedimento de execução extrajudicial. Se o devedor purgar a mora, a prenotação da intimação perderá sua eficácia com o pagamento ao credor, e a indisponibilidade poderá ser averbada. Mas, e se o devedor não purgar a mora? O parágrafo 7º do artigo 26 prevê que após as intimações, se não houver a purgação da mora, o oficial, certificando esse fato, promoverá a averbação, na matrícula do imóvel, da consolidação da propriedade em nome do fiduciário, à vista da prova do pagamento por este, do imposto de transmissão inter vivos e, se for o caso, do laudêmio. Ocorre que a lei não fixou prazo para que o credor, após receber a certidão de não purgação da mora, apresente o imposto ITBI pago ou o laudêmio. Questão crucial é saber quando devemos considerar vencido o protocolo do pedido de intimação. Com a entrega da certidão de não purgação da mora ao credor ou a prenotação se prolonga até a data da efetiva averbação da consolidação? E se o credor deixar transcorrer o prazo por tempo indefinido? E se deixar ultrapassar 30, 40 dias para só depois apresentar o imposto? Caso se entenda que o procedimento termina com o resultado da intimação (purgação da mora e entrega desse valor ao credor – ou certidão de não purgação da mora), o protocolo vencerá. Nesse caso, se já entrou ou se entrar uma indisponibilidade ela será averbada. Se isso ocorrer, quando o credor retornar com o imposto pago não mais obterá a consolidação
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em seu nome, pois a indisponibilidade foi lançada na matrícula. Se for averbada na matrícula do imóvel a indisponibilidade de bens do devedor, não será mais possível a averbação da consolidação da propriedade, sendo necessário prévio cancelamento daquela indisponibilidade pelo juiz que a determinou. (Proc. CG 167.424/2015 e Proc. CG 154.498/2015)
No Estado de São Paulo, há previsão nas Normas de Serviço (subitem 256.1), pelo qual o prazo de vigência da prenotação de pedido de intimação ficará prorrogado até a finalização do procedimento com a apresentação do pagamento do imposto de transmissão, ITBI ou laudêmio. Decorrido o prazo de 120 dias, os autos serão arquivados e por consequência cancelado o protocolo e a prioridade a ele inerente. Ultrapassado esse prazo, a consolidação da propriedade fiduciária exigirá novo procedimento de execução extrajudicial.3 Mas o que ocorre nos Estados em que não há norma para tal? Há quem entenda que devem ser duas prenotações. Uma para o procedimento de intimação e outra para o pedido de consolidação da propriedade. Nesse caso, se a indisponibilidade for apresentada no interregno entre os dois protocolos, o credor não mais conseguirá averbar a sua consolidação. Tendo em vista que a Lei 9.514/1997 veio para deixar a execução do crédito mais célere, parece-nos que o melhor enfoque é apenas uma prenotação para não correr o risco de ser recebida uma indisponibilidade prejudicial ao credor. O que falta na lei? Estabelecer que o procedimento é uno até que haja o resultado da intimação e eventual consolidação da propriedade, fixar um prazo para
ecisões recentes do judiciário paulista são no sentido de que as averbações de indisponibilidades também devem obedecer ao princípio D da prioridade. Quando se tratar de ordem genérica de indisponibilidade de determinado bem imóvel, sem indicação do título que a ordem pretende atingir, não serão sustados os registros dos títulos que já estejam tramitando, porque estes devem ter assegurado o seu direito de prioridade. Ou seja, ordem genérica não afasta a sequência da prenotação, só tendo prioridade quando expressamente dispor nesse sentido. Assim, apenas se o juiz ao declarar a indisponibilidade fizer expressa menção, determinando o bloqueio ou suspensão de registro de um título específico que esteja em andamento é que essa ordem terá prioridade sobre os demais títulos prenotados em número mais baixo. (CSMSP, Ap. Civ. nº 0041267-84.2016.8.26.0100, São Paulo – Dje de 07/5/2018; Ap. Civ. nº 1001246-78.2018.8.26.0100 – Dje de 01/03/2019; 1ª VRPSP, Processo 1013483-18.2016.8.26.0100 – DJe de 25/5/2018; Processo 1112428-69.2018.8.26.0100 – DJe de 21/02/2019)
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que o credor apresente o ITBI para a consolidação da propriedade; ou, esclarecer se a consolidação é realmente outro ato, com prenotação própria.
4. Cessão da dívida e dos direitos do devedor-fiduciante
cia do credor, especialmente se o financiamento for dentro do SFH, sendo necessário, ainda, verificar se há incidência de ITBI ou ITCMD, conforme for o caso. (Proc. 0014550-74.2012.8.26.0100, Proc. 001518237.2011.8.26.0100, Proc. 0062688-72.2012.8.26.0100, Proc. 1103676-50.2014.8.26.0100 todos da 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo)
O devedor fiduciante poderá transmitir os direitos de que é titular sobre o imóvel, desde que haja expressa anuência do credor fiduciário (art. 29 da Lei nº 9.514/1997). Há divergência sobre se o ato que deve ser praticado no Registro de Imóveis é de registro ou de averbação.
Dissolução de união estável, na qual foi acordado que o imóvel ficará somente para um dos ex-companheiros. Necessidade de anuência da credora fiduciária, mesmo que a cessão fiduciária seja feita em processo judicial. (Proc. CG 0011989-8.2014.8.26.0291 – Parecer 097/2016 – Dje de 04/5/2016)
No Estado de São Paulo, de acordo com o item 239 do Cap. XX do Provimento CG 58/89 – Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, a cessão desses direitos deve ser objeto de averbação, cabendo ao Oficial observar a regularidade do recolhimento do imposto de transmissão. Nesse sentido a decisão dada pela Corregedoria Geral no Processo CG 00119898.2014.8.26.0291, julgado em 04/5/2016.
O óbito, como fato natural, tem como consequência o inventário de todos os bens e direitos do falecido, o que inclui os direitos de fiduciante. Mas a partilha recairá sobre os direitos e não sobre o IMÓVEL.
O Conselho Superior da Magistratura tem aceito para assento os contratos particulares de cessão de direitos do devedor-fiduciante, entendendo ser descabida a exigência de celebração de contrato de compra e venda. Isso porque a entidade financeira, na verdade, não pretende transferir ao cessionário o domínio do imóvel, que permanecerá seu até que quitado o contrato de mútuo. E os devedores-fiduciantes anteriores também não poderiam desejar alienar o imóvel aos cessionários porque não são proprietários dele. (Ap. Civ. 417-6/5)
5.1 Intimação pessoal ou por edital
O entendimento é no sentido de ser correto o contrato de cessão de direitos e obrigações com assunção de dívida e ratificação de alienação fiduciária em garantia, por ser contrato de cessão da posição contratual, autorizada pelo art. 29 da Lei nº 9.514/1997. (Ap. Civ. 980-6/3) Outra questão diz respeito à anuência. As transmissões decorrentes de partilha em divórcio ou dissolução de união estável, na qual o bem fica somente para um dos cônjuges, também necessitam de anuên-
5. Algumas notas sobre a execução extrajudicial
O fiduciante será intimado, a requerimento do fiduciário, pelo oficial do Registro de Imóveis. A intimação será pessoal, ao fiduciante, ou ao seu representante legal ou ao procurador regularmente constituído. A dúvida é relativa à interpretação do que é “pessoal”. É só entregar no endereço, como ocorre atualmente com as citações nos processos judiciais? Temos visto decisões severas ao interpretar essa questão. Na exegese do dispositivo em epígrafe, a comprovação da mora do fiduciante decorre da sua intimação pessoal, ou de seu representante legal ou procurador regularmente constituído, podendo tal diligência ser promovida por solicitação do oficial do registro de imóveis ou do registro de títulos e documentos da comarca da situação do imóvel, ou do domicílio do devedor, ou pelo correio com aviso de recebimento, todavia, em qualquer hipótese, a intimação deve ser feita pessoalmente (TJSP, Apelação Cível nº 1057067300, 35ª Câmara, Rel. Des. Clóvis Castelo, j. 21/5/2007).
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PAINEL ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA DE BEM IMÓVEL. LEI Nº 9.514/1997. INTIMAÇÃO PESSOAL. NECESSIDADE. (...) É nula a intimação do devedor que não se dirigiu à sua pessoa, sendo processada por carta com aviso de recebimento no qual consta como receptor pessoa alheia aos autos e desconhecida. (STJ – REsp nº 1.531.144 – Paraíba – 3ª Turma – Rel. Min. Moura Ribeiro – DJ 28.03.2016).
As intimações por edital têm sido consideradas nulas, caso tenha sido enviada apenas a intimação postal, ou seja, se não houve tentativa de intimação pessoal. AgRg no AREsp 604510 / RS – Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA – DJe 28/08/2015 – Decisão: 25/08/2015 (...) 3. A intimação por edital é nula quando o credor fiduciário restringe-se a enviar a notificação para purgação da mora apenas por via postal, não providenciando a intimação pessoal por intermédio de oficial de registro de imóveis. REsp n. 1.367.179/SE (...) para a validade da intimação por edital nos casos de alienação fiduciária de bem imóvel, é necessário o esgotamento de todas as possibilidades de localização do devedor. “Apesar de o § 3º do art. 26 da Lei n. 9.514/97 utilizar-se da palavra ‘ou’ em sua parte final, entendo que a interpretação que deve ser dada ao referido dispositivo é a de que a possibilidade do envio da notificação para a purga da mora por via postal não exclui a necessidade de intimação pessoal por intermédio do oficial registrador.”
Há inclusive uma decisão que considera nula a intimação pois foram deixados apenas “avisos” no imóvel, em período de “veraneio” sem que tenha havido efetivas diligências para localizar o paradeiro do devedor: 5- AgInt no REsp 1363414 / RS – Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO – DJe 09/08/2016 – Decisão: 02/08/2016 (...) 1. Invalidade da notificação por edital realizada sem prévia tentativa de localização do devedor, no procedimento extrajudicial da Lei 9.514/97. Precedentes. 2. Hipótese em que o responsável
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pela notificação limitou-se a deixar “avisos” no imóvel, não tendo realizado nenhuma diligência para obter informações sobre o paradeiro do mutuário. 3. Exigência de aviso de recebimento, conforme previsto no art. 26, § 3º, da Lei 9.514/97, não bastando simples “avisos” informais, sem identificação do recebedor. 4. Inocorrência da consolidação da propriedade em mãos do credor fiduciário. 5. Improcedência do pedido de reintegração de posse. 6. Conexão com o Recurso Especial n. 1.363.405/RS. 7. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. (fl. 463) (...) “Naquele decisum, consignei que as três tentativas notificação do mutuário foram realizadas na primeira quinzena de janeiro, época de veraneio, sem que o notificador tivesse efetuado qualquer diligência para identificar o paradeiro do mutuário. Sequer tentou-se obter informações com os vizinhos. Assim, não tendo havido nenhuma tentativa de localização do devedor, concluiu-se, com base na jurisprudência desta Corte, pela nulidade da notificação por edital e, consequentemente, do procedimento de alienação extrajudicial.” .... “Ora, a ausência do devedor de seu domicílio, mormente em período de veraneio, não permite a conclusão de que ele se encontra em local incerto e não sabido. Tampouco seria possível chegar a essa conclusão com base na ausência de resposta aos ‘avisos’ deixados pelo notificador, pois a lei exige ‘aviso de recebimento’ (art. 26, § 3º, supra), não bastando simplesmente deixar um como um bilhete no imóvel.” (grifei)
Local incerto e não sabido não é o mesmo que não encontrar a pessoa. É preciso levar em conta o horário da notificação. Como você espera encontrar uma pessoa no endereço residencial em horário comercial? Não se deve imaginar que nesse horário ele está trabalhando? É certo que é dever do contratante fornecer corretamente seus dados na constituição da avença bem como mantê-los atualizados até o término da execução do negócio jurídico, em observância aos princípios da boa-fé contratual e do pacta sunt servanda. Cumpre ao devedor comunicar alterações relevantes de seu estado ao credor. A prática do devedor de deixar de informar ao credor a mudança de domicílio fere o princípio da bo-
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a-fé contratual, que impõe aos contratantes deveres de solidariedade, cooperação e lealdade, valores estes que protegem a confiança, ponto central nas relações contratuais. (RESp 1.449.967-CE)
credor a mudança de domicílio fere o princípio da boa-fé contratual, que impõe aos contratantes deveres de solidariedade, cooperação e lealdade, valores estes que protegem a confiança, ponto central nas relações contratuais.”
12- REsp 1449967 / CE – ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA – DJe 26/11/2015 – Decisão: 17/09/2015
O procedimento da alienação fiduciária trouxe para o Registro de Imóveis grandes responsabilidades e também uma valorização dos serviços. A execução que antes era judicial, agora está nas mãos do registrador. Precisamos exercer nossa função da melhor maneira possível. Não podemos deixar que a intimação na execução extrajudicial se torne objeto de anulação do procedimento. Para isso é preciso que haja maior segurança no que diz respeito à intimação. Os pedidos de anulação estão vindo acompanhados de ação contra o registrador, entendendo-se que ele não agiu de forma correta, não obedeceu aos ditames da lei. Para evitar isso temos que ter mais segurança nesse processo.4
Ementa: RECURSO ESPECIAL. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE COISA IMÓVEL. PURGA DA MORA. INTIMAÇÃO POR EDITAL. VALIDADE. LUGAR INCERTO E NÃO SABIDO. ART. 26, § 4º, DA LEI Nº 9.514/1997. DEVEDOR RECOLHIDO AO SISTEMA PRISIONAL. (...) 4. Quando o devedor se encontrar em outro local, incerto e não sabido, admite-se a intimação por edital (art. 26, § 4º, da Lei nº 9.514/1997). 5. Lugar incerto e não sabido é um desconhecimento de ordem objetiva, em que se conhece o sujeito destinatário da intimação, mas não se sabe onde encontrá-lo em virtude da ausência de dados para a sua localização. À luz de tal definição, verifica-se que o devedor já recolhido em estabelecimento prisional, e, portanto, com domicílio modificado, encontra-se em lugar incerto e não sabido apto a ensejar a intimação por edital se não informar tal situação ao agente fiduciário. 6. É dever do contratante fornecer corretamente seus dados na constituição da avença bem como mantê-los atualizados até o término da execução do negócio jurídico, em observância aos princípios da boa-fé contratual e do pacta sunt servanda. 7. Não é razoável exigir do credor fiduciário a realização de diligências em estabelecimentos prisionais a fim de localizar o paradeiro do devedor. Por seu turno, cumpre ao devedor comunicar alterações relevantes de seu estado ao credor, inclusive porque a dívida não fica suspensa em razão do encarceramento e também porque o preso não fica incomunicável. 8. Recurso especial parcialmente conhecido e não provido. “A prática do devedor de deixar de informar ao
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5.2 Alegação – pelo devedor – de existência de ação judicial em andamento Pode ocorrer de após ser intimado, o devedor apresentar requerimento ao Registro de Imóveis informando que intentou ação judicial contra a cobrança da dívida. Contudo, não tendo havido notificação judicial ao Registro de Imóveis, suspendendo o procedimento, o processo de intimação de devedor pode fluir normalmente, tendo em vista que está baseado em requerimento do credor. Compete ao devedor conseguir, judicialmente, a suspensão do procedimento de execução extrajudicial, se for o caso. Já tive casos em que a devedora, pessoa jurídica, foi intimada na pessoa do administrador, que alegou que não havia sido ele quem assinou o contrato. Discussões como essas não têm cabimento no âmbito do Registro de Imóveis. O procedimento e qualquer ale-
Lei 13.465 de 11/07/2017 introduziu o parágrafo 3º-A ao artigo 26 da Lei 9.514/1997 passando a permitir a “intimação por hora certa”. Assim, A quando, por duas vezes, o oficial de registro de imóveis ou de registro de títulos e documentos ou o serventuário por eles credenciado houver procurado o intimado em seu domicílio ou residência sem o encontrar, e se houver suspeita motivada de ocultação, poderá intimar qualquer pessoa da família ou, em sua falta, qualquer vizinho de que, no dia útil imediato, retornará ao imóvel, a fim de efetuar a intimação, na hora que designar, aplicando-se subsidiariamente o disposto nos artigos 252, 253 e 254 do Código de Processo Civil.
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PAINEL gação com referência à nulidade de título têm que se dar pela via judicial. Não havendo qualquer comunicação do Juízo perante o qual tramita a ação de cobrança, é legítima a notificação da devedora para realização do pagamento. (1ª VRPSP, Proc. 0025587-93.2015 – DJE de 18/8/2015) Ementa não oficial: Averbação da consolidação de propriedade – Requerimento de intimação que foi prenotado. Foi expedida certidão de não purgação da mora. Credor que apresenta o pagamento do ITBI e requer a averbação de consolidação da propriedade. Recusa do oficial tendo em vista a existência de outra prenotação noticiando a existência de ação anulatória pendente de julgamento. Ação de anulação na qual foi indeferida a liminar – Possibilidade de averbação da consolidação da propriedade. (1ª VRPSP, Processo 109876609.2016.8.26.0100 – DJe de 18.10.2016 – SP) Pedidos de abstenção de realização de registro de escritura a favor de eventual arrematante ou de averbação de restrição para atos de alienação informando existência de ação anulatória de contrato e de consolidação por envolver direito material devem ser feitos na via jurisdicional, não cabendo pedido feito ao Juiz Corregedor Permanente. (1ª VRPSP, Processo 111157009.2016.8.26.0100 – DJe de 24.10.2016)
5.3 Quitação da dívida após a consolidação da propriedade Em recentes decisões, o STJ tem admitido a possibilidade de o devedor pagar a dívida antes da realização dos leilões por entender aplicar-se subsidiariamente as regras do Decreto-lei 70/1966. A questão que se põe é a forma da propriedade voltar para o devedor tendo em vista que já houve a consolidação em nome do credor. (RESp. 1.462.210RS – j. em 18/11/2014; REsp 1.433.031/DF – j. em 03/06/2014; REsp nº 1.518.085-RS – DJ 20/05/2015) Há inúmeras decisões da 1ª VRPSP impondo a
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necessidade de novo título de transmissão da propriedade, não sendo possível mero cancelamento da averbação de consolidação. (Proc. 104321493.2015.8.26.0100, Proc. 0018132-19.2011.8.26.0100, Proc. 0049689-24.2011.8.26.0100, Proc. 003917949.2011.8.26.0100 todos da 1ª VRPSP) A recente MP 7595, já aprovada na Câmara, altera o artigo 27 da Lei 9.514/1997, introduzindo o parágrafo 2-B, pelo qual fica pacificada a questão, apontando que o pagamento da dívida após a consolidação constitui nova aquisição do imóvel. § 2º-B Após a averbação da consolidação da propriedade fiduciária no patrimônio do credor fiduciário e até a data da realização do segundo leilão, é assegurado ao devedor fiduciante o direito de preferência para adquirir o imóvel por preço correspondente ao valor da dívida, somado aos encargos e despesas de que trata o § 2º deste artigo, aos valores correspondentes ao imposto sobre transmissão inter vivos e ao laudêmio, se for o caso, pagos para efeito de consolidação da propriedade fiduciária no patrimônio do credor fiduciário, e às despesas inerentes ao procedimento de cobrança e leilão, incumbindo, também, ao devedor fiduciante o pagamento dos encargos tributários e despesas exigíveis para a nova aquisição do imóvel, de que trata este parágrafo, inclusive custas e emolumentos.
5.4 Quitação final ao fiduciante e restituição ao devedor do valor pago Havia decisões da 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo no sentido de ser necessário que o credor comprovasse, perante o Registro de Imóveis, a efetiva devolução da quantia paga ao devedor, não bastando a alegação de que o valor foi depositado e está à sua disposição. (Proc. n. 0068763-93.2013, Proc. 109572449.2016.8.26.0100 – DJe de 09/11/2016). Contudo, o Conselho Superior da Magistratura entendeu que a obrigação do credor fiduciário de dar
A Medida Provisória n. 759 de 22/12/2016 foi convertida na Lei n. 13.465 de 11/07/2017.
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quitação às devedoras fiduciantes em razão da arrematação do bem imóvel no referido leilão e de prestar contas acerca do valor excedente apurado a ser devolvido, conforme previsto no § 4° do artigo 27 da Lei 9.514/1997, é de natureza pessoal e restrita às partes desse negócio (alienação fiduciária). Não guarda, pois, nenhuma relação com o dever da instituição financeira de transferir a titularidade do domínio à arrematante, o que se deu por meio da escritura de compra e venda apresentada para registro. Assim sendo, não é atribuição do registrador de imóveis, ao qualificar a escritura de compra e venda apresentada, verificar o cumprimento do referido dispositivo legal (CSMSP, Apelação n° 101010321.2015.8.26.0100, DJe de 04/02/2016 – SP).
5.5 Aplicação do Decreto lei 70/19666 O atual inciso II do artigo 39 da Lei nº 9.514/1997 estabelece que às operações de financiamento imobiliário aplicam-se as disposições dos artigos 29 a 41 do DL 70/1966. O STJ tem seguido orientação no sentido de que essa regra somente se aplica se houver “financiamento imobiliário” e não ampla e irrestritamente a qualquer alienação fiduciária. (REsp 1574364 / SE) Todavia, na recente MP 7597 esse inciso foi alterado, passando a indicar a aplicação do DL 70/1966 somente quanto à execução de créditos garantidos por hipoteca.
6. Alienação fiduciária “elástica” Alienação fiduciária elástica é entendida como aquela na qual, após a constituição de propriedade fiduciária para garantia de uma dívida, as partes constituem nova dívida e queiram que aquela garantia já constituída e registrada, passe também a garantir essa nova dívida. Há relativo consenso no sentido de que isso não é possível, assim como já era o entendimento para a hipoteca. O MM Juiz Dr. Narciso Orlandi Neto, no Proc. 1.006/81, da 1ª VRPSP, decidiu que o aumento de crédito a ser garantido pela hipoteca anteriormente registrada, mesmo envolvendo as mesmas partes contratantes, configurava uma segunda hipoteca e importava novo registro.8 Havendo alteração no objeto da obrigação considera-se nova dívida (novação) devendo ser cancelada a propriedade fiduciária original para possibilitar o registro do novo contrato e suas novas condições e objeto (Proc. CG 146.225/2013). No mesmo sentido, o entendimento de Ademar Fioranelli (in Direito Registral Imobiliário): “É certo que sempre que ocorrer elevação do crédito anteriormente concedido, configura-se a constituição de nova hipoteca, a qual será alvo de novo registro em respeito aos princípios que regem o instituto hipotecário.” E há uma decisão no caso de um contrato de consórcio, em que o aditivo apresentado alterava o número e o valor de cada parcela:
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Lei 13.465 de 11/07/2017 alterou o inciso II do artigo 39 da Lei 9.514/1997, estabelecendo que as disposições do Decreto-lei 70/1966 somente A se aplicam aos procedimentos de execução de créditos garantidos por hipoteca. A contrario sensu, não se aplicam as disposições do DL 70/1966 às execuções de créditos garantidos por alienação fiduciária. O inciso II passou a ter a seguinte redação: Art. 39. [...] “II - aplicamse as disposições dos arts. 29 a 41 do Decreto-Lei nº 70, de 21 de novembro de 1966, exclusivamente aos procedimentos de execução de créditos garantidos por hipoteca”.
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A Medida Provisória n. 759 de 22/12/2016 foi convertida na Lei n. 13.465 de 11/07/2017.
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o mesmo sentido, Ademar Fioranelli in Direito Registral Imobiliário: “É certo que sempre que ocorrer elevação do crédito anteriormente N concedido, configura-se a constituição de nova hipoteca, a qual será alvo de novo registro em respeito aos princípios que regem o instituto hipotecário.”
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PAINEL Contrato de Consórcio. Aditivo que altera o valor da dívida em relação à quota de um grupo alterando o número e o valor de cada parcela. Exclusão de duas outras cotas e inclusão de outras quotas ligadas a outro grupo. Inegável novação objetiva, com majoração da soma total devida pelos devedores fiduciantes, de cuja composição os débitos de duas quotas foram excluídos, pois extintas as obrigações condizentes, e os de duas outras participam, demonstram que houve a extinção da obrigação original mediante a constituição de uma nova em seu lugar. Houve mudança do objeto da obrigação, não mera alteração do teor do vínculo obrigacional, não simples elevação da importância devida; surgiu uma nova dívida em substituição à anterior, transformada em sua essência, não mera modificação do modo de execução da obrigação, retirando-se o animus novandi da conduta dos interessados, do conteúdo do acordo entre os contratantes. Dentro desse contexto, não há como admitir o acesso do primeiro aditamento ao instrumento particular de pacto adjeto de alienação fiduciária em garantia e outras avenças ao fólio real, pelo menos enquanto não for cancelado o anterior registro da alienação fiduciária, cujos efeitos subsistem ainda que se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido (artigo 252 da Lei nº 6.015/1973). A primitiva propriedade-garantia, cuja perda, extinção advinda da novação, depende do cancelamento para produzir seus efeitos, impossibilita a inscrição do novo titulus adquirendi, da nova causa jurídica de aquisição da propriedade fiduciária: o convívio de duas propriedades fiduciárias na mesma tábua registral fere o princípio da legalidade. Não incide, na hipótese, a alínea 15, II, do art. 167 da Lei nº 6.015/1973 (que permite elevação de dívida em hipoteca em favor de entidades do SFH) que não se aplica ao caso, pois o contrato de consórcio não está aperfeiçoado no âmbito do SFH, e ainda, não houve simples modificação do conteúdo contratual. Também não houve simples sub-rogação pessoal (art. 167, II, n. 30) pois inexistente pagamento pois não houve apenas alteração de condições contratuais, mas sim, a constituição de uma nova obrigação. (Proc. CG n. 146.225/2013 – Parecer 524/2013) Aditamento de contrato de alienação fiduciária – Aumento da dívida – Inclusão de nova cota de consórcio – Novo negócio jurídico fiduciário – Sujeição, a registro, para o que necessário
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cancelamento do Registro anterior – Decisão mantida – Recurso não provido. (Processo CG n° 151.796/2013 – Parecer 09/2014-E)
7. Alienação fiduciária “guarda-chuva” ou sobre negócios futuros Alienação fiduciária “guarda-chuva” é entendida como aquela em que a instituição visa garantir dívidas futuras. O Tribunal de Justiça de São Paulo, no Ag. Inst. n. 1.246.070-0/5 entendeu que é possível a instituição de garantia fiduciária para garantia de dívidas futuras. Isso ocorre quando no contrato é mencionado que o bem irá garantir e cobrir todas as operações de crédito que eventualmente venham a ser firmadas pelos contratantes até um determinado limite fixado no contrato. O entendimento foi de que essa cláusula não contraria o art. 24 da lei 9.514/1997 porque foi previamente fixado o limite da dívida garantida. Esse tipo se diferencia da alienação fiduciária “elástica” pois nesta não há um limite preestabelecido, enquanto que no tipo “guarda-chuva” já haverá um limite prefixado indicando qual será o valor total da dívida. O bem, portanto, poderá garantir diversas dívidas dentro daquele limite. Na decisão, cita-se a lição de Maria Helena Diniz, segundo a qual é requisito para que os direitos reais de garantia possam ter eficácia que no instrumento figurem: “o valor do crédito, sua estimação ou valor máximo, ou seja, é necessário que se expresse em cifras o total do débito e nos casos em que não for possível estabelecer o seu quantum exato, como sucede nos contratos de financiamento para construção ou de abertura de crédito em conta corrente, basta que se estime o máximo do capital mutuado que ficará garantido; se ultrapassado com o fornecimento de novas somas, o mutuante será mero credor quirografário pelo que exceder.” (Curso de Direito Civil, v. 4: direito das coisas – 22. ed. ver. e atual. SP: Saraiva, 2007, p. 468).
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O Conselho da Magistratura paulista se manifestou contra o registro de contrato de alienação fiduciária no qual havia apenas a indicação de que a garantia abrangia não só as obrigações assumidas no contrato bem como as “futuramente devidas”. Mas não ficou claro, na decisão, se havia ou não a indicação de prazo limite. A apelante se limitou a consignar no contrato que as datas de vencimento das obrigações são aquelas do cronograma estabelecido nos Termos de Cessão assinados pela Soltec (cláusula I, subitem 1.2.4, (ii), fls.21). Verifica-se, além do mais, que a apelante pretende que o imóvel dado em garantia abranja não só as obrigações assumidas no contrato de cessão e os termos de cessão que menciona no subitem 1.1 da cláusula I, como as “futuramente devidas”. A Lei de Alienação Fiduciária, ao estabelecer no dispositivo legal acima mencionado os requisitos do contrato, os procedimentos mínimos que devem ser observados no leilão, como o valor do principal da dívida, prazo para pagamento, encargos, fixação de valor mínimo para a venda do imóvel etc., procura proteger o devedor fiduciante e evitar o locupletamento indevido do credor, o que reclama, em consequência, que se especifiquem as obrigações, a data do vencimento e os encargos previstos, e, consequentemente, não admite garantia em relação à obrigação que porventura venha a ser assumida. (Ap. Civ. nº 000034812.2013.8.26.0471, j. em 16/10/2014)
Mas há quem entenda não ser possível esse tipo de negócio, tendo em vista que não há previsão legal, como ocorre com a hipoteca, cujo artigo 1.487 do CC autoriza sua instituição para dívidas futuras.
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8. Alienação fiduciária e crédito rotativo9 Crédito rotativo é aquele que é concedido a uma pessoa (física ou jurídica) para ser utilizado de acordo com a necessidade do devedor. Abre-se um crédito, fixando-se um limite. Não existe, em princípio, uma dívida exata, concreta, mas um limite de crédito a favor do devedor. O credor pode pedir uma garantia, sendo esse tipo de financiamento muito comum para pessoas jurídicas. Pode ser utilizado para fins de desconto de duplicatas, cheques etc. Há registradores que entendem não ser possível o registro desse negócio jurídico, quando a garantia é a alienação fiduciária de bens imóveis, apontando os seguintes motivos: • não há previsão na Lei nº 9.514/1997 para esse tipo de negócio; • é um negócio jurídico sem liquidez e certeza para que seja utilizado o procedimento extrajudicial de execução previsto na Lei 9.514/1997. O mais adequado seria a garantia hipotecária; • é um negócio que tem potência para gerar muitos litígios, sendo função do RI prevenir tais lides; • alguns exigem que conste o valor exato do crédito concedido e não o limite; e que seja especificado o vencimento da dívida e quais
questão sobre a possibilidade de alienação fiduciária garantir crédito rotativo com origem em contratos sobre ativos financeiros e valores A mobiliários foi tratada pela Lei 13.476, de 28/08/2017, que passou a prever expressamente a possibilidade de que as instituições financeiras integrantes do Sistema Financeiro celebrem contratos de abertura de crédito, observado um limite máximo previsto no contrato principal e seu prazo de vigência. O instrumento deverá conter os seguintes requisitos essenciais: I - o valor total do limite de crédito aberto; II - o prazo de vigência;: III - a forma de celebração das operações financeiras derivadas; IV - as taxas mínima e máxima de juros que incidirão nas operações financeiras derivadas, cobradas de forma capitalizada ou não, e os demais encargos passíveis de cobrança por ocasião da realização das referidas operações financeiras derivadas; V- a descrição das garantias, reais e pessoais, com a previsão expressa de que as garantias constituídas abrangerão todas as operações financeiras derivadas nos termos da abertura de limite de crédito, inclusive as dívidas futuras; VI - a previsão de que o inadimplemento de qualquer uma das operações faculta ao credor, independentemente de aviso ou interpelação judicial, considerar vencidas antecipadamente as demais operações derivadas, tornando-se exigível a totalidade da dívida para todos os efeitos legais. Observa-se, porém que o registro das garantias constituídas no instrumento de abertura de limite de crédito deverá ser efetuado na forma prevista na legislação que trata de cada modalidade da garantia, real ou pessoal, e serão inaplicáveis os requisitos legais indicados nos incisos I, II e III do caput do artigo 18 e incisos I, II e III do caput do artigo 24 da Lei 9.514/1997.
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PAINEL os vencimentos de cada parcela. • Os registradores que entendem caber tal registro apontam os seguintes argumentos: • não cabe ao registrador criar empecilhos à utilização da alienação fiduciária; • a AF veio para ser mais um instrumento de fomento econômico; • basta que o instrumento preencha os requisitos do art. 24 da Lei 9.514/1997 e que indique o valor principal da dívida, o prazo e as condições de reposição do empréstimo ou do crédito do fiduciário, a taxa de juros e os encargos incidentes; • a própria Lei 9.514/1997, no art. 24, II, aponta a possibilidade de a dívida ser em virtude de “empréstimo” ou “crédito”; • o limite de crédito estipulado substitui a necessidade de indicação do valor da dívida; • além disso, o valor é certo, pois há um limite preestabelecido; • a questão de fixação do valor do débito para fins de execução é uma questão a ser resolvida no futuro, se houver necessidade de execução, mas o registro do contrato de constituição da AF deve ser deferido; • por expressa disposição legal no art. 1.367, CC, aplica-se à propriedade fiduciária as disposições dos artigos 1.419 a 1430 daquele código, e o artigo 1424, inciso I, permite a indicação do “valor do crédito ou sua estimação”; • caberá ao credor, em caso de execução, apresentar a planilha de cálculo, apontando o valor do débito, e ao devedor examinar esses valores, confrontando-os com seus extratos ou registros contábeis; • cabe ao credor, ainda, apresentar extrato de toda a conta (títulos descontados, taxa de juros, encargos), cobrando a dívida até o valor máximo previsto no contrato de AF;
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• a Lei 10.931/2004, que criou a Cédula de Crédito Bancário, prevê, expressamente, em seu artigo 40, a possibilidade da CCB ser emitida nas operações de crédito rotativo e haver garantia fideijussória ou real (arts. 27, 31 e 42). Não há impedimento dessa garantia ser a alienação fiduciária. Caberá ao credor apresentar a planilha de cálculo; • essa não é uma forma unilateral de fixação do valor pelo credor, pois cabe ao devedor eventual impugnação. Nossa legislação já contempla casos similares de aparente unilateralidade tais como o protesto (que efetivamente é unilateral), averbação premonitória (o credor indica os imóveis nos quais será feita a averbação), hipoteca judiciária (cabe ao credor também indicar o imóvel). Em caso de excesso haverá a responsabilização do credor; • eventual impugnação do valor deverá ser levada ao Poder Judiciário, que poderá conceder liminar suspendendo o procedimento da execução extrajudicial; • caberá ao credor, em caso de execução, apresentar a planilha de cálculo, apontando o valor do débito, e ao devedor examinar esses valores, confrontando-os com seus extratos ou registros contábeis. A MM. Juiza da 1ª VRPSP negou registro a contrato de alienação fiduciária garantindo crédito rotativo, em cujo título não havia a previsão das taxas de juros, valor de cada prestação e vencimento da primeira e última prestações sob o argumento de que o rol do art. 24 é taxativo, sendo todos os elementos ali estabelecidos indispensáveis, incluindo o valor da primeira e última prestações, conforme exigido pelo registrador. (Processo n. 1049051-95.2016.8.26.0100, j. em 06/7/2016) Alienação Fiduciária. Crédito rotativo. Ausência de previsão no contrato das taxas de juros, valor de cada prestação e vencimento da primeira e última prestações, nos termos do artigo 24 da Lei 9.514/97. Quebra da Legalidade, vez que a lei exige a menção a esses requisitos. De acordo
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com a credora fiduciária, o contrato envolve futuras transações comerciais, ou seja, não existem parcelas fixas para reposição do empréstimo, uma vez que este somente se concretizará com o faturamento de motos e peças. Alega, ainda, que pela inexistência de parcelas vencidas e vincendas o crédito é rotativo. Isso não afasta as exigências que configuram requisitos indispensáveis de validade e eficácia do contrato, uma vez que a ausência do valor das prestações, juros e demais encargos impossibilita a constituição em mora do devedor ou a verificação de sua purgação. (1ª VRPSP, Processo 1049051-95.2016.8.26.0100 – Dje de 18.7.2016)
Todavia, o artigo 24 da Lei 9.514/1997, com referência à dívida, exige apenas a indicação do valor principal da dívida, prazo e as condições de reposição do empréstimo ou do crédito do fiduciário, a taxa de juros e os encargos incidentes. Não há previsão para a exigência de valores da primeira e da última prestação. Por outro lado, há decisão do STJ no RESp 1.542.275-MS, no sentido de que a lei não exige que o contrato de alienação fiduciária de imóvel se vincule ao financiamento do próprio bem, de modo que é legítima a sua formalização como garantia de toda e qualquer obrigação pecuniária, podendo inclusive ser prestada por terceiros, podendo garantir todas as obrigações em geral, podendo ser utilizada, inclusive como garantia de crédito. Seu alcance ultrapassa os limites das transações relacionadas à aquisição de imóvel, tendo finalidade também de fomentar o sistema de garantias do direito brasileiro, dotando o ordenamento jurídico de instrumento que permite sejam as situações de mora, tanto nos financiamentos imobiliários, como nas operações de créditos com garantia imobiliária, recompostas em prazos compatíveis com as necessidades da economia moderna. REsp 1542275 / MS – Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA – DJe 02/12/2015 – Decisão: 24/11/2015 RECURSO ESPECIAL. AÇÃO ANULATÓRIA DE GARANTIA FIDUCIÁRIA SOBRE BEM IMÓVEL. CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO. DESVIO DE FINALIDADE. NÃO CONFIGURAÇÃO. GARANTIA DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. COISA IMÓVEL. OBRI-
GAÇÕES EM GERAL. AUSÊNCIA DE NECESSIDADE DE VINCULAÇÃO AO SISTEMA FINANCEIRO IMOBILIÁRIO. INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 22, § 1º, DA LEI Nº 9.514/1997 E 51 DA LEI Nº 10.931/2004. ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA. VEROSSIMILHANÇA DA ALEGAÇÃO. AUSÊNCIA. 1. Cinge-se a controvérsia a saber se é possível a constituição de alienação fiduciária de bem imóvel para garantia de operação de crédito não relacionada ao Sistema Financeiro Imobiliário, ou seja, desprovida da finalidade de aquisição, construção ou reforma do imóvel oferecido em garantia. 2. A lei não exige que o contrato de alienação fiduciária de imóvel se vincule ao financiamento do próprio bem, de modo que é legítima a sua formalização como garantia de toda e qualquer obrigação pecuniária, podendo inclusive ser prestada por terceiros. Inteligência dos arts. 22, § 1º, da Lei nº 9.514/1997 e 51 da Lei nº 10.931/2004. 3. Muito embora a alienação fiduciária de imóveis tenha sido introduzida em nosso ordenamento jurídico pela Lei nº 9.514/1997, que dispõe sobre o Sistema Financiamento Imobiliário, seu alcance ultrapassa os limites das transações relacionadas à aquisição de imóvel. 4. Considerando-se que a matéria é exclusivamente de direito, não há como se extrair do texto legal relacionado ao tema a verossimilhança das alegações dos autores da demanda. 5. Recurso especial provido. (REsp 1542275/MS, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/11/2015, DJe 02/12/2015) (...)
2. Da alienação fiduciária de bem imóvel como garantia de operação de crédito A Lei n. 9.514/97 não exige que o contrato de alienação fiduciária de imóvel se vincule ao financiamento do próprio imóvel, sendo legítima a sua formalização como garantia de toda e qualquer obrigação pecuniária, podendo inclusive ser prestada por terceiros. Embora a alienação fiduciária de imóveis tenha sido introduzida em nosso ordenamento jurídico pela Lei nº 9.514/97, seu alcance ultrapassa os limites das transações relacionadas à aquisição de imóvel tendo finalidade também de fomentar o sistema de garantias do direito brasileiro, dotando o ordenamento jurídico de instrumento que permite sejam as situações de mora, tanto nos financiamentos imobiliários, como nas operações de créditos com garantia imobiliária, recompostas em pra-
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PAINEL zos compatíveis com as necessidades da economia moderna. (grifei)
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É CERTO QUE O CONTRATO DE CONSTITUIÇÃO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA PARA FINS DE CRÉDITO ROTATIVO DEVE CONTER OS REQUISITOS DO ARTIGO 24 DA LEI 9.514/1997, APONTANDO O VALOR DA DÍVIDA OU DO CRÉDITO, OU SUA ESTIMAÇÃO (ART. 24, II, DA LEI 9.514 C/C ART.1.367 E 1424, I, DO CÓDIGO CIVIL).
É certo que o contrato de constituição de alienação fiduciária para fins de crédito rotativo deve conter os requisitos do artigo 24 da Lei 9.514/1997, apontando o valor da dívida ou do crédito, ou sua estimação (art. 24, II, da Lei 9.514 c/c art.1.367 e 1424, I, do Código Civil). E, ainda, o prazo para pagamento, as condições de reposição do empréstimo ou do crédito do fiduciário, a taxa de juros e os encargos incidentes. Tratando-se de Cédula de Crédito Bancário, os requisitos estão no artigo 29 da Lei n. 10.931/2004.
Se não contiver esses requisitos não poderá ser registrado. O Conselho da Magistratura também já se manifestou sobre o assunto impedindo registro de contrato que não citava o vencimento da dívida, além de conter previsão de garantir dívidas futuras. Resenha: Contrato de alienação fiduciária que garante obrigações e que não cita o vencimento da dívida. Há cláusula que indica que a dívida garantida é variável, porque as operações realizadas entre as partes consistem em cessões de crédito, de forma que os valores e datas de vencimentos estão apontados nos títulos cedidos e eventualmente não pagos, conforme os cronogramas estabelecidos nos termos de cessão que foram celebrados e que venham a ser celebrados futuramente, tudo de acordo com o artigo 1.361 e seguintes do CC. Credor que afirma que, por não se tratar de financiamento, não se aplica ao caso o § 2º do artigo 27 da Lei 9.514/97. Impossibilidade. Necessidade de constar a data do vencimento das obrigações e menção à taxa de juros se houver. Além de ser requisito previsto no artigo 176, inciso III, 5, da LRP, e também no item 68 do capítulo
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XX das NSCGJSP, está previsto no artigo 24, incisos I, II e III, da Lei nº 9.514/97, pelo qual o contrato que serve de título ao negócio fiduciário conterá o valor principal da dívida; o prazo e as condições de reposição do empréstimo ou do crédito do fiduciário e a taxa de juros e os encargos incidentes. A apelante se limitou a consignar no contrato que as datas de vencimento das obrigações são aquelas do cronograma estabelecido nos Termos de Cessão assinados pela devedora. Verificou-se, também, que a credora pretendia que o imóvel dado em garantia abrangesse não só as obrigações assumidas no contrato de cessão e os termos de cessão como as “futuramente devidas”. Entendeu o CSM que a Lei de Alienação Fiduciária, ao estabelecer no dispositivo legal acima mencionado os requisitos do contrato, os procedimentos mínimos que devem ser observados no leilão, como o valor do principal da dívida, prazo para pagamento, encargos, fixação de valor mínimo para a venda do imóvel etc., procura proteger o devedor fiduciante e evitar o locupletamento indevido do credor, o que reclama, em consequência, que se especifiquem as obrigações, a data do vencimento e os encargos previstos, e, consequentemente, não admite garantia em relação à obrigação que porventura venha a ser assumida. (Ap. Civ. nº 000034812.2013.8.26.0471 – DJE de 22-01-2015)
9. Alienação fiduciária da propriedade superveniente Existe discussão na doutrina a respeito da possibilidade do devedor fiduciante constituir nova garantia sobre o imóvel. O Enunciado n. 506, da V Jornada de Estudos de Direito Civil promovida pelo Conselho Federal de Justiça, é do seguinte teor: “Estando em curso contrato de alienação fiduciária, é possível a constituição concomitante de nova garantia fiduciária sobre o mesmo
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bem imóvel, que, entretanto, incidirá sobre a respectiva propriedade superveniente que o fiduciante vier a readquirir, quando do implemento da condição a que estiver subordinada a primeira garantia fiduciária; a nova garantia poderá ser registrada desde a data em que convencionada e será eficaz desde a data do registro, produzindo efeito ex tunc.” O prof. Melhim Challub e Afranio Carlos Camargo Dantzger defendem, em excelente texto, a possibilidade de os direitos que o devedor possui poderem ser objeto de nova garantia.10 Entendem que não há possibilidade jurídica de se constituir sucessivas propriedades fiduciárias sobre o mesmo bem, em diferentes graus, preferindo-se uns aos outros por ordem de registro, como acontece com a hipoteca, mas, não obstante, são legalmente admissíveis (1) a caução do direito real de aquisição do fiduciante (Lei nº 9.514/1997, arts. 17, III, e 21) e (2) a alienação fiduciária da propriedade superveniente, da qual o fiduciante vier a se tornar titular quando do cancelamento da propriedade fiduciária que se encontrava no patrimônio do credor anterior, sendo certo que somente após a averbação desse cancelamento na matrícula imobiliária é que a alienação fiduciária da propriedade superveniente passará a ter eficácia, só aí investindo o segundo credor da posição de novo proprietário fiduciário do bem. Com relação à alienação da propriedade superveniente, assim se posicionam: (...) Em segundo lugar, pode eventualmente ser admitida a alienação fiduciária de propriedade superveniente, como prevê o § 3º do Art. 1.361, pelo qual “a propriedade superveniente, adquirida pelo devedor, torna eficaz, desde o arquivamento, a transferência da propriedade fiduciária, bem como o § 1º, do Art. 1.420, do Código Civil, que “torna eficaz, desde o registro, as garantias reais estabelecidas por quem não era dono”. Fica claro, entretanto, que a eficácia da nova garantia fiduciária é subordinada ao advento de uma condição suspensiva, qual seja, o integral cum-
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primento, pelo fiduciante, da obrigação assumida por ocasião da primeira dívida. Não se trata, nessa hipótese, de alienação em 2º grau, mas sim de uma nova alienação, que uma vez registrada no Registro de Imóveis, só passará a ter eficácia se, e quando, a propriedade fiduciária garantidora da primeira dívida do fiduciante for cancelada em razão do seu integral pagamento. Isso porque, uma vez quitada a dívida anteriormente garantida pela propriedade fiduciária do imóvel, tal propriedade resolver-se-á perante o primeiro credor fiduciário e retornará automaticamente ao domínio pleno do fiduciante, que já a terá alienado fiduciariamente ao titular do crédito garantido pela alienação fiduciária dessa propriedade superveniente. Assim, concretizar-se-á o fato abstratamente previsto no § 1º, do Art. 1.420 e § 3º, do Art. 1.361, ambos do Código Civil, pois o fiduciante receberá, em verdadeira ficção jurídica, uma propriedade superveniente que terá o condão de tornar eficaz, desde o seu registro (que na verdade ocorrerá automaticamente na matrícula mediante a averbação do cancelamento da propriedade fiduciária referente à primeira dívida), a garantia real constituída anteriormente, quando ele ainda não era titular da propriedade plena do imóvel, já que na ocasião da constituição dessa nova garantia ele não dispunha da propriedade do bem que se obrigara a transmitir em fidúcia, pois tal propriedade encontrava-se no patrimônio do credor anterior e só terá retornado ao patrimônio do fiduciante quando do pagamento da dívida (condição resolutiva da propriedade fiduciária). E, concomitantemente a esse fato, pelo advento da condição suspensiva instituída quando da segunda alienação fiduciária, a propriedade fiduciária por ela constituída passará automaticamente a garantir a segunda dívida, permitindo que o segundo credor, agora único credor, ostente-a em seu nome a título de fiduciário.
Todavia, há decisões que não admitem esse registro: O Oficial de Registro Imobiliário tem sua atuação delimitada pelo princípio da tipicidade, que estabelece que são registráveis tão-somente os títulos e atos previstos em lei. Assim, é objeto
Chalhub. Melhim Namem. Dantzger. Afranio Carlos Camargo. Alienação Fiduciária de Bens Imóveis em segundo grau? Texto Disponível em: http://www.anoreg.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=13580:imported_13551&catid=32&Itemid=181. Acesso em 25/5/2017.
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PAINEL passível de registro a alienação fiduciária em garantia de coisa imóvel, mas não a alienação fiduciária sobre a propriedade superveniente, nos termos do art. 167, inc. I, item 35, da LRP. Apelante que sustenta que a alienação fiduciária incidente sobre a propriedade superveniente é aceita, tanto pela doutrina, quanto pela jurisprudência. Todavia, a despeito das alegações da parte apelante, inexiste previsão legal de modo a possibilitar o registro de instrumento que prevê como garantia a alienação fiduciária sobre a propriedade superveniente, razão pela qual não se revela juridicamente viável a constituição de nova garantia tendo como objeto o bem sobre o qual já pesa anterior alienação fiduciária constituída em favor da instituição financeira. (TJRS,
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Ap. Civ. 70069852457 – DJ de 31/8/2016) Registro de instrumento de alienação fiduciária da propriedade superveniente – Inviabilidade – Princípio da Legalidade – Rol taxativo do artigo 167 da Lei de Registros Públicos – Dúvida procedente (1ª VRPSP, Processo 1111191-68.2016.8.26.0100 – Dje de 24.01.2017)
10. Conclusão Por tudo que foi apontado verifica-se a existência de inúmeras questões que demandam, ainda, muito estudo.
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Não podemos esquecer que cabe aos registradores a qualificação dos títulos dentro dos princípios registrais. E em questões duvidosas devem decidir com seu juízo prudencial. Temos uma responsabilidade importante, e não devemos nos esquecer da lição do ilustre jurista Serpa Lopes: “Em princípio devem todos ter em vista, quer o Oficial do Registro, quer o próprio juiz: em matéria de registro de Imóveis, toda a interpretação deve tender para facilitar e não para dificultar o acesso dos títulos ao Registro, de modo que toda a propriedade imobiliária e todos os direitos sobre ela recaídos fiquem sob o amparo do regime do Registro Imobiliário e participem de seus
benefícios” (Tratado dos Registros Públicos, ed. 1960, vol. II/346).’
Bibliografia BRASIL. Lei nº 9.514, de 20 novembro de 1997. Dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF. 20.11.1997. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9514.htm>. BRASIL. Lei nº 10.931, de 02 agosto de 2004. Dispõe sobre o patrimônio de afetação de incorporações imobiliárias, Letra de Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Bancário, altera o Decreto-Lei nº 911, de 1º de outubro de 1969, as Leis nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, nº 4.728, de 14 de julho de 1965, e nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF. 03.08.2004. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L10931.htm>. CHALHUB, Melhim Namem. Negócio Fiduciário, Ed. Renovar, Rio de Janeiro – São Paulo – Recife, 2009 CHALHUB, Melhim Namem. DANTZGER. Afrânio Carlos Camargo. Alienação Fiduciária de Bens Imóveis em segundo grau? Texto Disponível em: <http://www. anoreg.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=13580:imported_13551&catid=32&Itemid=181>. Acesso em 25/5/2017. FIORANELLI, Ademar. Direito Registral Imobiliário. Sergio Antônio Fabris Editor, Porto Alegre, 2001. LOPES, Miguel Maria de Serpa. Tratado dos Registros Públicos, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1960, vol. II. SÃO PAULO. Provimento CG n. 58/89. Normas de Serviço dos Cartórios Extrajudiciais – Tomo II. Disponível em: <http://www.tjsp.jus.br/Download/Corregedoria/NormasExtrajudiciais/NSCGJ_TOMO_II_NORMAL_29-06-17.pdf>. IRIB. Boletim Eletrônico n. 4118 de 08/11/2011. Disponível em: <http://www.irib.org.br/boletins/detalhes/387> http://www.kollemata.com.br/
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PAINEL
Procedimento de intimação e consolidação da propriedade fiduciária Paola de Castro Ribeiro Macedo – Oficiala de Registro de Imóveis de Taubaté (SP)
A palestrante recapitulou o procedimento de intimação e expôs os principais temas relacionados à alienação fiduciária no Registro de Imóveis: quem deve ser intimado, intimação por hora certa, por edital e judicial, purgação da mora após a consolidação da propriedade e possibilidade de dispensa de leilões. 110
Procedimento de intimação e consolidação da propriedade fiduciária
A
pós a realização do XLIV Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, em maio de 2017, foi promulgada a Lei nº 13.465/2017, que alterou alguns pontos abordados na palestra. O texto a seguir foi revisado pela palestrante a fim de adequar as informações à nova legislação.
1ª fase do procedimento de intimação: protocolos e providências Uma explanação geral do procedimento de intimação no Registro de Imóveis, em suas três fases, pode situar melhor o tema a ser exposto. A primeira fase, de protocolos e providências, inicia com o requerimento do credor fiduciário apresentado ao Registro de Imóveis, noticiando o inadimplemento da dívida, observado o prazo de carência estabelecido no contrato. O requerimento deve ser prenotado e essa prenotação será prorrogada até o final do procedimento, ou seja, até a consolidação da propriedade. Portanto, é um procedimento amplo, longo e com garantia de
prioridade. No Registro de Imóveis, o requerimento passará pela devida qualificação registral. Se faltarem requisitos, será expedida uma nota de devolução como ocorre com qualquer outro título submetido à depuração pelo registrador. Se estiver apto, serão expedidas as intimações pessoais. O Registro de Imóveis preparará essas intimações aos devedores fiduciantes, havendo três opções de envio para os destinatários: utilizar um notificador próprio do Registro de Imóveis, o serviço do Registro de Títulos e Documentos (RTD) ou o correio, por meio do sistema denominado de “mão-própria”. A intimação deve ser pessoal. O registrador, assim, deve ficar atento e verificar se realmente esse requisito foi cumprido. No caso de utilização do serviço do RTD, este pode ser interno do Registro de Imóveis, se acumulado, ou pode ser externo. O RTD, interno ou externo, promoverá o registro da notificação e o cumprimento das diligências, retornando ao Registro de Imóveis com a certidão positiva ou negativa.
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PAINEL 2ª fase do procedimento de intimação: formas de intimação As intimações pessoais, portanto, serão expedidas pelo meio escolhido pelo oficial de registro (notifi-
cador próprio, RTD ou Correio Mão-Própria). Se as tentativas de entrega pessoal forem frustradas, o credor poderá requerer, a depender do caso, a intimação por hora certa ou a intimação por edital. A intimação pela via judicial, embora não necessária, poderá ser também uma das opções a ser levada em consideração. É dever do registrador se empenhar para que as intimações ocorram, esgotando todas as possibilidades de localização do destinatário. Realizada a intimação dos devedores, dever-se-á aguardar o prazo de quinze dias para pagamento. Se o devedor purgar a mora nesse momento, o procedimento se extingue no Registro de Imóveis, que terá três dias para colocar esse valor à disposição do credor. Se não houver purgação de mora, será emitida a certidão de decurso de prazo sem a purgação da mora, que será encaminhada ao credor fiduciário.
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OBSERVAÇÃO: Atualmente, no Estado de São Paulo, essa certidão de decurso de prazo poderá, inclusive, ser objeto de cobrança de custas e emolumentos (valor de uma certidão), de acordo com o Parecer CGJ/SP nº 272/2018-E.
3ª fase do procedimento de intimação: consolidação e leilões A terceira fase do procedimento, de consolidação e leilões, terá lugar se não houver o pagamento do débito pelo devedor. O credor fiduciário, então, deverá requerer ao Registro de Imóveis a consolidação da propriedade, demonstrando o pagamento do ITBI ou do laudêmio, se for o caso. Em São Paulo, há previsão nas Normas de Serviço, de um prazo de 120 dias para apresentação do requerimento do credor, sob pena de ineficácia do procedimento, com a finalidade de evitar que a prenotação fique eternamente aberta aguardando a sua manifestação.
Procedimento de intimação e consolidação da propriedade fiduciária
Assim, ultrapassado esse prazo, a prenotação será encerrada e o credor terá que iniciar um novo procedimento. Se o credor requerer a consolidação, esta será averbada na matrícula do imóvel. A partir da averbação de consolidação, o credor terá o prazo de 30 dias para promover os leilões como previsto na lei. Discutiremos também a possibilidade de purgação da mora após a consolidação da propriedade fiduciária em nome do credor. Se os leilões forem negativos, este fato será averbado na matrícula do imóvel. Em São Paulo firmou-se o entendimento de que essa averbação é necessária para deixar claro que o credor realizou o procedimento correto e que aquele imóvel estará livre para ser alienado fora do ambiente dos leilões. Se o leilão for positivo, haverá a lavratura do auto de arrematação. Mas, atenção, o auto de arrematação não é documento hábil a ingressar no Registro de Imóveis. Isso é muito importante porque no Decreto-lei 70/1966, o auto de arrematação era o título hábil. Na Lei 9.514/1997, não ocorre da mesma forma. As partes terão que firmar um contrato de compra e venda,
por instrumento público ou particular, tendo o credor como vendedor, e o arrematante como adquirente. É esse contrato que será o título hábil para ingresso no Registro de Imóveis. IMPORTANTE: Em razão das novas regras trazidas pela Lei nº 13.465/17, em se tratando de operações de financiamento habitacional, o devedor terá um prazo adicional de 30 dias para purgação da mora perante o credor. Durante esse prazo, o oficial de registro não poderá praticar atos tendentes a consolidar o imóvel, ainda que requerido pelo credor.
Quem deve ser intimado no procedimento? A intimação para purgação da mora no procedimento extrajudicial de consolidação da propriedade fiduciária deverá ser, de acordo com o art. 26, § 1º e 3º, da Lei nº 9.514/1997, do devedor fiduciante, seu representante ou procurador regularmente constituído. Ao promover a alteração do procedimento de alienação fiduciária, por meio da Lei nº 13.465/2017, o legislador perdeu a oportunidade de esclarecer que também devem ser intimados terceiros garantidores e respectivos cônjuges, como mostram as Normas de
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PAINEL Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo.1 Assim, devem ser intimados pessoalmente, com oportunidade de pagamento em 15 dias, todos os devedores fiduciantes, se forem mais de um, seus representantes, procuradores regularmente constituídos, terceiros garantidores, cessionários, e cônjuges, ainda que estes últimos não figurem expressamente no contrato. Na hipótese de falecimento de um devedor, a intimação será feita ao inventariante, caso tenha havido abertura do inventário, ou a todos os herdeiros e legatários, conforme informações do credor.2 Questão relevante é verificar se a cláusula contratual de procuração recíproca entre os devedores fiduciantes, para receber a intimação no procedimento de consolidação da propriedade, é válida e deve ser observada pelo Oficial de Registro. É prática bastante comum a inserção dessa cláusula nos contratos de alienação fiduciária, com o objetivo de facilitar o procedimento de intimação para purgação da mora. Se existem dois devedores fiduciantes, e estes concedem procuração recíproca, para o recebimento da intimação, basta que o Oficial de Registro localize apenas um deles, e ambos estarão intimados. A validade dessa cláusula de procuração recíproca à luz do Direito do Consumidor é questão que não deve ser analisada pelo Oficial Registrador. Estando presente a cláusula e havendo requerimento do credor para sua aplicação, deve o Oficial utilizá-la no procedimento de intimação e consolidação da propriedade fiduciária. Se o devedor pretender questionar a sua abusividade, deve ingressar com demanda na via jurisdicional. É o que se depreende da decisão da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo (Processo nº 136.042/2014): Alienação Fiduciária de bens imóveis. Constituição em mora do fiduciante. Art. 26, § 3º, da Lei nº 9.514/97 e item 252, Cap. XX, das Normas de
Serviço da CGJ/SP. Devedores fiduciantes que, no contrato imobiliário, constituem-se procuradores recíprocos. Legalidade da cláusula que deve ser analisada na via jurisdicional. Intimação na pessoa do procurador que, sob o ângulo da Corregedoria Permanente, não é irregular. (grifos nossos)
Além disso, verifica-se a presença de diversos julgados favoráveis à aplicação da cláusula de procuração recíproca: (...) 1. O imóvel descrito na petição inicial foi financiado pelos apelantes no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação – SFH, mediante constituição de alienação fiduciária de coisa imóvel, na forma da Lei nº 9.514/1997. (...) No caso dos autos, não há nenhuma irregularidade no procedimento administrativo que antecedeu a consolidação da propriedade em favor da CEF. A intimação pessoal para purgação da mora foi assinada por Simone Aparecida Marcello, que apôs sua assinatura também no campo destinado à assinatura do codevedor Pedro Augusto Marcello, o que não seria de causar estranheza, já que do termo consta a observação de que o contrato conta com procuração recíproca, o que pode ser comprovado pela Cláusula Trigésima Quarta do contrato. Desse modo, a intimação para purgação da mora não está eivada de vício, sendo perfeito e acabado o ato de consolidação da propriedade em nome da credora fiduciária. (...) (TRF3, Ac nº 22552720094036100, 06/12/2016 – grifos nossos). (...) Citação da co-devedora, na pessoa do outro, seu marido, com fundamento em cláusula-mandato estipuladora. Validade da disposição, fruto da manifestação de vontade dos celebrantes do negócio (...) (TJ/RJ, AI nº 003074233.2005.81.9000, 28/03/2006 – grifos nossos). (...) Cláusula de mandato recíproco. Outorga de poderes em cláusula do contrato para receber citação. Validade. (...) O pedido da Agravante para que a citação da fiadora seja feita por meio do locador e mandatário constituído por cláusula expressa no contrato de locação, é juridicamente possível e não encontra óbice ou proibição legal,
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Item 242.3 e 252, Capítulo XX, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo.
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Item 252.1, Capítulo XX, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo.
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Procedimento de intimação e consolidação da propriedade fiduciária
razão pela qual fica acolhido. (...) (TJ/PR, ACI nº 10512606PR1051260-6, j. em 05.05.2013 – grifos nossos). (...) SFH. Intimação do cônjuge co-devedor. Procurador reciproco do outro co-devedor. § 3º do art. 26 da Lei 9514/97. Regularidade. A intimação do marido, co-devedor e procurador recíproco de sua esposa, conforme cláusula trigésima quarta do contrato firmado, supre a intimação de seu cônjuge para purgar a mora de contrato de mútuo imobiliário com alienação fiduciária em garantia. (...) (TRF 4, AC nº 503467895.2010.404.7100 – grifos nossos).
Dessa maneira, a questão da validade da cláusula de mandato recíproco deve ser discutida na esfera jurisdicional, devendo o Oficial de Registro aplicá-la no procedimento de intimação e consolidação, a requerimento do credor. Além disso, importante deixar claro ao notificado, para evitar surpresas, que este está recebendo a intimação por si e por outrem. Por esse motivo, devem ser expedidas intimações distintas para cada devedor, com informação da aplicação da cláusula de procuração.
Intimação por Hora Certa, Edital e Judicial Como já esclarecido, os devedores fiduciantes e demais partes interessadas serão intimados pessoalmente para purgar a mora, no prazo de quinze dias corridos3 , contados do recebimento da intimação. Não sendo encontrados nos endereços fornecidos pelo credor, no local do imóvel ou nos endereços constantes dos indicadores do Registro de Imóveis onde tramita o procedimento, há que verificar as alternativas possíveis. Se houver suspeita motivada de ocultação, baseada em fatos concretos ou indícios de que o devedor está se furtando, caberá a intimação por hora certa, atualmente prevista no art. 26, § 3ºA, da Lei nº 9.514/1997, com a redação dada pela Lei nº 13.465/2017.
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A nova lei exige que o devedor seja procurado por duas vezes em seu domicílio ou residência e, havendo suspeita motivada de ocultação, poderá intimar pessoa da família ou, na sua falta, vizinho ou funcionário da portaria responsável pela correspondência, de que, no dia útil imediato, retornará ao imóvel, a fim de efetuar a intimação, na hora que designar. Aplicam-se, de forma subsidiária, as regras contidas nos arts. 252 a 254, do Código de Processo Civil, que tratam da citação por mandado com hora certa. No dia designado, ainda que não estejam presentes o devedor e a pessoa designada, a intimação com hora certa será efetivada (art. 253, § 2º, CPC). Se o devedor estiver ausente, o Oficial procurará se informar das razões da ausência, que devem constar na certidão, mas a intimação será feita, deixando a contrafé com alguém próximo do devedor. Em caso de recusa no recebimento da contrafé, o Oficial certificará o ocorrido.4 Efetivada a intimação por hora certa, o Oficial enviará carta ao devedor no endereço constante do registro e do imóvel objeto da alienação fiduciária, dando-lhe ciência de tudo.5 A intimação por hora certa já era prevista, de maneira semelhante, nas Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, Ceará e Alagoas. Em outros Estados, havia previsão para intimação judicial, na hipótese de suspeita de ocultação. Assim, as novas regras introduzidas pela Lei nº 13.465/2017 trouxeram uniformização de procedimento e mais segurança na aplicação dessa modalidade de intimação ficta. Importante verificar as circunstâncias fáticas que autorizam a aplicação dessa modalidade de intimação. Nesse particular, mostra-se adequada a transcrição de jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo citada no Código de Processo Civil Comentado por Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, 2016, p. 866:
Provimento CGJ/SP nº 19/2017.
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Item 253.3, Cap. XX, Normas de Serviço CGJ/SP.
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Item 253.4, Cap. XX, Normas de Serviço CGJ/SP.
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PAINEL Citação por hora certa em execução. O agravante pretende seja reconhecida a possibilidade de citação por hora certa no processo de execução por quantia certa contra devedor solvente. O CPC/1973 598 é norma de integração, que permite aplicação, à execução, das disposições relativas ao processo de conhecimento. Possível, assim, a citação por hora certa. Há elementos suficientes a indicar que, talvez, o agravado esteja se furtando à citação, considerando que o oficial de justiça esteve no local por diversas vezes, sem sucesso, e que sequer obteve informações seguras quanto aos horários em que seria possível encontrar o agravado (fls. 48/49 e 57). Assim, considerando as diversas tentativas frustradas (o que, em tese, caracteriza a ocultação) e que o oficial de justiça, diligentemente, informou os horários em que esteve na residência do agravado, presentes estão os pressupostos para citação por hora certa (TJSP, 2ª Cam, Dir. Priv., Ag. 2012.0000196716, rel. Des. Flávio Abramovici, j. 8.5.2012 – grifos nossos).
Assim, o Oficial há que verificar, por exemplo, por meio de informações de parentes ou vizinhos se o devedor mora no local, mas não foi localizado em diversos horários e nem respondeu aos avisos de comparecimento na Serventia. Há casos, ainda, que, por informações de funcionários de portarias, o Oficial constata que o devedor está no local, mas não atende à porta, para evitar a intimação. Nesses casos, a conduta adequada é certificar o ocorrido com detalhamento dos fatos e circunstâncias verificados, para que o credor possa requerer a aplicação da citação por hora certa. Vale lembrar que, mesmo antes da alteração promovida pela Lei nº 13.465/2017, havia forte jurisprudência admitindo a intimação ou citação por hora certa em procedimentos relacionados com contratos de alienação fiduciária: (...) 1. O contrato de alienação fiduciária, como este que se discute nos presentes autos, foi celebrado segundo as regras da Lei nº 9.514/97, artigos 22, 23, parágrafo único e 26.2. No contrato de financiamento com garantia por alienação fiduciária, o devedor/fiduciante transfere a propriedade do imóvel a Caixa Econômica Federal (credora/ fiduciária) até que se implemente a condição resolutiva, que é o pagamento total da dívida. 3. Liquidado o financiamento, o devedor retoma a
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propriedade plena do imóvel, ao passo que, havendo inadimplemento dos termos contratuais, a Caixa Econômica Federal, obedecidos os procedimentos previstos na lei, tem o direito de requerer ao Cartório a consolidação da propriedade do imóvel em seu nome, passando a exercer a propriedade plena do bem. 4. A fim de que possa consolidar a propriedade, a instituição financeira deve notificar o mutuário, nos termos do artigo 26 da Lei n. 9.514/97. In casu, a agravante alega a inexistência de intimação para purgar a mora, o que demandaria determinação judicial no sentido de impedir a realização do leilão extrajudicial. 5. O documento de fl. 68 demonstra que a intimação ocorreu por hora certa. Sabe-se que tal modalidade de citação demanda, para além da realização de duas diligencias infrutíferas e a suspeita de ocultação do citando, nos termos do artigo 252, caput, do CPC/15, o envio ao devedor, no prazo de dez dias, de carta, telegrama ou correspondência eletrônica, dando-lhe de tudo ciência (artigo 254 do CPC/15). (...)” (TRF 3, AI nº 90922120164030000, rel. Des. Wilson Zauhy, j. em 24/1/2017 – grifos nossos); Alienação fiduciária em garantia de imóvel. Procedimento de execução extrajudicial intentado pelo credor fiduciário nos termos da Lei 9.514/97. (...) Ocultação do devedor fiduciário certificada. Notificação efetivada por hora certa. Validade. Foram inúmeras as tentativas de intimação do agravante, como também de sua mãe e irmã (também devedoras fiduciárias), pelo Oficial de Registro de Títulos e Documentos. Na notificação judicial intentada, houve diversas tentativas de notificar o agravante por oficial de justiça, incluindo sua mãe e irmã. Contudo, sem êxito, o que gerou suspeita de ocultação, possibilitando, assim, a notificação por hora certa, nos termos do art. 227 do CPC. Indiscutivelmente, a notificação atingiu o seu fim e, com base nos princípios da economia e da instrumentalidade das formas, não há que se falar em nulidade da notificação para a constituição em mora dos devedores. (TJ/ SP, AI nº 2085883562015826000, rel. Des. Adilson de Araújo, j. em 26/5/2015 – grifos nossos);
Situação muito diferente ocorre na hipótese de o Oficial constatar que o devedor não mora no local indicado pelo credor, no imóvel alienado fiduciariamente ou nos endereços constantes dos registros, estando, portanto, em local ignorado, incerto ou inacessível.
Procedimento de intimação e consolidação da propriedade fiduciária
Para esses casos, há previsão da intimação por edital no art. 26, § 4º, da Lei nº 9.514/97. O Oficial fará publicar durante 3 (três) dias em um dos jornais de maior circulação local ou noutro de comarca de fácil acesso, se no local não houver imprensa diária.6 A lei não exige expressamente a publicação por 3 (três) dias consecutivos, mas menciona alternativa de publicação “se no local não houver imprensa diária”. Convém mencionar que, com o objetivo de evitar qualquer nulidade no procedimento de intimação, e atendendo ao princípio da boa-fé objetiva, o Oficial deve esgotar todas as possibilidades de localização do devedor, antes de realizar uma intimação por edital. É o que se verifica da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e Tribunais Estaduais: A validade da intimação por edital para fins de purgação da mora no procedimento de alienação fiduciária de coisa imóvel, pressupõe o esgotamento de todas as possibilidades de localização do devedor. Não houve diligência no endereço constante do registro. (...) Nesse contexto, não é possível considerar-se o fiduciante em lugar “incerto e não sabido” para fins de intimação por edital se não observado sequer o endereço que constava no contrato de financiamento firmado entre as partes. (...) Com efeito, a intimação por edital é medida extrema, porquanto representa forma excepcional de comunicação ficta, somente admissível diante da comprovação de atendimento aos pressupostos específicos da medida como garantia do respeito ao devido processo legal.” (STJ, RESP 1.367.179, rel. Min. Ricardo Villas Boas Cueva, j. em 03/06/2014 – grifos nossos).
Nulidade do procedimento de execução extrajudicial. Intimação por edital, sem diligenciar no endereço do próprio imóvel. (...) A diligência exigida do credor fiduciário em promover a notificação extrajudicial do devedor como pressuposto para constituí-lo em mora e viabilizar a realização da garantia fiduciária não consubstancia mero formalismo, pois dela emerge, em favor do devedor, a possibilidade de exercitamento do direito de solver o débito inadimplido, no prazo de 15
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(quinze) dias, purgando a mora e preservando o contrato de alienação fiduciária, ou então de insurgir-se contra a pretensão executiva pelos meios e recursos próprios, donde se apreende que a falta de diligência do credor fiduciário em promover a eficaz intimação, portanto, ameaça o direito no devedor em purgar a mora ou de insurgir-se quanto à cobrança promovida. A apreensão de que, conquanto residindo no próprio imóvel que traduz a garantia fiduciária, o devedor fora notificado por edital sob o prisma de que estaria em local incerto e não sabido, denunciando que o credor fiduciário não realizara qualquer diligência destinada à sua localização, revela comportamento não compatível com a boa-fé objetiva que se exige nas relações jurídicas contratuais (CC, art. 422), importando em quebra dos deveres anexos que decorrem da lealdade, mormente considerando que, encontrando-se o obrigado residindo no próprio imóvel objeto da garantia fiduciária, o mínimo de diligência bastaria para localizá-lo, o que macula o procedimento extrajudicial destinado à realização da garantia com vício formal, legitimando que, tem tendo culminado com a consolidação da propriedade do imóvel ofertado em garantia em nome (TJ/DF, APC nº 20130710007526, rel. Teófilo Caetano, 03/12/2014 – grifos nossos) Assim, ao receber um pedido do credor para intimação por edital, o Oficial Registrador fará uma análise de todas as tentativas e endereços diligenciados, para verificar se há outras alternativas de intimação, para somente, então, expedir o competente edital. Com relação às formas alternativas de intimação do devedor fiduciante e demais partes interessadas, surge a questão da possibilidade de o credor se socorrer da via judicial para promover essa intimação, com base nos arts. 726 a 729 do Código de Processo Civil. Não há mais previsão nas Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo da utilização da intimação judicial. Porém, pode o credor optar por sua utilização, caso haja uma dificuldade extrema de intimação na via extrajudicial ou até
Item 253, Cap. XX, Normas de Serviço da CGJ/SP.
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PAINEL impossibilidade (pessoa a ser intimada incapaz de exprimir vontade, por exemplo), desde que a intimação preencha todos os requisitos legais e normativos. A viabilidade de utilização da intimação judicial em um procedimento extrajudicial está calcada no art. 277, do Código de Processo Civil, que dispõe: “quando a lei prescrever determinada forma, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade.” Tendo o devedor sido pessoalmente intimado em procedimento judicial para purgar a mora perante o Oficial de Registro, não há motivos para exigir a realização de novas diligências, que se afiguram custosas e sem utilidade. Dessa maneira, a intimação judicial não é necessária, mas se revela possível, caso seja esse o interesse do credor.
Purgação da Mora após a Consolidação Consolidou-se no Superior Tribunal de Justiça, antes do advento da Lei nº 13.465/2017, o entendimento pela possibilidade de purgação da mora pelo devedor fiduciante após a consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário e até a data da assinatura do auto de arrematação, por interpretação do art. 39, II, da Lei nº 9.514/1997. Como descreveu Melhim Namen Chalhub, tal entendimento ganhou corpo com os “acórdãos proferidos nos Recursos Especiais 1.433.031/DF, 1.462.210/RS e 1.518.085/RS, que, em síntese, deferiram a purgação da mora e a continuação do contrato de alienação fiduciária de bem imóvel mesmo após a expiração do prazo fixado para esse fim pelo § 1º do art. 26 da Lei 9.514/1997 e consolidada a propriedade em nome do fiduciário nos termos do § 7º do mesmo art. 26, sob fundamento de que (i) a Lei 9.514/1997 não estabeleceria data-limite para purgação da mora, daí por que
deve ser aplicada subsidiariamente às execuções do crédito fiduciário a regra da execução hipotecária de que trata o art. 34 do mencionado Dec-Lei 70/1966, que faculta ao devedor hipotecário purgar a mora até a data da assinatura do auto de arrematação; (ii) o contrato não se extinguiria por força da consolidação; e (iii) a consolidação não importaria em incorporação do imóvel ao patrimônio do credor fiduciário.” (Limites da Prerrogativa de Purgação da Mora nos Contratos de Mútuo com Pacto Adjeto de Alienação Fiduciária, RDI 80, 2016, p. 102). A possibilidade de purgação da mora após a consolidação foi principalmente calcada na interpretação do art. 39, II, da Lei nº 9.514/1997, que dispunha (antes de sua alteração pela Lei nº 13.465/2017): “Às operações de financiamento imobiliário em geral a que se refere esta Lei: (...) II – aplicam-se as disposições dos arts. 29 a 41 do Decreto-lei 70, de 21 de novembro de 1966”. E o artigo 34, do Decreto-lei 70/1966, franqueava ao devedor o direito de, a qualquer momento, até a assinatura do auto de arrematação, purgar o débito. Cotejando tais decisões do Superior Tribunal de Justiça, a doutrina se dividiu ao analisar como a purgação da mora deveria ser formalizada e quais atos seriam praticados no Registro de Imóveis. Alguns7 sustentavam a possibilidade de averbação do cancelamento da consolidação da propriedade fiduciária, à vista de requerimento firmado pelo credor e devedor, quando então o contrato seria convalidado ou a requerimento apenas do devedor, com instrumento de quitação, na hipótese de pagamento integral da dívida. Outros criticaram as decisões que franquearam nova oportunidade de pagamento após o escoamento do prazo legal, sustentando que a única alternativa viável para esses casos seria a celebração de novo negócio jurídico.8 Note-se que o primeiro acórdão no Recurso Es-
No entendimento de Rodrigo Pacheco Fernandes: “Uma vez purgada a mora neste ínterim (até a assinatura do auto de arrematação), possível será o cancelamento do ato de consolidação, mediante simples averbação, retornando a propriedade ao devedor, no caso de quitação total da dívida. No caso de pagamento parcial da dívida, verificar-se-á a continuidade do contrato original, em que o imóvel continuará alienado fiduciariamente ao credor, em garantia do pagamento da dívida originária. ” (Purgação da Mora em Contratos de Alienação Fiduciária e o Registro de Imóveis, RDI nº 80, 2016, p. 165).
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Procedimento de intimação e consolidação da propriedade fiduciária
pecial nº 1.433.031, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, de 03/06/2014, salientou o direito do devedor em pagar a dívida até a data do auto de arrematação, mas não especificou que atos deveriam ser praticados na matrícula do imóvel para consubstanciação desse direito. Já o segundo acórdão de 18/11/2014, no Recurso Especial nº 1.462.210, de relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cuevo, admitiu a purgação da mora após a consolidação, mas aduziu que “todas as despesas referentes à nova transmissão da propriedade e os gastos com a consolidação deveriam ser suportados pelo devedor”.
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COM BASE NESSA ÚLTIMA DECISÃO, A CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO FIRMOU ENTENDIMENTO PELA IMPOSSIBILIDADE DE CANCELAMENTO DA CONSOLIDAÇÃO DA PROPRIEDADE, HAVENDO NECESSIDADE DA CELEBRAÇÃO DE NOVO INSTRUMENTO, COM PAGAMENTO DE ITBI E RESPECTIVO REGISTRO.
Com base nessa última decisão, a Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo firmou entendimento pela impossibilidade de cancelamento da consolidação da propriedade, havendo necessidade da celebração de novo instrumento, com pagamento de ITBI e respectivo registro:
Alienação fiduciária em garantia. Mora. Consolidação da propriedade em nome da fiduciária. Alegação de que os valores em atraso foram pagos diretamente à credora fiduciária antes da consolidação da propriedade. Pedido de cancelamento da averbação que consolidou a propriedade. Impossibilidade. Purgação da mora que deve ocorrer no Registro de Imóveis e dentro do prazo estabelecido. Inteligência dos artigos 26, §§ 1º e 5º, da Lei 9.514/97 e 327 do Código Civil. Purgação que, ademais, não foi comunicada pela fiduciá-
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ria, que requereu a consolidação da propriedade do bem em seu nome. (...) resta aos interessados celebrar novo negócio fiduciário, com o pagamento de todos os encargos decorrentes desse ato.” (Proc. 1113134-57.2015.8.26.0100, de 1º/11/2016 e Proc. 109924769.2016.8.26.0100 de 16/02/2017 – grifos nossos).
Entretanto, toda essa discussão perdeu o objeto com a publicação da Lei nº 13.465/2017, que alterou o art. 39, II, da Lei nº 9.514/1997, para deixar claro que não se aplicam os dispositivos do Decreto-lei nº 70/1966 aos contratos de alienação fiduciária: Art. 39. Às operações de crédito compreendidas no sistema de financiamento imobiliário, a que se refere esta Lei: (...)
II - aplicam-se as disposições dos arts. 29 a 41 do Decreto-Lei nº 70, de 21 de novembro de 1966, exclusivamente aos procedimentos de execução de créditos garantidos por hipoteca. (grifos nossos)
Além disso, a referida lei trouxe o direito de preferência ou prioridade ao devedor fiduciante, na aquisição do imóvel, até a data do 2º Leilão (art. 27, § 2ºB, da Lei nº 9.514/1997), como alternativa para os casos de purgação da mora a posteriori. Dessa maneira, se o devedor efetuar o pagamento até a data da consolidação da propriedade, pagará as parcelas vencidas, encargos de mora e as despesas e custas do procedimento de intimação. Por outro lado, se pagar após a consolidação, exercendo seu direito de
Na visão de Melhim Namen Chalhub, “depois de expirado o prazo para purgação da mora e consolidada a propriedade mediante averbação no Registro de Imóveis, a pretensão do antigo devedor fiduciante de restaurar sua situação proprietária só é legalmente admissível mediante novo negócio de aquisição celebrado com o antigo fiduciário, não havendo possibilidade de extinguir-se a propriedade transmitida ao antigo fiduciário, mediante averbação, no Registro de Imóveis, do pagamento extemporâneo da dívida.” (Limites da Prerrogativa de Purgação da Mora nos Contratos de Mútuo com Pacto Adjeto de Alienação Fiduciária, RDI 80, 2016, p. 120).
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PAINEL prioridade, deverá arcar com o valor integral do saldo devedor da dívida, encargos de mora, despesas com o procedimento de intimação, prêmio de seguro, tributos (ITBI, IPTU), contribuições condominiais, despesas com o leilão, despesas com a nova aquisição, inclusive custas e emolumentos para novo registro. Se houver interesse de o devedor efetuar o pagamento da dívida, não haverá necessidade da realização do leilão extrajudicial, uma vez que a lei não exige que o devedor oferte valor maior do que os demais licitantes. Ao contrário, deve apenas pagar os encargos acima mencionados.9
“
CORROBORANDO COM O ENTENDIMENTO DA CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA, VERIFICA-SE QUE A NECESSIDADE DA REALIZAÇÃO DOS LEILÕES PREVISTOS NO ART. 27, DA LEI Nº 9.514/1997 É REQUISITO ESSENCIAL DO PRÓPRIO CONTRATO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA, COMO PREVÊ O ART. 24, VII, DA MESMA LEI.
Dispensa de Leilões Outra questão interessante a ser comentada é a possibilidade de credor e devedor, por mútuo acordo, dispensarem a realização dos leilões extrajudiciais, após a consolidação da propriedade. Sustenta Melhim Namen Chalhub que é perfeitamente possível as partes se comporem para quitação da dívida e dispensa dos leilões extrajudiciais, pois a lei pretendeu tutelar interesses patrimoniais disponíveis: “O leilão visa atender exclusivamente ao interesse das partes e, assim sendo, nada impede, em princípio, que elas componham particularmente seus interesses, mediante quitação da dívida por
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outra forma que atenda à finalidade para o qual foi previsto o leilão, dispensando a venda por esse meio. (...) A lei, ao fazer referência à realização do leilão, visa tutelar interesse particular, dos sujeitos do contrato, credor fiduciário e devedor fiduciante, não havendo, no caso em questão, qualquer interesse público a ser tutelado. Não se trata, portanto, de norma de ordem pública. (...)
Assim, a despeito de a norma dispor que ‘o fiduciário (...), promoverá público leilão para a alienação do imóvel’, nada impede que as partes dispensem a realização do leilão e definam outra forma de liquidação das obrigações que melhor atenda aos seus interesses privados, do mesmo modo que a lei admite expressamente tal dispensa quando a liquidação se der mediante dação em pagamento.” (Alienação Fiduciária, Incorporação Imobiliária e Mercado de Capitais, 2012, p. 146/158 – grifos nossos)
Em posição diametralmente oposta estão os julgados da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo por entenderem que o acordo entre as partes para dispensar os leilões fere a proibição de estipulação contratual chamada de ‘pacto comissório’ (art. 1428 CC): Dúvida Inversa – Alienação Fiduciária em Garantia – Instauração do procedimento executório administrativo previsto no artigo 26 da Lei nº 9.514/97 – Composição amigável – Consolidação do bem em nome da credora fiduciária – Necessidade da realização de leilão – Configuração de
Melhim Namen Chalhub comunga da mesma opinião: “É dispensada a realização do leilão, entretanto, caso a propriedade tenha se consolidado por efeito de dação em pagamento (Lei 9.514/97, art. 26, § 8º) e, ainda, caso o antigo fiduciante exerça seu direito de readquirir a propriedade por preço correspondente ao valor do saldo devedor, encargos contratuais e despesas, antes mesmo da realização do leilão; trata-se de direito de preferência passível de ser exercido a partir da data da averbação da consolidação da propriedade no patrimônio do credor até a realização do segundo leilão, pelo qual o antigo fiduciante pode restaurar o vínculo real que prendia o imóvel a ele, mediante nova aquisição.” (Alienação Fiduciária, Negócio Fiduciário, 2017, p. 285)
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pacto comissório – Recurso não provido. (...) Por força do art. 27 e seus parágrafos, o credor, no prazo máximo de 30 dias após a consolidação, deverá colocar o imóvel em venda, mediante leilão, entregando ao devedor o quantum que sobejar; se, no leilão, não se alcançar o valor da dívida, o credor dará quitação ao devedor, exonerando-o do pagamento de eventual resíduo. ” “Na alienação fiduciária, a propriedade se consolida no credor pelo não cumprimento da condição resolutiva; o leilão que se segue é apenas uma limitação a mais que a lei impôs ao direito do proprietário fiduciário, para adequar os efeitos da condição resolutiva às peculiaridades da garantia a que se presta.” A limitação acima mencionada tem a finalidade de adequar as disposições específicas do instituto da alienação fiduciária à regra do Código Civil relativa ao pacto comissório. O artigo 1428 do Código Civil tisna de nulidade cláusula contratual que autorize o credor a ficar com o objeto da garantia se a dívida não for paga. A previsão do parágrafo único do mesmo artigo não se aplica ao presente caso. Ao mencionar que o devedor poderá dar a coisa em pagamento da dívida, o legislador previu o instituto da dação em pagamento, que não se configurou. Correto, portanto, o posicionamento do MM. Juiz Corregedor Permanente, que manteve o óbice suscitado pelo Registrador, ressaltando que, a pretensão da requerente poderia ser atendida se exercida antes da averbação da consolidação da propriedade em seu nome, sob a forma de escritura pública. (Processo CG nº 2011/156201, 55/2012E, j. em 07/03/2012 – grifos nossos) REGISTRO DE IMÓVEIS – Averbação de cessões de crédito garantido por alienação fiduciária, após a consolidação da propriedade em nome do fiduciário – Impossibilidade – Crédito extinto – Recurso desprovido. (...) Em termos simples, depois da consolidação da propriedade, é cogente que se realize o leilão. Realizado o ato, há três possibilidades: lance maior, igual ou menor ao valor referido no § 2º (dívida, despesas, prêmios de seguro, encargos legais, inclusive tributos e contribuições condominiais). Em quaisquer das três hipóteses, o que se vislumbra é a inexistência de crédito após a consolidação. Se o lance for maior, entrega-se ao devedor o que sobejar. Se for igual ou menor, dá-
-se por quitada a dívida. De forma alguma, é possível a subsistência de crédito ao fiduciário. Por conseguinte, não poderia mesmo ser averbada a cessão de um crédito já inexistente. É uma questão de lógica que só pode ser cedido algo que ainda exista. (...) (Processo CG nº 2014/168918, 57/2015-E, j. em 06/03/2015 – grifos nossos)
Corroborando com o entendimento da Corregedoria Geral da Justiça, verifica-se que a necessidade da realização dos leilões previstos no art. 27, da Lei nº 9.514/1997 é requisito essencial do próprio contrato de alienação fiduciária, como prevê o art. 24, VII, da mesma lei. Sendo assim, é norma de ordem cogente, não podendo ser afastado pelas partes. Se assim não fosse, seria admissível também a dispensa dos leilões já no ato da contratação da alienação fiduciária, o que feriria de morte o referido texto legal, que aduz ser requisito essencial a realização dos leilões. De outra sorte, a dação em pagamento e o exercício do direito de preferência são duas situações em que os leilões podem ser dispensados. Na dação em pagamento, há previsão expressa no art. 26, § 8º, da Lei nº 9.514/1997, que o fiduciante pode, com a anuência do fiduciário, dar seu direito ao imóvel em pagamento da dívida, por instrumento público ou particular, dispensados os procedimentos de leilão extrajudicial. Porém, a dação somente pode ocorrer antes da consolidação da propriedade, quando o devedor ainda tem direitos sobre o imóvel. Após a consolidação, o devedor somente tem direito pessoal em receber valores que sobejar o valor da dívida e seus encargos por ocasião do leilão. Além disso, é possível dispensar a realização dos leilões, por força da alteração legislativa promovida pela Lei nº 13.465/2017, que introduziu o direito de preferência, ou prioridade, do fiduciante em readquirir o imóvel pagando o saldo da dívida e encargos legais e contratuais. O fiduciante, de acordo com o art. 27, § 2ºB, da Lei nº 9.514/1997, não precisará licitar com os demais interessados na aquisição do imóvel, bastando que pague o montante devido. Por esse motivo, não há necessidade de impor os custos do leilão extrajudicial, se o devedor está disposto a quitar sua obrigação.
121
PAINEL Conclusão A alienação fiduciária continua sendo um poderoso instrumento de concessão e recuperação de crédito, e deve sofrer alterações legislativas nos próximos anos, para esclarecer, ainda, pontos obscuros e controvertidos.
dade fiduciária todos os devedores fiduciantes, seus representantes ou procuradores regularmente constituídos, cessionários, terceiros garantidores e respectivos cônjuges. 2. A intimação deve ser pessoal, admitindo-se intimação por hora certa, edital e judicial, nas seguintes hipóteses:
Analisando o texto da lei, com as recentes alterações, as Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo e seus julgados com caráter igualmente normativos, pode-se concluir que:
(a) Intimação por Hora Certa: suspeita de ocultação;
1. Devem ser chamados a purgar a mora no procedimento de intimação e consolidação da proprie-
(c) Intimação Judicial: não é necessária, mas é sempre possível, a critério do credor.
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(b) Intimação por Edital: local ignorado, incerto ou inacessível, desde que esgotados todos os meios possíveis para localizar o devedor.
Procedimento de intimação e consolidação da propriedade fiduciária
3. Nos casos de financiamento habitacional, o prazo para purgação da mora será de 15 dias, para pagamento no Registro de Imóveis, acrescido de 30 dias para pagamento perante o credor. Até a consolidação, pode o devedor efetuar o pagamento das parcelas vencidas e despesas com intimação. Nos demais casos de financiamento, somente haverá o prazo de 15 dias para pagamento no Registro de Imóveis. De qualquer modo, o credor terá o prazo de 120 dias da cientificação do decurso de prazo para pagamento de ITBI e apresentação ao Registro de Imóveis para consolidação.
Bibliografia
4. Não cabe purgação da mora após a consolidação, nem cancelamento da consolidação. A Lei nº 13.465/2017 concedeu um direito de preferência na reaquisição do imóvel ao devedor, que deverá celebrar um novo contrato, pagando o valor da dívida (saldo devedor); despesas com intimação, prêmios de seguro, tributos (ITBI/ IPTU), contribuições condominiais, despesas com leilão, despesas com a nova aquisição, inclusive custas e emolumentos.
______________________. Alienação Fiduciária Incorporação Imobiliária e Mercado de Capitais. Rio de Janeiro, Renovar, 2012.
5. É cabível dispensa de leilões apenas nos casos de dação em pagamento ou direito de preferência exercido pelo devedor antes do 2º leilão. A dispensa por acordo entre as partes não é aceita pela Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo.
JUNIOR, Luiz Antonio Scavone. Direito Imobiliário. Rio de Janeiro, Forense, 2017.
BRESOLIN, Umberto Bara. Execução Extrajudicial Imobiliária. São Paulo. Atlas, 2013. CHALHUB, Melhim Namen. Alienação Fiduciária, Negócio Fiduciário. Rio de Janeiro, Forense, 2017. ______________________. Limites da Prerrogativa de Purgação da Mora nos Contratos de Mútuo com Pacto Adjeto de Alienação Fiduciária. Revista de Direito Imobiliário nº 80. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2016.
______________________. Negócio Fiduciário. Rio de Janeiro, Renovar, 2009. DANTZGER, Afranio Carlos Camargo. Alienação Fiduciária de Bens Imóveis. São Paulo, Método, 2010. FERNANDES, Rodrigo Pacheco. Purgação da Mora em Contratos de Alienação Fiduciária e o Registro de Imóveis. Revista de Direito Imobiliário nº 80. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2016.
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PAINEL
Contagem do prazo e outros pontos controvertidos José Luiz Germano – Oficial de Registro de Imóveis em Cianorte (PR) e Desembargador da Seção de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo (aposentado)
“
Há razões históricas, jurídicas, sociais, econômicas, políticas e estratégicas para que seja defendida a posição normativa paulista que adotou a contagem de prazos de forma corrida e não em dias úteis. A defesa que alguns fazem da contagem do prazo apenas nos dias úteis tem a consequência de tornar os registros públicos menos úteis, menos eficazes, menos rápidos e menos interessantes a quem deles precisa. 124
”
Procedimento de intimação e consolidação da propriedade fiduciária
Introdução
C
omecemos com uma pequena introdução histórica. A hipoteca está ligada de forma umbilical à própria história dos Registros Públicos, como ensina um estudo do registrador João Pedro Lamana Paiva e do desembargador Décio Antônio Erpen1. Eles nos ensinam que o Registro de Imóveis, no Brasil, tem origem na Lei 601, de 1850, e no Regulamento 1.318, de 1854. Até então, o registro da posse era feito pelo vigário da Igreja Católica e ficou conhecido como “Registro do Vigário”. Esse registro meramente declaratório foi o começo de tudo e tinha como finalidade apenas diferenciar o que era domínio particular e o que era domínio público. Logo depois, com a Lei 1.237, de 1864, o registrador passou a ter funções de transcrever as aquisições imobiliárias e os ônus reais, conforme decreto regulamentado no ano seguinte. Antes ainda, com o fim de se fazer o registro, se inscrever as hipotecas, a Lei Orçamentária 317, de 1843, criou o registro hipotecário. Até aí vigorava o registro paroquial. Podemos concluir que primeiro houve o registro da hipoteca e o registro do crédito, na história do registro público do imóvel brasileiro. De fato, a inscrição da hipoteca antecedeu à própria transcrição do imóvel, que somente mais tarde veio a ser instituída pelo chamado Registro Geral, que deu origem ao registro de imóveis como o conhecemos hoje. Vejam a importância histórica que a hipoteca tem e que grandeza ela sempre teve para os registros públicos, uma vez que sua gênese está na hipoteca, que até recentemente reinava quase sozinha, sem sofrer grande concorrência de nenhum outro instituto de direito real relacionado ao crédito. Mas, o que se viu com o passar dos anos foi certa deterioração
da hipoteca, seja pela necessidade de sua morosa execução judicial, seja pelo entendimento de que o credor hipotecário, em certos casos, teria mitigada a sua eficácia erga omnes. Isso abriu espaço para o surgimento e o desenvolvimento da alienação fiduciária de imóveis, que fez crescer a face mais evidente do crédito que a propriedade pode propiciar. O crédito facilita a aquisição do primeiro imóvel. E a propriedade imobiliária já quitada facilita a obtenção de crédito. São dois lados da mesma moeda, como veremos.
Lei da Alienação Fiduciária: instrumento de financiamento, de crédito e de desenvolvimento econômico O registro tem importante função socioeconômica para garantia do crédito porque estimula o desenvolvimento econômico. Nós vivemos, em anos recentes, uma crise sem precedentes e isso faz lembrar a importância do cenário econômico porque ele impacta a vida de todas as pessoas2. A hipoteca reinou sozinha por muito tempo, mas entrou em crise e foi praticamente superada pela alienação fiduciária. A crise da hipoteca guarda certa relação com a “crise do Poder Judiciário”, cada vez mais exigido, mas sem condições de dar respostas rápidas a todos os pleitos a ele formulados. Isso fez com que acabássemos desaguando na execução extrajudicial, que é bem mais rápida. Grosso modo e de forma muito simplificada poderíamos dizer que “a alienação fiduciária é a hipoteca que não se executa no fórum”, mas no Cartório de Registro de Imóveis. Não é muito comum se ouvir que a alienação fiduciária é exemplo de desjudicialização. Mas, nos parece que esse fenômeno pode ser
1
RPEN, Décio Antônio; PAIVA, João Pedro Lamana. Panorama Histórico do Registro de Imóveis no Brasil. Disponível em: <http:// E registrodeimoveis1zona.com.br/?p=270>. Acesso em: 12.7.2019
2
Vide GONZÁLEZ, Fernando P. Mendéz. A função econômica dos sistemas registrais. Disponível em: <https://cartorios.org/2012/06/24/afuncao-economica-dos-sistemas-registrais/>. Acesso em: 12.7.2019
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PAINEL considerado um exemplo disso, pois, mesmo sem que a execução hipotecária tenha sido retirada do âmbito judicial, com a alienação fiduciária, na prática, o mesmo efeito ocorre, pois esta substitui aquela. O mercado imobiliário testemunhou uma migração de garantias e de sua execução. A queda da hipoteca e da execução judicial foi seguida do crescimento da alienação fiduciária em garantia e sua execução extrajudicial. Sempre houve grande necessidade de financiamento para o desenvolvimento da indústria da construção civil, que tem grande peso na economia e na geração de empregos. Mas, não havia crédito suficiente para os possíveis adquirentes porque, nos casos de inadimplência, os bancos tinham dificuldades para recuperar com rapidez o dinheiro investido no financiamento imobiliário. De um lado havia a necessidade de muitas habitações e de outro havia dinheiro disponível para emprestar, mas sem uma garantia real que fosse rápida e eficaz. Isso fez com que o crédito perdesse espaço e passasse a representar uma pequena fatia do PIB. Foi então que surgiu a alienação fiduciária de imóveis em garantia, cuja execução se processa de forma rápida extrajudicial, presidida pelos registradores imobiliários. A Lei 9.514/1997 tem importantes efeitos econômicos e é muito presente no dia a dia do Registro de Imóveis. Apesar das dificuldades dos anos mais recentes, a Lei de Alienação Fiduciária, nas suas duas décadas de vigência, propiciou uma grande injeção de crédito no setor da construção, o que permitiu vários anos de um verdadeiro boom imobiliário. Isso não quer dizer que a alienação fiduciária seja uma solução para todos os problemas ou não tenha seus próprios problemas, suas dúvidas, suas incertezas. A jurisprudência enfrenta alguns dilemas como, por exemplo, aplicar ou não, subsidiariamente, à alienação fiduciária de imóveis as regras da alienação fiduciária previstas para os bens móveis (Decreto-lei 911/1969). Algumas pessoas entendem que a alienação fidu-
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Disponível em: <http://www.uniregistral.com.br/>.
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ciária tenha sido concebida para a aquisição do primeiro imóvel, numa tentativa bem-sucedida de diminuir o déficit habitacional e estimular a construção de moradias. Um exemplo disso é o programa Minha Casa, Minha Vida. Mas, uma vez criada, a lei ganhou vida própria e seus contornos permitem que a alienação fiduciária seja utilizada não somente para aquisição do primeiro imóvel, mas também como instrumento de obtenção de crédito para capital de giro ou outros investimentos, inclusive por meio de instrumento particular. Alguém que tenha seu imóvel quitado pode oferecer essa propriedade plena para ser objeto de garantia fiduciária, bipartindo a posse com o credor, em direta e indireta. O imóvel, assim, se transforma em fonte de obtenção de financiamento mais barato, uma vez que a garantia real acrescida da rapidez da execução extrajudicial aumenta a chance de recebimento pontual e diminui o tempo que o credor precisa para recuperar seu dinheiro. Isso permite taxas menores de juros e dinamiza a economia. Quem tem um imóvel, pode ter acesso a crédito mais barato, o que estimula o empreendedorismo.
Execução de alienação fiduciária garantida por vários imóveis Nada impede que vários imóveis sejam dados em alienação fiduciária para garantia de uma única dívida. No entanto, isso poderá causar dificuldades no momento da execução. Como deve ser feita a execução de uma alienação fiduciária garantida por vários imóveis quando eles estiverem em circunscrições imobiliárias diferentes? Serão necessários vários procedimentos ou basta um? Quem presidirá o procedimento? A falta de previsão legal gera lacunas que dão margem a interpretações diversas. O doutor Narciso Orlandi Neto já se manifestou a respeito, até mesmo em aulas da Uniregistral3. Ele disse: “Não há nenhuma ilegalidade em que a dívida tenha por garantia vários imóveis alienados fiduciariamente, inclusive locali-
Procedimento de intimação e consolidação da propriedade fiduciária
zados em diferentes circunscrições. “Mas...”, sustenta ele, “o contrato precisa conter cláusulas que mostrem como será a execução, em qual das serventias será processada a constituição da mora do fiduciante, em qual delas serão realizados os leilões e onde serão publicados os editais, entre outros aspectos”. Ele acrescenta ainda: “Se não houver essa previsão expressa, contratual, será impossível a execução.” Vejam que, apesar de todas as regras da Lei 9.514/1997, existe um campo que se insere dentro dos chamados direitos disponíveis, onde as partes podem estipular as próprias regras para tratar especificamente de seus contratos. E uma delas seria essa que trata do regramento da execução, da garantia fiduciária com imóveis em diferentes circunscrições. De fato, o art. 24, no item nº 7, diz que o contrato deve ter cláusula dispondo sobre os procedimentos de que trata o art. 27. Então, há previsão legal que pode ser interpretada como um espaço de negociação entre as partes, para que elas disponham sobre alguns aspectos desse procedimento da execução, respeitadas as normas cogentes da Lei 9.514. Hoje a execução da alienação fiduciária faz as vezes da antiga execução hipotecária. E o próprio novo Código de Processo Civil (art. 190) prevê, entre as suas novidades, que as partes possam convencionar sobre peculiaridades procedimentais. Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.
Portanto, se mesmo no processo judicial existe um âmbito para algum tipo de negociação, não haveria de ser diferente no procedimento extrajudicial da execução da alienação fiduciária, que igualmente comporta alguma margem de disponibilidade. A própria Lei 9.514/1997 dispensa o leilão quando ocorre a dação em pagamento como forma de pagar a dívida (art. 26, §
8º). Existem, pois, algumas possibilidades de negociação, que podem ser previstas no contrato, como uma espécie de “foro de eleição” quando a mesma dívida for garantida por vários imóveis de diferentes circunscrições, não fazendo muito sentido que seja exigida em tais casos inútil multiplicidade de procedimentos, pois a mora deve ser constituída por um só procedimento, uma só vez, pois o princípio da duração razoável do processo deve ser também aplicado à execução extrajudicial, que com múltiplas intimações tende a se perpetuar. Não por acaso o item 256.1 do CNSCGJTJSP prevê o prazo de 120 dias para a feitura da consolidação da propriedade, depois de constituída a mora.
Contagem do prazo: dias corridos ou dias úteis? Os prazos são muito importantes no procedimento extrajudicial. Como contá-los? O que deve ser considerado? Há um debate a respeito de a contagem ter que ser feita em dias corridos ou em dias úteis. Essa dúvida foi fomentada pelo novo CPC, que prevê a contagem apenas nos dias úteis (art. 219). Isso gerou e ainda gera discussão em certos Estados. As Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo procuraram resolver com regramento administrativo. O subitem 19.1 diz: 19.1. Contam-se em dias corridos todos os prazos relativos à prática de atos registrários e notariais, quer de direito material, quer de direito processual, aí incluídas, exemplificativamente, as retificações em geral, a intimação de devedores fiduciantes, o registro de bem de família, a usucapião extrajudicial, as dúvidas e os procedimentos verificatórios.
O Estado de São Paulo tem a regra específica acima, mas essa discussão persiste em outros Estados. O magistrado e professor Vitor Frederico Kümpel defendeu em um artigo a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil aos procedimentos dos cartórios de Registro de Imóveis4, no que diz respeito à contagem
KÜMPEL, Vitor Frederico; RALDI, Rodrigo Pontes. A contagem em dias úteis dos prazos no âmbito das serventias extrajudiciais. Disponível em: <https://emporiododireito.com.br/leitura/a-contagem-em-dias-uteis-dos-prazos-no-ambito-das-serventias-extrajudiciais-por-vitorfrederico-kumpel-e-rodrigo-pontes-raldi>. Acesso em: 12.7.2019
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PAINEL de prazo, referindo que devem ser contados apenas os dias úteis.Mas, é preciso ressalvar que ele defendeu isso antes da edição da regra supra da Corregedoria paulista. Mas não foi só ele. O registrador Lamana Paiva apresentou um trabalho sustentando que devam ser contados apenas os dias úteis5. Há vários registradores do Paraná que também fazem a contagem apenas em dias úteis, uma vez que esse Estado não tem regra administrativa específica. Porém, queremos defender aqui que a contagem dos prazos deve ser em dias corridos. Historicamente, o Código de 1973, no art. 178, estipulava a contagem contínua dos prazos. Os feriados e os fins de semana tinham relevância apenas para o início ou para o fim do prazo. O CPC anterior dizia claramente que não pode ser iniciada nem terminada a contagem em dia inútil. A contagem em dias úteis é relevante, pois, apenas para o início e para o fim do prazo. O Código Civil, hoje, trata dessa mesma maneira: Art. 132. Salvo disposição legal ou convencional em contrário, computam-se os prazos, excluído o dia do começo, e incluído o do vencimento. § 1º Se o dia do vencimento cair em feriado, considerar-se-á prorrogado o prazo até o seguinte dia útil.
Mas, veio a mudança do CPC, que agora no seu art. 219 estabelece que devem ser contados apenas os dias úteis. Esta é a gênese da controvérsia. Aplica-se ou não a contagem apenas dos dias úteis para a execução extrajudicial? Essa discussão só se coloca com relação aos prazos contados em dias, pois os prazos contados em meses e em anos seguem ainda a mesma lógica do Código Civil (art. 132, § 3º), que não foi alterada, permanecendo em dias corridos. No que diz respeito ao Código de Processo Civil não há mais o que discutir, os prazos em dias são contados apenas nos dias úteis. Mas, no âmbito extrajudicial surgiu a discussão: aplica-se ou não se aplica a
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forma de contagem do CPC? Uma boa fonte de interpretação é a Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/1973), que tem vários prazos contados em dias, mas não tem uma disposição expressa a respeito dessa contagem. Há uma lacuna. Por sua vez, o Código de Processo Civil diz: Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente.
O novo Código de Processo Civil fala de sua aplicação subsidiária a outros procedimentos. E a Lei de Registros Públicos não tem uma regra específica de contagem. Neste caso, devemos aplicar a forma de contagem do CPC aos procedimentos do registro de imóveis e computar somente os dias úteis? A nossa resposta é negativa e pensamos que a melhor solução foi a encontrada pela Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo, ou seja, a de que os prazos devem ser contados em dias corridos. Tentaremos fundamentar o nosso ponto de vista. O antigo CPC é de 1973. A Lei 6.015 (Lei de Registros Públicos) é também de 1973. Há, pois, historicamente, uma coincidência cronológica em sua origem, já que as duas leis foram editadas no mesmo ano. Logo, é absolutamente razoável supor que a Lei de Registros Públicos, mesmo sem o dizer expressamente, considerou a contagem sempre em dias corridos. A novidade é recente, pois só agora é que passaram a ser considerados apenas os dias úteis. Devemos considerar que aos registros públicos se aplica a regra de contagem vigente na época de sua edição, de modo que não era preciso haver repetição de uma regra que já estava estampada com o mesmo teor no Código de Processo Civil daquela época. A mudança do CPC atual não deve acarretar automática mudança da forma de contagem dos prazos da
AIVA, João Pedro Lamana. O novo CPC e as repercussões nas atividades notariais e registrais. Disponível em: <http://registrodeimoveis1zona. P com.br/wp-content/uploads/2016/07/O-NOVO-CPC-E-AS-REPERCUSSÕES-NAS-ATIVIDADES-NOTARIAIS-E-REGISTRAIS.pdf>. Acesso em: 12.7.2019
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Procedimento de intimação e consolidação da propriedade fiduciária
Lei dos Registros Públicos, pois a sua incidência só é cogente para os processos judiciais, mas não nos procedimentos extrajudiciais.
das pessoas naturais (art. 8º). A própria Lei 8.935/1994, que trata dos notários e dos registradores, em nenhum momento fala em “dias úteis”.
A mudança feita pelo CPC atual, como é natural, provoca um aumento dos prazos, já que só são computados os dias úteis. Mas isso não é desejável no âmbito extrajudicial, pois gera possibilidade de maior lentidão na tramitação dos títulos.
O novo Código de Processo Civil fez alterações em várias leis, inclusive na Lei de Registros Públicos. Não custa relembrar que o atual CPC foi quem previu a existência das atas notariais (art. 384) e também mudou a Lei de Registros Públicos para possibilitar a existência do procedimento extrajudicial de usucapião (art. 1.071). Logo, se o novo Código de Processo Civil quisesse alterar a contagem de prazos no âmbito dos registros públicos, de dias corridos para dias úteis, teria e deveria ter feito uma mudança igualmente expressa, como as demais.
Uma das características do extrajudicial em comparação com o ambiente judicial é sua maior celeridade. E não nos parece que os prazos extrajudiciais devam ser aumentados, sob pena de ser comprometida essa vantagem competitiva que o extrajudicial oferece. Ademais, se fizermos uma pesquisa para entender porque houve essa mudança, veremos que muitos artigos publicados dão conta de que isso foi feito para atender aos advogados, que viram nessa mudança uma conquista da advocacia, que não deve ser aplicada aos procedimentos extrajudiciais porque nos registros públicos não há que se falar em férias forenses ou qualquer recesso coletivo típico do foro judicial. Além disso, pensamos que devemos interpretar que os prazos devem ser contados em dias corridos porque a LRP dispõe quando são contados apenas os dias úteis ou todos os dias. A lei de alienação fiduciária também não faz distinção entre “dias” e “dias úteis”. Ora, se na lei não está escrito “dias úteis”, só podemos entender que a lei quis dizer “dias corridos”. A lei é sempre expressa quando quer se referir apenas aos “dias úteis”. Logo, a falta de existência de previsão expressa na Lei de Registros Públicos, pensamos, deve afastar outras interpretações, sobretudo as que alonguem os prazos, que criem mais insatisfação do usuário, que acabem se voltando contra os próprios registros públicos. As cédulas de crédito são registradas em até três dias úteis, pois há regra legal expressa (art. 38 do Decreto-lei 167/1967). O protesto de títulos e outros documentos de dívida também é lavrado em até 3 dias úteis, pois há a determinação expressa do art. 12 da Lei 9.492/1997. A Lei 6.015/1973 diz que as serventias abrem apenas nos dias úteis, salvo as do registro civil
Não há, pois, razões históricas, jurídicas, sociais, econômicas, políticas ou estratégicas para que nos prazos relativos aos registros públicos e à alienação fiduciária sejam contados apenas os dias úteis. Por isso, com o devido respeito às posições contrárias, entendemos que foi correta a interpretação dada pela Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no sentido de que os prazos devem ser contados em dias corridos, pois pensamos que a contagem de prazos nos registros públicos e especialmente na execução extrajudicial das alienações fiduciárias deve ser feita sem qualquer influência do novo Código de Processo Civil, que inovou ao prever a contagem apenas nos dias úteis. O aumento dos prazos, pela mudança na sua forma de contagem, além de falta de base jurídica ou legal, tem como consequência tornar os registros públicos menos úteis, menos eficazes, menos rápidos e não tão interessantes a quem deles precisa. Por isso, defendemos que todas as Corregedorias Gerais regulamentem o tema da mesma forma feita pelo Estado de São Paulo e, enquanto isso não acontece, que os registradores, profissionais do direito, apliquem com independência a interpretação de que os prazos são contados em dias corridos.
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PAINEL
Execução da alienação fiduciária quando há averbação de penhora ou de indisponibilidade Flaviano Galhardo – 10º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo, SP.
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Ao exigir autorização judicial para promover a consolidação da propriedade estaremos com certeza judicializando a alienação fiduciária. E somente em 2016, foram 80 mil ordens de indisponibilidade.
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oube a mim abordar a execução da alienação fiduciária quando há averbação de penhora ou de indisponibilidade na matrícula do imóvel.
A alienação fiduciária que registramos, que executamos, é a base do mercado imobiliário, como todos sabem. É do conhecimento dos senhores também a enxurrada de ordens de indisponibilidade e de penhoras que tem desaguado nos registros imobiliários ao longo dos últimos anos. Com a Cenib – Central Nacional de Indisponibilidade de Bens, regulamentada pelo Provimento CNJ 39/2014, as ordens de indisponibilidade administrativas e judiciais passaram a contar com mais efetividade no envio e na recepção junto aos cartórios de Registro de Imóveis. Na medida em que as autoridades competentes para esse tipo de decretação passaram a contar com uma plataforma única na internet para cadastrar essas ordens de indisponibilidade, elas ganharam muito em efetividade. Uma ordem de indisponibilidade decretada hoje aqui, pela 13ª Vara de Curitiba, amanhã estará prenotada no Registro de Imóveis de Belém do Pará, por exemplo. Em 2016 foram expedidas aproximadamente 78 mil ordens de indisponibilidade. Se arredondarmos esse número para 80 mil e fizermos uma conta rasa – cada ordem de indisponibilidade compreendendo quatro CPFs ou CNPJs –, veremos que somente nesse ano tivemos cerca de 320 mil pessoas com o seu patrimônio indisponibilizado por meio da Cenib em todos os 3500 cartórios de Registro de Imóveis do país. O mesmo ocorreu com as averbações de penhora, que, pela sua importância reconhecida no recente Código de Processo Civil, principalmente no que tange à questão da fraude à execução, ganhou também simplificação e rapidez com a possibilidade de ser realizada por meio eletrônico (Art. 837, CPC). Eu fiz um pequeno levantamento sobre a Penhora Online da Arisp. Em 2016, cerca de 20 mil ordens de penhora circularam na Central Arisp. Por que estou começando com isso? Porque esse tem sido o dia a dia do oficial do Registro de Imóveis. Registros de alienações fiduciárias; ordens de penhora
recaindo sobre direitos de devedor fiduciante, podendo resultar em registros de arrematações futuras desses direitos; ordens de indisponibilidade de bens que também vão recair sobre os direitos do devedor fiduciante, trazendo o efeito prático de que a partir de então esses direitos não podem mais ser objetos de cessão. Esse tem sido o dia a dia do Registro de Imóveis e aqui começam a surgir os problemas. O credor da alienação fiduciária chega para protocolar o requerimento de intimação para purgação da mora e se depara com uma averbação de penhora, uma averbação de indisponibilidade na matrícula do imóvel. Como fica essa situação? É sobre isso que vamos falar aqui.
Indisponibilidade ou penhora sobre imóvel alienado fiduciariamente É possível averbar indisponibilidade ou penhora sobre imóvel alienado fiduciariamente? Claro que não. Ora, se no próprio cerne do instituto da alienação fiduciária está a transmissão do imóvel ao credor, ainda que em caráter resolúvel, por óbvio que esse bem, objeto da garantia, não mais se encontra no patrimônio do devedor. Uma simples leitura do art. 22 da Lei 9.514/1997 nos faz concluir que a contratação da transferência do bem, mesmo que com escopo de garantia, faz com que o devedor não tenha mais a disponibilidade sobre o imóvel; esse bem não está mais no patrimônio dele. Deixando de lado a questão dos direitos do devedor fiduciante, da possibilidade de ser dada a propriedade superveniente em garantia, é impossível o imóvel servir de objeto de uma nova garantia real, e muito menos sobre esse imóvel alienado fiduciariamente recair uma determinação de penhora ou de indisponibilidade de bens. Pode parecer bobagem isso, mas temos visto muitos magistrados determinando penhora e indisponibilidade de imóvel alienado fiduciariamente. No entanto, a partir do momento em que o imóvel está alienado fiduciariamente não há mais a disponibilidade desse direito. A não ser que tenha havido, para essa hipótese, a decretação, pela autoridade judicial, de ineficácia da
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PAINEL alienação fiduciária porque realizada em fraude à execução. Se o juiz decretar a ineficácia da alienação fiduciária porque realizada em fraude de execução, ele pode penhorar, pode determinar a indisponibilidade. Muito embora a doutrina tenha uma pequena divergência sobre a natureza jurídica dos direitos do fiduciante, o fato é que ela é uníssona em admitir a penhora e a indisponibilidade sobre esse direito. Essa questão foi muito bem enfrentada em dois boletins eletrônicos do IRIB, de 2006, por Sérgio Jacomino, e Melhim Chalhub1.
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A PARTIR DO MOMENTO EM QUE O IMÓVEL ESTÁ ALIENADO FIDUCIARIAMENTE NÃO HÁ MAIS A DISPONIBILIDADE DESSE DIREITO. A NÃO SER QUE TENHA HAVIDO, PARA ESSA HIPÓTESE, A DECRETAÇÃO, PELA AUTORIDADE JUDICIAL, DE INEFICÁCIA DA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA PORQUE REALIZADA EM FRAUDE À EXECUÇÃO.
Há unanimidade dos autores que se dedicaram ao tema em defender a possibilidade da constrição judicial sobre essa posição contratual. Por quê? Porque é inegável que ela possui uma expressão econômica, uma valoração econômica aferível e passível de apreensão judicial com intuito de satisfazer outros credores. Nesse sentido, quanto menor o saldo da dívida, maior o valor dessa posição contratual, uma vez que mais próximo esse devedor vai estar da reaquisição da propriedade em seu favor. Com a arrematação eventual dessa posição que o devedor fiduciante possui no contrato, em minha opinião, o arrematante assume no lugar dele a condição de fiduciante, tanto nos direitos decorrentes dos pagamentos anteriormente realizados como no compromisso e na obrigação de honrar o saldo da dívida. E a carta de arrematação desses direitos é perfeitamente passível de registro, desde que pago o imposto municipal e cumpridos os demais requisitos registrários.
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Execução da alienação fiduciária no Registro de Imóveis Havendo penhora ou indisponibilidade sobre direitos do fiduciante, como fica a execução da alienação fiduciária no Registro de Imóveis? Há algum impedimento para que o credor inicie o procedimento de intimação para purgação da mora? E para a averbação da consolidação?
Esses questionamentos começaram a surgir nos Registros de Imóveis e já começaram a bater às portas das corregedorias permanentes e gerais dos estados. Eu conheço a jurisprudência paulista, mas não achei nada de outro Estado.
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O que a Primeira Vara de Registros Públicos e a Corregedoria de São Paulo têm decidido a respeito desse assunto? Um resumo dessas decisões administrativas da Corregedoria de São Paulo vai nos mostrar três premissas. Primeira premissa: é possível o início do procedimento de intimação para purgação da mora, em que pese a indisponibilidade averbada. Essa era uma primeira dúvida. O oficial recebe o requerimento do credor para intimação e purgação da mora e vê que há uma averbação de indisponibilidade. Ele pode dar início ao procedimento que eventualmente vai resultar na perda, na consolidação da propriedade? Segundo o entendimento da Corregedoria, pode, porque se houver a purgação da mora no Registro de Imóveis, convalesce o contrato e o contrato tem sua vida normal
atureza jurídica dos direitos do fiduciante: Boletins Eletrônicos do IRIB nºs 2245 de 09/01/2006, por Sérgio Jacomino, e 2270, de 31/01/2006, N por Melhim Chalhub.
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Procedimento de intimação e consolidação da propriedade fiduciária
conforme previsão da própria Lei 9.514. A segunda premissa que podemos tirar dessas decisões é que mesmo havendo averbação de penhora dos direitos do fiduciante é possível o início e a conclusão do procedimento de execução extrajudicial em sua plenitude, ou seja, desde a intimação até a averbação da consolidação e eventual venda em leilão, ou averbação dos leilões negativos, no caso de terem sido infrutíferos. Portanto, havendo averbação de penhora, o oficial pode não somente iniciar o procedimento de intimação para purgação da mora, como pode também, a requerimento do credor, consolidar a propriedade no patrimônio do fiduciário e averbar os leilões negativos. Pode ir até o fim com a execução da alienação fiduciária. Como fica essa averbação de penhora na matrícula do imóvel? Tudo indica que, havendo averbação da consolidação da propriedade plena em nome do fiduciário, há o desaparecimento do direito de reaquisição do devedor fiduciante sobre o qual recaiu a penhora. O que há, na realidade, é um exaurimento do objeto da penhora por conta da execução da alienação fiduciária. A penhora desaparece. Não digo que há de se cancelar a penhora, mas o fato é que com a averbação da consolidação há o exaurimento daqueles direitos que o devedor fiduciante possuía no imóvel, ou seja, não existe mais o objeto da penhora, não há outra conclusão que possamos tirar. Essa constrição judicial, essa penhora, por sua vez, poderá eventualmente incidir sobre a importância que sobejar relativamente ao preço da venda apurada nos leilões (art. 27). Vale dizer, se houver um saldo em dinheiro resultante do leilão a ser devolvido ao devedor, o juízo da execução poderá determinar apreensão de tal valor, pois é o que restou dos direitos que o fiduciante executado detinha sobre imóvel. Claro que estamos tratando de penhora averbada, não estou querendo fazer referência a penhoras realizadas em favor da Fazenda Nacional, que, como todos sabem, pelo art. 53, § 1º, da Lei 8.212/1991, torna os bens do devedor executado indisponíveis. Nesse caso, a ordem de penhora vai ser tratada como se ordem de indisponibilidade fosse.
Exigência de ordem judicial para consolidação da propriedade e perda gradativa de eficácia da garantia fiduciária E se o devedor não purgar a mora e houver uma averbação de indisponibilidade na matrícula do imóvel, uma vez que, como vimos, é possível dar início ao procedimento? Segundo decisão da Corregedoria Geral do Estado de São Paulo, se houver averbação de indisponibilidade sobre os direitos do fiduciante, a averbação de consolidação depende de ordem judicial expressa, seja ela para o próprio ato da averbação ou para autorizar o prévio cancelamento da indisponibilidade. Esse é o ponto principal para nós. Temos observado que essa exigência de uma ordem judicial expressa para consolidar a propriedade em favor do credor fiduciário tem causado alguns reflexos. O primeiro desses reflexos é a paralisação de procedimentos. Eu tenho pelo menos dez procedimentos paralisados, sendo que o credor deu entrada e o devedor foi devidamente intimado, mas a consolidação não foi possível porque é preciso ir ao juiz que decretou a indisponibilidade e requerer ou cancelamento prévio da indisponibilidade ou autorização para promover a consolidação da propriedade. Na prática, começamos a observar um fenômeno nos cartórios. No momento em que o credor fiduciário dá início à execução da garantia, protocolando requerimento de intimação para purgação da mora, é muito grande a probabilidade de o fiduciante estar inadimplente perante outros credores civis, fiscais e trabalhistas, principalmente se ele exerce ou já exerceu alguma atividade empresarial. O estado de inadimplência e insolvência empresarial é sintomático. Em geral, primeiro as contribuições previdenciárias e tributos deixam de ser pagos. Depois os funcionários são dispensados sem a devida indenização legal. As contribuições trabalhistas e previdenciárias deixam de ser recolhidas. Ora, no instante em que a alienação fiduciária começa a ser discutida é bem provável que o patrimônio desse empresário já esteja indisponível 133
PAINEL por força do art. 185-A do Código Tributário Nacional, ou por determinação do juiz do trabalho. Isso tem acontecido com certa frequência no cartório. Sem contar os outros fatores que podem desencadear na indisponibilidade do patrimônio do fiduciante, como por exemplo, participação em instituições financeiras e cooperativas de créditos sob o regime de liquidação extrajudicial; ser responsável por ato de improbidade administrativa. O financiamento imobiliário, geralmente, é a última coisa que se deixa de pagar. Outra observação importante é que grande parte das operações garantidas com a alienação fiduciária possuem longo prazo de liquidação da dívida, algumas podem chegar a 35 anos. Isso significa não ser nada improvável a ocorrência de qualquer desses fatos. Todo mundo passa por dificuldades. Em 30 anos não é nada difícil que aconteça alguma coisa. Outro reflexo que pode ser um problema é o perigo de uma possível judicialização da alienação fiduciária. É sabido que o ponto alto da alienação fiduciária é essa revolucionária execução extrajudicial que veio para substituir a morosa e complicada execução hipotecária que muito contribuiu com a bancarrota do direito imobiliário nas décadas de 1980 e 1990, e o consequente fechamento do crédito imobiliário. Não havia crédito imobiliário, o mercado era muito fraco porque o direito imobiliário é a locomotiva do mercado imobiliário. Então, a exigência de ordem judicial expressa, seja para o próprio ato de consolidação, seja para cancelar previamente a indisponibilidade, judicializa o procedimento. A execução da garantia, que nasceu para ser extrajudicial, passa a depender de prévia intervenção judicial, perdendo-se com isso o benefício da celeridade da execução, abrindo-se argumentos de toda sorte para o indeferimento do pedido e resultando na perda da eficácia e da força da alienação fiduciária. A razão para isso é a exigência de se pedir ao juiz do trabalho para cancelar uma averbação de indisponibilidade que ele mandou, por exemplo, para que se possa consolidar o imóvel em favor da Caixa Econômica Federal. Ou a exigência de se pedir ao juiz da execução fiscal para cancelar a indisponibilidade que ele determinou
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para se consolidar um imóvel em nome de uma incorporadora. Imaginem a discussão que isso vai gerar com interposição de recursos e agravos. Uma pequena exigência que parece mero detalhe pode resultar em perda significativa de eficácia da alienação fiduciária. Essa paralisação pode perdurar anos e, assim como acontecia com a execução hipotecária, vai resultar em perda gradativa de eficácia da garantia fiduciária. A ocorrência desse fenômeno já começa a ser observada com alguns expedientes estancados e tende a se ampliar cada vez mais em razão dessa chuva de indisponibilidades que temos recebido via Cenib e que tem recaído sobre direitos de devedor fiduciante. Ou seja, estamos na fase em que as indisponibilidades estão chegando. Daqui a cinco anos vamos ver as dificuldades da Caixa Econômica Federal, se for mantido esse entendimento para executar essas alienações fiduciárias. Esse tema ainda é muito novo, começou a surgir agora. Não estou aqui fazendo uma crítica ao posicionamento da jurisprudência administrativa de São Paulo. Se o tema é muito novo, a tendência da jurisprudência é ir pelo caminho mais conservador. O raciocínio dessas decisões é que permitir averbação da consolidação da propriedade implicaria, por via reflexa, tornar sem efeito a indisponibilidade. Dito de outro modo, traduziria revisão
Procedimento de intimação e consolidação da propriedade fiduciária
de determinação judicial pela via administrativa, o que não se admite. Creio que essa premissa somente faz sentido se houver um requerimento para o oficial cancelar a indisponibilidade ou cancelar a ordem de penhora. Nesse caso concordo que é preciso autorização judicial, mas não para consolidar a propriedade. E aqui vamos ao terceiro ponto. É claro que o registrador de imóveis tem que seguir a orientação da Corregedoria do Estado para não sofrer punição admi-
nistrativa. Porém, ao estudar o problema o aplicador de direito não pode perder de vista a resolubilidade de ambos os direitos. A condição que recai sobre o direito de reaquisição do fiduciante, que para alguns trata-se de propriedade sob condição suspensiva, e a condição resolutiva incidente sobre a propriedade fiduciária do credor. Na primeira, havendo o pagamento da dívida, que é o implemento da condição, desaparece a causa suspensiva e reverte-se a propriedade em favor do
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PAINEL fiduciante. Por outro lado, frustrada a condição de reaquisição da propriedade pelo fiduciante, consolida-se a propriedade no patrimônio do fiduciário. E chama a atenção aqui que a consolidação da propriedade em favor do fiduciário ingressa no Registro de Imóveis por ato de averbação.
no credor, são efeitos normais da condição resolutiva e operam automaticamente, independentemente de atuação judicial. A averbação desses fatos na matrícula não constitui nada, apenas anota as consequências decorrentes do implemento ou inadimplemento da condição resolutiva pactuada pelas partes.
Melhim Chalhub lembra muito bem que a redação original da Lei 9.514/1997 falava em ato de registro, mas a Lei 10.931/2004 deu nova redação ao § 7º do art. 26, deixando claro que o ato é de averbação porque a consolidação se dá por cancelamento da condição resolutiva. Efetivamente, como diz Melhim, ao se constituir a propriedade fiduciária, a propriedade é atribuída ao fiduciário com a exclusão e limitação de poderes, que são objeto de ressalva no título constitutivo. Dada a estrutura da propriedade fiduciária, a consolidação resultará apenas na retirada dessa ressalva. Com isso a propriedade deixará de ser provisória e restrita e passará a ser definitiva e exclusiva, não havendo necessidade de constituição de nova propriedade.
É preciso pensar muito bem sobre a natureza desse ato de consolidação porque a propriedade que o credor adquiriu é aquela lá atrás. Então, por que se paga o ITBI agora? Não havia outro momento para o legislador escolher para pagamento do ITBI. No momento da garantia é que não iria ser.
Portanto, o caráter declaratório dessa averbação de consolidação é nítido, uma vez que a resolução do contrato ocorre com a não implementação da condição, no instante em que o devedor deixa de purgar a mora em quinze dias no Registro de Imóveis. Quando o oficial do Registro de Imóveis expede a certidão de não purgação da mora está extinto o contrato. Dá-se a resolução do contrato. E a consolidação é o caminho natural dessa extinção, dessa resolução contratual. O ato de consolidação não consubstancia nenhuma alienação ou oneração, mas tão somente o ingresso no fólio real do cancelamento da condição resolutiva que, até o momento da expedição da certidão de não purgação da mora, recaía sobre a propriedade do credor fiduciário. O que era propriedade resolúvel e afetada ao escopo de garantia, passa a ser, automaticamente, propriedade plena. Aqui eu me socorro novamente do Melhim Chalhub e de seu livro Negócio Fiduciário. Daí a razão para a lei dispensar qualquer intervenção judicial na excussão da garantia e para a prática dos atos registrários dela decorrentes. Efetivamente, a reversão da propriedade ao devedor fiduciante, assim como sua consolidação
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Ao exigir autorização judicial para promover a consolidação da propriedade estaremos com certeza judicializando a alienação fiduciária. E somente em 2016, foram 80 mil ordens de indisponibilidade.
Conclusões 1. Com a não purgação da mora certificada pelo oficial do registro dá-se a extinção do contrato por inadimplemento, fato que tem como efeito natural a possibilidade de o credor requerer averbação de consolidação da propriedade em seu favor. 2. Averbação de consolidação se traduz, na realidade, no cancelamento da condição resolutiva que recaía sobre a propriedade do credor fiduciário. Ela não constitui nova alienação ou oneração. 3. Qualquer que seja a origem da indisponibilidade incidente sobre os direitos do fiduciante – indisponibilidade decretada por execução fiscal, poder geral de cautela, ou indisponibilidades previstas na lei – ela não pode subsistir em face da propriedade consolidada no credor. Por consequência, assim como ocorre na penhora desses direitos, despicienda seria qualquer intervenção judicial ou outra prévia providência de cancelamento da averbação de indisponibilidade porque já exaurido o objeto da constrição pelo implemento da condição resolutiva. 4. A penhora e/ou a indisponibilidade objeto da averbação poderão incidir sobre o saldo que sobejar, apurado com a venda do imóvel num dos leilões reali-
Procedimento de intimação e consolidação da propriedade fiduciária
zados para pagamento da dívida. 5. Por outro lado, com a consolidação da propriedade, o credor (agora proprietário pleno), ou o posterior adquirente do imóvel, se desejar tornar visível na matrícula a insubsistência da penhora e/ ou indisponibilidade, deve pleitear o ato de cancelamento perante a autoridade de origem. Ou seja, para cancelar a ordem de penhora e a ordem de indisponibilidade é preciso autorização do juízo de origem. Jamais o oficial, administrativamente, e nem a própria corregedoria, poderia determinar o cancelamento desse ato. Só o próprio juízo de origem, o que é bem diferente de exigir autorização judicial para averbação da consolidação da propriedade.
Creio que chegou a hora da verdade para a alienação fiduciária porque muitas questões formais ao longo dos últimos anos foram resolvidas. Há muito que resolver ainda, muitos problemas práticos têm que ser resolvidos. No entanto, ela começa a ser confrontada com outros credores trabalhistas e fiscais. Se os tribunais começarem a decidir que a alienação fiduciária não se aplica para os créditos privilegiados – créditos trabalhistas e tributários – nós vamos perder vinte anos de discussões, vamos perder esse instituto e outro será buscado. Portanto, temos que promover estudos, levantar a questão até para servir de base para as próprias decisões administrativas. É preciso pensar bem nesse assunto.
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Constrições judiciais: ineficácia, nulidade e anulabilidade de atos diante da Lei 13.097/2015. Fé pública registral ou inoponibilidade Daniel Lago Rodrigues – Oficial de Registro de Imóveis de Taboão da Serra (SP). Diretor de Assuntos Institucionais do IRIB.
O
tema desta apresentação já foi objeto de debate no IRIB em outras oportunidades. Eu não tenho a pretensão de trazer resposta para uma dúvida que cabe à jurisprudência responder, ou seja, se efetivamente a Lei 13.097/2015 vai ou não prevalecer perante o novo Código de Processo Civil. O fato é que essa lei demorou a vir. De certa forma, tínhamos um sistema obtuso em que o adquirente era punido em detrimento de um credor que não tinha qualquer compromisso em fazer publicizar o seu crédito. O adquirente devia fazer uma diligência absurda enquanto o credor podia quedar-se inerte. Eu trouxe, então, algumas bases doutrinárias para que possamos estruturar o raciocínio.
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Eficácia contratual inter partes O contrato gera direitos entre as partes e não além das partes. Essa é a regra. Existem exceções, mas essa é a regra. A eficácia inter partes decorre de mero consenso entre as partes, em atendimento à autonomia privada (art. 5º, II, CF). Para que um contrato de direito imobiliário gere efeito para além das partes é preciso fazer o registro para obter a eficácia ultra partes, a contratação com a sociedade. Com o contrato – no caso brasileiro o registro é constitutivo – se tem apenas direito obrigacional. Ao levar o contrato a registro adquire-se o direito real. O que é o registro? Não deixa de ser uma contrata-
Constrições judiciais: ineficácia, nulidade e anulabilidade de atos diante da Lei 13.097/2015. Fé pública registral ou inoponibilidade
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A Lei 13.097/2015 reforçou a eficácia do sistema registral imobiliário, precisamos defendê-la. Não porque ela de alguma forma nos favorece, não porque ela reforça a eficácia do Registro de Imóveis, mas especialmente porque ela é uma medida de justiça para que os adquirentes possam adquirir a um custo menor, valorizando o próprio bem. ção com a sociedade. Temos um arcabouço legislativo, várias regras e princípios regulam o registro. Registrar significa aderir ao pacto social, que de certa forma instituiu o próprio registro imobiliário. Quando eu registro estou contratando com a sociedade, e a partir daí a sociedade também se vincula ao registro de certa forma.
Registro de documentos e registro de direitos: a diferença é o filtro de legalidade Existem várias classificações no registro. Quanto ao conteúdo, temos dois grandes sistemas, o sistema de registro de documentos e o sistema de registro de
direitos.
”
O registro de documentos diz respeito a todos aqueles sistemas – seja de documentos propriamente ditos, seja de títulos – sem depuração ou qualificação do conteúdo, ou seja, sem análise jurídica prévia. O arquivamento desse título não gera presunção, uma vez que ele não passou pelo crivo da legalidade. Sendo assim, quem pode aferir a legalidade? O juiz, portanto, a análise jurídica é posterior ao registro, o Judiciário analisa se aquele título é legal ou não. Não há análise jurídica prévia, esse é o marco distintivo entre o registro de documentos e o registro de direitos.
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PAINEL No Direito espanhol, por exemplo, o direito se adquire mediante mero contrato e o registro vai dar eficácia erga omnes. Eles dizem “registro de direitos”. No Brasil, também chamamos nosso sistema de registro de direitos, embora o título a ser registrado ainda não tenha o direito real em si, direito esse que será gerado a seguir. Portanto, ao ter um título registrado eu tenho um registro de direito, o direito que está ali registrado. Mas poderíamos chamar também de “registro jurídico”, uma vez que contamos com a análise jurídica prévia do registrador, que faz um filtro de legalidade para escoimar todos os vícios e permitir que somente os títulos que se conformam com a lei possam aceder ao registro. Essa é a distinção básica.
Segurança Jurídica estática versus segurança jurídica dinâmica: ou se protege o proprietário ou o adquirente de boa-fé Vale aqui trazer a classificação centenária de Victor Erenberg, que faz distinção entre segurança jurídica estática e segurança jurídica dinâmica. A segurança jurídica estática é a que visa, primordialmente, defender o proprietário inscrito, aquele que adquiriu legitimamente, cumpriu todos os requisitos legais – seja no âmbito obrigacional, seja no âmbito real – e hoje é o que chamamos de “verdadeiro proprietário” – o chamado verus dominus, proprietário de fato e de direito. Esse sujeito é o foco da segurança jurídica estática. Na segurança jurídica dinâmica o adquirente não pode ser privado do direito adquirido por motivo que lhe era desconhecido e que não se lhe exigia conhecer. Protege-se o terceiro de boa-fé. É preciso fazer uma opção, ou se defende o verdadeiro proprietário, ou se defende o terceiro adquirente de boa-fé. Alguém terá que ser sacrificado. Em princípio, na segurança dinâmica, se sacrificaria o verdadeiro proprietário em benefício do terceiro de boa-fé.
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Modos de proteção à luz do direito econômico: proteger o proprietário é mais caro que proteger o adquirente de boa-fé Há diferentes sistemas de segurança jurídica. A rigor, não haveria por que dizer que um é melhor do que o outro, conceitualmente, mas o fato é que uma análise econômica da segurança jurídica indica que o custo de se proteger o verdadeiro proprietário é muito superior ao custo de se proteger o terceiro adquirente de boa-fé. À luz do direito econômico temos, então, segurança estática e proteção do verdadeiro proprietário. Como proteger o verdadeiro proprietário? Com o que Richard Posner e outros autores de análise do direito à luz da economia chamam de “regra de propriedade”. Trata-se de uma regra forte, de sequela, reivindicatória. Se um terceiro adquire sem que o verdadeiro proprietário tenha alienado, este vai buscar o seu imóvel com uma ação reivindicatória. Ele tem sequela, e ao exercer a sua sequela quem acaba no prejuízo é o terceiro adquirente de boa-fé. Isso é segurança estática. Mas a segurança estática não deixa o terceiro de boa-fé integralmente sem resguardo. Ela prevê o que alguns autores chamam de “regra de responsabilidade”. Será responsabilizado quem deu prejuízo ao terceiro de boa-fé. Na segurança estática a proteção do terceiro de boa-fé que adquiriu, mas não do verdadeiro proprietário, adquiriu a non domino, se dá por meio de ação indenizatória. O verdadeiro proprietário descobre, entra com ação reivindicatória, ganha a ação, faz a sequela do bem, e resta ao terceiro de boa-fé uma ação indenizatória. Se se tratar de um fraudador, não tem para quem recorrer. A segurança dinâmica visa proteger primordialmente o tráfico imobiliário, o que reduz o custo das transações e aumenta a segurança para quem compra, havendo, de certo modo, produção de riqueza. Na segurança dinâmica temos, primordialmente, a proteção do terceiro de boa-fé. Quem tem uma regra de
Constrições judiciais: ineficácia, nulidade e anulabilidade de atos diante da Lei 13.097/2015. Fé pública registral ou inoponibilidade propriedade a seu favor é o terceiro de boa-fé. E quem tem ação indenizatória é o verdadeiro proprietário.
Modos de proteção à luz dos sistemas registrais de direitos: presunção simples e presunção qualificada O registro de documentos não tem análise jurídica prévia, ele não gera presunção qualificada. A presunção gerada por um registro de documentos é a presunção simples que não resiste a uma impugnação. Não presume nada, não é presunção relativa e muito menos absoluta, não define o verus dominus, o verdadeiro proprietário. Quem vai definir é o juízo. Por exemplo, num sistema de registro de documentos como o dos Estados Unidos, se há vários títulos registrados e várias pessoas disputando aquela propriedade, elas vão a juízo reclamar o seu direito. O juiz vai reunir os contratos e verificar quem tem o melhor direito, quem é o melhor comprador, quem comprou da pessoa certa. Vai perder aquele que comprou do ramo equivocado que se criou na cadeia dominial e que não deveria existir. O problema é que o juiz define o melhor comprador dentre aqueles que foram a juízo. Nada impede que amanhã apareça outro melhor comprador e ganhe deste que acabou de ganhar agora. Já o registro de direitos, com análise jurídica prévia, gera presunção qualificada – ora presunção relativa, ora presunção absoluta – e define quem é o verdadeiro proprietário. Há dois princípios basilares sob os quais são criados os sistemas de proteção dos direitos que estão no registro. Tratando-se de registro de direitos temos basicamente dois sistemas: legitimação registral e fé pública. No sistema de legitimação registral, o foco principal da proteção é o verdadeiro proprietário. Quem tem uma regra de propriedade, quem tem sequela, quem tem reivindicatória é o verdadeiro proprietário. E quem fica com a indenizatória? Terceiro adquirente de boa-fé. Para discutir se a Lei 13.097/2015 veio instituir um
sistema de fé pública ou de inoponibilidade é preciso revisitar esses conceitos bem como: princípio da fé pública, regra de responsabilidade para o verdadeiro proprietário e regra de propriedade para o terceiro adquirente de boa-fé. É importante que tenhamos muito claro que – na questão da fé pública ou na segurança dinâmica – quando se diz que o verdadeiro proprietário não é o foco principal, mas sim o terceiro adquirente, isso de alguma forma vai valorizar a atuação do registrador. A qualificação passa a ser muito mais importante no caso da segurança dinâmica, da fé pública, do que propriamente na legitimação registral. Na segurança estática e na legitimação registral a análise jurídica de certa forma é devolvida, digamos assim, em maior porção ao Judiciário. O Judiciário vai dizer quem é o verdadeiro proprietário. Já a segurança dinâmica vai exigir que o Registro de Imóveis conte com um profissional do direito altamente qualificado para poder definir quem acessa o registro. A diferença básica entre a fé pública e a legitimação registral são os seus respectivos efeitos. A fé pública tem o efeito guilhotina e a legitimação registral conta com o efeito dominó. Com a fé pública temos um corte. A cadeia dominial vai ter um corte e aquele que adquiriu depois do corte não vai mais sofrer as consequências dos registros que lhe são anteriores, ao passo que na legitimação registral, basicamente, o registro é causal. E se o registro é causal, o vício do título macula o registro. Ao se derrubar um título, derruba-se um registro. Em geral, a cadeia é derivada. Então, por derivação, todos os títulos e registros posteriores vão cair por terra. Isso traz alguma insegurança porque, amanhã, aquele que pensa ser o verdadeiro proprietário pode ser o terceiro adquirente de boa-fé, e três proprietários atrás podem evocar a evicção. Ele pode ter seu registro derrubado, destruído por uma derivação dos demais registros e pela causalidade do título viciado lá atrás. São dois sistemas distintos e qualquer sistema jurídico vai ter que optar por um deles.
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PAINEL Modo de aquisição da propriedade: título + modo No caso brasileiro, em regra, o modo de aquisição da propriedade é bifásico: título + modo, ou seja, negócio + registro. Pontes de Miranda faz a distinção entre negócio obrigacional e negócio jurídico real. Para ele, esse é um acordo real abstrato, mas estamos num sistema causal. Todas as vezes que fazemos um negócio translativo de direito, implicitamente estamos celebrando também um negócio conexo, que é o acordo real de disposição. Eu fecho o negócio no âmbito obrigacional e faço outro negócio no âmbito real. Esse outro negócio no âmbito real é que vai dar legitimidade para todo aquele que levar o título ao cartório de Registro de Imóveis. Em outras palavras, quando se firma um negócio translativo, firma-se um acordo real dispositivo autorizando o oficial do Registro de Imóveis a trasladar a propriedade para o adquirente fulano de tal. Por que para protocolar uma escritura não é preciso requerimento, mas para fazer um desdobro sim? Porque desdobro não é translativo de direito como na escritura, e a transladação é elemento essencial do negócio. Nada impede que possamos amanhã modular esse negócio jurídico real, mas o fato é que se trata de uma dupla translatividade: do direito obrigacional e do direito real. Temos, então, a aquisição da propriedade mediante título + modo e podemos distinguir isso em três seções. A seção do negócio obrigacional, a seção do acordo real dispositivo e o ato em si de registro. Por que frisamos essas três seções do modo de aquisição de propriedade no Brasil? Porque isso vai ser fundamental para que possamos identificar o nosso sistema neste ou naquele princípio, digamos assim.
Modalidades de fé pública: convalidante e não convalidante Primeiro, vamos tratar do princípio da fé pública. Para entender se isso é fé pública ou inoponibilidade
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precisamos saber o que é fé pública. Como funciona? Basicamente, temos duas situações em que a fé pública se apresenta. E há interdependência. Podemos ter fé pública em sistemas nativamente abstratos ou em sistemas que não são nativamente abstratos. Em sistemas abstratos, a abstração vai fazer um corte dentre as seções que mencionamos. Essas seções – negócio obrigacional, acordo real dispositivo e registro – vão ser guilhotinadas para falarmos de cada espécie de fé pública. Nós temos fé pública em um sistema abstrato convalidante, como o registro Torrens, por exemplo. Trata-se da proteção do terceiro de boa-fé pela abstração do registro. Aqui se guilhotinou entre o acordo real dispositivo e o registro. Isola-se o registro e esse registro vai ter vida própria. Ele não vai ter nenhum vínculo com as demais seções nesse modo aquisitivo da propriedade. Por quê? No sistema de fé pública convalidante, o adquirente de boa-fé que toma a providência de fazer esse registro – no caso do nosso exemplo, registro Torrens –, num sistema de purgas, por mais que o verdadeiro proprietário tenha algum tipo de ação contra ele (adquirente), não vai poder exercê-la em razão da guilhotina entre o registro e o acordo real dispositivo. Se houvesse algum vício de vontade no acordo real dispositivo, eventualmente, seria possível desfazer. Mas na convalidação, o título, por mais viciado que seja, não pode mais ser motivo de qualquer anulação, ainda que inter partes, ou seja o registro fica independente. A presunção gerada é iuris et de iure, inter partes e inter terços, entre as partes e entre terceiros. Como funciona a fé pública em um sistema não convalidante? Proteção do terceiro de boa-fé pela abstração do acordo real e o negócio pessoal. A guilhotina será entre o acordo real e o negócio obrigacional. A proteção do terceiro de boa-fé se dá por abstração dentre essas duas seções. E o que acontece? Presunção juris tantum inter partes e iuris et de iure inter terços. Como se guilhotinou para baixo do acordo real dispositivo – e isso é um acordo, tem que haver manifestação de vontade –, entre as partes é possível exercer ação, mas perante o terceiro que comprou de boa-fé não há como exercer ação.
Constrições judiciais: ineficácia, nulidade e anulabilidade de atos diante da Lei 13.097/2015. Fé pública registral ou inoponibilidade Modalidades de legitimação registral em sistemas causais É possível ter fé pública em sistema nativamente causal? Sim. O motivo da fé pública não vai ser mais abstração, não vai ser mais aquela guilhotina. O motivo aqui vai ser uma outra guilhotina. A guilhotina da aparência. Incide o princípio da aparência, princípio da confiança, princípio das legítimas expectativas que o registro gera no terceiro adquirente e, com base na teoria da aparência, também se vai guilhotinar. Qual é a consequência de se guilhotinar logo abaixo do próprio negócio operacional? Qual é o requisito? O requisito é que o bem tenha circulado. Tratando-se de fé pública num sistema causal, a teoria da aparência vai fazer as vezes da guilhotina. Num sistema abstrato, a guilhotina decorre da inscrição. No sistema causal, a guilhotina decorre da aparência. Três modalidades básicas de fé pública, duas modalidades básicas de legitimação registral. Isso é básico, mas é difícil encontrar um sistema que seja puramente isso ou puramente aquilo. O sistema é preponderantemente isso ou aquilo. Seja na fé pública, seja na legitimação registral, as modalidades se mesclam. Em sistemas causais temos a legitimação registral plena, que seria pura. Presunção juris tantum relativa entre as partes e entre terceiros. Ou poderia ser restrita. Nessas condições há presunção juris tantum apenas inter partes porque estou num sistema abstrato. Inter terços, entre terceiros, vale a abstração. A legitimação registral sofre aqui uma redução por conta do sistema de fé pública, assim como lá a fé pública sofre uma redução por conta da legitimação registral. E quais são os sistemas que a doutrina do direito registral propõe para a proteção do direito inscrito? Nós temos basicamente dois sistemas: o latino e o germânico. O sistema pode ser monista ou dualista. Monista, se é ou sistema latino ou sistema germânico de proteção do terceiro, do titular do direito inscrito. Dualista, se é um misto dos dois. No sistema latino trabalhamos com inoponibilidades. A notícia de uma
situação é o suficiente para gerar uma ineficácia, que amanhã ou depois vai abrir uma porta na oponibilidade da propriedade do outro. Alguém adquire depois dessa notícia e a oponibilidade já não é plena, foi rebaixada. No sistema latino, todas as vezes que se dá notícia e mesmo assim alguém compra, por questão de má-fé, essa pessoa vai ter uma porta aberta para perder a propriedade. Ela não pode opor a sua propriedade a mim, por exemplo, que noticiei uma causa determinante para perda do imóvel, sendo que ela comprou depois da minha anotação. No sistema germânico, para que se possa inscrever alguma coisa, primeiro se tem que destruir o registro. Para entrar com usucapião, primeiro se tem que provar, entrar com uma ação para declarar o abandono, res nullius, para depois adquirir por usucapião. Portanto, temos um sistema que exige a destruição do registro e um sistema que não exige a destruição do registro – basta averbação de uma causa de inoponibilidade.
Boa-fé registral: absoluta ou relativa Boa-fé registral pode ser absoluta ou relativa. Ela é absoluta quando há oponibilidade absoluta do inscrito. Aquilo que está inscrito é oponível sempre e há inoponibilidade absoluta do não inscrito. O que existe é o que está na matrícula, o que não está na matrícula não existe. Essa seria a boa-fé registral plena. E temos a boa-fé registral relativa, que é a inoponibilidade relativa do não inscrito. Tem coisas que não estão inscritas, que não estão na matrícula, mas vão ofender a oponibilidade própria da propriedade. Vão mitigar a oponibilidade do título registrado. Na boa-fé registral relativa podemos ter causas de inoponibilidade estranhas ao registro.
Terceiro de boa-fé e as relações determinantes Existe relação determinante da perda da propriedade, da evicção, de qualquer medida reipersecutória. Ela pode ser interna ou externa ao registro.
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PAINEL Essa relação ou causa determinante pode estar no registro, como pode estar fora do registro. Se ela se originar dentro do registro é intra cadeia; se ela se originar fora, será extra cadeia, ou seja, não vai estar na certidão. Paralelamente, temos a questão do repositório informacional. O adquirente de um imóvel quer saber o que pesa sobre o imóvel. É possível haver uma relação interna ao registro com concentração, com informação de fusos, e a mesma coisa na relação extra registro. Se a origem dessa relação determinante é dentro da cadeia é comum se imaginar que é concentrada na cadeia, mas nada impede que se tenha uma ação que ainda não foi noticiada. A relação é de evicção dentro da cadeia, mas por algum motivo essa informação está difusa. E é possível ter causas para perda da propriedade não por conta dos proprietários anteriores, mas por uma causa externa. Há causas externas que podem ter ou não notícia na matrícula, as informações estão difusas. Nosso sistema não foi criado para ser aquilo que ele foi antes da Lei 13.097. Nós estamos convictos de que essa lei é plenamente eficaz e vai prevalecer. Na instituição do nosso sistema, em momento algum a ideia foi de difusão de informações. Isso foi uma distorção criada em parte por algumas interpretações e em parte pela própria lei. Vamos ver o que dispõe o art. 54 da Lei 13.097/2015: “Art. 54. Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações:”
O primeiro no tempo é o primeiro no direito. A questão é: quando é que o primeiro no tempo não vai ser o primeiro no direito? O art. 54 trata disso ao dizer: “Olha, você é o primeiro no tempo, mas não vai ser o primeiro no direito porque deixou de averbar a notícia da sua ação.” Temos, então, a inoponibilidade do sistema latino de proteção do terceiro de boa-fé. As informações relacionadas no art. 54 que devem constar na matrícula do imóvel são:
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“I - registro de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias; II – averbação premonitória III - averbação de indisponibilidade ou outras restrições quando previstos em lei IV - averbação, mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência, nos termos do inciso II do art. 593 da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil.”
Há jurisprudência consolidada do STJ, do STF, dispondo que todas as vezes que há atualização legislativa, mas não há modificação do conteúdo da lei, as referências continuam ativas. Nós temos que ter muita clareza de que é draconiana a interpretação que diz que a Lei 13.097 não prevalece. Do contrário, teremos que reformar muitas leis porque elas fazem remissão a artigos e dispositivos que foram revogados, mas substituídos por outros idênticos. Não é uma interpretação razoável. “Art. 54 Parágrafo único. Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos arts. 129 e 130 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel.”
Esse parágrafo único do art. 54 é fé pública ou inoponibilidade? Eu vejo o art. 54 como um artigo que trata da boa-fé registral naquela ideia de oponibilidade plena do inscrito e da inoponibilidade plena do não inscrito. A ideia aqui é de boa-fé registral, mas será que isso faz com que o registro, nesse caso, seja de fé pública? Eu vou discordar de alguns. Por esse parágrafo eu ainda não estou convencido de que teríamos fé pública. Estou convencido pelo artigo seguinte. “Art. 55. A alienação ou oneração de unidades autônomas integrantes de incorporação imobiliária, parcelamento do solo ou condomínio edilício, devidamente registrada, não poderá ser objeto de evicção ou de decretação de ineficácia...”
Constrições judiciais: ineficácia, nulidade e anulabilidade de atos diante da Lei 13.097/2015. Fé pública registral ou inoponibilidade Ou seja, se está barrando tanto o sistema de proteção latino quanto o germânico. Por quê? A guilhotina vem a seguir: “... mas eventuais credores do alienante ficam sub-rogados no preço ou no eventual crédito imobiliário...”
A ação indenizatória fica para o verdadeiro proprietário. E vai ficar com o imóvel o adquirente de boa-fé, que comprou porque circulou, pela teoria da aparência. Trata-se de um dispositivo que cria mais uma hipótese de fé pública no nosso sistema.
Legislação A meu ver, a Lei 6.015 pretendeu um sistema germânico de fé pública. Proteção de boa-fé, um sistema misto, uma vez que prevê citação das ações reais e reipersecutórias, no caso, o registro, além de outras hipóteses. E também prevê, no art. 216, a anulabilidade e a nulidade do registro. Ela tanto tem hipótese para destruir o registro, como para plantar lá o ovo da serpente que amanhã ou depois vai gerar uma ineficácia e fazer o adquirente perder o bem. A meu ver, o sistema é misto para fins de proteção da boa-fé do terceiro. E o repositório de informações? Na Lei 6.015/1973 era concentrado. Se a lei previu que se dê notícia das ações, o sistema é concentrado. O Código Civil de 1916, e o de 2002, se assemelham. Há algumas distinções importantes, mas quanto ao sistema de registro de direitos não há dúvida. A posição da jurisprudência é que se trata de legitimação registral. Eu acredito que é legitimação registral, mas até certo ponto, especialmente se se tratar de legitimação registral dentro da cadeia dominial. Não tenho dúvida de que é por força da própria evicção do art. 447, que não vai dizer que o verdadeiro proprietário pode reivindicar coisa de quem justamente a detenha. Então, é legitimação registral. A questão é saber se é preciso estar dentro da cadeia ou não. Mas o Código Civil dispõe no art. 1.245, § 2º e seguintes, que para ser cancelado o registro é preciso anular. Então, nesse quesito, o sistema seria germânico.
O Código de Processo Civil, de janeiro de 1973, a meu ver, é sistema de proteção latino. Ou seja, vou dar notícia dentro da matrícula. A questão é: exige-se que vá para a matrícula? Ou seja, é concentrado ou é difuso? É preciso dar notícia ou não? A Lei 6.015/1973 é posterior. Ela previu essas situações. Não estamos falando da Lei 13.097/2015, estamos falando da Lei de Registros Públicos, do Código Civil e do Código de Processo Civil. Em nenhum momento o sistema tinha abertura para inoponibilidades diversas, difusas. Isso foi uma distorção gerada em parte pela doutrina de direito processual, e em grande medida pela Lei 7.433, de 1985, que instituiu a previsão para que o comprador tivesse que fazer todas as diligências possíveis e imagináveis. A partir dessa previsão, hoje revogada pela Lei 13.097/2015, se consolidou a ideia de que o comprador não pode se aproveitar da própria torpeza. Ele quebrou a boa-fé objetiva. Onde já se viu? Ele não tirou certidão de Manaus, não tirou certidão de Pernambuco, não tirou certidão de Minas Gerais. Já existia alguma jurisprudência sobre isso, mas não era majoritária. O fato é que isso se cristalizou com a Lei 7.433, que criou a ideia do comprador diligente. Ele tem que ser diligente e fazer a prova. Prova diabólica, não tem como fazer. Nós temos um sem número de causas de inoponibilidade difusas, pode vir de qualquer lugar. Sem falar da fraude de execução fiscal, para ficar um pouco pior.
Lei 13.097/2015: ordem na casa A Lei 13.097/2015 veio pôr ordem na casa fazendo com que o sistema, que era preponderantemente difuso, se torne agora preponderantemente concentrado. Ainda há exceções graves. As sentenças judiciais que dizem respeito ao imóvel não estão recepcionadas. De um lado há obrigação de registrar a citação da ação real de usucapião e, de outro, há uma exceção dispondo que essa ação real, a sentença, não precisa ser barrada. Ainda temos situações em que precisamos delinear exatamente os efeitos da Lei 13.097. Mas, qual era a proteção da Lei 7.433? Nenhuma. Ela destruiu todo o arcabouço que nós tínhamos, uma
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PAINEL vez que emulou aquilo que existe em países onde o registro é de documentos, onde o registro é fraco e o título é forte, como na França, por exemplo. A meu ver, a Lei 7.433 retira completamente a proteção do terceiro de boa-fé e, obviamente, faz com que as inoponibilidades se espraiem por todos os fóruns Brasil afora e por todas as secretarias de fazenda.
sucessivo.
Novo CPC traduz o sistema latino de proteção do terceiro de boa-fé
O princípio da inscrição vai gerar também o trato sucessivo, o atendimento à continuidade registral.
O novo Código de Processo Civil traduz o sistema latino de proteção do terceiro de boa-fé e, a meu ver, concentrado. O rol de situações de fraude foi ampliado para dentro da matrícula, para situações que estão concentradas. E o último item é o mesmo a que se refere a própria Lei 13.097, sem tirar nem pôr. De certo modo, embora substituído o CPC, a norma não mudou. A referência à norma continua sendo a mesma. Mudou o número formal da norma, mas não a norma.
Constrições judiciais devem obedecer ao trato sucessivo Algumas constrições judiciais – penhora, arresto, sequestro e indisponibilidade, que não é bem uma constrição típica, mas retira temporariamente a disponibilidade do imóvel – devem obedecer ao trato
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Quando um título é protocolado, o princípio da prioridade protege a concorrência, protege o trato sucessivo. Uma vez inscrito, quem vai proteger o titular do direito, agora registrado, é o próprio princípio da inscrição.
Se chegar uma constrição judicial, e o imóvel não estiver mais no nome daquele que consta da ordem, é possível fazer averbação ou registro? A meu ver, deve-se respeitar o trato sucessivo e esse título deveria ser devolvido. Como fazer a constrição de um bem por uma dívida alheia? Não acho isso possível. Na hipótese de quebra do trato, admite-se a declaração de ineficácia da aquisição. Mas aqui faltou falar de outro item. Antes de tratar da declaração judicial de ineficácia é preciso dizer que aquelas inoponibilidades inscritas por si só são hipóteses de inoponibilidade. Se existe uma averbação premonitória e depois chega uma penhora, não há quebra do trato sucessivo. Obviamente estamos falando de um imóvel que está em nome de terceiro e ele comprou depois da averbação premonitória. É preciso pedir a declaração de ineficácia ao chegar uma penhora? A meu ver, não. A porta foi aberta
Constrições judiciais: ineficácia, nulidade e anulabilidade de atos diante da Lei 13.097/2015. Fé pública registral ou inoponibilidade antes da compra e mesmo assim ele comprou. As inoponibilidades inscritas na matrícula representam situações de ineficácia por si só, independentemente de decisão judicial. Por outro lado, se não houver averbação, deve-se ter uma decisão judicial declarando a ineficácia. A meu ver, constrições judiciais dependem da participação. Não só constrições judiciais, o processo que gera constrição, e futuramente a excussão do imóvel, depende da participação do titular formal. Eu já vi usucapião em que o proprietário tabular não tinha sido chamado. O trato sucessivo é visto a partir das partes componentes do processo. É ali que se tem que ver se o trato sucessivo foi cumprido, essa é a minha opinião. No caso de fraude contra credores e fraude de execução também sou parte vencida. Fraude contra execução, a doutrina fala que é ineficácia, a jurisprudência também. Mas isso tem consequências, porque se houve fraude de execução, a regra do Código Civil é de anulabilidade por ação pauliana (arts. 158, 159, 160). A primeira consequência é um princípio mencionado por autores mais antigos, princípio da cooperação entre credores. Eu descubro que houve fraude contra credores, anulo, destruo o registro e aquele bem volta para o patrimônio do devedor. Eu não vou ficar com o resultado daquela ação pauliana só para mim porque agora vou concorrer com outros. E na concorrência vou ver quem prefere, quem não prefere. Essa é a primeira situação. Eventualmente isso pode ter repercussão aqui para nós no momento em que eu desclassifico de anulabilidade para ineficácia. A ineficácia em si pode não ter tanto problema, mas, no que diz respeito à constrição é preciso verificar se o proprietário tabular foi intimado. Muitas vezes, a ineficácia é decretada porque está patente. Mas será que o proprietário foi avisado? Por mais culpado que seja, ele não pode perder a propriedade sem participar do processo. E fraude de execução é ineficácia, a lei fala isso expressamente. Eu trago aqui a ideia de Hohfeld, ele tem quatro suposições jurídicas subjetivas ativas e quatro passi-
vas. As quatro ativas são: pretensão, faculdade, poder formativo e imunidade. Eu quero destacar aqui a imunidade. Se eu tenho direito subjetivo, eu tenho imunidade para todos os negócios dos quais eu não participei. Eu não posso sofrer consequências por situações das quais eu não participei. Para finalizar, eu trago duas decisões relevantes do Conselho Superior da Magistratura. A primeira estabelece que a arrematação cancela virtualmente as constrições anteriormente inscritas. Em outras palavras, o próprio juiz que decretou a arrematação poderia cancelar essas constrições. Elas poderiam até ser canceladas a mero requerimento do interessado, mas pode ser que ninguém peça para cancelar e ela fique lá. Isso também é algo que precisamos pensar. Se aquilo já não tem fundamento material, por que está dentro da matrícula? Mas existe essa decisão que fala que pode ser cancelado pelo próprio juiz da arrematação e pelo adquirente, o arrematante a seu requerimento. E a segunda decisão é a possibilidade de alienação do imóvel mesmo sem cancelamento das constrições depois de arrematado judicialmente. A Lei 8.212/1991, art. 53, dispõe que a penhora fiscal torna o bem indisponível. Em São Paulo, o entendimento era que se podia registrar quando se tratasse de ordem judicial, título judicial. Essa era a decisão, mas quando o arrematante fosse alienar para um terceiro tinha que cancelar a indisponibilidade. E agora veio a liberação, nesse caso também não é preciso. Como conclusão, acrescentaria apenas que a Lei 13.097/2015 reforçou a eficácia do sistema registral imobiliário, precisamos defendê-la. Não porque ela de alguma forma nos favorece, não porque ela reforça a eficácia do Registro de Imóveis, mas especialmente porque ela é uma medida de justiça para que os adquirentes possam adquirir a um custo menor, valorizando o próprio bem. O que eventualmente seria prejuízo acaba sendo um bônus para toda a sociedade. Nosso sonho é que a matrícula possa representar todas as informações que digam respeito ao imóvel. E é isso que nós devemos buscar.
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Regularização Fundiária 1 Urbana: MP / PLV 759/2016 Sílvio Eduardo Marques Figueiredo – Diretor do Departamento de Assuntos Fundiários Urbanos, na Secretaria Nacional de Acessibilidade e Programas Urbanos do Ministério das Cidades. Especialista em Planejamento Urbano pela PUC SP. Foi secretário executivo do Graprohab e do Programa Estadual de Regularização de Núcleos Habitacionais Cidade Legal.
A situação fundiária hoje no Brasil e a nova política nacional a ser implantada a partir de um novo marco legal.
U
m estudo feito pela Organização dos Estados Americanos (OEA), revela que entre 40% e 70% dos imóveis urbanos nas grandes cidades dos países em desenvolvimento são irregulares.
Hoje o Brasil tem mais de 50% de suas propriedades urbanas com algum tipo de irregularidade, o que 1
A MP 759 foi convertida na Lei nº 13.465, de 11 de julho de 2017.
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significa que cerca de 100 milhões de pessoas vivem em imóveis irregulares e estão privadas de algum tipo de equipamento urbano ou comunitário. Ao assumir a diretoria de Assuntos Fundiários, no Ministério das Cidades, entendemos que seria essencial uma revisão da legislação para o desenho de
Regularização fundiária – reflexões sobre as inovações legislativas
uma nova política nacional. Criamos, então, o grupo de trabalho Rumos da Política Nacional de Regularização Fundiária com o objetivo de ouvir as entidades que hoje estão na ponta da regularização para entender as dificuldades da regularização no país. Tivemos a honra de contar com a participação do IRIB, representado pelo vice-presidente Flauzilino Araújo dos Santos. Tivemos também a participação do doutor Marcelo Martins Berthe, desembargador em São Paulo, e doutor Antônio Carlos Alves Braga Júnior, ambos indicados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A partir daí passamos a discutir o que acontecia em cada um dos estados brasileiros com a preocupação de entender o país como um todo. Conseguimos desenhar uma nova legislação, um novo marco legal. A ideia sempre foi desburocratizar, simplificar, agilizar e destravar a regularização no país e, para isso, criar uma nova política alicerçada na articulação interfederativa. Isso é muito importante e serve de exemplo para as bases das políticas nacionais de habitação e de infraestrutura no país.
Nova política nacional de regularização fundiária: proposta Estamos desenvolvendo um sistema de informação georreferenciada e novas ferramentas para auxílio aos municípios. Firmamos um termo de cooperação técnica com as universidades federais – em especial as universidades federais do Ceará, da Paraíba, de Pernambuco e do Rio de Janeiro – visando criar uma plataforma amigável a ser distribuída aos municípios, para eles cadastrarem os núcleos urbanos irregulares, de forma que possamos conhecer melhor esses números e desenvolver um trabalho conjunto. O objetivo é capacitar os mais diversos atores da regularização no que diz respeito à nova legislação. Além dos técnicos municipais, podemos estudar com o IRIB uma forma de fazer a capacitação geral no município, alcançando universidades, estudantes, técnicos municipais, cartorários e registradores. Através de empresas contratadas, o Ministério das Cidades vai oferecer apoio técnico, jurídico e ad-
ministrativo aos municípios visando desenvolver os projetos de regularização desde o levantamento inicial até a titulação de cada um dos beneficiários. Hoje o país tem quase 80% de seus municípios com menos de 20 mil habitantes e enorme carência em infraestrutura técnica, jurídica e administrativa, então é muito difícil eles desenvolverem esse trabalho. Existe também a previsão de repasse de recursos para os estados e municípios mais estruturados, para que eles possam promover a regularização por conta própria.
Trabalho conjunto entre a Secretaria Nacional de Habitação e a Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental – secretarias nacionais do MCidades Um estudo feito pela Organização dos Estados Americanos (OEA), revela que entre 40% e 70% dos imóveis urbanos nas grandes cidades dos países em desenvolvimento são irregulares. Hoje o Brasil tem mais de 50% de suas propriedades urbanas com algum tipo de irregularidade, o que significa que cerca de 100 milhões de pessoas vivem em imóveis irregulares e estão privadas de algum tipo de equipamento urbano ou comunitário. Ao assumir a diretoria de Assuntos Fundiários, no Ministério das Cidades, entendemos que seria essencial uma revisão da legislação para o desenho de uma nova política nacional. Criamos, então, o grupo de trabalho Rumos da Política Nacional de Regularização Fundiária com o objetivo de ouvir as entidades que hoje estão na ponta da regularização para entender as dificuldades da regularização no país. Tivemos a honra de contar com a participação do IRIB, representado pelo vice-presidente Flauzilino Araújo dos Santos. Tivemos também a participação do doutor Marcelo Martins Berthe, desembargador em São Paulo, e doutor Antônio Carlos Alves Braga Júnior, ambos indicados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A partir daí passamos a discutir o que acontecia em cada um dos estados brasileiros com a preocupação de entender o
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PAINEL país como um todo. Conseguimos desenhar uma nova legislação, um novo marco legal. A ideia sempre foi desburocratizar, simplificar, agilizar e destravar a regularização no país e, para isso, criar uma nova política alicerçada na articulação interfederativa. Isso é muito importante e serve de exemplo para as bases das políticas nacionais de habitação e de infraestrutura no país.
Nova política nacional de regularização fundiária: proposta Estamos desenvolvendo um sistema de informação georreferenciada e novas ferramentas para auxílio aos municípios. Firmamos um termo de cooperação técnica com as universidades federais – em especial as universidades federais do Ceará, da Paraíba, de Pernambuco e do Rio de Janeiro – visando criar uma plataforma amigável a ser distribuída aos municípios, para eles cadastrarem os núcleos urbanos irregulares, de forma que possamos conhecer melhor esses números e desenvolver um trabalho conjunto. O objetivo é capacitar os mais diversos atores da regularização no que diz respeito à nova legislação. Além dos técnicos municipais, podemos estudar com o IRIB uma forma de fazer a capacitação geral no município, alcançando universidades, estudantes, técnicos municipais, cartorários e registradores. Através de empresas contratadas, o Ministério das Cidades vai oferecer apoio técnico, jurídico e administrativo aos municípios visando desenvolver os projetos de regularização desde o levantamento inicial até a titulação de cada um dos beneficiários. Hoje o país tem quase 80% de seus municípios com menos de 20 mil habitantes e enorme carência em infraestrutura técnica, jurídica e administrativa, então é muito difícil eles desenvolverem esse trabalho. Existe também a previsão de repasse de recursos para os estados e municípios mais estruturados, para que eles possam promover a regularização por conta própria.
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Trabalho conjunto entre a Secretaria Nacional de Habitação e a Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental – secretarias nacionais do MCidades O trabalho que vem se desenvolvendo em todas as ações, principalmente da Secretaria Nacional de Saneamento, é no sentido de que todo projeto de ampliação de rede de infraestrutura seja acompanhado da regularização e vice-versa. Onde pudermos e o município tiver condições, nós vamos levar a regularização. E a regularização já não vai ficar só na área documental, mas vai alcançar as conformidades urbanísticas e a partir daí entrar com obras para melhorar as condições de vida dessa população. A formação de parcerias técnicas é um trabalho que vem sendo desenvolvido entre os ministérios, principalmente Incra, SPU – Secretaria de Patrimônio da União, e a Serfal – Secretaria Extraordinária de Regularização da Amazônia Legal, ligada diretamente ao gabinete da Presidência da República, que faz a doação de áreas da União para os municípios, para que eles possam promover a regularização.
Revisão do marco legal: principais pontos da Reurb Entre os principais pontos da nova legislação, da Reurb, está a alteração de conceitos, como o de regularização. A antiga Lei 11.977/2009 previa que a regularização deveria acontecer em área urbana ou de expansão urbana criada por plano diretor ou legislação específica. Isso travou a regularização na Amazônia Legal, por exemplo, onde existem núcleos urbanos na mata que não poderiam ser regularizados porque a área está muito longe do centro urbano e também não era uma área de expansão urbana. Por sua vez, o Incra não tributa abaixo de 2 hectares. Imóveis abaixo de 20 mil metros não tinham tributação de ITR, muito menos de IPTU, porque a área
Regularização fundiária – reflexões sobre as inovações legislativas
não era considerada urbana ou de expansão urbana, ou seja, essa população está ali, mas não existe. A ideia foi alterar esse conceito. Hoje se regulariza qualquer núcleo que tenha destinação e finalidade urbana, não importa onde esteja localizado. Na regulamentação, o decreto vai deixar claro quais são os procedimentos que o município vai fazer. Após a regularização, ele deve efetuar o cadastramento e depois, por ato do Executivo Municipal, considerar aquele núcleo como urbano ou de expansão urbana. Outro conceito trazia uma série de problemas para diversas regiões do país. A legislação antiga falava em “assentamento irregular”. Hoje o conceito é de “núcleo urbano informal”. A definição de assentamento irregular era referente a um assentamento “não planejado” ou feito de forma irregular. Isso trouxe dificuldades para determinado Estado do Nordeste do país que fez uma regularização de 25 mil unidades habitacionais. Na verdade, eram conjuntos construídos pela Cohab local e que foram levados a registro. Segundo o cartório aquilo não era regularização fundiária, uma vez que a lei diz que assentamento irregular é aquele feito de forma não planejada. Um conjunto habitacional é planejado, portanto não se enquadra nessa definição de regularização. Por isso, hoje falamos em núcleo urbano informal. E mais. O assentamento pressupõe a regularização única e exclusivamente das unidades imobiliárias residenciais. E o comércio e serviços? E aquele que tem um barzinho embaixo e mora em cima? Era possível regularizar apenas a casa, mas o bar não. A ideia de núcleo envolve todo tipo de parcelamento, conjunto habitacional, condomínio residencial ou não residencial. Essa foi outra alteração que fizemos para ajudar a destravar a regularização.
Conceito da regularização Para que o município pudesse enquadrar um núcleo ou conjunto com interesse social, a legislação exigia: primeiro, que estivesse inserido em uma ZEIS; segundo, que tivesse cinco anos de posse mansa e pa-
cífica; terceiro, que atendesse os requisitos da usucapião urbana (art. 183, CF). Todas essas regras para dizer que aquela população era pobre e carente, como se por não estar numa ZEIS ela deixasse de ser carente e pobre. A situação socioeconômica daquela população é que comprova se ela é pobre e não o fato de estar numa ZEIS. A alteração da legislação estabelece que o interesse social é reconhecido por um ato do Executivo Municipal sem qualquer outra exigência. Gratuidade do registro. A legislação deixa claro quais são os atos de registro gratuitos. Há algumas novidades como direito real de laje, título de legitimação de posse, legitimação fundiária. Fundo de compensação. Está confirmado, mediante consultas pelo país inteiro, que, hoje, a maioria dos registradores tem faturamento abaixo da linha de subsistência. É impossível se impor uma gratuidade. Dependendo da região do país ficava muito difícil, a regularização morria na praia na hora de se levar a registro. A ideia foi criar um fundo nacional, que, por entendimentos no Senado e na Câmara, acabou transformado em fundo estadual. O decreto de regulamentação vai prever em quanto tempo o Estado terá que criar esse fundo, e também se discutiu muito de onde virá o dinheiro. O Ministro das Cidades, Bruno Araújo, de imediato se comprometeu em aportar recursos nesse fundo. Houve uma alteração na legislação federal do FNHIS – Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, que irá repassar dinheiro para esses fundos para que eles possam arcar com a gratuidade. Legitimação fundiária. Trata-se de uma figura nova que criamos. Os senhores já devem ter conhecimento. Legitimação de posse. Também é uma figura conhecida dos senhores, estava na legislação antiga, o que fizemos foi ampliar um pouco mais o conceito de legitimação. Ela só poderia ser aplicada em imóveis residenciais até 250 metros. O que fizemos foi ampliar para as outras modalidades da usucapião. Ou seja, a partir dessa nova legislação pode-se aplicar a legitimação de posse para imóveis com mais de 250 metros e com fins não residenciais. O tempo de posse – 10, 15 anos – vai variar
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PAINEL de acordo com a modalidade e tamanho. Ato único do registro. A ideia foi simplificar um pouco mais os procedimentos do registro. Algumas atribuições que eram do registro, como a notificação, passaram a ser do Poder Executivo Municipal. A ideia foi tentar agilizar esse processo. Direito real de laje. Também é uma figura nova. Fizemos alteração no Código Civil brasileiro para se incluir o direito real de laje. Até hoje não havia como se regularizar esse tipo de unidade imobiliária, que é realidade no nosso país. Arrecadação de imóveis. Está no Código Civil desde 2002. O que fizemos? Trazer essa figura nova como ferramenta para a regularização fundiária. O Código Civil não previa o tempo de abandono, dispondo apenas que após arrecadação, decorridos três anos, a titularidade é alterada. O que fizemos foi estabelecer um tempo, cinco anos de abandono. O decreto regulamentador vem detalhando como o município deve proceder, quais são as etapas que deve cumprir para arrecadar esse imóvel e, ao final, incorporar às áreas públicas. Condomínio de lotes. Isso vem sendo discutido no PL 3.057, que está na Câmara. Há vinte anos se arrasta a discussão sobre a criação ou não do condomínio de lotes. E é uma realidade do país. Eu diria que Brasília tem, hoje, mais de 80% dessas propriedades totalmente irregulares. Tivemos que criar uma nova ferramenta para poder usar na regularização, mas isso virou uma nova mercadoria para a área imobiliária do país, porque a partir de agora vai se admitir aprovar condomínio de lotes. Condomínio urbano simples. O pai tem uma casa e constrói, no mesmo terreno, uma casinha para o filho, outra para a filha. Como individualizar? A ideia foi criar um condomínio urbano simples, um procedimento simplificado, mas que possibilite a titulação desses imóveis individualizados. Loteamento de acesso controlado. É aquele loteamento fechado que nada mais é do que um parcelamento aprovado pela Lei 6.766/1979. É feita uma concessão de uso das áreas públicas, em caráter precário,
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para uma associação de moradores. A concessão é onerosa e essa associação passa a cuidar das áreas públicas. A grande maioria dos municípios tem legislação própria autorizando o fechamento desses loteamentos ou o acesso controlado. No entanto, havia uma grande discussão em todo o país questionando a competência do município para legislar porque não havia essa previsão na legislação federal. Para resolver essa questão incluímos na legislação federal essa figura que vai permitir novos parcelamentos, loteamentos com acesso controlado, como também vai permitir regularizar os loteamentos existentes. O que compete aos municípios? Primeiro, classificar a regularização, se interesse social ou interesse específico, por ato, processar, analisar e aprovar os projetos de regularização, notificar os proprietários, loteadores, incorporadores, terceiros e interessados para que, querendo, apresentem impugnação. A ideia foi tentar simplificar um pouco mais. A legislação prevê que ao se levar qualquer empreendimento a registro, uma vez não cumprido esse ato pelo Executivo Municipal, o registrador irá executar aquele procedimento anterior, então existe essa previsão. Outro problema: o município contratava levantamento topográfico, socioeconômico, gastava dinheiro para fazer a regularização de um bairro inteiro, caminhava com isso durante dois anos, levava a registro. Ao final, no ato do registro, quando o registrador publicava e fazia as notificações havia uma impugnação e a questão acabava sendo discutida em juízo. Todo aquele dinheiro investido na regularização ia por água abaixo. Então, ao iniciar o processo de regularização, um dos primeiros atos do município vai ser a pesquisa junto aos cartórios para identificar os titulares de domínio e fazer a notificação. Se houver alguma impugnação, ela acontece antes que o município gaste tempo e dinheiro. Hoje qualquer beneficiário pode requerer a regularização, não somente a aprovação do projeto, como também os atos de registro. Aí entra no processamento administrativo, elaboração dos projetos, análise de saneamento, aprovação do projeto de regularização, expedição da certidão de regularização. Isso é uma
Regularização fundiária – reflexões sobre as inovações legislativas
novidade, a CRF e o registro da CRF. Ficou claro na lei o que o projeto de regularização deverá conter, no mínimo: a planta e o levantamento planialtimétrico. A planta do perímetro mostrando as transcrições ou matrículas atingidas por essa regularização. Projeto urbanístico, estudo técnico para situação de risco, se for o caso. Estudo técnico ambiental, cronograma físico e financeiro, isso é novidade. Hoje toda e qualquer regularização, quando for a registro, deverá ser acompanhada de cronograma físico e financeiro e de um termo de compromisso de execução das obras de infraestrutura e desconformidades que forem apontadas durante o desenvolvimento do projeto de regularização. Na antiga legislação não havia essa obrigatoriedade dos municípios de implantação de guia, sarjeta, drenagem, rede de água e esgoto. A nova legislação prevê essa obrigatoriedade. O cronograma físico e financeiro fica a cargo do município, que, obrigatoriamente, vai fazer esse cronograma e assinar termo de compromisso que será levado a registro. Infraestrutura essencial. Outra definição que tivemos que fazer. A Lei 6.766 tratava da infraestrutura básica: guia, sarjeta, iluminação pública. Na regularização não podemos exigir que se faça guia e sarjeta em assentamento no interior do Acre, Roraima, no interior da Amazônia. Por quê? Porque na cidade inteira não há guia e sarjeta. Como obrigar, para a regularização de um determinado núcleo, que se coloque infraestrutura que não existe na cidade? É preciso dar alguma solução para água potável, para esgoto sanitário, rede de distribuição de energia, sistema de drenagem quando necessário e outros equipamentos que os municípios vão definir em função de sua localização, características e peculiaridades regionais. Essa é a nova definição que está na legislação. Certidão de regularização fundiária – CRF. O documento expedido pelo município quando da aprovação da regularização é constituído de: projeto de regularização fundiária aprovado; cronograma físico de implantação de infraestrutura essencial e compensações urbanísticas e ambientais; termo de compromisso relativo a execução do cronograma; no caso de legitimação fundiária e legitimação de posse, acompanha
a relação dos beneficiários com a devida qualificação e os direitos reais que lhes foram conferidos. Câmara de prevenção e resolução de conflitos. A legislação prevê que os municípios poderão criar câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos. A composição e o funcionamento das câmaras serão definidos por ato do Executivo Municipal. Essa legislação remete muita regulamentação para os municípios, mas em nenhum momento estabelece que o município deverá normatizar através de lei, fala sempre em ato do Executivo Municipal, ou seja, um decreto, uma portaria. A ideia foi desburocratizar e agilizar o procedimento. Reurb em áreas públicas federais. Essa é uma grande novidade e aí entra a nossa parceria com a Secretaria de Patrimônio da União, que prevê que todas as autarquias e entidades da União, para fins de Reurb, irão doar aos municípios as áreas ocupadas. A ideia é que todas as áreas da União ocupadas por população de baixa renda, ou não, sejam repassadas ao município mediante doação, para que o município faça a regularização de interesse social ou específico. Alienação de bem público na Reurb. Alteração de grande impacto é a previsão expressa de dispensa de desafetação, autorização legislativa, avaliação prévia e licitação para alienação de unidades imobiliárias provenientes da Reurb executada sobre área pública. Alienação de imóvel público na Reurb. A legislação prevê a alienação de unidade imobiliária pela administração pública diretamente aos seus ocupantes, dispensados os procedimentos exigidos pela Lei 8.666/1993. Se for de interesse social, ela pode ser doada. Se for de interesse específico, obrigatoriamente, ela será vendida diretamente àquele ocupante a justo preço. Essa é a novidade da legislação, todas as áreas ocupadas para fins de regularização poderão ser alienadas diretamente ao ocupante nessas duas formas.
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PAINEL
Novas ferramentas de regularização fundiária 1 urbana à luz da MP 759/2016 Rodrigo Numeriano Dubourcq Dantas – Consultor Jurídico. Chefe da Consultoria Jurídica do Ministério das Cidades
Estima-se que 100 milhões de pessoas habitam unidades imobiliárias irregulares no Brasil. Agora o país passa a dispor de novas ferramentas de regularização fundiária urbana. O objetivo da MP 759 foi aperfeiçoar instrumentos existentes e criar outros como o direito real de laje, o condomínio urbano simples, a arrecadação de imóveis abandonados e o procedimento consensual.
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Regularização fundiária – reflexões sobre as inovações legislativas
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ntes de falar propriamente da regularização fundiária à luz da Medida Provisória 759 é interessante destacar que até muito recentemente a política nacional de habitação estava voltada à correção do déficit habitacional quantitativo. Esse é o déficit preponderantemente contemplado pelo programa Minha Casa, Minha Vida, que é uma política nacional de construção de unidades imobiliárias novas. No entanto, o governo federal percebeu a necessidade de corrigir também a precariedade habitacional, porque muitas vezes o cidadão não precisa de uma unidade imobiliária nova, ou sequer deseja se mudar do seu local de origem. Criamos, então, um programa pioneiro no país chamado Cartão Reforma. Trata-se de uma política nacional de subsídio, por meio da qual os municípios identificarão famílias de baixa renda e farão repasse de recursos para que elas possam realizar pequenas reformas em seus imóveis. Uma vez alcançado o problema do déficit habitacional quantitativo, e já iniciado um esforço do governo federal de correção do déficit habitacional qualitativo, nós mapeamos, com auxílio da Fundação João Pinheiro, um índice de precariedade habitacional no país, e assim pretendemos alcançá-lo. Faltava abranger um terceiro pilar: da segurança
1
jurídica do direito social da moradia digna. A política habitacional constitui um tripé, de quantidade, qualidade, e segurança jurídica de moradia. O tamanho da irregularidade fundiária do Brasil dá ensejo a toda uma gama de conflitos de direito civil. Esses imóveis informais não podem ser transferidos a herdeiros, eles são negociados à margem da economia formal, não são levados a registro. Dentre tantos outros problemas, basta se pensar que, se o vendedor cair em estado de insolvência, aquele imóvel não escriturado no nome do comprador, será levado em garantia de seus credores, em prejuízo ao adquirente. Nesta exposição eu vou selecionar algumas ferramentas que merecem destaque nessa nossa proposta. Desde 2009, havia no ordenamento jurídico brasileiro um capítulo específico tratando de regularização fundiária urbana. O que procuramos fazer na Medida Provisória 759, e espero que tenhamos êxito, foi aperfeiçoar instrumentos já existentes e criar outros. Em especial, eu vou destacar quatro pontos: o direito real de laje; o condomínio urbano simples; a arrecadação de imóveis abandonados; e o procedimento consensual em que se pauta hoje o novo modelo de regularização fundiária urbana.
A MP 759 foi convertida na Lei nº 13.465, de 11 de julho de 2017.
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PAINEL O esforço para tornar a regularização fundiária urbana factível Nós tratamos de um conceito funcional de área urbana a ser regularizada. Isso é muito importante porque havia dúvida, no modelo de 2009, sobre o que podia ou não ser objeto de regularização fundiária. Área urbana seria aquela que atende aos requisitos do Código Tributário Nacional? Dentre esses requisitos, ilustrativamente, está a presença de meio-fio. Em centros de cidades situadas no interior do país, muitas ruas sequer têm meio-fio. Será que não seriam áreas urbanas, sendo que não se destinam à agricultu-
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ra ou pecuária? A ideia, então, foi trazer o conceito urbanístico, um conceito funcional de propriedade, dando aos Municípios a discricionariedade de dizer se determinada área é ou não urbana. Isso representa um grande avanço. A partir da medida provisória, áreas formalmente registradas como rurais poderão ser objeto da Reurb, o que antes era um grande desafio de burocracia. No modelo de 2009, antes de iniciar o procedimento de regularização fundiária, era necessário que o interessado desafetasse a área junto ao Incra, eventualmente desafetasse aquela área junto ao CAR – Cadastro Ambiental
Regularização fundiária – reflexões sobre as inovações legislativas
Rural, mantido junto ao Ministério do Meio Ambiente, e fizesse comunicações à Receita Federal do Brasil, para suspensão da cobrança de ITR. Hoje, nada disso é determinante para que se inicie o procedimento de regularização fundiária. Uma vez finalizado o procedimento nos novos moldes propostos, o registrador, ao proceder ao registro, fará essas comunicações, o que certamente se traduz em esforço de racionalização de procedimento e ganho de eficiência. A Reurb contempla duas modalidades. Há uma modalidade de regularização fundiária urbana de interesse social e outra, de regularização fundiária urbana
de interesse específico. As diferenças entre elas são muito simples. Pautam-se em duas questões apenas. Hoje, é muito mais fácil identificar quais são os beneficiários, porque se utilizou aqui um conceito puro de renda. Aqueles de baixa renda são beneficiários da regularização fundiária da Reurb de interesse social. Por outro lado, aqueles que não forem considerados de baixa renda, em ato expedido pelo Poder Executivo Municipal, precisarão arcar com os custos de implementação da regularização fundiária. Isso certamente vai reduzir muito o número de conflitos acerca da repartição de responsabilidades envolvendo a Reurb, bem assim o número de conflitos acerca de quem seriam os benefi-
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PAINEL ciários da regularização fundiária urbana.
fundiária no país.
Nesse particular, eu observo que estamos diante de uma política nacional que vai muito além da simples concessão de títulos de propriedade. A regularização fundiária, nos moldes aqui propostos, contempla uma série de instrumentos urbanísticos, de medidas de infraestrutura e, eventualmente, de medidas ambientais, de compensação, correção ou administração de riscos.
Direito real de laje: o direito civil curva-se à realidade brasileira
A nova regularização fundiária urbana traduz um grande esforço do governo federal de reurbanizar o Brasil. A sigla foi muito feliz, a meu ver, porque Reurb parece uma abreviação do verbo reurbanizar. Vamos torcer para que a implementação dessa política pública alcance uma esfera muito mais holística do que a simples titulação dos ocupantes desses núcleos urbanos informais, a serem regularizados. É importante dizer que a identificação jurídica desses núcleos urbanos informais vai transformá-los em centros de atração de investimento público de infraestrutura. Hoje, por mais que uma região de favela, por exemplo, necessite de obras de infraestrutura de saneamento ou de mobilidade urbana, o Governo Federal tem dificuldades para repassar recursos. Isso porque se trata de uma realidade juridicamente inexistente.
O direito real de laje, hoje, está inserido formalmente no rol de direitos reais do art. 1.276 do Código Civil de 2002. Quando a medida provisória foi publicada recebi telefonemas de pessoas que consideraram que o direito civil brasileiro já experimentou dias mais nobres. “Vai colocar laje no rol de direitos reais do Código Civil?” Talvez fosse mesmo o momento de curvar o direito civil à realidade brasileira, porque laje é algo que está em qualquer cidade do País. O Direito precisava acomodar isso de alguma forma, com vistas à realização da segurança jurídica. E me parece que esse é um instrumento bastante adequado. Por meio do direito real de laje, que teve sua redação bastante aprimorada no projeto de conversão ontem votado no Senado, permite-se que o titular de uma construção-base ceda a superfície superior ou inferior daquela construção para que um terceiro ali mantenha uma unidade imobiliária autônoma.
Para contornar essa dificuldade nos moldes aqui propostos, nós permitimos, a uma, que o procedimento de regularização fundiária seja concluído; a duas, que essas medidas de infraestrutura, indicadas no projeto de regularização fundiária aprovado, sejam implementadas posteriormente à conclusão do procedimento administrativo correspondente.
Isso é muito interessante. Por que não aprimorar o direito de superfície para contemplar a laje? Além da resposta social que, a meu ver, o instituto traz, nós quisemos aqui ser rigorosos, tecnicamente. É que a doutrina, em larga medida, tem o direito de superfície como um direito datado. Muitos ordenamentos estrangeiros falam em 100 anos como prazo máximo. Com a laje não é assim; ela tem a condição de perpetuidade. Constitui uma unidade imobiliária autônoma que um particular vai ter sobre um solo artificial.
Uma vez concluído esse procedimento administrativo de regularização fundiária urbana, com delimitação do que seja o núcleo urbano informal em vias de regularização, o prefeito do Município em que situado poderá ir ao Ministério das Cidades contratar, com as linhas de crédito existentes, dentre outras, uma obra de saneamento, de pavimentação, de contenção de encostas. Percebam que o nosso esforço aqui é de desburocratização, de simplificação. Tudo para que realmente se torne factível implementar a regularização
Acredito que houve grande revolução no conceito do direito real de propriedade. Se o direito real de propriedade até ontem estava vinculado à titularidade de uma fração de solo natural, hoje, alguém pode gozar, usar e dispor de uma unidade imobiliária registrada em cartório que está totalmente desvinculada de solo natural. É solo artificial, ou seja, laje. E para que se conferisse eficácia a esse instrumento novo, que certamente será utilizado com acerto na regularização de favelas, por exemplo, nós nos preocupa-
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Regularização fundiária – reflexões sobre as inovações legislativas
mos com o aprimoramento do texto. A laje não se comunica com a construção-base e também não se comunica com fração de solo natural. A meu ver isso evita grandes problemas tributários que poderiam surgir à luz do art. 124 do CTN. Por exemplo, cobrança solidária de IPTU ao titular da construção-base e ao titular daquela laje sobreposta à sua construção. Uma vez que é considerada unidade imobiliária autônoma, essa laje pode ser passível de tributação individualizada, bem assim passível de penhora. Fizemos um ajuste no Código de Processo Civil justamente para permitir a possibilidade dessa penhora. E, à luz da redação antiga aprimorada, fomos tratando de diversas situações que surgiram. Qual o papel do Distrito Federal e dos Municípios ao tratar da laje? Cabe aos Municípios e ao Distrito Federal dispor de assuntos de interesse local. Então, as posturas urbanísticas, as posturas edilícias referentes à laje precisarão sim ser tratadas em âmbito local. O instrumento está posto no Código Civil para que dele se utilizem os entes federados. Se o Município entender que podem ser construídas quatro, cinco lajes sucessivas, assim será. Se entender pela existência de apenas uma laje, assim será. Tudo fica a depender da postura edilícia local. O texto antigo criava muitas dúvidas sobre a possibilidade de lajes sucessivas. Agora isso é possível, a critério do Município e desde que essas lajes sucessivas não coloquem em risco a vida das famílias das construções-base. A meu ver, para fins de regularização das lajes, a prefeitura precisará atestar que a construção-base suporta aquela construção de cima e que a construção de cima não põe em risco a vida das pessoas que estão abaixo. Seria um desserviço entregar títulos para algo que pudesse ruir a qualquer momento. A laje também não enseja a instituição de um condomínio. Seria até bastante irrazoável que, para regularizar uma favela, por exemplo, fossem criadas convenções de condomínio a cada vez que se fosse regularizar uma laje.
E o que fazer, então, para regular responsabilidades sobre aquelas partes que servem a todo o edifício? Nesse sentido, nós nos valemos em grande medida do Código Civil português e identificamos no texto ontem aprovado duas situações. Quais são as partes que servem a todo o edifício? Não estamos falando em área comum para evitar confusão com condomínio. Essas partes são: paredes de sustentação, vigas, instalações elétricas, instalações hidráulicas. A doutrina portuguesa positivou esse conceito e também aqueles serviços que servem a todo o edifício. Nessas duas situações, o contrato que permite o reconhecimento jurídico da laje deve distribuir as responsabilidades entre os titulares da laje e da construção-base. Também, criamos um direito de preferência visando manter harmonia naquela localidade. As pessoas vão habitar unidades imobiliárias sobrepostas. É interessante que exista boa convivência entre elas. Em razão disso, criamos um direito de preferência. Se a laje for alienada, há um direito de preferência a ser exercido por aquele que ocupa a construção-base, o que também é regra no caso de lajes sucessivas. Aquele que tem o direito de preferência deverá exercê-lo no prazo de 30 dias. Se a venda não lhe for comunicada, ele poderá, no prazo decadencial de 180 dias a contar da alienação, fazer o depósito do valor pago pela laje e ficar com sua titularidade. Sobre o registro. Uma vez que essa laje será registrada como unidade imobiliária autônoma consideramos muito importante averbar, na construção-base, a existência da laje. E também, nas lajes sucessivas, a existência de lajes preexistentes, sempre com remissão recíproca. Ainda, verificamos que esse direito real de laje pode ser extinto. De que forma isso ocorre? Quando a construção-base vai à ruína e ela não é reconstruída em até cinco anos, salvo na hipótese em que a laje está no subsolo e não é afetada com a ruína da construção-base.
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PAINEL Condomínio urbano simples: “puxadinho” pode ser individualizado e registrado
de 1988 e no Código Civil de 2002, havia grande insegurança jurídica quanto aos requisitos caracterizadores do abandono.
Se a laje resolve o problema de sobreposição de moradias em uma perspectiva vertical, faltava, no texto original da MP 759, resolver o problema da sobreposição ou solidariedade de moradias em uma perspectiva horizontal – o famoso puxadinho, agora condomínio urbano simples. É aquele caso do pai que tem um terreno e permite que a filha recém-casada construa uma unidade nos fundos.
No nosso texto aperfeiçoado, foi necessário, logo, esclarecer que esse abandono é presumido quando são cessados os atos de posse sobre um imóvel e o particular deixa de adimplir os ônus fiscais sobre ele incidentes por cinco anos.2
Nessas situações, desde que as unidades imobiliárias tenham acesso aos logradouros públicos, elas poderão ser individualizadas e registradas, sendo desnecessária a convenção de condomínio. Basta um simples instrumento particular entre aqueles que vão ali coabitar para deixar claras as responsabilidades assumidas por cada um. Essas unidades, ou cômodos, também terão matrículas individualizadas e, assim, poderão ser alienadas e gravadas livremente. Nesse caso, o registro deverá fazer referência, em percentual, às áreas ocupadas em comum por essas unidades e também à fração de solo correspondente a cada uma. Esse é outro instrumento aperfeiçoado na medida provisória que a meu ver será de grande valia.
Arrecadação de imóveis urbanos abandonados Eu tive a oportunidade de conversar com muitos prefeitos. O Ministério das Cidades é um ministério de prefeitos. Nós os recebemos todos os dias e muitos diziam que tinham medo de utilizar o instituto da arrecadação de imóveis urbanos abandonados, alegando que, ainda que ele estivesse previsto na Constituição
Nessa situação, instaurado um processo administrativo com direito a contraditório, o Município deverá notificar o titular do imóvel que será reputado abandonado, para que ele se manifeste em trinta dias. Se ele não se manifestar, o silêncio reforça a presunção de abandono. O Município, uma vez investido na posse do imóvel, poderá fazer investimentos. O que acontecia é que muitas vezes o Município investia dinheiro no imóvel e, naquele prazo de três anos do Código Civil, o proprietário aparecia e retomava o bem, pagando os ônus fiscais. Agora o que fica claro é que se o Município fez qualquer investimento quando investido na posse desse imóvel urbano tido por abandonado, o particular só irá retomá-lo mediante o ressarcimento de todos os custos havidos.3 Também havia dúvidas sobre a destinação desses imóveis. Antes ninguém sabia ao certo o que fazer com um imóvel urbano abandonado e arrecadado. Agora esses imóveis urbanos arrecadados deverão ser preponderantemente utilizados para fins de habitação social. Há muito interesse de instituições internacionais, no sentido de custear obras de revitalização desses imóveis urbanos abandonados e arrecadados pelos Municípios para transformá-los em alternativas de habitação popular, muitas vezes até com a cobrança de aluguel social.
Art. 64 da Lei nº 13.465, de 11 de julho de 2017 (Conversão da Medida Provisória nº 759, de 2016): Art. 64. Os imóveis urbanos privados abandonados cujos proprietários não possuam a intenção de conservá-los em seu patrimônio ficam sujeitos à arrecadação pelo Município ou pelo Distrito Federal na condição de bem vago. § 1º A intenção referida no caput deste artigo será presumida quando o proprietário, cessados os atos de posse sobre o imóvel, não adimplir os ônus fiscais instituídos sobre a propriedade predial e territorial urbana, por cinco anos. 2
3
Parágrafo 5º do art. 64 da Lei nº 13.465/2017 (Conversão da Medida Provisória nº 759, de 2016).
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Regularização fundiária – reflexões sobre as inovações legislativas
Por fim, eu queria registrar um grande avanço, a meu ver, que é o novo procedimento da regularização fundiária. O tema da regularização fundiária urbana foi retirado do Poder Judiciário. E o fizemos adaptando a lei de autocomposição do poder público, que vinha na esteira do Código de Processo Civil de 2015.
“
PARA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DE ÁREA DO PODER PÚBLICO, O BEM NÃO PRECISA MAIS SER DESAFETADO. AS PREFEITURAS DE PEQUENAS CIDADES DO INTERIOR TERIAM DIFICULDADES EM VOTAR, EM SUAS CÂMARAS DE VEREADORES, ESSAS DESAFETAÇÕES EM CURTO PRAZO. ENTÃO, PARA FINS DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA, A TRAVA DEIXOU DE EXISTIR.
O professor Luiz Wambier, que é um renomado processualista, nos auxiliou muito e sempre faço a honra que ele merece para tratar desse procedimento. Houve uma flexibilização do art. 17, da Lei 8.666/1993. Para a regularização fundiária de uma área de titularidade do Poder Público, aquele bem não precisa mais ser desafetado. As prefeituras de pequenas cidades do interior teriam dificuldades em votar, em suas câmaras de vereadores, essas desafetações em curto prazo. Então, para fins de regularização fundiária urbana, a trava deixou de existir.
Mais ainda, ampliamos o rol de legitimados a requerer a regularização fundiária. Hoje a Defensoria Pública, o Ministério Público, mesmo os loteadores, incorporadores irregulares, poderão requerer a regularização da área. O procedimento extrajudicial ora tratado depende de um cenário de consensualidade entre a Administração e o particular. E é muito importante que assim seja, porque nesse momento estão em conflito duas garantias constitucionais. De um lado, a garantia do direito de propriedade do titular original de domínio sobre um dado imóvel urbano. De outro, a realização do direito social à moradia digna. Como equalizar essas duas garantias em conflito? O consenso é a melhor solução. De outro modo, resta a opção de recorrer à guarida do Poder Judiciário.
”
O interessante é que também haverá um contraditório em âmbito administrativo. Nele, o silêncio se presume como aceitação do titular originário do domínio com relação à regularização fundiária. Também houve ganho de eficiência no âmbito registral. É que a CRF, juntamente com o projeto de regularização fundiária aprovado, poderão ser levados a registro em ato único. Não existe, até o momento, um estudo do governo federal que tenha identificado quantas pessoas habitam unidades imobiliárias irregulares no nosso país. Estima-se que o número seja próximo de 100 milhões.
Só em 2013, o Ministério das Cidades recebeu cerca de 1.400 pedidos de auxílio em procedimentos de regularização fundiária, o que totaliza cerca de 2,5 milhões de domicílios e de mais de 8 milhões de pessoas beneficiadas. Em 2016, já na nossa gestão, o Ministério identificou 208 demandas para quase 1 milhão de domicílios, atendendo a cerca de 3 milhões de beneficiários. Portanto, em dois anos, já são mais de 11 milhões de pessoas beneficiárias de pedidos dirigidos apenas ao Ministério das Cidades. O número dos 100 milhões nos parece cada vez mais claro. Estou certo de que agora, com a Medida Provisória 759, felizmente aprovada no Senado, o Brasil passa a dispor de novas ferramentas de regularização fundiária urbana e dá um novo passo em direção à realização da segurança jurídica do direto social à moradia digna.
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PAINEL
Regularização Fundiária Urbana: os reflexos e impactos da MP 759/2016 Renato Guilherme Góes – Coordenador Institucional do Programa de Regularização Fundiária do Estado de São Paulo. Membro do GT Rumos da Política Nacional de Regularização Fundiária do MCidades
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Temos que buscar a melhor hermenêutica para tentar resolver um problema de metade do país. Não podemos nos apegar ao texto frio da lei, mas devemos entender que as pessoas necessitam de soluções que estão nas nossas mãos.
”
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Regularização fundiária – reflexões sobre as inovações legislativas
O
primeiro impacto da Medida Provisória nº 759, ou do Projeto de Lei de Conversão, PLC nº 12/2017, aprovado ontem, é trazer o assunto regularização fundiária para a pauta do momento, para a discussão dos operadores do direito.
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O ESP LEVOU A REGISTRO 200 MIL UNIDADES IMOBILIÁRIAS NOS ÚLTIMOS 10 ANOS. FORAM ABERTAS MAIS DE 200 MIL MATRÍCULAS DE UNIDADES IMOBILIÁRIAS, MAS APENAS 10% FORAM TRANSMITIDAS. A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA FOI FINALIZADA PARA APENAS 20 MIL MORADORES.
Eu participei do processo legislativo de edição dessa medida provisória junto ao Ministério das Cidades, fazendo parte do grupo de trabalho criado pelo ministro Bruno Araújo. Nós tivemos a oportunidade de discutir o assunto com vários Estados da federação e constatamos que a regularização fundiária não pegou no Brasil. Apesar de uma legislação razoável que trouxe diversos instrumentos jurídicos, em 2009, como a MP 459 convertida na Lei 11.977, a regularização fundiária ficou muito aquém da necessidade. Metade dos domicílios urbanos estão em irregularidade fundiária. São 100 milhões de pessoas com algum tipo de limitação derivada da irregularidade fundiária. Os números levantados nos Estados são assustadores. O Distrito Federal sequer fazia uso da Lei 11.977/2009, mas de legislação própria e, pelos números indicados, praticamente não entregou título de propriedade a ninguém.
O Estado de São Paulo levou a registro 200 mil unidades imobiliárias nos últimos dez anos. Foram abertas mais de 200 mil matrículas de unidades imobiliárias, mas apenas 10% delas foram efetivamente transmitidas a seus reais ocupantes e proprietários. A regularização fundiária foi finalizada para apenas 20 mil moradores. Dos 645 municípios do Estado, 474 são conveniados. Desses, existe demanda superior a 2,5 milhões de lotes irregulares. São 10 milhões de pessoas, um quarto da população residindo em algum tipo de loteamento, parcelamento do solo irregular. E apenas 20 mil foram
tituladas, não obstante o empenho do governo do Estado. Mais de 300 milhões de reais foram investidos pelo Estado, fora os valores destinados pelos municípios e apenas 20 mil moradores conseguiram sua titulação. Isso demonstra que a legislação necessitava de adequações.
O Estado de Santa Catarina também não usava a Lei 11.977/2009. Lá se aplica uma resolução do Tribunal de Justiça com procedimento judicial, petição inicial, manifestação, audiência, testemunha, promotoria e sentença. Regularização fundiária em Santa Catarina é feita com sentença apesar da Lei 11.977.
”
No Estado de Goiás apenas uma demarcação urbanística foi feita – aliás, está em trânsito. Isso demonstra que a regularização fundiária não pegou no país, apesar de todo o empenho e inovação da Lei 11.977, e que havia a necessidade da edição de uma nova legislação. O ministro Bruno Araújo comprou a ideia e ontem a medida provisória foi convertida em lei, aguardando apenas a sanção do presidente. E esse é o principal impacto da medida provisória. Apesar de todos os instrumentos jurídicos, o principal impacto é trazer o assunto para discussão, porque não podemos falar em metade do Brasil vivendo em alguma irregularidade fundiária. Algum problema tem, e esse problema tem que ser sanado pelos operadores do direito –gestores públicos, oficiais de registro de imóveis, tabeliães de notas ou representantes de Município, Estado ou União. Nós, operadores do direito, temos o dever de melhor interpretar a legislação em busca de uma regularização fundiária mais efetiva. Outro impacto da medida provisória é a eficácia de leis estaduais e municipais, além de provimentos editados pelas corregedorias do Poder Judiciário. O art. 24 da Constituição é claro. Há competência legis-
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PAINEL lativa concorrente entre União e Estados para regrar alguns assuntos como, por exemplo, direito urbanístico, proteção ao meio-ambiente e combate à poluição. A União tratou desses assuntos na MP 759. Assim, toda e qualquer legislação feita pelo Estado que não se coadune com a MP 759 tem sua eficácia suspensa nos termos do art. 24, § 4º da Constituição da República.
“
INTERESSANTE OBSERVAR UMA PREVISÃO PREVISTA NA MEDIDA PROVISÓRIA – ART. 35, PARÁGRAFO ÚNICO – QUE DISPÕE QUE CADA NÚCLEO TEM PARÂMETROS ESPECÍFICOS PARA QUESTÕES URBANÍSTICAS E AMBIENTAIS. ESSE PRINCÍPIO TRAZIDO NA MP 759 DEMONSTRA QUE O CAMINHO CORRETO NÃO É A EDIÇÃO DE UMA LEI GERAL DO MUNICÍPIO (...).
Os problemas dos operadores do direito e gestores da regularização fundiária não se encerram com a edição da medida provisória, mas sim com a sua conversão em lei. Precisamos nos debruçar sobre o texto de lei, sobre as legislações vigentes em nossos Estados, e tentar fazer uma hermenêutica harmoniosa, buscando a máxima efetividade da regularização em nosso país.
Os provimentos deverão ser revistos. No Estado de São Paulo, eu provoquei a Corregedoria Geral da Justiça, na condição de coordenador do programa Cidade Legal, para que se iniciasse um grande debate junto aos Registros de Imóveis e ao Poder Judiciário correcional, de forma a se verificar a necessidade de um novo provimento paulista para regrar nos termos da medida provisória. Acho que isso deve ser levado pelos senhores registradores aos seus Estados. Provoquem as suas corregedorias. O IRIB pode provocar a Corregedoria Nacional e as associações de classe estaduais devem provocar as corregedorias locais. Não esperem as prenotações das regularizações fundiárias nas serventias. Não esperem procedimentos de dúvida, porque eles são demorados. Vamos provocar as máximas autoridades para que a hermenêutica saia o quanto antes.
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Município é o agente promotor da regularização fundiária
Pela medida provisória, outro ponto que me chama atenção é a competência municipal e a competência estadual. Ficou muito mais claro, até porque a Lei 11.977/2009 já previa essa competência do Município, que tem o total poder para gerir a regularização fundiária. Podemos até interpretar que ele é o único agente promotor da regularização fundiária. A lei anterior dava um rol de agentes promotores. Essa medida provisória dá um rol de agentes requerentes da regularização fundiária, ampliando ou deixando mais transparentes as atribuições previstas na Constituição e na Lei 11.977, e agora deixadas claras na MP 759.
”
Isso não afasta a competência do Estado, que continua como órgão subsidiário. Ou seja, o Município – não detendo competência ambiental e corpo técnico capacitado nos termos da medida provisória – se socorrerá do Estado. No caso de São Paulo, esse é o papel do programa Cidade Legal. Em sua grande maioria, os 474 municípios do Estado de São Paulo se socorrem do corpo técnico do Estado para buscar solução para suas regularizações fundiárias. Interessante observar uma previsão prevista na medida provisória – art. 35, parágrafo único – que dispõe que cada núcleo tem parâmetros específicos para
Regularização fundiária – reflexões sobre as inovações legislativas
questões urbanísticas e ambientais. Esse princípio trazido na MP 759 demonstra que o caminho correto não é a edição de uma lei geral do Município, padronizando requisitos urbanísticos e ambientais, assim como não é interessante uma lei estadual padronizando requisitos urbanísticos e ambientais para regularização fundiária no Estado. Ou seja, cada núcleo é uma situação fática implantada, cada núcleo exige uma solução a ser dada. É interessante que o município legisle? Sim, e que deixe transparente, debata com a sociedade, debata com o poder legislativo como promover a regularização, mas que essa lei não inviabilize a regularização fundiária dos seus núcleos, porque cada um deles terá uma solução específica e particular.
Reurb Social e Reurb Específica Também trago aqui a questão da Reurb-S e Reurb-E – Reurb Social e Reurb Específica. A meu ver não deveria existir essa cisão, Reurb-S e Reurb-E. Acima da condição socioeconômica de quem reside em núcleo informal há o interesse público maior de caráter ambiental, urbanístico, jurídico e social, para sanar o problema instalado de forma ilegal. A meu ver, é dever do poder público, seja federal, estadual ou municipal, enfrentar e solucionar as questões e regularizar o seu núcleo. A regularização fundiária deveria ser obrigatória e não cindida em social ou específica.
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PAINEL A MP 759, no art. 13, § 5º, traz outro elemento que eu reputo o princípio norteador da postura estadual, municipal e registral. Ela estabelece que a diferenciação entre social e específico tem motivos certos, descobrir quem paga a conta e permitir a isenção ou concessão de gratuidades. Esse parágrafo norteia a hermenêutica a ser feita pelo operador do direito. Ele estabelece que a regularização fundiária tem que ser classificada em social e específica? Sim. Mas qual a finalidade dessa classificação? Conceder gratuidade de ato registral e apresentar a fatura pela implantação das obras de infraestrutura necessárias.
“
NO MAIOR PROGRAMA HABITACIONAL BRASILEIRO, MCMV, O MORADOR PAGA. A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA NÃO TEM RAZÃO DE SER GRATUITA. NÓS TEMOS QUE CRIAR MECANISMOS, ACREDITO QUE ESSE FUNDO DE COMPENSAÇÃO É UM DELES, PARA QUE A REGULARIZAÇÃO SEJA CADA VEZ MAIS EFETIVA NO PAÍS.
A questão da legitimação de posse ficou mais complexa, porque antes era mero ato de atestação da posse naquele momento. O poder público atestava uma situação fática. Agora, nos termos da medida provisória, além de o poder público ter que atestar a posse, ele tem que atestar o tempo e a natureza dessa posse. Isso dificulta a atividade municipal que, em regra, é o ente federativo com capacidade para atestar a posse. Por sua vez, a legitimação fundiária trouxe também, no projeto final, requisitos para a legitimação fundiária social. E não trouxe requisitos para a legitimação fundiária de interesse específico. Isso também vai demandar discussão. Nós precisaremos superar essa limitação: legitimação fundiária de interesse social com requisitos e nenhum requisito para a concessão de título de propriedade nos bairros de interesse específico. O Projeto de Lei de Conversão, PLC 12/2017, proveniente da MP 759, busca o consenso, a composição. Tanto é que por três vezes ele cria fases de notificação. E obriga que pelo menos uma vez haja discussão com os titulares de direito real e com os confrontantes da-
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”
quele bairro objeto de regularização fundiária. A primeira fase relativa à notificação está na demarcação urbanística, a meu ver um instrumento desnecessário. O procedimento administrativo, fase municipal, também tem extenso detalhamento de uma fase de notificação. E o procedimento de registro da CRF ainda traz nova fase de notificações. Lembrando que compete ao município escolher se isso será feito por ele ou se será delegado ao oficial de Registro de Imóveis.
Como coordenador do programa eu sugeriria que os municípios delegassem aos oficiais de Registro de Imóveis. Ninguém conhece mais sobre matrícula, transcrição e sistema de notificação do que os oficiais de Registro de Imóveis.
Demarcação urbanística A demarcação urbanística foi mantida no PLC 12/2017. Ela foi revogada na MP 759. Desde o início eu fui um defensor da revogação da demarcação urbanística, um defensor da revogação do capítulo III da Lei 11.977, bem como do capítulo XII da Lei 6.015. Eu imaginava, e assim acredito que foi materializado, que a nova norma seria um grande estatuto nacional da regularização fundiária. O regramento da regularização fundiária deveria estar num único texto de lei, trazendo os pontos positivos para dentro desse estatuto único, o PLC 12/2017. Em especial, na demarcação urbanística. Por que eu defendo que a demarcação urbanística é um instrumento desnecessário? Porque há três artigos – art. 44, § 2º; art. 51; art. 46, § 1º – que já abarcam todas as situações que gerariam uma
Regularização fundiária – reflexões sobre as inovações legislativas
demarcação urbanística. E eles estão elencados no processo de registro da CRF. Ou seja, na fase final, na fase de registro da CRF, o registrador – se não feita a demarcação ou não feitas as notificações – tem mecanismos legais para superar os três óbices que gerariam a necessidade de uma demarcação urbanística. Quais seriam esses óbices? O primeiro deles é o loteamento implantado sobre mais de uma matrícula. Na CRF há um procedimento para o registrador superar isso. O segundo obstáculo que geraria demarcação urbanística é a inexistência de matrícula. No registro da CRF, a norma prevê a possibilidade de o registrador superar isso (art. 51). E a precariedade da descrição tabular, outra situação a gerar demarcação urbanística, também tem previsão legal no registro da CRF. Então, a meu ver, a demarcação urbanística não só é facultativa como desnecessária, apesar da previsão normativa.
Dispensa de desafetação, avaliação prévia, autorização legislativa e licitação Isso é um impacto na grande maioria dos municípios e dos Estados, mas precisa ser enfrentado. Os bairros estão consolidados, por isso eles são objeto de regularização. Aquela população está arraigada no local. As famílias estão em convívio social. A simples necessidade de uma lei de desafetação, ou mesmo uma avaliação prévia de autorização legislativa e licitação, previstas na Lei 8.666, em nada acrescentava à regularização fundiária. Por isso a lei, expressamente, afasta esse procedimento licitatório.
Criação obrigatória do fundo estadual de compensação Em um primeiro momento, a MP 759 autorizou o CNJ a criar um fundo para compensação. Nós, junto com todos os registradores, todo o grupo de trabalho e o Ministério das Cidades, nos convencemos de que
aquilo não seria suficiente para resolver o problema da compensação. Eu não sou a favor da gratuidade. Ninguém é obrigado a trabalhar de graça. Todos somos profissionais e somos remunerados, então não sou a favor da gratuidade. Não obstante, simplesmente extirpá-la do ordenamento jurídico não resolveria o problema, porque alguém teria que pagar a conta. Foi então que surgiu a ideia de usar o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social e criar uma obrigação para que os Estados criem os seus fundos para receber o dinheiro. Eu tenho provocado as autoridades para que o Estado de São Paulo saia na frente e apresente um projeto de fundo estadual de regularização fundiária. Nenhum programa federal, estadual ou municipal é gratuito. No maior programa habitacional brasileiro, Minha Casa, Minha Vida, o morador paga, ainda que com subsídio. A regularização fundiária não tem razão de ser gratuita. Nós temos que criar mecanismos, e eu acredito que esse fundo de compensação é um deles, para que a regularização fundiária seja cada vez mais efetiva no país.
Proibição de exigência de comprovação de pagamentos de tributos A MP 759 proíbe o oficial do Registro de Imóveis de exigir comprovação de pagamentos de tributos (art. 13, § 2º). O que é isso? A Lei 11.977 dispôs que o registro da regularização fundiária independe da comprovação do pagamento de tributos. Apesar da clareza desse instituto havia registradores que exigiam a comprovação do recolhimento de ITBI, por exemplo, para registrar um contrato particular. Em razão disso, a MP 759, art. 13, § 2º, deixa claro: § 2º Os atos de que trata este artigo independem da comprovação do pagamento de tributos ou penalidades tributárias, sendo vedado ao Oficial de Registro de Imóveis exigir a comprovação destes.
A crítica a esse dispositivo aponta que se está isentando um tributo municipal. A Constituição delega ao município regrar o ITBI e o IPTU, e ao Estado regrar
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PAINEL o ITCMD. A União não poderia isentar e não isentou. Ela apenas afastou a obrigação do Registro de Imóveis exigir a comprovação de recolhimento do tributo, o que não significa que ele não seja devido. Isso não quer dizer que a obrigação tributária deixou de existir, mas o problema vai ser resolvido entre o órgão responsável pela instituição do tributo e o eventual devedor. Não é mais uma atribuição do Registro de Imóveis.
Titulação de unidades desocupadas, porém comercializadas (art. 54) Outro avanço muito importante da MP 759. São poucos os bairros que estão 100% ocupados por construções, principalmente no interior do Brasil. A grande maioria dos loteamentos possui lotes vagos comercializados. Portanto, existe um adquirente que em tese respeitou mais a lei do que aquele que construiu. Apesar de ter comprado um imóvel em loteamento clandestino, ele não desrespeitou e não construiu, e esse cidadão estava sendo penalizado porque toda a legislação focava em quem fez uma construção e não naquele que comprou e não construiu. Para superar isso, o PLC 12/2017 trouxe a possibilidade de se titular não só o ocupante com construção, mas o adquirente daquela unidade vazia.
Qualificação registral Esse é um ponto interessante que nós defendemos junto ao Ministério das Cidades e ao Congresso Nacional. A qualificação registral é direcionada para o texto da medida provisória, afastando a aplicação de normas da Lei 6.015/1973 (LRP). O art. 81 da MP traz nova redação do art. 288-A/ LRP, estabelecendo que para o registro da regularização fundiária aplica-se exclusivamente a lei específica na fase registral. E o art. 42, quando fala de eventual nota devolutiva a ser emitida pelo Registro de Imóveis, dispõe que ela deve observar a lei da regularização fundiária, ou seja, direciona a qualificação para a legislação nova e não para as regras gerais da Lei 6.015.
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Prazos legais Para os registradores de imóveis ficou claro o estabelecimento de prazos em dois pontos: 1) 15 dias para a qualificação inicial do título prenotado da CRF (art. 44, caput); 2) 60 dias para a conclusão do procedimento registral, prazo esse prorrogável por igual período mediante justificativa. Ou seja, precisamos dar celeridade à regularização fundiária.
Registro dos compromissos particulares dos atuais ocupantes (art. 52, § único) Esse registro tinha previsão nas Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo e foi levado à legislação federal para unificar a aplicabilidade desse instrumento. Compromissos particulares dos atuais ocupantes dos núcleos urbanos informais terão o efeito de transferência da propriedade, se registrados junto à nova unidade imobiliária.
Legitimação fundiária para regularizações registradas e legitimação fundiária sobre legitimação de posse O Estado de São Paulo abriu mais de 200 mil unidades imobiliárias para titulação, e apenas cerca de 20 mil foram tituladas. Há um passivo de 180 mil unidades para serem tituladas no Estado de São Paulo. A ideia que estou discutindo com os municípios e com os demais gestores e advogados públicos do Estado é que o poder público possa fazer uso da legitimação fundiária para titular essas situações. Aqueles bairros que tiveram seus processos de regularização findos poderão usar a legitimação fundiária sob pena dessa população ser prejudicada e ter que esperar os cinco anos de nova legitimação de posse para ter seu direito à moradia garantido. A mesma coisa com a legitimação de posse. A Lei 11.977, de forma equivo-
Regularização fundiária – reflexões sobre as inovações legislativas
cada a meu ver, permitia a legitimação de posse sobre bem público. Legitimação de posse é usucapião administrativa e agora está transparente. Nos termos da Constituição não cabe usucapião de bem público. Por isso foi criada a legitimação fundiária, para superar e desvincular a de usucapião. Existem milhares de casos de legitimação de posse sobre bem público e agora chega o momento de converter isso em propriedade.
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COMO O REGISTRADOR VAI FAZER, SENDO QUE EXISTE VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL DE USUCAPIÃO DE BEM PÚBLICO? A SOLUÇÃO QUE PRETENDO IMPLANTAR NO ESTADO DE SÃO PAULO É PERMITIR A LEGITIMAÇÃO FUNDIÁRIA. O PODER PÚBLICO VAI DAR NOVO INSTRUMENTO DE TITULAÇÃO PARA OS MORADORES JÁ TITULADOS COMO LEGITIMAÇÃO DE POSSE.
Como o registrador vai fazer, sendo que existe vedação constitucional de usucapião de bem público? A solução que pretendo implantar no Estado de São Paulo é permitir a legitimação fundiária, ou seja, usar um instrumento novo. O poder público municipal, estadual, qualquer que seja, vai dar novo instrumento de titulação para os moradores já titulados como legitimação de posse.
O direito de laje Com relação ao direito de laje, ele foi pensado também para situações novas, tanto que foi inserido no Código Civil. E uma das situações onde o direito de laje provavelmente vai ser aplicado no Estado de São Paulo é para a implantação da PPP de habitação.
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Em razão disso, a Secretaria de Habitação do Estado, coordenada por Rodrigo Garcia, criou a Parceria Público Privada de Habitação com objetivo de construir novas habitações no centro e diminuir a locomoção. A ideia é construir conjuntos habitacionais e criar uma nova cidade sobre as linhas do metrô. Nós estamos na terceira PPP e já foram entregues alguns apartamentos da primeira. A outra vai ser a PPP Luz, no centro de São Paulo. Vamos entregar três mil unidades habitacionais para povoar o centro de São Paulo e combater o problema da cracolândia. Nós queremos trazer famílias para o centro, utilizando as linhas de metrô mediante direito de laje.
O difícil não é fazer lei. Nem sempre é o projeto perfeito, mas é o projeto possível. A principal modificação a fazer está dentro de nós. Temos que buscar a melhor hermenêutica para tentar resolver um problema de metade do país. Não podemos nos apegar ao texto frio da lei, mas devemos entender que as pessoas necessitam de soluções que estão nas nossas mãos. Então, a principal mudança é de consciência em aplicar o direito para resolver um problema social do país.
Na região central de São Paulo há milhares de metros quadrados ocupados por linhas do metrô e linhas de trem. Existe também um problema sério de habitação no centro. Mais de 2,5 milhões de pessoas usam o sistema de transporte urbano para sair dos bairros periféricos, chegar ao trabalho no centro de São Paulo, e voltar para casa no final do dia. É mais do que a população do Distrito Federal, do Mato Grosso do Sul, do Uruguai.
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Legitimação fundiária e legitimação de posse Gustavo Faria Pereira – Oficial de Registro de Imóveis em Silvânia, Goiás
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De acordo com Lefebvre, o direito à cidade afirma, ‘de um lado, o direito dos usuários a se pronunciar sobre o espaço e o tempo de suas atividades no território urbano; e, de outro, o direito ao uso da centralidade, lugar privilegiado, em vez de se verem dispersos, isolados nos guetos.
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Regularização fundiária – reflexões sobre as inovações legislativas
A
regularização fundiária é um procedimento que exige diálogos institucionais entre os registradores de imóveis, o Município, a União e os próprios beneficiários. Por isso vou começar com as atribuições do poder público municipal.
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QUAL SERIA O OBJETO DA LEGITIMAÇÃO FUNDIÁRIA PESSOAL? É UNIDADE IMOBILIÁRIA COM DESTINAÇÃO URBANA, INTEGRANTE DE NÚCLEO URBANO INFORMAL CONSOLIDADO. NÚCLEO URBANO É UM TERMO JURÍDICO PARA DESIGNAR FAVELAS E PALAFITAS. OU SEJA, SITUAÇÕES CONSOLIDADAS.
Na minha cidade, o poder público municipal está muito envolvido com esse procedimento, que nós, registradores de imóveis temos o papel de auxiliar. Nossa realidade municipal é muito dispersa, de 40% a 70% dos imóveis são irregulares e a maioria dos municípios com menos de 20 mil habitantes não tem infraestrutura necessária. Então, nós, registradores, temos que ser proativos, não podemos apenas esperar a autorização das demarcações, temos necessariamente que atuar. O próprio poder público municipal, nas situações consolidadas, é obrigado a implementar as políticas públicas, pavimentação, saneamento básico, entre outros necessários.
Legitimação fundiária versus legitimação de posse A legitimação fundiária é um novo instituto, uma forma originária de aquisição do direito real de propriedade, conferido por ato discricionário do poder público àquele que detiver área pública ou possuir área privada. Isso estava na redação original do art. 21 da MP 759/2016 . No entanto, ainda existe a discricionariedade técnica do poder público municipal relativa à análise não apenas da conveniência e oportunidade, como também da viabilidade de implementar a regularização fundiária. Lembrando que a regularização fundiária é um procedimento complexo que envolve a esfera jurídica, urbanismo, engenharia, etc.
Em imóveis públicos não existe posse, mas detenção. No entanto, em várias áreas públicas foi reconhecida a posse. Não é possível convolar em usucapião? Não, mas nesse caso, pela CRF é possível converter sim a legitimação fundiária.
E por sua vez, a legitimação de posse não é instituto novo no Direito brasileiro. Ela tem sua origem no art. 59 da Lei 11.977/2009. Antes disso, o reconhecimento da posse era meramente judicial. Ou seja, há um reconhecimento administrativo da posse, que, aliás, de forma qualificada pelo Município, faz a análise e pode expedir de forma adequada a situação irregular.
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Qual seria o objeto da legitimação fundiária pessoal? É unidade imobiliária com destinação urbana, integrante de núcleo urbano informal consolidado. Núcleo urbano é um termo jurídico para designar favelas e palafitas. Ou seja, situações de fato que demandam a observação do poder público porque se tornaram consolidadas. Em Brasília, por exemplo, há casas cinematográficas que sequer têm matrícula. Agora essa situação poderá ser formalizada no fólio real e esses imóveis poderão ser comercializados. A legitimação de posse não se aplica aos imóveis urbanos situados em áreas de titularidade do poder público. A legitimação de posse pode ser transferida por causa mortis ou por ato inter vivos. É o famoso instituto de acessio possessionis, ou seja, esse período temporal de posse em que a posse de usucapião pode ser convolada em propriedade. A posse não é direito, é um fato jurígeno gerador da usucapião. Esse acessio temporis ou acessio possessionis pode ser transferido. É
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PAINEL o título que pode ter, em tese, uma circulação, até pelo trânsito jurídico e reconhecimento das situações fáticas que vemos no Brasil. Quais são os núcleos urbanos informais consolidados que podem ser objeto da legitimação fundiária? São aqueles já existentes na data da publicação da MP 759, é apenas o reconhecimento de situação consolidada. E também aqueles de difícil reversão, considerando o tempo da ocupação, a natureza das edificações, a localização, etc.
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HÁ SITUAÇÕES CONSOLIDADAS POR 20, 30 ANOS. É PRECISO CONSIDERAR TAMBÉM QUE AS PESSOAS QUE OCUPARAM DE BOA-FÉ INVESTIRAM SEU PATRIMÔNIO, ACREDITANDO QUE SÃO DONOS PORQUE TÊM UM CONTRATO. QUEM NÃO REGISTRA NÃO É DONO, MAS A MAIORIA DA POPULAÇÃO NÃO TEM CONHECIMENTO DISSO.
terá a conversão automática deste em título de propriedade, desde que atendidos os termos e as condições do art. 183 da Constituição, independentemente de prévia provocação ou prática de ato registral”. (Art. 26 do PLC 12/2017). Ou seja, em coerência com nosso sistema registral constitutivo, e não de mera publicidade, haverá a conversão desse título em propriedade uma vez atendidos os termos da Constituição, caso não ocorram os requisitos necessários para usucapião.
Há situações consolidadas por mais de vinte ou trinta anos. É preciso considerar também que as pessoas que ocuparam de boa-fé investiram seu patrimônio, acreditando que são donos porque têm um contrato. Quem não registra não é dono, mas a maioria da população não tem conhecimento disso.
Observamos uma dificuldade na compreensão do instituto da legitimação fundiária em relação à própria usucapião. São institutos diversos, a usucapião ainda é um instrumento necessário para regularização fundiária conforme preconizada na nova lei, mas são institutos bem distintos um ao outro.
E também existe a presença de equipamentos públicos e outras circunstâncias avaliadas pelo Município e Distrito Federal. Não se trata apenas de conceder legitimação fundiária, mas de o Município se tornar presente, impor políticas públicas. Muitas vezes essas políticas públicas não são implementadas em decorrência da irregularidade. O que não existe na matrícula, na transcrição, não está no mundo. Então, a legitimação fundiária vai viabilizar o poder público municipal ou os próprios interessados de se financiar. A inserção no fólio real, ou no mercado imobiliário, é importante para o financiamento e para agregar valor a essas unidades imobiliárias, reduzindo a assimetria de informação.
Há observações importantes sobre a legitimação, ela pode contemplar tanto o detentor de área pública quanto o possuidor de área privada. Quem ocupa área pública, em tese não seria possuidor, seria sim um detentor, se pegarmos a boa doutrina de direito civil. No entanto, o Direito não pode virar as costas para a realidade, então, com toda a vênia, foi excelente o fato de se levar a situação fática à esfera do Direito.
Por sua vez, na legitimação de posse, de acordo com o texto legal, “sem prejuízo de direitos decorrentes do exercício da posse mansa e pacífica no tempo, aquele em cujo favor for expedido título de legitimação de posse, decorrido o prazo de cinco anos de seu registro
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Reurb-E e Reurb-S Para conceder a legitimação fundiária na Reurb-E são exigidos requisitos e compensações urbanísticas e ambientais da legislação municipal. No entanto, mesmo que haja regularização isso não vai eximir o cumprimento das posturas municipais. O município é o principal vetor de ordenamento no território urbano. Foi salutar a inclusão de condicionantes na Reur-
Regularização fundiária – reflexões sobre as inovações legislativas
b-S para evitar loteadores profissionais. Pessoas que ocupam recebem uma legitimação fundiária desde que: “I - o beneficiário não seja concessionário, foreiro ou proprietário de imóvel urbano ou rural; II - o beneficiário não tenha sido contemplado por legitimação de posse ou fundiária de imóvel urbano com a mesma finalidade, ainda que situado em núcleo urbano distinto; e III - em caso de imóvel urbano com finalidade não residencial, seja reconhecido, pelo Poder Público, o interesse público de sua ocupação.” (Art. 23/PLC 12/2007) A Reurb-S é destinada para tirar da irregularidade pessoas que demandam políticas públicas, para desmarginalizar essas pessoas e torná-las alvo das políticas públicas, do Registro de Imóveis, e também dos negócios imobiliários. Mas será que a cidade é só moradia? Não. Cidade é onde se irradia convivência. A pessoa não apenas habita, ela convive, exerce todas as suas potencialidades enquanto indivíduo. Ou seja, há comércio, diversões, escolas, há as políticas públicas e particulares. A cidade é parte da vida da pessoa. Muito salutar também a inclusão do art. 24 do PLC 12/2007, relativo à aplicação das regularizações fundiárias na Amazônia Legal, projeto da Lei 11.952/2009.
Legitimação fundiária versus usucapião Uma pequena diferenciação entre a legitimação fundiária e a usucapião, que é um ato da administração pública. São requisitos para a usucapião: a posse, o decurso de tempo, o justo título e a boa-fé. Sendo certo que os três primeiros itens são requisitos necessários para todas as espécies, enquanto o justo título e a boa-fé são requisitos somente da usucapião ordinária. (Fonte: Anoreg) A legitimação fundiária é passível de ser efetivada mesmo para bens não passíveis de usucapião, como os bens públicos. Existem três espécies de usucapião: ordinária, do Código Civil (dez anos reduzidos para cinco, dependendo do caso); extraordinária, com quinze anos,
quando não há boa-fé; e especiais (usucapião da Lei 6.969/1981; usucapião prevista na Constituição; usucapião do Estatuto da Cidade). E também, esse último item das condições é em relação à Reurb-S. Em relação a disponibilidade ou desafetação, mesmo o poder público reconhecendo a qualidade de bem público, a meu ver são passíveis de legitimação fundiária somente os bens públicos de uso dominial. É constitucional o dispositivo? Na minha opinião está de acordo com as disposições da Constituição Federal.
Urbanismo planejado É preciso considerar que o Município não vai fugir de fazer suas políticas públicas, impor suas posturas municipais. É de interesse dos próprios beneficiários realizar o urbanismo. Não será surpresa se com a obtenção da matrícula muitos hipotecarem, financiarem, fizerem uma associação para impor asfalto, calçamento, saneamento básico, iluminação pública. O art. 21 estabelece que a legitimação fundiária constitui forma originária de aquisição do direito real de propriedade. O § 1º dispõe que o beneficiário adquire a unidade imobiliária devidamente regularizada, livre e desembaraçada de quaisquer ônus; o § 2º afirma que os ônus, direitos reais, gravames ou inscrições existentes na matrícula de origem permanecerão gravando o titular original. Isso não seria um paradoxo? Não. Eu posso exemplificar com uma indisponibilidade infligida para o beneficiário da Reurb, nessa mesma legitimação fundiária concedida. Na matrícula já está averbada uma indisponibilidade, e também o direito de regresso contra o causador do núcleo urbano informal consolidado. Pode ser um loteador que não seguiu os trâmites da lei. Muitas vezes, os loteamentos irregulares são decorrentes da atuação de grileiros. No entanto, é possível um caso de boa-fé, mas para sanar há o direito de regresso contra o causador desse vício. O próprio poder público pode agir no caso de uma venda a non dominus. O terreno é da União e alguém vende. A União pode usar esse direito de regresso? É possível sim.
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PAINEL Processo de Registro
gas que isso não seja um óbice. A inclusão da matrícula vai tornar o bem comercializável.
Muito importante agora, o processo de registro. Não vou aprofundar a questão das gratuidades, mas apenas ressaltar um pormenor. No caso da Reurb-S não tem para onde correr. Os registradores devem pensar que uma vez que o título ingressa no fólio real talvez o retorno venha a médio e longo prazo. Teremos prejuízo, teremos custos operacionais, mas recomendo aos cole-
Qual é o título aquisitivo? É a CRF, “dispensadas a apresentação de título individualizado e as cópias da documentação referente à qualificação do beneficiário, o projeto de regularização fundiária aprovado, a listagem dos ocupantes e sua devida qualificação e a identificação das áreas que estes ocupam.” (Art. 23/ PLC 12/2017)
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Regularização fundiária – reflexões sobre as inovações legislativas
A CRF pode ser expedida de forma coletiva com uma lista de 500 beneficiários, por exemplo. Nada impede a qualificação do registrador, o registro do projeto, tanto o título individualizado, como nada impede que seja feito requerimento individualizando essas matrículas em homenagem ao princípio da especialidade objetiva e ao princípio da instância. E não é de assustar também a abertura de ofício em eventual desdobro. Desdobro é uma forma fora da
previsão da Lei 6.766/1979, do Decreto-lei 271/1967, e da Lei 4.591/1964, que vai ser aberto a novas matrículas, vai ser uma nova forma de desmembramento da propriedade.
Legitimação de Posse Qual a origem do instituto da legitimação de posse? O reconhecimento da posse pela via administrativa aparece no art. 59 da Lei nº 11.977/2009. Mas há uma grande diferença no art. 25 do PLC 12/2017, a supressão do requisito de cadastramento prévio nos programas sociais. Agora basta a identificação dos ocupantes, o que pode tornar o procedimento bem mais sucinto, mais sério e mais fácil. Até 2009, muitos títulos de posse eram registrados no Registro de Títulos e Documentos. Agora há possibilidade de registrar esse título de posse no Registro de Imóveis (art. 26), sendo que com o implemento temporal vai ser averbada a conversão da posse em propriedade. No art. 27 do PLC há uma cassação do título quando o beneficiário não atende os requisitos em leis. Outra crítica que faço em relação ao trecho é que, independentemente de prévia provocação ou prática de ato registral, temos que interpretar isso com grano salis, uma vez que o Registro de Imóveis, além de publicidade, tem característica constitutiva e segurança jurídica.
Considerações finais O que seria o direito à cidade? Segundo Henri Lefebvre é uma extensão do direito à personalidade, porque na cidade se exerce a cidadania, a vida, as potencialidades do indivíduo. A pessoa que está numa situação irregular se torna marginalizada. Uma cidade pode se dividir em castas. Ou seja, a regularização fundiária é um procedimento de democratização em relação à cidade, o que está correlacionado com o princípio da dignidade da pessoa humana.
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Regularização fundiária – reflexões sobre as inovações legislativas João Pedro Lamana Paiva – Oficial de Registro de Imóveis em Porto Alegre (RS)
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Devemos observar a prevenção, concentrando esforços para viabilizar regularizações ordinárias e evitar a propagação de situações clandestinas. Não devemos adotar o princípio da facilitação no sistema registral, na qualificação. Não é isso, é colaboração. É ter vontade. Interesse em regularizar os imóveis.
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Regularização fundiária – reflexões sobre as inovações legislativas
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oje o Brasil amanheceu com uma medida provisória que agora só depende de sanção para que se possa regularizar os imóveis do nosso país. Além de criar novos institutos – excelentes, dinâmicos, atualizados e inovadores –, tenho certeza de que essa lei vai melhorar muito o nosso sistema registral brasileiro. Por isso cumprimento as pessoas que fizeram parte da comissão, os doutores Sílvio Eduardo Marques Figueiredo, Rodrigo Numeriano Dubourcq Dantas, Renato Martins Silva e Flauzilino Araújo dos Santos. Temos, então, regularização fundiária. Regularização fundiária é um conceito aberto e amplo. A regularização fundiária está sempre aberta, a todo momento estamos regularizando. E o conceito é amplo porque se relaciona com todos os mecanismos e institutos que promovem a adequação e conformação de um empreendimento imobiliário ao regramento posto. A regularização fundiária é mais do que consta da Lei 11.977/2009 e agora da MP nº 759/20161. Deve ser efetivo o cumprimento, a observância dos meios normais (ordinários) de se alcançar a formalidade jurídica por meio de loteamentos e desmembramentos, fracionamentos, desdobro. Essa regularização é ordinária, ou seja, aquela que se pode regularizar agora. Não podemos esperar sempre pelas regularizações extraordinárias. Não podemos esperar leis para a regularização. Devemos observar a prevenção, concentrando esforços para viabilizar regularizações ordinárias e evitar a propagação de situações clandestinas. Não devemos adotar o princípio da facilitação no sistema registral, na qualificação. Não é isso, é colaboração. É ter vontade. Interesse em regularizar os imóveis. Devemos prevenir e regularizar as ordinárias. O caminho da normalidade é o que deve ser constantemente perseguido, a fim de que regularizações extraordinárias não se tornem a regra. Tanto é verdade que sempre há limite temporal para suas aplicações (Ex.: Art. 9º, § 2º, PL 12/2017; art. 54, § 1º da Lei nº 11.977/2009).
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Os marcos temporais indicam que se deve evitar a proliferação da informalidade. Mas a lei precisa resolver os casos do passado. Sobre esses casos é que vamos tratar.
Alguns meios de regularização fundiária urbana - Loteamento e Desmembramento (Lei nº 6.766/1979); - Desdobro/Fracionamento (ver Código de Normas local – procedimento simples); - Condomínio Edilício (incorporação imobiliária e instituição de condomínio – Lei nº 4.591/1964 e arts. 1.331 e segs. do Código Civil); - Regularização Fundiária de Interesse Social e Regularização Fundiária de Interesse Específico (MP nº 759/2016 – ver se/quando se aplica a Lei nº 11.977/2009); - Regularização de Áreas Públicas decorrentes de Parcelamento do Solo (art. 195-A da Lei nº 6.015/1973 e art. 22 da Lei nº 6.766/1979); - Regularização de Áreas Públicas (Discriminatória – Lei nº 6.383/1976); - Regularização Fundiária na Amazônia Legal (Lei nº 11.952/2009); - Imóveis da União; - Regularização de Imóveis da União (Lei nº 5.972/1973 e Lei nº 11.481/2007); - Regularização de Quilombos (Decreto nº 4.887/2003). Já os imóveis rurais contam com o Decreto-lei nº 58/1937 e art. 53 da Lei nº 6.766/1979.
A MP 759 foi convertida na Lei nº 13.465, de 11 de julho de 2017.
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Regularização fundiária: reflexões sobre as inovações legislativas
também altera outras legislações, como a Lei nº 6.015/1973 (art. 216-A) e a Lei nº 9.514/1997, assuntos que não constaram da MPV nº 759/2016.
Esta breve exposição pretende refletir sobre a regularização fundiária que está na agenda do parlamento brasileiro decorrente da publicação da Medida Provisória nº 759/2016.
Por que trazer a alteração da Lei 6.015? Porque vem aí aquilo que nós lutamos dez anos para que vigorasse no Brasil, a usucapião extraordinária.
Atenção, o Projeto de Lei de Conversão, PLC nº 12/2017 foi aprovado na Câmara em 24.05.2017. Sobre o PLC nº 12/2017 importa considerar que esta exposição se baseou fundamentalmente no texto da MP nº 759/2016. Citações e referência ao PLC ainda não estão vigorando, mas constam aqui a título de informação para melhor compreensão do estudo. Importa mencionar também que o PLC nº 12/2017
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O art. 216-A da Lei nº 6.015/1973 possivelmente será corrigido para readequar a presunção decorrente do silêncio, agora presumindo a concordância, o que será benéfico para as regularizações. Esse dispositivo também trata de novos títulos averbáveis. A presunção de concordância será benéfica para as regularizações e tenho certeza de que agora vamos ter muitas usucapiões para regularizar, porque isso era um entrave. Quanto à Lei nº 9.514/1997, haverá alteração de diversos dispositivos, ficando regido com maior pre-
Regularização fundiária – reflexões sobre as inovações legislativas
cisão o valor do imóvel para fins de leilão, o procedimento de intimação (com hora certa) e outras questões relacionadas com os empreendimentos PMCMV e FAR. A lei do prazo de mora, que vai para trinta dias. Há uma discussão sobre os prazos do novo Código de Processo Civil, se são corridos ou dias úteis.
rio, o comerciante e também o Estado e o Município com IPTU, ITR, ITBI.
Críticas à MP nº 759/2016
Regularização fundiária: marco regulatório
Algumas críticas à medida provisória que não são minhas. É de um texto adaptado do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico – IBDU:
Em termos de regularização fundiária, o art. 73, incisos I e VI da MP nº 759/2016 (PL 12/2017, Art. 106) abandonou a forma e os conceitos trazidos pela Lei nº 11.977/2009 e revogou o seu capítulo III, bem como o capítulo XII (arts. 288-A a 288-G da Lei nº 6.015/1973), adotando um novo modelo de regularização tanto urbana como rural.
1. Exigências urbanísticas são relegadas em favor de aspectos de mercado. 2. Permissão para que os assentamentos urbanos sejam regularizados sem intervenções urbanísticas e infraestrutura. 3. Contradição com os compromissos assumidos com a ONU: “Os processos desencadeados pela MP 759 não contribuem para a efetiva implementação da Nova Agenda Urbana de forma a tornar as cidades e os assentamentos humanos mais inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis. A Nova Agenda foi recém definida pelas Nações Unidas na conferência Habitat III e do qual o Brasil foi um dos signatários”.
Benefícios da MP nº 759/2016 O mesmo texto do IBDU diz: “Segundo o governo, a regularização fundiária urbana contribuirá para ‘o aumento do patrimônio imobiliário do País’, por representar a inserção de capital na economia, à medida que agrega valor aos imóveis regularizados, permite ao Poder Público cobrar impostos (IPTU, ITR E ITBI) e facilita aos proprietários a obtenção de créditos, dando seus imóveis como garantia.” No Brasil, dependendo da região, de 40% a 50% dos imóveis estão na informalidade, sem registro. Esse número é muito grande, devemos trazer esses imóveis para a formalidade. Matricular para que entrem para o mercado, porque todos ganham: o usuá-
O que fazer com o que está consolidado? Trazer para o mundo jurídico formal é o melhor caminho. Com a MP 759 criou-se a situação consolidada e irreversível, então, hoje tem como fazer.
A mudança trouxe um sentimento (equivocado) de que toda a experiência anterior de regularização foi um grande equívoco, o que não é verdade uma vez que nós regularizamos muitos imóveis.
Aplicação da legislação revogada É possível aplicar a legislação revogada? Sim, os processos de regularização fundiária poderão ser regidos a critério do ente público. O art. 73 §§ 1º e 2º (PL 12/2017, art. 75) estabelece que os processos de regularização fundiária iniciados até a data de publicação da MP nº 759/2016 poderão ser regidos a critério do ente público responsável por sua aprovação, pelos artigos revogados: - arts. 288-A a 288-G da Lei nº 6.015/1973; - arts. 46 a 71-A da Lei nº 11.977/2009. Logo, a aplicação da legislação revogada é uma faculdade concedida ao Município, que é o órgão responsável pela aprovação do projeto de regularização.
Marco inicial do processo de regularização fundiária É a data do protocolo no Registro de Imóveis que se apresenta como ponto de partida. Prior in tempore,
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PAINEL potior in jure. Aquele que primeiro chega é o que leva. E nesse caso, a função do protocolo é receber títulos e dar prioridade. Porém, poderá ocorrer a prenotação posterior à publicação da MP nº 759/2016, hipótese em que o processo de regularização fundiária tenha iniciado na Administração Pública anteriormente a 23/12/2016, o que, na nossa forma de ver, permite que sejam aplicadas as normas revogadas pelo art. 73, §§ 1º e 2º (PL 12/2017, art. 75).
Regularização fundiária rural Na perspectiva rural, a MP nº 759/2016 visa assegurar mais transparência e agilidade, bem como desburocratizar as políticas de reforma agrária e de regularização fundiária, assegurando mais efetividade à política pública. Pontos Relevantes: 1. Reforma Agrária, alteração de dispositivos da Lei nº 13.001/2014 e regularização fundiária rural fora da Amazônia Legal: atuações do Incra. 2. Alterações pontuais na obtenção de imóveis rurais e providências de desburocratização: regularização e titulação de beneficiários de parcelas. 3. Seleção de beneficiários de parcelas em projeto de assentamento: definição de critérios objetivos.
Regularização fundiária urbana e rural Adequação dos conceitos. De acordo com o artigo 8º (PL 12/2017, art. 9º) foram instituídas normas gerais e procedimentos aplicáveis à Regularização Fundiária Urbana – Reurb, a qual abrange medidas jurídicas, urba-
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nísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de núcleos urbanos informais. Como se vê, a MP nº 759/2016 modificou os conceitos de regularização fundiária urbana ao alterar o campo de atuação de “assentamento irregular” para “núcleo urbano informal”, conceito mais abrangente.
PLC nº 12/2017: núcleo urbano, núcleo urbano informal e núcleo urbano informal consolidado • Art. 11, I – Núcleo urbano: o assentamento humano, com uso e características urbanas constituído por unidades imobiliárias de área inferior à fração mínima de parcelamento, prevista na Lei nº 5.868, de 12.12.1972, independentemente da propriedade do solo, ainda que situado em área qualificada ou inscrita como rural; • Art. 11, II – Núcleo urbano informal: aquele clandestino, irregular, ou no qual não foi possível realizar, por qualquer modo, a titulação de seus ocupantes, ainda que atendida a legislação vigente à época de sua implantação ou regularização;
Regularização fundiária – reflexões sobre as inovações legislativas
• Art. 11, III – Núcleo urbano informal consolidado: aquele de difícil reversão, considerados o tempo da ocupação, a natureza das edificações, a localização das vias de circulação e a presença de equipamentos públicos, entre outras circunstâncias a serem avaliadas pelo Município. Exemplos: - Matrículas com inúmeros registros de frações ideais. Nos 5.568 municípios brasileiros há imóveis em condomínio dentro de área maior. E hoje os registradores sofrem para poder regularizar, principalmente depois da Lei 4.504/1964, do Estatuto da Terra, que criou o módulo rural, módulo fiscal e a fração mínima de parcelamento. Antes dos anos 1960 não encontramos imóveis vendidos em condomínio dentro de área maior. Os condomínios eram formados através das partilhas das associações. O Incra estabeleceu a fração mínima, que começou com 50 a 70 hectares e hoje veio para 2 ou 3 hectares. Criou-se esse mecanismo que vedava a venda da propriedade. O proprietário, então, vendia 500 metros quadrados em condomínio dentro de uma área maior que 50 mil metros quadrados. E aí está o grande problema. - Imóveis em Área de Preservação Permanente. - Empreendimentos de Interesse Social sem os requisitos legais para individualização.
PLC nº 12/2017: a novidade da demarcação urbanística • Art. 11, IV Demarcação urbanística, uma novidade: procedimento destinado a identificar os imóveis públicos e privados abrangidos pelo núcleo urbano informal e a obter a anuência dos respectivos titulares de direitos inscritos na matrícula dos imóveis ocupados, culminando com averbação na matrícula desses imóveis da viabilidade da regularização fundiária a ser promovida a critério do Município.
Adequação à realidade Referente à aplicação da Reurb, a MP trouxe como novidade a possibilidade de dispensa, pelos Municípios, das regras urbanísticas estabelecidas para o desenvolvimento urbano, art. 9º, § 1º (PL 12/2017, art. 11, § 1º). Essa facilidade alcança as duas modalidades da Regularização, art. 11 (PLC 12/2017, art. 13): Reurb de interesse social (Reurb-S) e Reurb de interesse específico (Reurb-E). Com isso poderá haver a regularização dispensando as regras relativas a tamanho dos lotes, percentual de área destinada a uso público, regularização de edificações, dimensões das vias públicas e demais regras urbanísticas.
Objetivos da Reurb: análise do art. 10 frente à Constituição Federal A Medida Provisória estabeleceu, no art. 10, as garantias e direitos fundamentais dos cidadãos conforme previsto na Constituição Federal. Alteração do caput: - MP 759/2016: Art. 10. Constituem objetivos da Reurb: (...) - PLC 12/2017: Art. 10. Constituem objetivos da Reurb, a serem observados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios: (...) I - identificar os núcleos urbanos informais, organizá-los e assegurar a prestação de serviços públicos aos seus ocupantes, de modo a melhorar sua qualidade de vida; PLC 12/2017: I - identificar os núcleos urbanos informais que devam ser regularizados, organizá-los e assegurar a prestação de serviços públicos aos seus ocupantes, de modo a melhorar as condições urbanísticas e ambientais em relação à situação de ocupação informal anterior;
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PAINEL CF/1988: - Art. 30. Compete aos Municípios: V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial; • II - ampliar o acesso à terra urbanizada pela população de baixa renda, de modo a priorizar a permanência dos ocupantes nos próprios núcleos urbanos informais, a serem posteriormente regularizados; CF/1988: Art. 30. Compete aos Municípios: VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano; • III - promover a integração social e a geração de emprego e renda; CF/1988: Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: X - combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos; • IV - estimular a resolução extrajudicial de conflitos, em reforço à consensualidade e à cooperação entre Estado e sociedade; CF/1988: Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se [...] pelos seguintes princípios: VII - solução pacífica dos conflitos; • V - conceder direitos reais, preferencialmente em nome da mulher; CF/1988: Art. 5º, XXII - é garantido o direito de propriedade; Art. 3º, IV da Lei 11.977/2009 - No Programa Minha Casa Minha Vida há prioridade de atendimento às famílias com mulheres responsáveis pela unidade familiar.
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• VI - garantir o direito social à moradia digna e às condições de vida adequadas; CF/1988: Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, [...] na forma desta Constituição. • VII - ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes; CF/1988: Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. • VIII - concretizar o princípio constitucional da eficiência na ocupação e no uso do solo. CF/1988: Art. 170. A ordem econômica, [...] observados os seguintes princípios: III - função social da propriedade;
Novos objetivos: PLC 12/2017 Novo Inciso: II - criar unidades imobiliárias compatíveis com o ordenamento territorial urbano e constituir sobre elas direitos reais em favor dos seus ocupantes; Novo Inciso: VII - garantir a efetivação da função social da propriedade; Novo Inciso: X - prevenir a formação de novos núcleos urbanos informais;
Modalidades da Reurb • A Reurb compreende duas modalidades, art. 11 (PLC 12/2017, art. 13): - Reurb de interesse social (Reurb-S) - Reurb de interesse específico (Reurb-E) - Reurb-S:
Regularização fundiária – reflexões sobre as inovações legislativas
• É aplicável a núcleos urbanos informais ocupados predominantemente por população de baixa renda, observado o disposto em ato do Poder Executivo Federal (necessidade de regulamentação). • A característica significativa da Reurb-S é a “população de baixa renda”, tendo em vista as isenções e particularidades desse tipo de regularização. Qual o critério para aferir se essa pessoa pode utilizar a gratuidade? Tem que haver um parâmetro, um início, e talvez esse início seja regulamentado para toda a atividade. - Reurb-E: • É aplicável a núcleos urbanos informais ocupados por população não qualificada na hipótese de que trata a Reurb-S. • Dessa forma, a Reurb-E se aplica a população que não se enquadra como “baixa renda”, não recebendo as isenções de emolumentos e demais benefícios dispostos na MP.
utilizados para fins sociais (creches, associações, centros culturais) e para fins comerciais (fomentar a geração de emprego). Cabe ao Poder Público que emite a Legitimação de Posse reconhecer o interesse social – art. 22, § 1º, III (PLC 12/2017, art. 23, § 1º, III) Outra grande novidade. Às vezes, a comunidade não podia ter mercado, um comércio, porque não havia essa possibilidade.
Área de Preservação Permanente – APP • É possível a Reurb em área de preservação permanente (art. 9º, § 3º), desde que elaborados estudos técnicos que justifiquem as melhorias ambientais em relação à situação anterior, inclusive por meio de compensações ambientais, quando for o caso. • A regularização ambiental será admitida por meio da aprovação do projeto de regularização fundiária.
Fiscalização de tributos
PLC 12/2017
• O registrador imobiliário é fiscal do pagamento dos tributos, conforme dispõe o art. 289 da Lei nº 6.015/1973.
• Art. 12. A aprovação municipal da Reurb de que trata o art. 10 corresponde à aprovação urbanística do projeto de regularização fundiária, bem como à aprovação ambiental, se o Município tiver órgão ambiental capacitado.
• O § 2º do art. 11 traz uma exceção legal, ao determinar que os atos registrais da Reurb independem de comprovação do pagamento de tributos. (PLC 12/2017, Art. 13, § 2º) Isso está consolidado, não temos mais o que questionar. Uma grande novidade.
Utilização mista • Na Reurb, os Municípios e o Distrito Federal poderão admitir o uso misto de atividades como forma de promover a integração social e a geração de emprego e renda no núcleo urbano informal regularizado – art. 11, § 4º (PLC 12/2017, art. 13, § 4º). • A regularização não está restrita a imóveis para moradia. Poderão ser regularizados imóveis
• § 4º A aprovação ambiental da Reurb prevista neste artigo poderá ser feita pelos Estados na hipótese de o Município não dispor de capacidade técnica para a aprovação dos estudos de que trata este artigo. Atenção! • O dispositivo da MP nº 759/2016 impõe a necessidade de melhoria das condições ambientais. • Não bastará manter o meio ambiente como está, será preciso fazer alguma melhoria. • Compensação ambiental: pode ser na área da Reurb ou em outra área.
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PAINEL Solução – art. 12, §§ 1º e 2º (PLC 12/2017, art. 39) • Se houver área de risco no Núcleo Informal Urbano, será obrigatória a realização de estudos técnicos para análise da viabilidade da Reurb e implantação das medidas indicadas para a devida: - Eliminação; - Correção; ou - Administração do risco na parcela por ele afetada.
Área de Risco – art. 12 (PLC 12/2017, art. 39) • Muitos são os Núcleos Urbanos Informais localizados em áreas de riscos geotécnicos, inundações e de outros riscos especificados em lei (desmoronamento, alagamento, deslizamentos, crateras, aterros, áreas contaminadas, etc.). • Não é aplicável a Reurb em áreas de risco quando não for possível a eliminação, correção ou administração desse risco.
Área contaminada • É aquela onde comprovadamente há poluição causada por quaisquer substâncias ou resíduos que nela tenham sido depositados, acumulados, armazenados, enterrados ou infiltrados, e que causa impacto negativo à saúde humana e ao meio ambiente.
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Regularização fundiária – reflexões sobre as inovações legislativas
Impossibilidade de aplicação (art. 12, § 3º); (PLC 12/2017, art. 39) • Caso seja verificado, pelos estudos técnicos, que a área de risco não comporta eliminação, correção ou administração, não poderá ser procedida a Regularização. • Em se tratando de Reurb-S, o Município ou Distrito Federal, procederá a realocação dos ocupantes do local.
Legitimação fundiária Art. 23. A legitimação fundiária constitui forma originária de aquisição do direito real de propriedade, conferido por ato discricionário do Poder Público àquele que detiver área pública ou possuir área privada, como sua, unidade imobiliária com destinação urbana, integrante de núcleo urbano informal consolidado. Pode se caracterizar no instituto mais importante e eficaz da Regularização Fundiária.
PLC 12/2017 • Art. 23 – traz a mesma conceituação da Legitimação Fundiária, porém retirando o caráter discricionário do Poder Público.
- Tempo da ocupação - Natureza da posse
Imóveis particulares • Na Lei nº 11.977/2009 era possível a aplicação desse ato em imóveis públicos ou privados. • A MP delimitou a concessão da Legitimação de Posse para imóveis particulares, impossibilitando a aplicação para imóveis públicos – art. 22, § 3º (PLC 12/2017, art. 25, § 2º). • Porém, o art. 38 (PLC 12/2017, art. 15) dispõe de outros instrumentos aplicáveis para imóveis públicos.
Condições O Poder Público concederá a Legitimação de Posse aos ocupantes cadastrados que (art. 22, § 1º): I - não sejam concessionários, foreiros ou proprietários de imóvel urbano ou rural; II - não tenham sido beneficiários de mais de uma legitimação de posse ou fundiária de imóvel urbano com mesma finalidade; e III - em caso de imóvel urbano com finalidade não residencial, seja reconhecido o interesse social de sua ocupação pelo Poder Público emitente do título de legitimação de posse.
• Dessa forma, cumpridos os requisitos legais, tem-se a Legitimação Fundiária.
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Legitimação de posse
• O PL, nos arts. 25 e 26, não restringiu a concessão da Legitimação de Posse às condições acima dispostas.
• Ato do Poder Público já conhecido no ordenamento jurídico brasileiro (Lei nº 11.977/2009), mas que agora ganha novos aspectos com a MP nº 759/2016. • A legitimação de posse constitui ato do Poder Público destinado a conferir título, ao final da Reurb, por meio do qual fica reconhecida a posse de imóvel objeto da Reurb, com a identificação – art. 22 (PLC 12/2017, art. 25): - Dos ocupantes
• Esse instrumento pode ser aplicado a qualquer pessoa.
Transmissão da posse • Apesar de ser um direito concedido intuitu personae, é possível a transmissão da legitimação de posse por ato inter vivos (compra e venda, doação, permuta, etc.), desde que o adquirente cumpra as condições
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PAINEL necessárias – art. 22, § 2º (PLC 12/2017, art. 25, § 1º). Caso contrário, o Poder Público poderá cancelar o título – art. 24 (PLC 12/2017, art. 27). • A MP também autoriza a transmissão causa mortis. Nesse caso, como não se trata de ato de liberalidade, mas sim de fato jurídico stricto sensu (morte), entendo não ser necessário cumprir as condições dispostas nos incisos I e II do art. 22, § 1º.
Conversão em propriedade • A legitimação de posse poderá ser convertida em propriedade – art. 23 (PLC 12/2017, art. 25), após decorrido o prazo de 5 anos de seu registro, a exemplo do que acontecia na Lei nº 11.977/2009. • Porém, foi aumentado o alcance da conversão, não se limitando às condições do art. 183 da Constituição Federal, podendo ser preenchidos os requisitos para usucapião estabelecidos em lei.
Propriedade • A legitimação de posse, após ser convertida em propriedade, constitui forma originária de aquisição – art. 23, § 2º (PLC 12/2017, art. 26, § 2º). • A unidade imobiliária restará livre e desembaraçada de quaisquer ônus, direitos reais, gravames ou inscrições, eventualmente existentes em sua matrícula de origem, exceto quando estes disserem respeito ao próprio beneficiário.
Conversão automática da propriedade Ver art. 26 do Projeto de Lei de Conversão nº 12/2017: Art. 26. Sem prejuízo dos direitos decorrentes do exercício da posse mansa e pacífica no tempo, aquele em cujo favor for expedido título de legitimação de posse, decorrido o prazo de cinco anos de seu registro, terá a conversão automática deste em título de propriedade, desde que atendidos os termos e as condições do art. 183 da Constituição, independentemente de prévia provocação ou prática de ato registral.
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Novidades importantes do Projeto de Lei de Conversão nº 12/2017 Usucapião extrajudicial • O art. 7º do Projeto de Lei de Conversão nº 12/2017 altera o art. 216-A da Lei nº 6.015/1973, em especial no ponto que passa a considerar o silêncio do notificado como concordância quanto à pretensão que visa o reconhecimento da usucapião. • Também foi regulamentado o procedimento, prevendo a publicação de edital e diretrizes quando se tratar de condomínio edilício (§ 11 ss.). Certidão de regularização fundiária • O art. 41 do Projeto de Lei de Conversão nº 12/2017 apresenta o título que representa a Reurb, que é a Certidão de Regularização Fundiária (CRF) prevendo: Art. 41. A Certidão de Regularização Fundiária – CRF é o ato administrativo de aprovação da regularização que deverá acompanhar o projeto aprovado e deverá conter no mínimo: I - o nome do núcleo urbano regularizado; II - a localização; III - ... Condomínio de lotes • O art. 58 do Projeto de Lei de Conversão nº 12/2017 inclui o art. 1.358-A na Lei nº 10.406/2002 (Código Civil) prevendo: Art. 1.358-A. Pode haver, em terrenos, partes designadas de lotes, que são propriedade exclusiva, e partes que são propriedade comum dos condôminos. § 1º A fração ideal de cada condômino poderá ser proporcional à área do solo de cada unidade autônoma, ao respectivo potencial construtivo ou a outros critérios indicados no ato de instituição. § 2º Aplica-se, no que couber, ao Condomínio de Lotes o disposto sobre condomínio Edilício no Capítulo VII do Título III do Livro III da Parte Especial deste Código, respeitada a legislação urbanística.
Regularização fundiária – reflexões sobre as inovações legislativas
§ 3º Para fins de incorporação imobiliária, a implantação de toda a infraestrutura ficará a cargo do empreendedor. (NR)
12/2017 cria a figura do Condomínio Urbano Simples. O novel instituto está restrito à aplicação de Reurb e prevê:
O condomínio de lotes nem precisaria de lei. Nós fazemos isso há quinze anos no Estado do Rio Grande do Sul sem problema nenhum, mas muitos Estados proibiram. Agora está aí, não tem mais o que se questionar.
• Art. 61. Para fins de Reurb, quando um mesmo imóvel contiver construções de casas ou cômodos, poderá ser instituído Condomínio Urbano Simples, respeitados os parâmetros urbanísticos locais, e serão discriminadas, na matrícula, a parte do terreno ocupada pelas edificações, as de utilização exclusiva e as áreas que constituem passagem para as vias públicas ou para as unidades entre si.
Condomínio urbano simples • O art. 61 do Projeto de Lei de Conversão nº
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PAINEL Condomínio de direito real de laje (PLC 12/2017, art. 55) • Art. 1.510-A. O proprietário de uma construção-base poderá ceder a superfície superior ou inferior de sua construção a fim de que o titular da laje mantenha unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo. • Matrícula para a Laje (art. 1.510-A, § 3º) • Lajes Sucessivas (art. 1.510-A, § 6º)
Do procedimento de registro • TÍTULO HÁBIL: Certidão de Regularização Fundiária (CRF) – Ver art. 41 e segs. do Projeto de Lei de Conversão nº 12/2017. • PRENOTAÇÃO e AUTUAÇÃO • QUALIFICAÇÃO - NEGATIVA: Nota Devolutiva Fundamentada - POSITIVA: Dar curso à Regularização
Registro da Reurb • Após sanadas as situações referentes a matrícula/transcrição de origem e procedida a averbação de especialização da área objeto da Reurb é que será realizado o Registro da Reurb (PL 12/2017, art. 50). • Posteriormente, abre-se uma matrícula para cada uma das unidades imobiliárias.
Matrícula das unidades São seis os principais casos de abertura de matrícula para unidade imobiliária que se apresenta na Reurb: 1. Legitimação Fundiária - Abertura de Matrícula em nome do ocupante indicado pelo Poder Público – art. 21, § 6º (PLC 12/2017, art. 22, § 4º) 2. Legitimação de Posse - Abertura de Matrícula em nome do proprie-
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tário original - Registro da Legitimação de Posse (Art. 167, I, “41” da Lei nº 6.015/1973) - Registro da conversão da legitimação de posse em propriedade (Art. 167, I, “41” da Lei nº 6.015/1973) 3. Estremação (Art. 45 e parágrafo único do PLC nº 12/2017) - Abertura de Matrícula em nome do proprietário
Regularização fundiária – reflexões sobre as inovações legislativas
da fração original do imóvel. São condomínios formados em imóveis urbanos e rurais. Os condôminos, para ter sua unidade própria, para poder financiar, devem fazer uma escritura de divisão. E se não concordam? Agora é possível estremar o terreno mediante certidão da prefeitura municipal por requerimento simples. Abre-se a matrícula individualizada do imóvel, princípio de especialidade, e se averba na matrícula-mãe. 4. Aquisição pelo Justo Título (PLC 12/2017, art. 52, § único) - Abertura de Matrícula em nome do proprietário original - Registro do Justo Título transmitindo a propriedade
5. Direitos Reais sobre bem público (PLC 12/2017, art. 15) - Abertura de Matrícula em nome do Poder Público - Registro do Direito Real (concessão de direito real de uso, a concessão de uso especial para fins de moradia, doação ou compra e venda). 6. Direito Real de Laje (PLC 12/2017, art. 55) - Conclusão de um dos 5 procedimentos anteriores - Abertura de Matrícula para a Laje • As unidades desocupadas alcançadas pela Reurb terão as suas matrículas abertas em nome do titular originário do domínio da área (art. 40).
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PAINEL
Usucapião judicial e extrajudicial Eduardo Sócrates Castanheira Sarmento Filho – Oficial de Registro de Imóveis em Volta Redonda (RJ)
“
Hoje, a usucapião se justifica para o cumprimento adequado da função social da propriedade e, por conseguinte, da posse também. É um instrumento importantíssimo de pacificação social.
”
Usucapião extrajudicial de imóvel não matriculado Se o imóvel objeto de usucapião não for objeto de matrícula é possível ou não a opção pela via extrajudicial? Num primeiro momento eu imaginei que não fosse possível, porque se a lei exige notificação e manifestação do proprietário do imóvel, e se esse imóvel não existe no mundo registral, eu não posso ter anuência dele, logo, ficaria impedido o procedimento. No entan-
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to, se o imóvel não for matriculado, isso não inviabiliza a via extrajudicial, ou seja, não tenho a concordância do proprietário porque não há proprietário conhecido, como explicitado na doutrina e no próprio texto legal. Quanto à notificação, a partir de ontem, com a aprovação do Projeto de Lei de Conversão (da Medida Provisória nº 759/2016), PLC nº 12/2017, também é possível a notificação do proprietário do imóvel e do confinante por edital desde que não seja encontrada a pessoa. Os entes públicos também são notificados para manifestar concordância, verificar se há terra pública,
Usucapião judicial e extrajudicial insuscetível de usucapião. Antes da MP 7591 as corregedorias já tentavam minimizar o esvaziamento do instituto criando casos de anuência presumida.
devido o georreferenciamento da área e o interessado argumenta que isso não é possível. Seria o caso da aplicação da dúvida registral.
No Rio de Janeiro, por exemplo, mesmo que houvesse proprietário tabular, se ele tivesse prometido a venda do imóvel era possível se recorrer à usucapião extrajudicial na hipótese de recusa não justificada do promitente vendedor ou de seu desaparecimento e desconhecimento do paradeiro dos herdeiros. O provimento do Rio permitia, nesses casos, e mediante a prova do pagamento, o uso da via extrajudicial, presumindo-se a anuência do promitente vendedor. Essa já era uma aplicação bastante significativa e deve continuar substituindo as ações de adjudicação compulsória.
Requisitos da usucapião
Quais as soluções possíveis de serem dadas no requerimento formulado ao registrador de imóveis? Primeiro, vindo a concordância de todos os interessados e uma vez provados os requisitos legais, o registrador abre a matrícula e faz o registro da usucapião, se necessário, ou seja, se não houver matrícula. Se a área de usucapião corresponder ao objeto de uma matrícula não há necessidade dessa abertura. Segunda solução: se os proprietários ou titulares de direito do imóvel vizinho não concordarem, o procedimento tem que ser indeferido uma vez que não há condição de se seguir na via extrajudicial. Uma terceira hipótese é a impugnação por parte de algum interessado ou dessas pessoas que acabei de referir. Isso também impede a continuidade do procedimento e, após abertura de prazo para eventual emenda da petição inicial, o pedido terá que ser remetido a um juiz cível para resolver a divergência instaurada. E por fim, o pedido pode ser rejeitado pelo registrador porque não foram cumpridos os requisitos para usucapião. Nesse caso, o juiz de competência de vara cível é que vai decidir. A lei possibilita, ainda, o uso da dúvida registral, que pode ser manejada em qualquer fase do procedimento. Por exemplo, o registrador entende que é 1
Quais são os requisitos para usucapião? Usucapião nada mais é do que a transformação de uma posse em propriedade pelo decurso de tempo, desde que respeitados os requisitos para cada modalidade especificada. Então, é uma posse que, em razão do tempo, se transmuda em propriedade. Essa é a definição de usucapião mais encontrada na doutrina. Acontece que não somente a propriedade pode ser objeto de usucapião, mas também outros direitos reais como o direito de gozo, usufruto, direito de superfície. O Provimento nº 23, do Rio de Janeiro, já estabelecia essa possibilidade de modo expresso. Qual a modalidade de usucapião que pode ser invocada perante o registrador? Qualquer uma das modalidades, salvo aquelas que se apresentem incompatíveis com o rito, por exemplo, a usucapião tabular. Ora, usucapião tabular favorece o proprietário que tem título inscrito e que perderia a propriedade por força de uma sentença superveniente. Então, não se pode aproveitar esse procedimento para usucapião tabular, porque suas naturezas são incompatíveis. Todo o resto me parece que é possível. Haveria uma discussão doutrinária, se a usucapião coletiva do Estatuto da Cidade poderia ser feita em sede extrajudicial. Pela própria natureza da usucapião coletiva eu não tenho muita esperança de que ela seja feita extrajudicialmente. Mas, em tese é possível. Se não é utilizada nem em via judicial, quanto mais na extrajudicial para grandes assentamentos de população de baixa renda. De qualquer maneira, a própria minuta do CNJ prevê expressamente a possibilidade de usucapião coletiva. Mas creio que na prática não vai acontecer. Qual o fundamento da usucapião? Basicamente, no direito romano, a usucapião tinha uma peculiari-
A MP 759 foi convertida na Lei nº 13.465, de 11 de julho de 2017.
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PAINEL dade interessante. Ela servia para legitimar, para dar a propriedade àquela pessoa que comprou um imóvel não respeitando as formalidades legais – ou porque não foi observada uma formalidade, ou porque quem vendeu não podia alienar o imóvel, por exemplo, então aproveitava o instituto da usucapião para corrigir esses defeitos na aquisição. Hoje, a usucapião se justifica para o cumprimento adequado da função social da propriedade e, por conseguinte, da posse também. É um instrumento importantíssimo de pacificação social. Ora, eu disse que essas origens romanas são importantes para a gente trabalhar. Vamos imaginar que uma pessoa adquiriu um imóvel de uma sociedade comercial e, como essa sociedade não tinha CND do INSS, era impossível fazer a escritura de compra e venda. As partes resolviam isso por meio de uma adjudicação ou por via de usucapião. Vejam que a usucapião é usada também para corrigir as impossibilidades materiais. A esse propósito, o art. 10 do CNJ, salvo engano, dizia “o interessado terá que demonstrar a razão pela qual não pode obter a adjudicação”. No exemplo que eu dei, por que ele não pode obter a adjudicação? Porque a empresa não tinha condição de fornecer a certidão negativa do INSS, por isso restou se valer da usucapião.
Uso fraudulento do instituto da usucapião Outro dia recebi no cartório um usuário que queria fazer usucapião e verifiquei, nos documentos, que se tratava de compra e venda em que o proprietário ia dar anuência. Na realidade, ele tinha feito uma promessa de compra e venda vinte dias atrás e queria se valer da usucapião para não pagar o imposto de transmissão. Isso caracteriza uso fraudulento do instituto e tem que ser repelido pelos notários e registradores. A despeito da anuência do proprietário, os requisitos têm que estar comprovados. Essa é outra questão que vamos ter que ponderar. Já falei que a lei de usucapião extrajudicial é permitida em quase todas as suas modalidades: indígena, familiar, extraordinário, constitucional urbano, constitucional rural, ordinário, dentre outros.
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Qual é a lógica que a usucapião obedece? Toda usucapião tem requisitos mínimos e, à medida que vai se exigindo menos tempo de posse, mais exigências suplementares existirão. A lógica é essa, quanto menos tempo, mais requisitos adicionais. Trata-se, segundo a doutrina majoritária, de um modo originário de aquisição. A consolidação normativa do Rio de Janeiro tinha uma norma bastante interessante que estabelecia: “Sempre que houver usucapião o registrador tem necessariamente que abrir nova matrícula”, para ficar caracterizado que se trata de forma originária de aquisição. Eu não concordo com essa norma e o novo regramento da usucapião dispõe que só se vai abrir nova matrícula, se necessário. Mas essa norma ilustra como é voz corrente que se trata de modo originário de aquisição. Como consequência, não se exige a prova do pagamento de imposto de aquisição. Outra hipótese, o IPTU, porventura devido, vai ser devido a partir da data em que se consumou o prazo estabelecido para determinada modalidade de usucapião, e não da sentença ou do reconhecimento. Esse é o entendimento majoritário. E também, em tese, o prescribente vai receber o imóvel livre de todo e qualquer ônus. Entenda-se que essa afirmação tem que ser entendida com cuidado. Se eu, possuidor, exerço posse em um imóvel sobre o qual há uma servidão de passagem, por exemplo, mas eu exerço a posse respeitando essa posse, evidentemente que ficará mantida a servidão. Não há efeito liberatório da usucapião nessa hipótese.
Requisitos genéricos Qual é o requisito indispensável para toda e qualquer forma de usucapião? Tem que ter posse, tem que ter tempo e tem que ter coisa hábil. A posse, o que é? É o exercício de qualquer das faculdades do domínio. Na doutrina clássica, a exteriorização do domínio é a posse. Se eu compro um imóvel e passo a residir nesse imóvel, eu estou exercendo posse. E se, ao contrário, eu não quero morar no imóvel, mas quero alugar? Também não deixo de estar exercendo a posse, porque estou usando de outro atributo
Usucapião judicial e extrajudicial da propriedade que é o gozo. A posse é uma das matérias mais intrincadas da teoria do direito civil. Eu quero lembrar que o art. 1.245 do Código Civil não incluiu a posse no rol dos direitos reais. Então, a princípio, posse não é direito real. Nada obstante a doutrina do Código e a doutrina dos códigos de 1916, boa parte da doutrina prevê que a posse tem características próprias inerentes a um direito real. Por que digo isso neste momento? Porque há uma pequena implicação prática nessa questão. Na usucapião extrajudicial é preciso ter anuência do proprietário do imóvel ou dos titulares de direitos da matrícula dos imóveis vizinhos. Então, vamos imaginar que há um posseiro ocupando o imóvel vizinho. Eu tenho ou não que notificar esse posseiro? A norma da nova legislação diz o seguinte, salvo engano: “Notificar qualquer titular de direitos do imóvel ou dos vizinhos que tenham ato de averbação ou de registro na matrícula.” No primeiro momento, esse direito pode ser real ou pessoal. Pouco importa se eu considero a posse como direito real ou pessoal, porque eu teria que notificar o possuidor. Acontece que a redação do novo dispositivo diz: “qualquer direito objeto de averbação ou de registro.” E como regra, a posse não é objeto de registro no direito brasileiro. Salvo em situações especialíssimas, como na legitimação de posse na regularização fundiária. Como, em princípio, a posse não é objeto de averbação nem de registro na matrícula, não seria preciso notificar o possuidor do imóvel vizinho, mas penso que isso é perigoso. Acho que é recomendável notificar sim. Por outro lado, é preciso notificar o locatário? Sim, porque a locação pode ser objeto de averbação e de registro, dependendo se for para direito de preferência ou para aquela regra de venda no rol de locação. Haveria outra situação em que seria obrigatória a intimação do possuidor. Vamos admitir uma hipótese não muito usual, mas possível, de alguém que já completou o prazo de prescrição de quinze anos, mas por alguma razão perdeu a posse do imóvel. Tem esse ex-possuidor interesse em propor uma ação ou um requerimento extrajudicial de usucapião? Segundo a doutrina, sim. Ele vai reconhecer que completou o
prazo de quinze anos há dois anos, mas que hoje ele perdeu a posse. E acho que seria indispensável a notificação do atual possuidor. Mas essa é uma hipótese que penso que vai ser menos comum. Geralmente há interesse nesse tipo de reconhecimento de usucapião para efeito de se buscar a liberação de dinheiro depositado em desapropriação judicial. Então, mesmo ele não tendo posse atual, há interesse jurídico e econômico no reconhecimento dessa usucapião. O novo Código Civil adotou a teoria objetiva da posse. Isso aparece com todas as letras no art. 1.196 do Código Civil e pôs fim a uma séria e longa discussão doutrinária. Para efeito de usucapião, embora a posse seja objetiva, quando a posse é invocada para efeito de usucapião aí sim vamos fazer exame do animus domini. Não basta que o exercício dessa posse seja de mera posse, tem que ser uma posse qualificada. E são três os requisitos para essa posse ser qualificada. Ela tem que ser mansa, pacífica, contínua e com ânimo de dono. Se a posse não for contínua, se houver interrupção no exercício dessa posse, o prazo é interrompido e começa a contar novamente. O prazo tem que ser contínuo e a posse tem que ser mansa e pacífica, ou seja, não pode ter havido insurgência do proprietário da coisa em relação à posse exercida. E o que vai provar essa insurgência é a juntada, no procedimento extrajudicial, das certidões de feitos ajuizados, para saber se o proprietário ajuizou ação reivindicatória ou ação possessória contra o possuidor. No entanto, o simples fato de haver um ajuizamento, uma ação reivindicatória ou possessória, não significa que ficará obstada a via da usucapião. Se o possuidor sair vencedor tanto na ação reivindicatória quanto na possessória, ele terá o reconhecimento da usucapião. Por fim, ele também tem que agir como dono. Para que serve essa noção de animus domini? Para afastar a detenção e a posse consentida. O que quero dizer com isso? Que o caseiro, por exemplo, não tem posse, ele tem mera detenção, e logo ele não pode agir como dono da coisa, ele não pode ter animus domini, por isso não pode usucapir. Da mesma forma, quem tem a posse consentida, como locatário ou comodatário, não pode invocar usucapião porque
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PAINEL a posse é consentida.
temporal.
Havia controvérsia quanto à possibilidade de um promitente comprador ajuizar a ação de usucapião. A jurisprudência mais tradicional negava esse direito, uma vez que o promitente comprador está lá autorizado pelo dono, logo ele não pode usucapir. O STJ pacificou essa questão entendendo que sim, promitente comprador desde que pago o preço, tem animus domini. Está mais ou menos pacificada essa linha jurisprudencial. Não precisa do registro, mas o STJ exige a prova do pagamento do preço.
Hoje, a usucapião de menor prazo no Brasil é de dois anos e a maior é de quinze anos. Pode haver soma dos prazos de posse. Se for a título singular, se chama “acesso temporário”, e se for a título universal é “sucessio”.
Além disso, para alguns autores, a posse tem que ser justa. Eu não concordo, acho que não é um requisito da usucapião, mas muitos autores dizem que essa posse tem que ser justa. Ou seja, tem que ser uma posse que não é viciada. Uma posse viciada é aquela que tem o vício da violência, da clandestinidade ou da precariedade. Enquanto não cessada a violência, a rigor não há nem posse. Só passa a haver posse quando cessado o vício, diz o art. 1.208 do Código Civil. Isso vira uma contradição em termos. Como posso chamar de posse violenta uma coisa que não é posse? Porque só há posse a partir da cessação do vício. A doutrina esclarece essa contradição e diz “até a cessação da violência não há posse, há mera detenção”. No entanto, essa posse não transmuda a natureza. Se ela era violenta, ela vai continuar a ser violenta. Obviamente que uma posse violenta não vai impedir a usucapião. A posse não pode ser violenta, não pode ser precária e não pode ser clandestina. Quanto à natureza da posse, a doutrina tem admitido o que se chama de “interversão da posse”. Uma posse que começou, por exemplo, com o vício da precariedade pode se transformar em posse animus domini, uma posse justa. Exemplo típico: morre o proprietário de um imóvel rural que tem um caseiro. Os herdeiros nunca mais vão ao imóvel, deixam de pagar o salário do antigo caseiro e mais tarde este vem a pedir reconhecimento de usucapião. Esse é um típico fenômeno de interversão da posse. Mas esse novo ânimo tem que ficar provado sem estreme de dúvida. O primeiro requisito é a posse com essas características. O segundo requisito diz respeito ao espaço
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Na usucapião constitucional, rural ou urbana, excepcionalmente, a lei dispõe que não pode haver soma de prazo do antigo com o novo proprietário, mas só nessas duas modalidades de usucapião (rural e urbana constitucional). No Estatuto das Cidades existe previsão para essa usucapião igual a constitucional. Pode ser invocada por herdeiro que resida no imóvel, e que residia junto com seu falecido genitor. Mas, nesse caso, não se trata de soma de posses e sim de reconhecimento de que o herdeiro era co-possuidor da coisa. A jurisprudência não exige, como se fazia no passado, um ato formal de cessão de posse para efeito de soma. Se admite prova testemunhal. Terceiro requisito, coisa hábil. Em regra, só coisas corpóreas móveis, imóveis e semoventes podem ser objeto de usucapião. Lembro, entretanto, que a súmula 193 do STJ admitiu usucapião sobre linha telefônica. Hoje isso não tem o menor interesse, mas no passado havia famílias que tinham o patrimônio todo em linhas telefônicas:10, 20, 50.
Usucapião extrajudicial em loteamento irregular É possível ter usucapião extrajudicial em loteamento irregular ou em condomínio não regularmente instituído? Há muita celeuma nesse particular. Eu penso que em se tratando de forma originária de aquisição da propriedade é possível que se faça, para fins de pacificação e da publicação da função social da posse. Tem que ser admitida a posse em loteamento clandestino ou irregular. Não é possível que essa posse tenha que ficar dez, quinze ou vinte anos esperando a
Usucapião judicial e extrajudicial regularização por parte do poder público ou do loteador que causou essa situação. Para aqueles que são contrários a essa possibilidade, eu invoco o julgamento do Recurso Extraordinário nº 42.349, do Supremo Tribunal Federal, que afirma ser possível a usucapião em loteamento irregular.
Usucapião em áreas abaixo do mínimo legal Outro tema seria a possibilidade de usucapião em lotes abaixo do mínimo legal estabelecido na lei municipal, ou na usucapião rural, abaixo de 50 hectares. A jurisprudência predominante é no sentido de que pode sim haver. Não é preciso respeitar o módulo rural ou a lei municipal que dá um padrão mínimo. Se for usucapião constitucional, que estabelece lotes de no mínimo 250 metros para urbana e área de 50 hectares para rural, é óbvio que a Constituição não pode ser restringida por uma norma local. Mas fora dessa hipótese a usucapião é admissível. No Rio de Janeiro há um Incidente de Uniformização (nº 317) do Tribunal de Justiça, dispondo que pode ser feita usucapião abaixo desses módulos.
Condomínio edilício No que se refere ao condomínio edilício, muitos só admitem usucapião de unidade condominial se o condomínio estiver previamente estabelecido. Eu não concordo com essa posição. Inclusive, a minuta do CNJ – art. 10, § 7º –prevê usucapião de unidade condominial em condomínio não regularmente instituído. A dificuldade é saber qual o critério. Antes dessa lei já se dizia que uma das modalidades para se instituir usucapião é mediante sentença judicial com o juiz fixando a fração ideal. E para o cartório, qual vai ser a fração? Essa é uma dificuldade. Para salvar a aplicação do instituto, eu recomendo o seguinte critério: não tem fração ideal instituída no condomínio, mas vou me valer da fração ideal que consta da prefeitura, porque esses imóveis pagam IPTU onde consta a fração ideal. Ou então, que venha uma decisão de uma assembleia extraordinária para esse fim.
Usucapião de bens públicos e enfitêuticos Bens públicos podem ser usucapidos? Também é uma grande discussão. Para simplificar, bens públicos não podem ser objeto de usucapião. Bens pertencentes a empresa pública e sociedade de economia mista podem ser objeto de usucapião? Sim, porque há participação do Estado nessas empresas, mas em caráter privado. A única dúvida seria: e se uma empresa pública ou uma sociedade de economia mista estiver realizando uma atividade pública em terreno público? Essa é uma questão a ser considerada. Bens enfitêuticos podem ser objeto de usucapião? Sim, mas só o domínio útil, não a propriedade, que é da União, é imprescritível. O que vai ser objeto de usucapião é o domínio útil sobre a área. Para que haja usucapião é indispensável que a enfiteuse esteja regularmente instituída.
Usucapião de imóvel hipotecado pelo SFH, bem de família e bens penhorados Imóvel hipotecado pelo SFH pode ser objeto de usucapião? O STJ controverte sobre essa matéria. Alguns julgados dizem que o art. 9º da Lei 5.741/1971 estabelece que é crime a ocupação desses imóveis hipotecados pelo SFH, portanto, não haveria animus domini, não poderia ser objeto de usucapião. Eu estou com outras decisões mais recentes do STJ que interpretam que a lei não diz que bens hipotecados são bens públicos, portanto, eles podem ser livremente usucapidos. Em sede de usucapião extrajudicial essa questão não vai surgir porque em princípio só se admite usucapião, se houver concordância do credor hipotecário. Mas vamos deixar assentado que há esse julgado. Bem de família também, a doutrina entende que pode ser objeto de usucapião, assim como bens penhorados e arrestados.
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PAINEL
Ata Notarial – Usucapião registral Paulo Roberto Gaiger Ferreira – 26º Tabelião de Notas de São Paulo. Presidente do Colégio Notarial do Brasil – CF
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A ata notarial tem a seguinte característica: what you see is what you get. Ou seja, o que o tabelião vê, o que ele sente, o que percebe pelos seus sentidos é o que ele vai entregar na redação do ato notarial.
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Usucapião judicial e extrajudicial
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ata notarial é instrumento antigo do tabelião. Eu classifico os atos notariais em dois, escrituras públicas e atas notariais, que se subdividem em outros subtipos. Esses são os únicos tipos de atos notariais. Quando eu assumi o cartório em São Paulo, em 2000, não era hábito fazer ata notarial. Eu venho do Rio Grande do Sul, a escola gaúcha é muito influenciada pelo sistema argentino e uruguaio. Na Argentina e no Uruguai é muito frequente a ata notarial, eles têm as atas notariais de protestaciones e notificaciones. Eu cheguei em São Paulo e comecei a propor ao mercado a ata notarial. Na época, a internet ganhava corpo e começaram a aparecer as fraudes. Começamos a fazer atas de sites na internet e os advogados começaram a perceber a importância da ata notarial, porque as fraudes implicavam expressão econômica significativa. A ata notarial, então, servia para provar o que havia acontecido, o ilícito. Tivemos uma ata notarial que rendeu ao solicitante uma indenização de 300 milhões de reais. Já está julgado pelo TJ de São Paulo, unânime, e ainda em recurso no STJ. Depois vieram atas notariais de paparazzi. Agora estamos na fase das atas notariais de família, em geral para comprovar traição por via de WhatsApp. Essas indenizações milionárias demonstraram a importância da ata notarial.
Ato notarial: ritualístico, técnico, litúrgico A autenticação notarial é um ato mais simples, mas o que surgiu antes foi a escritura pública, ou seja, o ato de redação é que era necessário nos primórdios da atividade notarial. Somente no Código de Justiniano – Novela 44 (537 d. C) – se inaugura a autenticidade notarial. Uma viúva cujo marido havia feito testamento perante tabelião foi ao juiz para comprovar o testamento, fazer o que hoje seria o registro do testamento. O juiz perguntou a ela pelas testemunhas e pelo tabelião, para comprovar a validade do testamento. A viúva disse
que as testemunhas não existiam mais, e o tabelião foi chamado. O tabelião relatou que aquele testamento tinha sido feito por seu antigo escrevente, que já tinha ido embora e ele não sabia para onde. A decisão do juiz foi no seguinte sentido: que os atos notariais por si só fazem prova plena daquilo que o tabelião disse que ocorreu perante eles. E junto dessa Novela há um código de normas, porque já havia um juiz corregedor, e eles disseram que tudo tinha que ter um ato notarial. O ato notarial, então, foi adquirindo técnicas e é um ato sobretudo litúrgico. Se alguém pensou que estou falando em termos religiosos, é de fato isso que acontece. Aliás, a forma tem muito a ver com o que o Estado provê para a garantia dos direitos. São rituais, são liturgias. Por exemplo, a expressão fé pública também tem caráter religioso. O ato notarial é um ato sacramental. É um sacramento. Isso é algo esquecido por nós, porque somos pessoas da ciência do Direito. Por exemplo, existem decisões da Justiça em testamentos – o ato mais solene que fazemos – que dizem que o fato de uma testemunha não ter assistido a todo o ato não importa tanto. Foi dado o sacramento, ou seja, o ato foi finalizado. Essa era a vontade do testador, então não iremos perdê-la. É importante ter isso em mente, porque a ata notarial de usucapião é uma ata totalmente sacramental. E isso não é novidade. Vejamos um trecho do diário de bordo de Cristóvão Colombo. Ele menciona a ata notarial que foi feita quando eles desceram à terra para obter a posse da área. “Puestos en tierra vieron árboles muy verdes y aguas muchas y frutos de diversas maneras. El Almirante llamó a los dos capitanes y a los demás que saltaron a tierra, y a Rodrigo D’Escobedo, escribano de toda la Armada, y a Rodrigo Sánchez de Segovia, y dijo que le diesen por fe y testimonio cómo el por ante todos, tomaba, como de hecho tomó posesión de la dicha isla, por el Rey e por la Reina, sus señores, haciendo las protestaciones que se requerían, como más largo se contienen en los testimonios que allí se hicieron por escripto”. (Ata de descobrimento da América – 1492)
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PAINEL Eles fizeram essa ata de usucapião. O notário Rodrigo D’Escobedo fez essa ata, que depois foi levada ao papa, para que fossem concedidos os direitos exploratórios do Novo Mundo aos reinos de Aragão e Castela.
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NA ATA NOTARIAL DE USUCAPIÃO, O TABELIÃO TEM QUE PENSAR NO DESTINATÁRIO DO ATO JURÍDICO. ELE TEM QUE CONVENCER O DESTINATÁRIO DO ATO JURÍDICO DAQUILO QUE ELE PERCEBE. ELE TEM QUE FAZER COM QUE A PESSOA SE CONVENÇA DE QUE O QUE ELE VÊ É AQUILO QUE OCORRE.
Uma nota sobre a ata de descobrimento do Brasil. Não se sabe, mas havia um notário na caravela de Cabral, Afonso Furtado. Além de notário, ele estava a serviço secreto do rei. Um esclarecimento, a Carta de Pero Vaz de Caminha não é ata notarial, porque ele não era notário. Muitos autores falam que a carta de Pero Vaz de Caminha é um ato notarial. Não é.
Conceito de ata notarial Ata notarial, segundo o novo Código de Processo Civil. Art. 384. A existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião.
Ao dizer “tabelião”, a lei diz de toda a estrutura do tabelião, incluindo o próprio tabelião, seu substituto e escreventes. A ata notarial tem a seguinte característica: what you see is what you get. Ou seja, o que o tabelião vê, o que ele sente, o que percebe pelos seus sentidos é o que ele vai entregar na redação do ato notarial. Ele pode fazer uma seleção de fatos, uma seleção do acontecimento, sempre tendo em vista a solicitação da parte. No entanto, ele deve levar em conta também os atos relevantes que percebe e que a parte, eventualmente, não queira que ele perceba, mas que ele tem o dever de declarar na ata notarial.
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Distinções e semelhanças entre ata notarial e escritura pública A ata é estritamente autenticatória. A escritura pública tem autenticações, mas é sobretudo constitutiva. A ata visa proteger direitos e a escritura pública é, em geral, uma relação jurídica.
Alguns aspectos são importantíssimos. Na ata notarial, a desistência da assinatura da parte permite ao tabelião finalizar o ato, subscrever o ato. Na escritura pública jamais, e o ato é secreto, exceto mediante ordem judicial. A ata notarial não tem juízo de valor. A escritura pública tem um juízo de valor, uma qualificação legal. Geralmente, o que se faz na ata notarial é descrever fatos ilícitos.
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E há uma questão básica: quem é o tabelião para dizer o que é um ato ilícito? A razão de existir da ata é justamente relatar o que se percebe e deixar a valoração, a qualificação do fato, para a atuação posterior do juiz. No caso da ata notarial de usucapião, o tabelião, ao fazer a ata, tem que pensar no destinatário do ato jurídico. Ele tem que convencer o destinatário do ato jurídico daquilo que ele percebe. Ele tem que fazer com que a pessoa se convença de que aquilo que ele vê é aquilo que realmente ocorre. O tabelião deve ter uma técnica muito apurada para perceber os atos que estão acontecendo. Por exemplo, eu já fiz ata notarial de poluição em rio, de verificação de buraco em autódromo, de lacração de HD, de infrações autorais, de infrações de códigos fontes. O tabelião não é obrigado a conhecer esses fatos, mas é necessário desenvolver de algum modo a técnica para descrevê-los para o destinatário do ato.
UsucapiĂŁo judicial e extrajudicial
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PAINEL Novo CPC – Usucapião registral Prefiro chamar de registral porque de fato é. O registrador agora prevê jurisdição, ele é o juiz do assunto, ele vai decidir esse assunto. O que pensamos para a ata notarial é que o tabelião poderá fornecer ao registrador o máximo de elementos possíveis para que ele chegue à conclusão de atribuir a propriedade ou não. E aqui, repito, o tabelião tem que atestar. Tem gente falando que o tabelião não pode atestar, que seria uma atestação impossível, porque o tabelião teria que ficar o tempo inteiro verificando aquele fato. Essa ata é sacramental, ou seja, a lei exige que o tabelião ateste. E o tabelião tem que se convencer da boa-fé daquele possuidor, que de fato ele está ali no prazo definido pela lei, na posse mansa, pacífica e contínua. Basta o tabelião se convencer disso. Se ele não se convencer disso, ele não lavra a ata. Se ele se convencer parcialmente, ele lavra a ata informando da parcialidade. Por exemplo, um prazo determinado já é um documento que diz “atesto que o posseiro está
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aqui por dez anos”. Se no futuro o posseiro conseguir outra prova, ele poderá voltar e fazer uma nova ata para atestar o restante do tempo, ou ir a outro tabelião que talvez com um julgamento mais flexível entenda que houve um acessio possessionis. O que o tabelião atesta? O tempo de posse e as circunstâncias. Para atestar circunstância, o solicitante terá que informar o tipo de usucapião que ele vai solicitar. Na usucapião relâmpago, por exemplo, ele poderia informar por testemunhos que a cônjuge foi abandonada há tanto tempo, em tal situação. O tabelião tem que ter esse tipo de precaução. A cautela notarial, a prudência notarial, como diz o professor Ricardo Dip. Se houver contratos que proveem a aquisição dos direitos, ele vai citar. Eventuais pagamentos de tributos, de contas de consumo, tudo isso ele poderá citar nessa ata notarial. Também pensamos em objeto mais ampliado, ou seja, lançar na ata notarial o laudo técnico do profissional habilitado – engenheiro ou arquiteto – aí sim essa pessoa tem que assinar. Isso não dispensa, penso eu, de apresentar esse laudo técnico apartado, mas no
Usucapião judicial e extrajudicial futuro podemos pensar em ter um documento integrativo e completo sempre que possível.
Controvérsias Eu costumava dizer que essa era uma lei natimorta porque precisava da anuência dos titulares de direitos reais, e não tinha muita aplicação. Agora eu acho que a coisa vai para frente. Tem gente que fala que se trata de uma escritura pública de justificação de posse que teria também uma ata notarial. Em geral, essas controvérsias vêm porque o Estado não tem uma boa tabela de emolumentos para ata notarial. Naqueles Estados em que o tabelião não recebe uma remuneração condigna ao ato, ele não vai fazer ata notarial. E de fato, tem alguns Estados, como o Ceará, que estão querendo a mesma regulamentação de São Paulo e do Rio de Janeiro, ou seja, pelo valor atribuído ao imóvel e remuneração conforme os princípios da lei federal de emolumentos. O solicitante da ata precisa ser o requerente da posse? Não precisa, pode ser o advogado, pode ser um terceiro com algum legítimo interesse, mas o melhor mesmo é que seja o requerente da posse. Incapazes e pessoas jurídicas, incapazes representados por seus representantes, as pessoas jurídicas acho que também podem requerer a posse. Não é preciso advogado na ata. É indispensável para o requerimento ao registrador, mas na ata não é indispensável. Contudo, eu espero e estimulo que os tabeliães chamem o advogado para ata notarial, porque esse é um assunto que necessita de advogado em determinado momento. Quanto ao imóvel sem matrícula, eu concordo integralmente que o imóvel não seja matriculado. A verificação do imóvel in loco é o tema que mais tem dado debate e controvérsia no meio notarial. A maioria dos notários entende que é indispensável a verificação in loco. Eu sempre entendi que essa verificação não é necessária por várias razões, uma delas é que seria uma verificação momentânea que não vai
provar a posse mansa, pacífica e contínua. Não é necessário ver o imóvel por conta daquele princípio, a ata é sacramental. A pessoa pode demonstrar – por meio de documentos, fotografias, contas de consumo, um título aquisitivo – que ela tem a posse. As testemunhas não precisam ser os confinantes, mas quaisquer vizinhos. Se o tabelião estiver convicto da boa-fé daquele posseiro, ele atesta a ata. A questão de não fazer a visitação in loco é uma questão melindrosa para os tabeliães. Se não houver verificação in loco, todos os tabeliães do Brasil poderão fazer atas de usucapião em todas as cidades do Brasil. É uma questão de territorialidade, a Lei 8.935/1994 garante a liberdade de escolha do tabelião, esse é um princípio do notariado. Se não houver a verificação do imóvel, qualquer notário poderá lavrar. O registrador pode exigir mais atestações? Evidentemente que sim, é um critério do registrador, ele vai ter que se convencer, então, ele não está restrito ao que o tabelião declara. A especificação da usucapião não é necessária, mas é muito conveniente, o tipo de usucapião que vai ser solicitada. O notário pode se negar a lavrar, evidentemente. Se ele não se convencer da posse mansa, pacífica e contínua, e dos outros caracteres da usucapião, ele não precisa lavrar essa ata. Ele se negará, fazendo a justificação. O notário pode se negar a cumprir as exigências do oficial de registro sobre a ata? Sim, se ele achar que a exigência é descabida. Eu acho que isso depende muito do bom senso, geralmente, os tabeliães cumprem as exigências registrais sem problema, sempre tentando evitar o procedimento da dúvida. A Central de Indisponibilidades é indispensável (CNJ Prov. 39/2014), mas não são necessárias as certidões da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) e as certidões municipais. As certidões de distribuição são muito importantes, porque elas vão provar que a posse é pacífica, que não há nenhuma controvérsia judicial sobre aquela posse que se pretende usucapião.
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Usucapião judicial e extrajudicial Francisco José Barbosa Nobre – Oficial de Registro de Imóveis da Comarca Metropolitana de Curitiba – Foro de Piraquara (PR)
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Hoje, mesmo com todas as dificuldades nos deparamos com metade da plateia dizendo que já fez atas notariais de usucapião e vários registradores que registraram reconhecimentos judiciais de usucapião. Agora, a nova posição da lei de passar a considerar o silêncio como concordância vai multiplicar de maneira exponencial as regularizações. 202
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Usucapião judicial e extrajudicial
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mbora muito pouco se tenha escrito a respeito da usucapião extrajudicial no Direito brasileiro, ela vem de uma corrente histórica que é o fenômeno sociológico e jurídico da desjudicialização.
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NÃO SEI SE TODOS SE APERCEBEM DA VERDADEIRA REVOLUÇÃO QUE É TRAZER A USUCAPIÃO PARA O EXTRAJUDICIAL, AGORA DE MANEIRA AMPLA E GERAL. A LEI NOS CONVOCOU PARA A TAREFA DE FAZER A REGULARIZAÇÃO PATRIMONIAL NO BRASIL, ALCANÇANDO CERCA DE 30 MILHÕES DE UNIDADES IMOBILIÁRIAS. E ISSO NÃO É POUCA COISA.
O Poder Judiciário cresceu de tal forma e recebeu tantas demandas que em dado momento surgiu a necessidade de se transferirem algumas atividades para outras entidades. Surgiu assim o fenômeno sociojurídico da desjudicialização, que talvez tenha começado com o Decreto-lei 70/1966, responsável pela desjudicialização da execução hipotecária para agentes fiduciários em geral, bancos ou sociedades de crédito, credenciados pelo BNH.
Várias outras iniciativas foram surgindo e, ao que parece, com o passar de tempo foi se consolidando a ideia de que a desjudicialização deve ser feita no sentido do foro extrajudicial, que foi se tornando cada vez mais conhecido e mais próximo do cidadão. No foro extrajudicial, um dos pontos culminantes dessa trajetória da desjudicialização foi a Lei 11.441/2007, que desjudicializou a separação, o divórcio e o inventário. Aqueles procedimentos, principalmente de inventário, que podiam levar décadas para serem concluídos, passaram a ser resolvidos em poucas semanas no Tabelião. Ninguém imaginaria que a Lei 11.441 iria ter o impacto que teve na vida do cidadão e no próprio Judiciário, que viu as suas prateleiras se esvaziarem. Ontem, o Senado aprovou o Projeto de Lei de Conversão da Medida Provisória nº 759, PLC nº 12/2017, e esperamos que essa decisão seja confirmada com a
sanção presidencial . Hoje estamos vivendo novamente um desses momentos culminantes. Não sei se todos se apercebem da verdadeira revolução que é trazer a usucapião para o extrajudicial, agora de maneira ampla e geral.
Nos últimos cem anos, a grosso modo, as regiões metropolitanas têm dobrado de crescimento a cada vinte anos. As regiões metropolitanas acolheram os migrantes que vinham do campo para as cidades. É um fenômeno histórico e sociológico que trouxe do campo para as cidades uma quantidade enorme de pessoas. E essas pessoas acabaram se alojando onde era possível, por isso nas regiões metropolitanas a demanda pela usucapião é extraordinária. Minha previsão superficial é que nos próximos cinco anos devo realizar pelo menos três mil usucapiões extrajudiciais, se for mantida a fórmula que foi aprovada ontem pelo Senado.
”
Este é um daqueles momentos de desafio para nossa categoria. A lei nos convocou para a tarefa de fazer a regularização patrimonial no Brasil, alcançando cerca de 30 milhões de unidades imobiliárias. E isso não é pouca coisa.
Análise dos provimentos estaduais: legalidade, necessidade e conveniência da regulamentação O tema a mim reservado foi fazer uma análise comparativa dos provimentos estaduais existentes a respeito da usucapião extrajudicial. Eu adianto aos senhores que a vedete desse tema mudou. A grande vedete eram as formas inteligentes,
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PAINEL hábeis, com que a regulamentação vinha contornando o gargalo da exigência de concordância expressa do proprietário tabular. De ontem para hoje houve alguma modificação. Mas essa modificação traz novos temas e novos pensamentos a serem compartilhados ao longo desta exposição.
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É CURIOSO, UM TEMA QUE PARECIA TÃO CONTROVERSO PARA OS REGISTRADORES, AS CORREGEDORIAS ENTENDEM PERFEITAMENTE POSSÍVEL. DEZ CORREGEDORIAS GERAIS DE JUSTIÇA SE MANIFESTARAM POSITIVAMENTE QUANTO À POSSIBILIDADE DE USUCAPIÃO DO IMÓVEL SEM REGISTRO.
Inicialmente vamos abordar a legalidade dessa regulamentação. O poder regulamentar é algo inerente à própria atividade administrativa. E há muito tempo está acertado que o poder de fiscalizar também abrange o poder de expedir normas regulamentadoras. Nós convivemos diariamente, em nossos Estados, com normas de serviço de emissão das corregedorias. Podemos ter também regulamentações expedidas pelos juízes corregedores locais ou pelo próprio Conselho Nacional de Justiça. Não me parece haver grande dificuldade em aceitarmos a legalidade da expedição de regulamentos pelo Poder Judiciário, que nos fiscaliza, quanto àquelas atividades que desempenhamos, em especial, a usucapião extrajudicial. É claro que essa atividade regulamentar tem limites a serem observados, ela não pode extravasar os limites da lei. Por outro lado, sendo uma atividade administrativa, ela também está abrangida pela presunção de legalidade característica de todos os atos administrativos. Uma regulamentação administrativa expedida por uma corregedoria estadual, por exemplo, deve ser presumidamente legal. Em princípio, não podemos nos furtar a cumprir uma regulamentação expedida pela Corregedoria Geral de Justiça sob pena de infringir nossos deveres funcionais previstos na Lei 8.935. O segundo aspecto das regulamentações estaduais diz respeito a sua necessidade. É necessário que haja uma regulamentação por parte das corregedorias?
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Já não existe a lei? Para que mais uma regulamentação? A regulamentação não seria uma simples repetição daquilo que está na lei? Na verdade, não. O legislador tem sido bastante lacônico nessas grandes mudanças a respeito da desjudicialização. Se nos lembrarmos da Lei 11.441, ela modificava apenas dois ou três artigos do CPC.
Por exemplo, o novo CPC introduziu um artigo que agora será reformulado por essa lei de conversão da MP 759. Apenas um artigo da Lei de Registros Públicos será responsável por disciplinar uma matéria complexa como a usucapião extrajudicial. Então, me parece absolutamente necessário o detalhamento das disposições legais mediante a expedição de provimentos pelas corregedorias e, quem sabe, pelo CNJ.
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Um terceiro aspecto, além da legalidade e da necessidade, é a conveniência dessa regulamentação. É conveniente que o Poder Judiciário expeça regulamentos para disciplinar a aplicação do art. 216-A da Lei de Registros Públicos? Todos os dias o registrador tem que interpretar situações que a realidade apresenta e conjugar essas interpretações dos fatos com intepretações da lei. Um único dispositivo legal pode comportar inúmeras interpretações. Nós somos operadores do direito independentes, temos autonomia técnica. Mas, se por um lado somos operadores de direito independentes, por outro lado somos fiscalizados. O registrador e o notário são alvo de permanente fiscalização pelo Poder Judiciário. Então, se por um lado é verdade que a interpretação através da regulamentação tolhe em certa medida nossa liberdade de exegese jurídica, por outro lado, ao fixar determinada interpretação da lei, a regulamentação nos dá a tranquilidade de seguir sem sobressaltos determinada vertente interpretativa apontada pelo ente fiscalizador.
Usucapião judicial e extrajudicial Além disso, em se tratando de matéria nova, a orientação jurisprudencial a respeito da interpretação do art. 216-A da Lei de Registros Públicos ainda deve demorar, ao passo que a interpretação regulamentar é precursora. Hoje, nós temos dezessete provimentos estaduais a respeito de usucapião extrajudicial. É verdade que três deles praticamente repetem os termos da lei, mas temos ao menos catorze provimentos estaduais que são bastante criativos. Então, a interpretação pela via regulamentar acaba sendo um instrumento de eficácia na aplicação da lei. Hoje, mesmo com todas as dificuldades nos deparamos com metade da plateia dizendo que já fez atas notariais de usucapião e vários registradores que registraram reconhecimentos judiciais de usucapião. Agora, a nova posição da lei de passar a considerar o silêncio como concordância vai multiplicar de maneira exponencial as regularizações.
Pois bem, dezessete Estados já expediram regulamentações, alguns através de provimentos que tratam exclusivamente de usucapião, outros através da modificação de suas normas de serviço ou código de normas. Dez Estados ainda não expediram regulamentações, eles aguardam a regulamentação geral a ser expedida pelo CNJ. Eu me propus a fazer um estudo comparativo desses provimentos e selecionei alguns temas para analisarmos as interpretações das várias corregedorias.
Admissibilidade da usucapião de imóvel sem registro O primeiro tema é o da admissibilidade da usucapião de imóvel sem registro, aquele imóvel que não tem matrícula nem transcrição no Registro de Imóveis. Esse imóvel pode ser objeto de usucapião extrajudicial?
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PAINEL As primeiras discussões a respeito desse tema empolgaram os registradores e metade deles dizia que sim, outra metade dizia que não. Os que diziam que não, achavam que não poderia haver usucapião nesse caso porque era imprescindível, dizia a lei, a manifestação do proprietário tabular. E não havendo registro, não haveria como o proprietário tabular se manifestar. Os outros discordavam exatamente por isso, alegando que se não há proprietário tabular, não há quem manifestar concordância. Seria suficiente provar a posse e seria desnecessária a discussão a respeito da anuência – impossível de ser observada. Embora esse tema tenha sido vivamente debatido entre os registradores, o fato é que os provimentos estaduais foram unânimes no sentido de permitir a usucapião do imóvel sem registro. Dos dezessete regulamentos expedidos, apenas dez trataram do tema e todos o fizeram de maneira concordante, no sentido de que é perfeitamente possível a usucapião de imóvel sem registro, sem necessidade de manifestação de concordância do proprietário tabular, simplesmente porque ele não existe. É curioso, um tema que parecia tão controverso para os registradores, as corregedorias entendem perfeitamente possível. Dez Corregedorias Gerais de Justiça de unidades da federação se manifestaram positivamente, e nenhuma se manifestou negativamente, quanto à possibilidade de usucapião do imóvel sem registro.
Usucapião de direitos reais distintos da propriedade Outro ponto relativo à admissibilidade da usucapião já foi mencionado aqui. O provimento a respeito da usucapião no Rio de Janeiro permite a usucapião de direitos reais distintos da propriedade. Em mais dois outros Estados há previsões semelhantes. Rio de Janeiro, Rondônia e Pernambuco permitem a usucapião de direitos reais distintos da propriedade. No caso de Pernambuco, limitado apenas ao aforamento. Já a regulamentação do Ceará proíbe expressamente a usucapião de direitos reais distintos da propriedade. E as
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regulamentações dos demais Estados silenciam a respeito do assunto.
Usucapião de imóvel de dimensão inferior ao mínimo legal Quanto à área do imóvel, é possível haver usucapião de imóveis de dimensão inferior ao mínimo legal? O Estado de Pernambuco tem um provimento que proíbe expressamente a realização de usucapião extrajudicial de imóveis com área inferior ao mínimo legal. Os Estados de Minas Gerais e de Rondônia têm disposições que permitem a usucapião de imóvel inferior ao mínimo legal desde que atendidos os requisitos da usucapião constitucional. Parece haver grande influência da decisão do Supremo Tribunal Federal em repercussão geral do Recurso Extraordinário 422.349, admitindo a possibilidade da usucapião de loteamento irregular, e dizendo que lei municipal não poderia criar requisitos mais severos do que aqueles previstos para usucapião constitucional.
Etapa de conciliação em caso de divergência Outro ponto em que houve grande concordância entre os vários provimentos estaduais é aquele relativo a uma etapa de conciliação no procedimento. Havendo divergência, havendo alguma impugnação, seja por parte dos entes públicos, seja por parte de um confinante, ou do próprio proprietário tabular, nove regulamentos estaduais – Ceará, Minas Gerais, Pará, Pernambuco, Paraná, Rio Grande do Norte, Rondônia, Santa Catarina e São Paulo – preveem uma etapa conciliatória. As corregedorias colocaram os registradores nessa posição proativa de reunir as partes no cartório. Evidentemente esse convite não é obrigatório, mas, acolhendo essa convocação, as partes se reúnem com o registrador como a pessoa imparcial nessa situação, podendo se convencer da conveniência de concordar com a usucapião pretendida.
Usucapião judicial e extrajudicial Concordância expressa do proprietário tabular A grande vedete das regulamentações, como eu dizia, era a facilitação do atendimento a esse requisito de concordância expressa, principalmente do proprietário tabular. Várias regulamentações previram, em primeiro lugar, que sendo o proprietário tabular ou os confinantes, algum dos confiantes falecido, é possível a coleta de assinaturas, manifestação de anuência por parte de seus herdeiros ou inventariantes. Dez Estados têm disposições nesse sentido, ora dizendo que a concordância será manifestada pelos herdeiros, ora dizendo que será pelo inventariante ou pelos herdeiros. No Paraná, em especial, dizendo que será pelo inventariante ou pelos herdeiros, mas não podendo ser manifestada pelo inventariante dativo, aquele desprovido de representação do espólio.
Anuência dos entes públicos A anuência dos entes públicos também é considerada como concordância em nove Estados, caso o ente público se mantenha silente. Entretanto, o Estado do Ceará considera que o ente público tem que se manifestar expressamente.
Anuência suprida pela apresentação de instrumento alienatório Talvez o ponto mais criativo desses instrumentos destinados a contornar a exigência legal esteja na possibilidade de a anuência ser considerada suprida mediante a apresentação de instrumento alienatório, ainda que passados muitos anos de sua elaboração. É a velha história do papel de pão. Alguém escreveu num papel de pão “vendo a casa para o Manoel”, obtendo ali o reconhecimento de firma, a quitação do preço. Esse instrumento alienatório pode ser considerado como supridor da anuência nos Estados do Ceará, Minas Gerais, Pará, Pernambuco, Paraná e Rio de Janeiro. Pelo menos até onde me foi possível
pesquisar, os demais Estados não têm disposições semelhantes.
Contagem do prazo Ainda vale a pena mencionar a questão da contagem do prazo. Parece uma questão elementar, mas ela está presente no dia a dia. Como se contam os prazos no procedimento de usucapião? Apenas dois Estados trataram desse tema. O Estado do Paraná, que disse que a contagem é feita na forma da lei civil, ou seja, prazo corrido. Recentemente, um provimento de São Paulo, ainda que não destinado a disciplinar especificamente usucapião extrajudicial, mas mencionando usucapião extrajudicial, fez uma alteração nas normas de serviço estabelecendo que o prazo é contado em dias corridos.
Usucapião extrajudicial em loteamento irregular E temos vários outros pontos, podemos mencionar a questão do loteamento irregular. Dois Estados disciplinaram expressamente que é possível a usucapião extrajudicial em loteamento irregular. Dois Estados disseram que é possível também a usucapião extrajudicial no condomínio irregular não instituído.
Regularização das acessões na usucapião Vários pontos foram explorados pela regulamentação, e ainda há um que não pode deixar de ser mencionado, a regularização das acessões na usucapião. As construções existentes nos Estados de Minas Gerais, Pará e Rondônia serão averbadas na matrícula ante o reconhecimento da usucapião extrajudicial, independentemente da apresentação de habite-se ou de quitação previdenciária. Apenas esses três Estados disciplinaram o tema. Os demais são omissos.
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Usucapião com visão urbanística
José Carlos de Freitas – Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo
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Uma coisa é a obtenção de um título de domínio, outra é a impossibilidade de morar em locais onde existe uma norma de cunho ambiental que impede o uso do solo. Nós estamos trabalhando, de um lado, com o acesso à propriedade e, do outro, com a impossibilidade de a pessoa ocupar esse imóvel.
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Usucapião judicial e extrajudicial
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u quero trazer à reflexão alguns aspectos que me preocupam e tem me preocupado ao longo dos anos e, mais recentemente, na área ambiental. Finalizo com a questão urbanística, que seria o que me trouxe aqui. Falar depois de especialistas na matéria me faz trazer alguns elementos para reflexão das áreas ambiental e urbanística. Em que momentos essas preocupações podem interferir na atividade não só do notário, na elaboração de sua ata notarial, como também do registrador? É algo que me preocupa, é isso que eu queria compartilhar. Recentemente, trabalhando junto a uma Câmara Ambiental do Estado de São Paulo, no Tribunal de Justiça de São Paulo, nós estamos vivenciando um debate intenso a respeito do novo Código Florestal. O Ministério Público brasileiro não aceita 100% o novo Código por entender que muitos de seus dispositivos são inconstitucionais por promover certo retrocesso ambiental. E algumas dessas normas vão lidar diretamente com a atividade do registrador e do notário no que diz respeito à reserva legal.
Está extinta a averbação da reserva legal? Começou um debate a respeito da averbação de reserva legal. Será que ela foi simplesmente eliminada do mundo jurídico, uma vez que o novo Código Florestal (art. 18) dispõe que será dispensada averbação de reserva legal quando se promover o Cadastro Ambiental Rural (CAR) dos imóveis rurais? Por determinação legal, os imóveis rurais têm que reservar um espaço chamado Reserva Legal de Proteção Ecológica (20%). O debate que nós travamos no Judiciário, no contencioso, é a respeito desses 20% – se englobam também áreas de preservação permanente ou não, embora esse seja um tema que não vai afetá-los.
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Mas surge um debate inicial: está extinta a averbação da reserva legal ou não? Quem nos deu uma luz sobre esse assunto foi o doutor Marcelo Berthe. Eu trago aqui um acórdão para desenvolver com os senhores os aspectos básicos do pensamento do desembargador Marcelo Berthe. O Código Florestal aboliu a averbação da reserva legal na matrícula ou não? Ele esclareceu que não nas sessões de julgamento das quais faço parte. A averbação está presente, só não é exigida se o titular do imóvel, proprietário ou possuidor, fizer a inscrição no CAR. E ele faz uma diferenciação, estabelece que cadastro é uma coisa e registro é outra, para colocar uma pá de cal nessa discussão. Por exemplo, o Poder Público Municipal vai desapropriar uma área rural e de repente o proprietário, no processo de desapropriação, invoca que toda a sua propriedade é produtiva, portanto, o valor dessa desapropriação é bem maior. Se for provado que havia sim os 20% de reserva legal, essa área era intocável, não poderia ter sofrido nenhum tipo de modificação porque existia uma restrição, uma limitação administrativa de cunho ambiental. Por conta da desapropriação, essa área está excluída dessa avaliação porque a propriedade em si, nesse pedaço, não poderia ser alvo de exploração econômica. Doutor Marcelo Berthe lembra que em caso de desmembramento de matrícula é importante que esteja lá especializada a reserva legal, para se saber nas novas matrículas se essa reserva ficará numa matrícula, na outra ou em ambas. Então, existem situações que sinalizam necessidade e a sobrevivência da averbação de reserva legal prevista na Lei de Registros Públicos1. Ultrapassada essa questão, é importante que os registradores levem em consideração o seguinte: em se tratando de imóvel rural, é necessário que haja essa averbação.
Código Florestal – A averbação de reserva legal na matrícula do imóvel permanece hígida pela Lei de Registros Públicos (art. 167, inciso II, nº 22 e art. 169). Desembargador Marcelo Berthe – 1ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente do TJSP – Apelação nº 0000977-55.2013.8.26.0060, j. 15.12.2016.
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PAINEL Inscrição no Cadastro Ambiental Rural não desobriga de averbar reserva legal Surgiu um debate em que se invocou a seguinte situação. O proprietário disse que havia feito inscrição no CAR – Cadastro Ambiental Rural. Era o suficiente para levar uma sentença de usucapião a registro, mas ele foi obstado pela atuação do registrador, que alegou que ele não especializou a reserva legal no CAR. Ou seja, ele havia feito uma inscrição, mas não havia localizado, sob aspecto geodésico, onde estava a porção identificada. Suscitou-se a dúvida e o assunto foi parar no Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo. Trata-se de um julgado de 2 de junho de 2016, em que se diz que a mera inscrição no CAR, sem identificação da reserva legal, é insuficiente para desobrigar averbação da serventia predial. Portanto, ou ele promovia essa especialização no cadastro, ou ele deveria fazer averbação da reserva legal por ocasião do registro2. Esse debate alerta para a necessidade de estar devidamente identificada essa reserva legal. Não basta a mera inscrição no CAR. A inscrição é um ato unilateral até que seja chancelada pelo órgão ambiental. É o órgão ambiental que vai localizar e dizer “eu concordo com esta localização da reserva legal”. Só assim para ganhar acesso ao Registro de Imóveis. No aspecto ambiental era o que eu gostaria de chamar a atenção dos senhores.
Fraude à Lei de Parcelamento do Solo: venda de frações ideais Eu quero fazer menção a uma preocupação já antiga. Enquanto promotor de justiça na capital nós nos deparávamos com uma série de fraudes. Depois, assumindo uma posição no Centro de Apoio do Ministério Público, órgão de orientação a todas as promotorias do
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Estado, verificamos um desvirtuamento de dois institutos do direito para fraudar a Lei de Parcelamento do Solo mediante a venda de frações ideais para formação de ranchos, chácaras e sítios de recreio. O imóvel se localizava em zona rural, então não era possível fazer loteamento para fins urbanos. A Lei 6.766/1979 é clara no caput do art. 3º: só se pode fazer parcelamento de solo para fins urbanos na zona de expansão urbana ou na zona de urbanização específica. Então, o que se fazia? Como não era possível lotear, vendiam-se frações ideais. Essa fraude acabou acontecendo no Estado de São Paulo inteiro e chamou nossa atenção a sequência de registros dessas frações ideais com burla à lei de parcelamento do solo. Valendo-se do instituto do condomínio buscava-se fraudar a lei de parcelamento. Isso foi se avolumando no Estado de São Paulo. A Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo proibia que os registradores ultrapassassem seu trabalho de qualificação para promover o registro. Em outras palavras, o registrador, quando se deparava com essa situação e notava que era uma fraude à lei, não poderia ir além da qualificação e, portanto, o papel dele era fazer aquilo. Chegou-se a ponto de extravasar o razoável. O doutor Eduardo Sócrates, que me presenteou com o livro dele sobre loteamento fechado, cita, na página 82, um julgado do Superior Tribunal de Justiça a respeito desse tema. Por quê? Nós vivenciávamos esse problema, postulávamos algumas providências, e, no mais das vezes ajuizávamos ações civis públicas para que se pudesse barrar esse tipo de comportamento. E muitas vezes se pedia, nas petições iniciais, o bloqueio da matrícula, determinação judicial para que aquela matrícula não recebesse mais escrituras de compra e venda de frações ideais. A Corregedoria, num dado momento, identificou esse problema que se avolumou de tal forma, como
pelação nº 1000891-63.2015.8.26.0362 – Comarca de Mogi Guaçu – Conselho Superior da Magistratura do TJSP São Paulo, 2 de junho de A 2016. PEREIRA CALÇAS, CORREGEDOR GERAL DA JUSTIÇA E RELATOR.
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Usucapião judicial e extrajudicial cita o professor Sócrates, que o desembargador Luis Paulo Aliende verificou, numa das correições que fez, casos com mais de mil registros de frações ideais. E o doutor Sócrates cita um julgado do STJ cuja ementa diz: “Venda de fração ideal de terras para transferir lote certo e determinado sem o regular parcelamento do solo. Impossibilidade. A venda de fração ideal de terras parceladas irregularmente não pode ser objeto de registro imobiliário porque frauda a legislação específica.” E prossegue o julgado. “O juiz que proíbe o registro desses negócios, sem a prévia oitiva do proprietário, não fere a garantia do contraditório porque só ordenou o que o Oficial do Cartório já estava obrigado a fazer.”
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ATENÇÃO PARA A NECESSIDADE DE ESTAR IDENTIFICADA ESSA RESERVA LEGAL. NÃO BASTA A MERA INSCRIÇÃO NO CAR. A INSCRIÇÃO É UM ATO UNILATERAL ATÉ SER CHANCELADA PELO ÓRGÃO AMBIENTAL, QUE VAI LOCALIZAR E CONCORDAR COM ESSA LOCALIZAÇÃO DA RESERVA LEGAL. SÓ ASSIM PARA GANHAR ACESSO AO REGISTRO DE IMÓVEIS.
É um julgado de 1999 dizendo que aquela determinação judicial para impedir o acesso dessas escrituras ao Registro de Imóveis era perfeitamente legal e regular. Esse tema gerou também uma preocupação do Ministério Público. Nós passamos a ter conhecimento disso por força de instauração de inquérito civil. Começávamos a apurar e notávamos que enquanto a gente investigava, propunha ação, pedia liminar, o cidadão continuava a vender lotes clandestinos na zona urbana. Tínhamos que encontrar uma fórmula para dar publicidade a nossa preocupação. E o que fazíamos? Às vezes, mandávamos um ofício ao Registro de Imóveis para promover averbação daquele inquérito civil
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ou do inquérito policial.
Num mandado de segurança de 1995 – só para ilustrar, porque esse tema continua vindo à tona – se entendeu que, por intermédio de demanda coletiva sobre loteamento ilegal, é possível ao juízo por onde tramita a ação civil pública comunicar o seu ajuizamento por meio de ofício ao registro predial, com uma nova modalidade de averbação publicitária3. Inclusive em homenagem ao art. 6º, inciso VI, do Código do Consumidor, que assegura a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos. Ou seja, o consumidor tem direito à informação, porque alguém que compra lote de loteamento clandestino, ou fração ideal, pode amanhã ou depois perder esse imóvel por força de ação judicial, provavelmente do Ministério Público. O promotor de justiça vai promover uma ação pedindo o desfazimento daquele empreendimento e restauração da área ao seu estado primitivo, porque ali tem uma área com atributos ambientais.
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A preocupação foi avisar o comprador de lote, ou de fração ideal, que está havendo uma fraude ou uma prática ilegal. Essa situação chegou ao ponto de mandado de segurança. E depois conseguimos que a Corregedoria, no protocolado CG 8.505 de 2000, elaborasse um parecer normativo viabilizando a aceitação
notação publicitária – existência de IC, IP ou ACP. Possibilidade, em demanda coletiva sobre loteamento ilegal, ao juízo por onde tramita A ação civil pública, comunicar seu ajuizamento por meio de ofício ao registro predial, como nova modalidade de averbação publicitária na Lei de Registos Públicos, prestigiando o art. 6º, inciso VI do Código do Consumidor, que dispõe seja o consumidor informado de tudo aquilo que possa representar “a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos”.( Mandado de Segurança nº 232.080-1/5 – São Paulo – TJSP, 3ª Câm. Civil – j. 07/03/95 – v.u. – Rel. Des. Toledo Cesar.)
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PAINEL desses ofícios para a devida publicidade.4 Estamos no campo de utilizar o Registro de Imóveis como um instrumento de divulgação de que algum problema está acontecendo. Isso até hoje, ao que parece, tem sido praticado, seja nos inquéritos civis, seja nas ações civis públicas.
Alienação de frações ideais: indício de desmembramento irregular do imóvel No processo CG 2.588 de 2000, foi editado um parecer normativo que dizia:
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SE A CGJSP CONTINUA COM A IDEIA DE QUE NÃO SE PODE LAVRAR ESCRITURAS DE FRAÇÕES IDEAIS QUE POSSAM LEVAR AO CONHECIMENTO DE UMA FRAUDE, OU NÃO SE PODE PROMOVER O REGISTRO, COMO FICA A SITUAÇÃO DO REGISTRADOR QUE RECEBE UMA ESCRITURA, UM CONTRATO DE C/V DE FRAÇÃO IDEAL, QUE NO ESTADO DE SÃO PAULO PODE SINALIZAR FRAUDE?
Processo CG nº 2.588/00 Registro de Imóveis – Alienação de partes ideais quantificadas em metragem quadrada – Indícios registrários de que se trata de expediente para irregular desmembramento do imóvel – Fraude à lei que impede o registro – Situação evidenciada na verificação das certidões das matrículas, e que deve ser necessariamente observada pelos tabeliães de notas, dada a irregularidade administrativa da lavratura de instrumentos públicos cujo registro se mostra inviável – Necessidade da inclusão, em todos os instrumentos públicos que envolvam a alienação de partes ideais que possam caracterizar fraude à lei de parcelamento do solo, de advertência às partes quanto ao fato de que não está sendo transmitida a propriedade de área certa e localizada – Alteração das Normas de Serviço da Corregedoria Geral de Justiça.
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Eu cheguei a ver matrículas com descrição de frações ideais de 2000 m², indicando o confrontante, portanto com individualização daquela fração ideal, com identificação específica, quando sabemos que a fração ideal não deveria ter esse tipo de especificação. Era uma sinalização de fraude. Então, houve um parecer normativo da Corregedoria dizendo que aquilo era uma fraude à lei, e o então corregedor, doutor Luís de Macedo, em junho de 2001, determinou que não se registrasse esse tipo de escritura que identificasse fraude à Lei de Parcelamento do Solo.
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Mas só isso não bastava, porque uma escritura podia ser lavrada em outro Estado. Aquelas normas estavam restritas aos Registros de Imóveis do Estado de São Paulo. Para essa situação, ele determinava aos tabeliães de notas que se abstivessem de lavrar atos notariais que tivessem por objeto negócios jurídicos de alienação de frações ideais sempre que a análise de elementos objetivos revelasse a ocorrência de fraude à legislação do parcelamento do solo. E que, em caso de insistência dos interessados na lavratura do ato notarial, que o tabelião fizesse constar a “expressa declaração das partes da ciência de que a transmissão de fração ideal para a formação de condomínio tradicional não implica na alienação de parcela certa e localizada de terreno.” E para as escrituras lavradas fora do Estado, que os registradores não registrassem essas escrituras.
ROTOCOLADO CG 8.505/00 – PIRACICABA (PUBLICIDADE DO INQUÉRITO CIVIL) EMENTA OFICIAL: Registro de Imóveis – Recepção e P arquivamento, pelo oficial de registro de imóveis, de ofício expedido pelo Ministério Público com notícia da instauração de procedimento ou ação que versa sobre irregularidade no parcelamento do solo – Inclusão dessa informação nas certidões imobiliárias referentes aos registros correspondentes – Possibilidade – Medida que não se confunde com ato de averbação, nem impede a prática de atos de registro ou averbação nos registros atingidos.
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Usucapião judicial e extrajudicial No âmbito do Registro de Imóveis, isso gerou algum travamento. Mas esses contratos continuaram a ser feitos, e acredito que até hoje continuam sendo feitos. Ontem tive o cuidado de ligar para a Corregedoria de São Paulo para saber se havia alguma alteração nessas normas. A juíza corregedora me disse que não. Na verdade, acho que até houve um provimento para regularizar essa situação, se eu não me engano, como condomínio edilício. Não sei se isso avançou e como é que isso se operou no Estado de São Paulo. Por que estou trazendo essa situação para reflexão? Primeiro, porque é um problema antigo. Segundo, com essa possibilidade de reconhecimento extrajudicial da usucapião é importante que o notário, ao lavrar a sua ata, e o registrador, ao promover o registro, pres-
tem atenção nesse aspecto. Não quero dizer aqui que não se possa registrar, mas estou dizendo que alguém pode questionar a prática de se promover o reconhecimento extrajudicial diante de uma situação como essa, que é uma fraude à lei. O art. 216-A, incluído pelo atual Código de Processo Civil dispõe que o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião ao Registro de Imóveis deve ser instruído com: IV - justo título ou quaisquer outros documentos que demonstrem a origem, a continuidade, a natureza e o tempo da posse, tais como o pagamento dos impostos e das taxas que incidirem sobre o imóvel.
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PAINEL No Estado de São Paulo, até onde apurei, tivemos uma inovação legislativa ontem, com relação a essa figura da usucapião. A pergunta que faço é a seguinte: se, por um lado, a Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo continua com a ideia de que não se pode lavrar escrituras de frações ideais que possam levar ao conhecimento de uma fraude, ou não se pode promover o registro, como fica a situação do registrador na hipótese em que ele recebe uma escritura, um contrato de compra e venda de fração ideal, que no Estado de São Paulo pode sinalizar fraude? Como fica a liberdade do registrador de levar adiante esse procedimento e registrar, fazer o reconhecimento no Registro de Imóveis como usucapião?
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SE, POR UM LADO, A CGJ DO ESTADO DE SÃO PAULO CONTINUA COM A IDEIA DE QUE NÃO SE PODE LAVRAR ESCRITURAS DE FRAÇÕES IDEAIS QUE POSSAM LEVAR AO CONHECIMENTO DE UMA FRAUDE, OU NÃO SE PODE PROMOVER O REGISTRO, COMO FICA A SITUAÇÃO DO REGISTRADOR NA HIPÓTESE EM QUE ELE RECEBE UMA ESCRITURA, UM CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE FRAÇÃO IDEAL, QUE NO ESTADO DE SÃO PAULO PODE SINALIZAR FRAUDE?
Então, ou a Corregedoria de São Paulo revê sua posição, ou, se não fizer essa revisão, parece que fica uma espada sobre a cabeça do registrador, se ele contrariar aquela determinação da Corregedoria de proibir o acesso desses títulos ao registro.
Usucapião de terreno de tamanho inferior ao lote mínimo Já foi dito aqui por quem me antecedeu que o Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário 422.349, do Rio Grande do Sul, sinaliza com uma luz no caminho: Lá se questionava a possibilidade de se promover/reconhecer usucapião de um terreno com tamanho inferior ao lote mínimo determinado no plano
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diretor. Em outras palavras, é possível usucapir um terreno de 100 m² sendo que o lote mínimo é de 250 m²? Pesquisando a antiga jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo, também não se permitia usucapião de área inferior ao módulo rural na zona rural. Havia jurisprudência para os dois sentidos. No campo, área rural, não se permitia usucapião de terreno com dimensão inferior ao módulo, como havia decisões dizendo que não haveria nenhum problema.
Acho que o Supremo Tribunal Federal, nessa questão de tamanho mínimo determinado por uma norma – seja ela municipal ou federal como no caso do Incra, que estabelece o módulo rural como fração mínima de parcelamento – já sinaliza alguma solução. Vejamos o que o Supremo determinou em âmbito de repercussão geral, ou seja, não se pode mais discutir isso, os juízes têm que aplicar essa norma:
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RECURSO EXTRAORDINÁRIO 422.349 – RIO GRANDE DO SUL – RELATOR MIN. DIAS TOFFOLI – j. em 29.04.2015 EMENTA. Recurso extraordinário. Repercussão geral. Usucapião especial urbana. Interessados que preenchem todos os requisitos exigidos pelo art. 183 da Constituição Federal. Pedido indeferido com fundamento em exigência supostamente imposta pelo plano diretor do município em que localizado o imóvel. Impossibilidade. A usucapião especial urbana tem raiz constitucional e seu implemento não pode ser obstado com fundamento em norma hierarquicamente inferior ou em interpretação que afaste a eficácia do direito constitu-
Usucapião judicial e extrajudicial cionalmente assegurado. Recurso provido. 1. Módulo mínimo do lote urbano municipal fixado como área de 360 m2. Pretensão da parte autora de usucapir porção de 225 m2, destacada de um todo maior, dividida em composse. 2. Não é o caso de declaração de inconstitucionalidade de norma municipal. 3. Tese aprovada: preenchidos os requisitos do art. 183 da Constituição Federal, o reconhecimento do direito à usucapião especial urbana não pode ser obstado por legislação infraconstitucional que estabeleça módulos urbanos na respectiva área em que situado o imóvel (dimensão do lote). 4. Recurso extraordinário provido.
Nessa situação específica, usucapião constitucional, está dito o seguinte: não importa o tamanho do lote. Eu fico preocupado com o seguinte aspecto. Se é possível usucapir um terreno de 225 m², quando o mínimo é 360 m², eu pergunto: por essa linha alguém pode usucapir um terreno de 9 m², não pode? Alguém pode morar num espaço de 9 m²? Pode. Basta visitar uma favela. E como tem. Então é possível usucapir um terreno com 9 m². Não há limite para isso.
Loteamentos em área de proteção ambiental Temos muitos loteamentos em área de proteção ambiental. Loteamentos na zona urbana, em área de proteção aos mananciais, em local que abastece boa parte da cidade. São loteamentos clandestinos, ao longo dos anos as pessoas foram se estabelecendo ali. Havia um debate no Ministério Público de São Paulo. Se o promotor de justiça entrasse com ação pedindo para desfazer esse loteamento, por estar em área de proteção ambiental, ele poderia ser surpreendido depois com uma ação de usucapião? Há loteamentos em áreas de antigos aterros sanitários com situações graves de gente morando sobre um colchão de gás metano ou terrenos que serviram para despejo de material de lixo, inclusive industrial. Ao longo dos anos, o lixo foi sendo aterrado, alguém resolveu lotear aquela área, não conseguiu lotear pelas
vias normais e fez um loteamento clandestino. Alguém pode continuar morando sobre um colchão de gás metano? Não dá, a não ser que se faça uma remediação dessa área. Mas voltando para a questão ambiental. Eu tenho uma sentença transitada em julgado determinando o desfazimento do loteamento e, por outro lado, tenho pedidos de usucapião judicial ou extrajudicial que estão sendo acolhidos pelo Judiciário ou pelo cartório de Registro de Imóveis. O que faço com essa sentença que determina o desfazimento? O que faço com a sentença de usucapião ou com o reconhecimento extrajudicial dessa usucapião? Na verdade, são coisas distintas. É muito possível conviver com as duas coisas. É possível, porque o que a pessoa quer de uma ação de usucapião, ou com reconhecimento extrajudicial, é que se reconheça que ela tem posse suficiente, qualificada ou não, para moradia. Enfim, com justo título ou não, o suficiente para ganhar acesso ao Registro de Imóveis. Outra coisa é uma ação dizer: “a população não pode ficar aqui.” Eu tenho uma sentença que posso executar para tirar todo mundo de lá, mas tenho também pessoas com um título de domínio. São todos titulares de lotes, mas não vão poder morar lá. Uma coisa é a obtenção de um título de domínio, outra é a impossibilidade de morar em locais onde existe uma norma de cunho ambiental que impede o uso do solo. Nós estamos trabalhando, de um lado, com o acesso à propriedade e, do outro, com a impossibilidade de a pessoa ocupar esse imóvel. Para mim isso é preocupante, principalmente a situação em que a Corregedoria identifica fraude. Nesse caso, não se pode dar acesso ao Registro de Imóveis. Mas, por outro lado, temos a figura da usucapião, que sinaliza a possibilidade de se ter o nome dessa pessoa gravado no Registro de Imóveis.
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PAINEL
Aquisição de imóvel rural por estrangeiro Alda Lúcia Soares Paes de Souza – Oficiala de Registro de Imóveis em Timbauba (PE) e vice-presidente do IRIB para o Estado de Pernambuco
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É muito bem-vindo o incremento vindo do estrangeiro, mas é interessante que tenhamos uma política para que a riqueza também fique aqui no Brasil. Precisamos ter investimento e riqueza no Brasil. É por isso que a lei de regência impõe restrição quanto à quantidade de estrangeiros no município e quanto à espécie de nacionalidade dos estrangeiros que entram no país.
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Imóveis rurais
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meu tema é a aquisição de imóveis rurais por estrangeiros. Esse assunto não é novo, mas a lei de regência é de 1970. Então por que trazê-lo? Porque ele tem grande repercussão na nossa atividade e merece, do registrador e do tabelião, alguns cuidados especiais. O Brasil acolhe bem o estrangeiro. Se olharmos o processo migratório dos anos 1970, vamos verificar que tivemos grande abertura e a maioria dos estrangeiros que vieram aqui ficaram. Temos grandes colônias de estrangeiros. Mas, a aquisição de imóvel por estrangeiro merece uma limitação ligada à defesa da soberania, da nacionalidade, defesa da terra. Nossa grande riqueza está no agronegócio, e precisamos manter a terra também sob controle dos nacionais. Nossa Constituição, não somente a de 1988, como também a anterior respeitava e positivava os direitos humanos como direitos fundamentais. Tanto ao estrangeiro quanto ao nacional é dado o direito à vida, à liberdade e à propriedade. Esses direitos, no entanto, têm que ter certa restrição em respeito à nossa soberania, aos nossos objetivos nacionais. A gestão territorial é uma grande preocupação, porque temos mecanismos de controle, mas não temos uma política estatal do controle de gestão. Temos um mecanismo no Incra, um mecanismo no Conselho de Segurança, um mecanismo no Registro de Imóveis, mas eles não se falam, não são integrados. Não basta um mecanismo, é preciso existir uma política estatal para que possamos gerir nossa terra. É muito bem-vindo o incremento vindo do estrangeiro, mas é interessante que tenhamos uma política para que a riqueza também fique aqui no Brasil. Precisamos ter investimento e riqueza no Brasil. É por isso que a lei de regência impõe restrição quanto à quantidade de estrangeiros no município e quanto à espécie de nacionalidade dos estrangeiros que entram no país. A Lei 5.709/1971, regula a aquisição de imóvel rural por estrangeiro residente no país ou pessoa jurídica estrangeira autorizada a funcionar no Brasil, assim como o seu decreto regulamentador (Decreto 74.965/1974). E temos uma nova lei, a Lei da Migração
– Lei 13.445, de 25 de maio de 2017. Essa lei vai revogar o estatuto do estrangeiro (Lei 6.815/1980), que assegurava a soberania nacional. A nova lei, que ainda vai entrar em vigor, cuida apenas de direito fundamental, dos direitos humanos positivados. Quanto ao direito à propriedade, não há nenhuma restrição. É impossível prever se essa lei terá alguma consequência na lei de aquisição de imóveis por estrangeiro, mas a partir de agora ela existe no nosso ordenamento jurídico e ainda não sabemos quais serão os seus efeitos. Por que não sabemos quais serão os efeitos? Todos nós assistimos a mudança legal que dispunha que era empresa brasileira aquela constituída sob a lei brasileira. E veio o parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) que limita a venda de terras brasileiras a estrangeiros ou a empresas brasileiras controladas por estrangeiros. Os ordenamentos, o decreto, as instruções normativas do Incra dividem essa matéria em três blocos. Pessoa natural, pessoa jurídica estrangeira e pessoa jurídica brasileira, mas equiparada à estrangeira, por parecer da AGU aprovado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Há alguns conceitos relevantes para o tema. Vamos relembrar três conceitos básicos: o que é imóvel rural; quem é estrangeiro; e módulo de exploração indefinida.
Imóvel rural O imóvel rural pode ter dois critérios, um quanto à sua destinação, utilizado pelo Estatuto da Terra, e outro quanto à sua localização, usado pelas leis tributárias. A Lei nº 9.393/1996, que rege o Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural – ITR dispõe que se o imóvel é localizado em região não urbana, não prevista no plano diretor, ele é rural. A localização é que vai definir o que é imóvel rural. A Lei 4.504/1964, Estatuto da Terra, fala em destinação. Quando o imóvel está destinado, independentemente do lugar em que ele está situado, se ele tem a finalidade não urbana, se ele tem a finalidade agrícola,
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PAINEL pecuária, extrativismo, ele é rural. Art. 4º Para os efeitos desta Lei, definem-se: I – “Imóvel Rural”, o prédio rústico, de área contínua qualquer que seja a sua localização que se destina à exploração extrativa agrícola, pecuária ou agroindustrial, quer através de planos públicos de valorização, quer através de iniciativa privada;
E esse critério é utilizado também pela lei de regência da aquisição do imóvel rural.
Imóvel rural – Incra
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UMA GRANDE DIFERENÇA TAMBÉM É QUE NO CADASTRO DO INCRA SE TITULA NÃO SOMENTE A PROPRIEDADE, COMO TAMBÉM A POSSE. É MUITO CLARO QUE CADASTRO NÃO CONFERE PROPRIEDADE. O CADASTRO É TÃO SOMENTE PARA EFEITO DE GESTÃO DO INCRA. PARA SER DONO, VALE AQUELE VELHO PROVÉRBIO, SÓ É DONO QUEM REGISTRA.
O Incra, por sua vez, cadastra. O Incra, para proceder ao cadastro de imóvel rural, utiliza-se da definição dada pelo Estatuto da Terra e, por força da Instrução Normativa Incra nº 95, de 27/8/2010, considera como sendo um único imóvel rural duas ou mais áreas confinantes pertencentes ao mesmo proprietário ou não, desde que seja mantida a unidade econômica, ativa ou potencial. Há grandes terras na minha cidade, engenhos plantados com muita cana. Já tenho até 22 imóveis consecutivos de uma mesma usina com um único CCIR, porque para o Incra um Certificado de Cadastro de Imóvel Rural pode contemplar mais de um imóvel, se são terras contínuas. Imóvel rural, para o Incra, é área contínua de destinação rural. Uma grande diferença também é que no cadastro do Incra se titula não somente a propriedade, como também a posse. É muito claro que cadastro não confere propriedade. O cadastro é tão somente para efeito de gestão do Incra. Para ser dono, vale aquele velho pro-
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vérbio, só é dono quem registra. No cadastro do Incra há um controle da gestão territorial. No cadastro do Incra é possível ter mais de um imóvel. Então, temos cadastro no Incra, cadastro na Receita Federal, e ainda um cadastro único entre eles. E ainda falta o cadastro do CAR. São três grandes cadastros. E ainda há o cadastro do georreferenciamento. Vejam quantos mecanismos de controle, mas que não se falam. Nós mandamos a informação, mas não recebemos de volta. Só se for pedido para anular algum registro, cancelar ou reclamar, mas, para atualizar nossa base de dados, eu nunca vi.
Imóvel rural – RGI
Para o Registro de Imóveis, o imóvel rural é aquele que, independentemente de sua localização, tenha sido descrito como tal no momento de seu cadastro, mesmo sem referência ao Certificado de Cadastro de Imóvel Rural – CCIR, considerando-se a unidade imobiliária o prédio rústico descrito na sua respectiva matrícula, em observância ao princípio da unitariedade da matrícula, ou seja, cada imóvel terá sua própria matrícula e cada uma representará um único imóvel, conforme artigo 176, § 1º, inciso I, da Lei nº 6.015/73. Atualmente temos o CNIR – Cadastro Nacional de Imóvel Rural. Como classificamos o imóvel rural dentro da nossa serventia? Pela característica dele, seja na transcrição ou na matrícula. Está lá, área rural. É preciso ter o CCIR para entendê-lo como rural? Não. Basta observar a característica. A minha serventia é da época do império. Eu ainda tenho transcrição que fala até dos negros. Como
Imóveis rurais Pernambuco é um dos Estados mais antigos, temos descrições muito interessantes. “A terra vai até a jaqueira. Da jaqueira vai até o rio Capibaribe Mirim.” Essa descrição denota por si só que se trata de imóvel rural. Para descaracterizar esse imóvel como rural eu preciso de um documento hábil para isso. Por exemplo, uma certidão, geralmente expedida pela prefeitura, para descrever que o imóvel passou a ser urbano.
tucional de Revisão nº 3, de 1994).
Se eu sei quem é brasileiro, por exclusão, os demais são estrangeiros. O conceito de estrangeiro é obtido por exclusão. A Constituição diz que não há nenhuma diferença entre brasileiro nato e naturalizado, a não ser aquelas previstas na própria Constituição.
O imóvel é definido como rural pelas características que estão na transcrição ou na matrícula. É necessário apresentar documentação hábil para transmissão ou alteração de suas características.
Uma figura que merece destaque em face do trato à igualdade são os portugueses. Aos portugueses que tiverem certificado de reciprocidade não são aplicadas as restrições previstas na Lei 5.709/1971.
Quem é estrangeiro?
Conceito de residência
A nossa lei não se preocupou em definir quem é o estrangeiro, e sim quem é o nacional. Eu sei quem é o nacional observando a Constituição. A Constituição Federal dispõe: Art. 12. São brasileiros: I - natos: a) os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país; b) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço da República Federativa do Brasil; c) os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente ou venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 54, de 2007). II - naturalizados: a) os que, na forma da lei, adquiram a nacionalidade brasileira, exigidas aos originários de países de língua portuguesa apenas residência por um ano ininterrupto e idoneidade moral; b) os estrangeiros de qualquer nacionalidade, residentes na República Federativa do Brasil há mais de quinze anos ininterruptos e sem condenação penal, desde que requeiram a nacionalidade brasileira. (Redação dada pela Emenda Consti-
Como se prova a residência? A residência legal no território nacional é comprovada com a exibição da cédula de Registro Nacional de Estrangeiro (RNE), com a classificação PERMANENTE. No caso do português, para afastar as restrições da Lei 5.709, ele precisa ter residência comprovada com a cédula de RNE, além do Certificado de Reciprocidade obtido perante o Ministério da Justiça. Sem esse certificado ele fica sujeito às mesmas restrições dos demais estrangeiros.
Módulo rural O Módulo de Exploração Indefinida (MEI) é uma unidade de medida, expressa em hectares, a partir do conceito de módulo rural, para o imóvel com exploração não definida. A dimensão do MEI varia entre 5 e 100 hectares, de acordo com a Zona Típica de Módulo (ZTM) do município de localização do imóvel rural. O que é Zona Típica de Módulo (ZTM)? Regiões delimitadas, a partir do conceito de módulo rural, com características ecológicas e econômicas homogêneas, baseadas na divisão microrregional do IBGE – Microrregiões Geográficas (MRG), considerando as influências demográficas e econômicas de grandes centros urbanos. (Tabela da Instrução Especial Incra nº 50, de 1997).
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O IBGE aglutinou os municípios em microrregiões. E o Incra disse, em cada região, qual seria a atividade, a fração, quantos hectares eram necessários. Para aquisição de imóveis por estrangeiros, adoto. É uma unidade de medida em hectares que leva em consideração a microrregião onde está o município e a atividade que será desenvolvida. A ZTM é justamente essa microrregião definida a partir da aglutinação feita pelo IBGE. Fração mínima do solo é a menor área em que um imóvel rural, num dado município, pode ser desmembrado. Corresponde ao módulo de exploração hortigranjeira da Zona Típica de Módulo (ZTM) a que o
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município pertencer. Ao ser parcelado o imóvel rural, para fins de transmissão a qualquer título, a área remanescente não poderá ser inferior à Fração Mínima de Parcelamento (FMP). Compete ao Incra fixar, para cada região, o módulo de exploração indefinida, podendo modificá-lo sempre que houver alteração das condições econômicas e sociais da região. Cada município está aglutinado numa região e tem essa definição. É claro que muitos municípios foram criados após essa definição, mas, nesse caso, o Incra baixa uma instrução normativa contemplando os novos municípios e definindo essa área.
Imóveis rurais Tabela do Incra (ZTM E MEI) Foi fixada nos municípios pela Instrução Especial Incra n. 50 de 1997, estabelecendo as Zonas Típicas de Módulo – ZTM para as Capitais e dos Estados e para os Municípios. Na ZTM da Região de Timbaúba (PE), por exemplo, classificada como A2, um MEI representa 10 hectares.
Autorização do Incra Até 3 MEIs (Módulo de Exploração Indefinida). A aquisição por pessoa física estrangeira (portadora de RNE) de até 3 MEIs é livre, independentemente de qualquer autorização ou licença, exceto se o imóvel estiver em zona indispensável à segurança nacional (como as áreas de fronteira), quando depende de licença prévia da Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional. - Aquisições acima de 3 MEIs. É necessária a autorização do Incra. - Entre 3 e 20 MEIs. o estrangeiro precisa da autorização do Incra, além da prova da residência e inscrição no CPF, desde que o imóvel não esteja em zona de segurança nacional. Entre 20 e 50 MEIs. O estrangeiro precisa não só de autorização, mas aprovação do projeto que ele vai explorar. A partir de 50 MEIs. Aquisição somente com autorização do Congresso Nacional. O estrangeiro pode adquirir imóvel rural no Brasil até 3 MEIs. Mas, se adquirir frações em imóveis distintos, ele vai precisar de autorização. Se adquirir dois ou mais imóveis, mas não chegar a 3 MEIs, também precisa. No entanto, se fizer aquisição sucessiva de frações do mesmo imóvel, sem atingir 3 MEIs, ele não precisa de autorização. Uma observação interessante com relação à sucessão. O estrangeiro não pode ter sucessão de imóvel rural por testamento. Não pode ser o legatário, mas pode haver a sucessão legítima.
O brasileiro que se casa ou mantém união estável com estrangeiro também passa a ter aquela restrição. O grande problema é o controle disso. Se um brasileiro possui área maior que 3 MEIs e pede averbação de casamento com estrangeiro, o que fazer? Averbar e mandar a comunicação? Alguns colegas preferem fazer a prenotação e a nota devolutiva para que o usuário suscite dúvida porque a responsabilidade é grande.
A pessoa jurídica estrangeira Só poderá adquirir imóvel rural a pessoa jurídica estrangeira autorizada a funcionar no Brasil, devendo ser observada a Lei nº 5.709/1971 e seu Decreto regulamentador nº 74.965/74. Lei nº 5.709/71 Art. 5º - As pessoas jurídicas estrangeiras referidas no art. 1º desta Lei só poderão adquirir imóveis rurais destinados à implantação de projetos agrícolas, pecuários, industriais, ou de colonização, vinculados aos seus objetivos estatutários. Art. 3º, IV, da Instrução Normativa Incra nº 76 de 23/08/2013 Art. 3º - São requisitos essenciais para a concessão pelo INCRA de autorização para aquisição ou arrendamento de imóveis rurais por pessoa natural estrangeira residente no País, por pessoa jurídica estrangeira autorizada a funcionar no Brasil e pessoa jurídica brasileira equiparada: I - a titularidade do domínio do imóvel rural objeto da pretensão de aquisição ou arrendamento em nome do transmitente ou arrendador, comprovada por meio de certidão atualizada expedida pelo Serviço de Registro de Imóveis competente; II - estar o imóvel rural regularmente cadastrado no Sistema Nacional de Cadastro Rural - SNCR, em nome do transmitente ou arrendador; III - ter a pessoa natural estrangeira, residência permanente no Brasil, e ser inscrito no Registro Nacional de Estrangeiro - RNE, na condição de permanente; IV - se pessoa jurídica estrangeira, ter autorização para funcionar no Brasil e a devida aprovação do projeto de exploração agrícola, pecuário, florestal, turístico, industrial ou de colonização, vincu-
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lados aos seus objetivos estatutários ou contratuais, conforme o caso;
zação, vinculados aos seus objetivos estatutários ou contratuais, conforme o caso;
V - se pessoa jurídica brasileira da qual participem, a qualquer título, pessoas estrangeiras, natural ou jurídica, que tenham a maioria de seu capital social e residam ou tenham sede no exterior ou o poder de conduzir as deliberações da assembleia geral, de eleger a maioria dos administradores da companhia e de dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia, comprovar a inscrição na Junta Comercial do Estado de localização de sua sede e a devida aprovação do projeto de exploração agrícola, pecuário, florestal, turístico, industrial ou de coloni-
VI - assentimento prévio da Secretaria-Executiva do Conselho de Defesa Nacional, no caso de o imóvel rural situar-se em faixa de fronteira ou em área considerada indispensável à segurança nacional.
A lei fala apenas em aquisição ou arrendamento de imóveis rurais por estrangeiros para industrialização, pecuária, agricultura, mas a resolução do Incra acrescenta outras atividades como turismo e exploração florestal, desde que a atividade a ser desenvolvida no imóvel rural esteja ligada aos objetivos sociais dessa sociedade.
Imóveis rurais Pessoa jurídica nacional equiparada à estrangeira A pessoa jurídica brasileira da qual participem, a qualquer título, pessoas estrangeiras físicas ou jurídicas que tenham a maioria do seu capital social e residam ou tenham sede no exterior se submete à Lei 5.709/71. A área adquirida pelo estrangeiro tem que ser menor que 100 Módulos de Exploração Indefinida (MEIs). Maior do que isso só com autorização do Congresso Nacional.
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O REGISTRO DE IMÓVEIS FAZ O CONTROLE NO MUNICÍPIO. OS ESTRANGEIROS NÃO PODEM OCUPAR MAIS DE 25% DA ÁREA DO TERRITÓRIO MUNICIPAL, E A MESMA NACIONALIDADE NÃO PODE TER MAIS DE 10% DA ÁREA. É NULA A ESCRITURA QUE INFRINGE ESSAS PRESCRIÇÕES. O INCRA FAZ O CONTROLE ADMINISTRATIVO (...).
O papel dos notários e registradores A aquisição ou arrendamento do imóvel rural tem que ser por escritura pública. A escritura pública tem requisitos gerais previstos na Lei 7.433/1985. No caso de imóvel rural, além desses, observamos os requisitos previstos na Lei 5.709/1971 e na Lei 10.267/2001. Nessa escritura é preciso caracterizar o estrangeiro, informar se ele tem residência no Brasil ou, se for pessoa jurídica, se ela tem autorização para funcionar. O que deve constar da escritura? Se for pessoa física, o documento de identidade de estrangeiro, o CPF, a prova de que ele reside no território nacional. Se a pessoa natural adquirir imóvel menor que 3 MEIs, deve constar expressamente a declaração de que ela não possui outro imóvel rural. Se o imóvel tiver entre 3 e 20 MEIs, deve constar a transcrição. Em Pernambuco temos que transcrever. A escritura de imóvel rural tem que descrever tudo, não há opção, como na Lei 7.433, de apenas mencionar a matrícula. É preciso transcrever a autorização.
No caso de imóvel entre 20 e 50 MEIs, além de transcrever a autorização, é preciso transcrever a aprovação do projeto. Fora os impostos naturais, aqueles previstos na própria lei, temos que mencionar os requisitos da Lei 10.267 e seus regulamentos. É preciso fazer constar o CCIR e o ITR sob pena de nulidade. Nas escrituras de pessoa jurídica temos que transcrever a autorização para funcionar e a autorização do projeto.
Quando alguém pede uma certidão com finalidade de fazer uma escritura para adquirente estrangeiro, temos que emitir não somente a certidão de propriedade, a certidão do Livro 2, como a certidão do Livro Auxiliar.
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A cada três meses temos que mandar relatório para a Corregedoria Geral e para o Ministério da Justiça. Se o imóvel estiver na faixa de fronteira, temos que mandar também para a Secretaria do Conselho de Segurança Nacional. E para o Incra também. Para casos de aquisição de imóveis por estrangeiros a informação a ser passada para o Incra também é trimestral. O Registro de Imóveis faz o controle no município. Os estrangeiros não podem ocupar mais de 25% da área do território municipal, e a mesma nacionalidade não pode ter mais de 10% da área. É nula a escritura que infringe essas prescrições. O Incra faz o controle administrativo e, para anular um registro, ele tem que requerer judicialmente. A sanção para os registradores que não cumprirem com essas informações pode ser até a perda da delegação. É crime não informar. O Incra pode pedir um procedimento contra o registrador.
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A participação do Incra no parcelamento de imóveis rurais à vista das Instruções Normativas 17-B/1980 e 82/2015 Christian Beurlen – Oficial de Registro de Imóveis em Pomerode (SC) e vice-presidente do IRIB para o Estado de Santa Catarina
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Da maneira como foi implementada, a nova instrução normativa colige com o restante do nosso ordenamento jurídico, com a jurisprudência e a doutrina que já estavam consolidadas sobre o tema. Isso gerou um vazio relativamente perigoso, outorgando de maneira informal, para os registradores imobiliários, uma competência que, em princípio, seria da União Federal.
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Imóveis rurais
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u fui convidado a falar sobre o tema do parcelamento dos imóveis rurais, particularmente à vista de uma modificação normativa recente, a revogação da Instrução Normativa 17-B, que desde 1980 regulamentava a participação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) nesse procedimento. A IN-17B não era perfeita. Ela tinha disposições que estavam em discordância com a legislação, com a doutrina ou com a jurisprudência do assunto. Por exemplo, no que diz respeito ao desmembramento dos imóveis rurais em zona urbana, havia discordância significativa quanto ao que acabou se consolidando na jurisprudência. Mas ela trazia certa estabilidade para as relações institucionais entre os órgãos envolvidos na aprovação e para o registro de tais fracionamentos. Em 2015, houve certa surpresa quando o Incra resolveu revogar essa instrução. E ainda mais surpreendente foi que essa revogação tenha se dado por uma instrução normativa que não tratava de parcelamento de imóvel rural. A Instrução Normativa 82/2015 que revogou a IN-17B (art. 35) versava sobre cadastro, o que gerou surpresa nos intérpretes jurídicos, porque restou um vazio decorrente de uma norma que não trata em absoluto do parcelamento rural. Temos, então, um ordenamento jurídico exigindo que conste a participação do Incra nesses procedimentos e ao mesmo tempo um vazio de como essa participação vai acontecer.
Da Instrução Normativa nº 17-B/1980 Vamos ver como a IN-17B preceituava em cada um dos três casos de parcelamento, e depois falar um pouco sobre a IN-82 e o que levou o Incra a essa revogação e consequente vazio normativo dentro do próprio Instituto. No nosso ordenamento, os imóveis rurais e os urbanos têm dois critérios básicos para serem agrupados. O primeiro critério é a finalidade. Ou seja, se o imóvel tem destinação rural, então ele deve ser considerado como imóvel rural. Em outros momentos, nosso ordenamento utiliza o critério geográfico. Se o imóvel está localizado em zona que, para o plano diretor, é considerada de destinação urbana, ele é considerado urbano. Esses dois critérios se mesclam, às vezes são utilizados simultaneamente, e é justamente esse o caso da IN-17B. Ou seja, a IN-17B disciplinava a participação do Incra nos parcelamentos de imóveis rurais agregando-os em três grupos cujos critérios distintivos eram a finalidade do parcelamento e a localização do imóvel. i. Parcelamento para fins urbanos de imóvel rural localizado em zona urbana ou de expansão urbana (item 2 da IN-17B). Procedimento: mera atualização do SNCR após o registro. No primeiro critério, os imóveis eram agrupados do ponto de vista da finalidade, ou seja, um imóvel é rural porque tem destinação rural. Mas o Incra regrava
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PAINEL que o desmembramento dos imóveis, que apesar de destinação rural estavam localizados em zona urbana, se direcionava a obter um imóvel com destinação urbana também. Por exemplo, pelo plano diretor o imóvel tem localização urbana, está destinado a finalidade rural, mas se pretende desmembrar uma gleba para dar uma destinação urbana. É o caso típico daquelas situações em que o filho casou, quer construir um prédio, e o pai vai desmembrar um pedaço para que ele possa ali edificar.
Como a doutrina, a lei e a jurisprudência tratavam esses três agrupamentos?
Participação do Incra nos parcelamentos para fins urbanos de imóvel rural localizado em zona urbana ou de expansão urbana
ii. Parcelamento para fins urbanos de imóvel rural localizado fora da zona urbana ou de expansão urbana (item 3 da IN-17B). Procedimento: audiência do Incra após aprovação e antes do registro.
i. Embora a IN-17B determinasse apenas a atualização cadastral do imóvel (CIR) após o registro do parcelamento, a Lei 6.766/1979 exige a prévia audiência do órgão em seu artigo 53: “Todas as alterações de uso do solo rural para fins urbanos dependerão de prévia audiência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária...”, dentre outros órgãos.
Eu tenho um desmembramento com finalidade urbana, mas o imóvel é rural e está localizado em zona rural.
Ou seja, para mudar a destinação do imóvel é preciso ouvir o Incra a respeito do assunto e outros órgãos competentes.
iii. Parcelamento para fins agrícolas de imóvel rural localizado em zona rural (item 4 da IN-17B). Procedimento: prévia aprovação do projeto pelo Incra.
A doutrina também entendia de acordo com a Lei 6.766.
O terceiro caso é o imóvel de destinação rural. O desmembramento é com destinação rural e ele está localizado em zona rural. A maneira pela qual o Incra se comportava estava agrupada e era diferenciada para cada um desses casos. Com a IN-17B, no primeiro caso, o Incra entendia que ele não participava antes do procedimento de registro. Somente depois do registro é que o interessado alterava o cadastro do imóvel rural no Sistema Nacional de Cadastro Rural, o chamado SNCR. No segundo caso, o Incra entendia que precisava ser previamente ouvido. Eu não sei qual a diferença entre audiência e aprovação. Se é preciso que o órgão seja ouvido, evidentemente que ele emite algum non obstat. O que fica evidente lendo a antiga IN-17B é que o grupo de documentos necessários para aprovação do projeto era mais detalhado do que o da audiência. Aparentemente, era o grau de complexidade do procedimento que justificava essa distinção entre aprovação e audiência.
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ii. Em artigo sobre o tema, Elvino Silva Filho ratifica a Lei de Parcelamento do Solo Urbano ao defender que o desmembramento de imóvel rural para fins urbanos ou de urbanização deve ser previamente aprovado pelo Incra . iii. A jurisprudência pátria também tem ratificado o teor do citado dispositivo, exigindo prévia participação do Incra nos parcelamentos de imóvel rural para fins urbanos, in verbis: “A Lei nº 6.766/79, em seu artigo 53, dispõe que ‘todas as alterações de uso do solo rural para fins urbanos dependerão de prévia audiência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, do Órgão Metropolitano, se houver, onde se localiza o Município, e da aprovação da prefeitura municipal, ou do Distrito Federal quando for o caso, segundo as exigências da legislação pertinente’. No caso em análise, não se comprovou que o imóvel objeto do pedido de registro não está mais cadastrado como imóvel rural perante o INCRA. Nesse sentido, já decidiu este Conselho Superior da Magistratura: ‘Registro de Imóveis. Dúvida julgada procedente. (...) Alegada destinação urbana de imóvel original-
Imóveis rurais mente rural. Necessária apresentação de certidão de descadastramento pelo INCRA. Recurso não provido’ (CSMSP – APELAÇÃO CÍVEL 790-6/6, j. 27/05/2008, Relator Des. Ruy Camilo).’ O item 169, ‘b’, do Capítulo XX das NSCGJ, por sua vez, corrobora a imposição da averbação prévia de alteração da destinação do imóvel, de rural para urbano, com a apresentação de certidão expedida pelo INCRA, para o parcelamento de imóvel rural para fins urbanos.” (CSMSP – APELAÇÃO CÍVEL 3002217-43.2013.8.26.0637; Data de Julgamento: 11/11/2014; DATA DJ: 22/01/2015; Relator Des. Elliot Akel).
iv. O Código de Normas da CGJ-SP também determina a obrigatória participação do INCRA nos casos de parcelamento de imóvel rural para fins urbanos localizado em zona urbana, conforme abaixo se observa, ad litteris et verbis: 168. O parcelamento do solo para fins urbanos será precedido de averbação de lei municipal que incluiu o imóvel parcelado em zona urbana, bem como da comprovação da ciência do INCRA. 168.1. A ciência será comprovada pela apresentação da certidão do INCRA ou do comprovante de protocolo da cientificação. 168.2. No caso de ser apresentado comprovante de protocolo de cientificação, registrado o parcelamento do solo, o Oficial de Registro de Imóveis enviará ao INCRA certidão comprobatória do citado ato para conhecimento e respectivas providências.
v. O próprio Instituto, ao ser questionado sobre o tema, acabou ratificando o disposto no artigo 53 da Lei nº 6.766/1979. Com efeito, em 2011, após manifestações contraditórias dos analistas da Superintendência Regional do Incra em Santa Catarina, encaminhamos ofício ao Incra-DF, questionando a vigência da IN-17B e a maneira pela qual o Instituto conferia eficácia ao art. 53 da Lei de Parcelamento do Solo Urbano. Em resposta, recebemos a Nota AGU/PGF/PFE/ INCRA/SC nº 44/2011, bem como a Informação PJA nº 259/2001, elaboradas pela Procuradoria-Geral Federal. Ambas concluíam pela prévia manifestação do Incra em quaisquer dos três casos de parcelamentos da IN-17B, com a consequente e prévia emissão de
certidão para fins de registro. Portanto, até a revogação da IN-17B, o Incra-SC também se manifestava previamente ao registro nos casos de parcelamento rural para fins urbanos em zona urbana.
Participação do Incra no parcelamento para fins urbanos de imóvel rural localizado fora da zona urbana i. Nesse caso, a IN-17B previa audiência do Incra antes do registro no fólio imobiliário. Como mencionado, o Incra tinha que manifestar alguma coisa sobre o assunto, algo como um non obstat, e de fato fazia isso. ii. A jurisprudência pátria consolidou o entendimento de que o parcelamento de áreas localizadas em zona rural para fins de urbanização deve ser precedido de alteração do zoneamento municipal. Ou seja, fora da zona urbana definida da maneira como o plano diretor faz não seria possível desmembramento de imóvel rural com finalidade urbana. Eu gostaria de trazer uma diferenciação que o Elvino Silva Filho fez de forma muito sábia naquele artigo da RDI nº 7 [Nota 1] sobre o que seria um desmembramento para finalidade urbana e um desmembramento para finalidade de urbanização. O que a jurisprudência acabou entendendo como proibido é o que o Elvino acabou entendendo como um desmembramento para fins de urbanização. Mas se o objetivo é implantar um loteamento, um núcleo urbano em zona rural, em princípio esse parcelamento não seria possível. É preciso antes alterar o plano diretor para que esse imóvel seja considerado como espaço urbano ou de expansão urbana. Só assim o imóvel pode ser desmembrado com essa finalidade. iii. De outro lado, o Decreto Federal nº 62.504/1968 permite o desmembramento de áreas de imóveis rurais menores que a fração mínima de parcelamento (FMP), desde que aprovados pelo Incra em benefício da ordem pública, tais como as áreas destinadas à implantação de escolas, templos, teatros, comércio, postos de combustíveis, etc.
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PAINEL Nesse caso, especificamente, não estão abarcados aqueles casos que Elvino denominava como “desmembramentos para fins urbanos”. Essa proibição não é inflexível, ela tem inclusive previsão no nosso ordenamento. O Decreto 62.504 permite desmembrar um pequeno pedaço de um imóvel rural com a finalidade não de promover urbanização, mas de instalar equipamentos que são necessários para o desenvolvimento da zona rural. Não é possível existir zona rural sem que os insumos necessários ao seu desenvolvimento e outros equipamentos sociais estejam ali implantados. O desenvolvimento da zona rural compreende também a questão dos direitos humanos, é preciso que as pessoas tenham acesso a serviços básicos como apoio a essas atividades. iv. O Decreto Federal 59.428/1966, em estímulo à maior eficiência econômica e ao adensamento das zonas rurais, regulamenta não apenas a colonização agrícola (art. 5º), mas igualmente o parcelamento para fins de urbanização (art. 13), desde que haja prévia anuência do Incra (art. 95) e alteração da legislação municipal (art. 96). v. Os Decretos nº 59.428/1966 e nº 62.504/1968 estavam em consonância com a política agrária do governo Castelo Branco, que enxergava no latifúndio improdutivo a razão para a existência dos movimentos campesinos que pressionavam pelas Reformas de Base – fonte de considerável instabilidade política e conflito social. Os Decretos regulamentavam, portanto, políticas de estímulo ao adensamento populacional no campo e ao incremento da eficiência agropastoril, visando a minoração de conflitos e a pacificação social. O Decreto Federal 59.428, que regulamentava o desenvolvimento da zona rural, previa essa maior eficiência da atividade rural e o adensamento das áreas rurais mediante projeto de colonização, mas também uma série de outras medidas que permitiriam o desenvolvimento da zona rural. Toda essa legislação sobre a zona rural, incluindo o Estatuto da Terra, é da década de 1960 e foi patrocinada pelo governo Castelo Branco, que entendia que o latifúndio improdutivo era um dos problemas que resultaram nas convulsões sociais que precederam
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o governo militar de 1964. O governo Castelo Branco, surpreendentemente, passou a promover uma série de medidas de modernização no campo visando amenizar esses conflitos. Ele entendia que o campo realmente precisava ser modernizado, os latifúndios precisavam ser produtivos e os imóveis improdutivos precisavam ser parcelados, fracionados, visando a implantação de novos agrupamentos que pudessem servir de colchão para os conflitos sociais. Então, o Estatuto da Terra e esses dois decretos, por exemplo, tinham como objetivo trazer mais eficiência para a atividade agropecuária e reduzir esses conflitos. Toda a documentação legal da época precisa ser interpretada sob essa ótica. Na verdade, tudo aquilo que o governo visava era que a zona rural brasileira pudesse passar por um processo de modernização que diminuísse os conflitos agrários.
Participação do Incra nos parcelamentos para fins agrícolas de imóvel rural localizado em zona rural i. Nesses casos, a IN-17B previa a expressa aprovação do projeto pelo Incra em momento anterior ao registro. ii. O artigo 10 da Lei nº 4.947/1966, c/c artigo 95 do Decreto nº 59.428/1966, reitera os termos da IN-17B quanto aos loteamentos, exigindo a aprovação do Incra como requisito para o registro – sob pena de nulidade do lançamento e dos atos subsequentes. Os decretos 59.428 e 62.504 tratam o tema de maneira extremamente pormenorizada, e em todos os casos exigem a participação do Incra. Em que pese a expressa dicção da Lei 4.947 a respeito da manifestação do Incra nos casos de loteamento rural, a leitura sistêmica do Decreto 59.428 revela que também nos desmembramentos rurais o Incra deveria ser chamado a se manifestar. Ocorre que como aquele artigo falava expressamente dos loteamentos, ou seja, dos parcelamentos da espécie loteamento, a jurisprudência acabou se consolidando no sentido de que, caso se tratasse de des-
Imóveis rurais membramento, não haveria necessidade de manifestação prévia do Incra. iii. Quanto aos parcelamentos da espécie desmembramento, contudo, os tribunais têm decidido em sentido contrário à IN-17B; ou seja, os desmembramentos rurais para fins rurais não precisam ser previamente aprovados pelo Incra, desde que obedecida a fração mínima de parcelamento (FMP): “...observando-se que se cuida de desmembramento (não loteamento) de imóvel rural, não há que se falar, no caso, em aprovação do INCRA (CSM-SP, Ap. Civ. nº 12.189-0/4, já referido)”. (CGJ-SP – Proc. 259/2006).
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NO CARTÓRIO NÓS NÃO TEMOS FEITO PROCEDIMENTOS DE TRANSFERÊNCIA DE ÁREA PARA ANEXAÇÃO POR MEIO DE PARCELAMENTO DO IMÓVEL. UTILIZAMOS A PREVISÃO DO ART. 213, § 9º, DA LEI DE REGISTROS PÚBLICOS, QUE PREVÊ A VENDA – COM COMPRA E VENDA OU QUALQUER TIPO DE NEGÓCIO JURÍDICO SUBJACENTE – COM ANEXAÇÃO DE ÁREA.
Há também algumas decisões de cunho penal, apelações criminais que também sancionam esse entendimento, uma vez que não seria uma conduta típica penal porque não haveria previsão de aprovação do Incra nos casos de desmembramento. iv. Elvino Silva Filho, no artigo citado, defende que os desmembramentos de imóveis rurais para fins rurais estão implicitamente autorizados pelo Incra por meio da indicação da FMP na Certidão de Cadastro do Imóvel Rural (CCIR). Obedecida a fração, desnecessária seria a participação do Instituto. Portanto, o autor entende que a FMP inserida na CCIR do imóvel é uma pré-aprovação dos procedimentos de desmembramento do imóvel rural. Não dos loteamentos, que são obrigatoriamente aprovados pelo instituto. v. Segundo Elvino, também não carecem de anuência do Incra os desmembramentos para anexação de áreas a imóvel lindeiro, ainda que em fração menor que a FMP, cf. art. 8º, § 4º, da Lei 5.868/1972 (in RDI nº
7. IRIB: São Paulo, 1981, p. 72). Ele emite opinião no sentido de que naquele caso da Lei 5.868 – desmembramento de uma faixa do imóvel para anexação a um imóvel lindeiro – não seria necessária a prévia aprovação. Não haveria necessidade nem de respeitar a fração mínima de parcelamento e nem de ouvir o Incra.
No cartório nós não temos feito esses procedimentos de transferência de área para anexação por meio de parcelamento do imóvel. Atualmente utilizamos a previsão do art. 213, § 9º, da Lei de Registros Públicos, que prevê a venda – com compra e venda ou qualquer tipo de negócio jurídico subjacente – com anexação de área. Um procedimento extremamente mais curto e mais célere. Ao fazer o desmembramento do imóvel para depois vender, e depois unificar, temos três etapas do procedimento que são muito mais custosas para os interessados. Pela alteração de divisas, com uma única escritura pública se resolve tudo. Dependendo do negócio jurídico subjacente, fazemos a compra e venda ou doação – pode ser por desapropriação – junto com a alteração de divisas. Com uma única escritura tudo está feito. A área retirada de um imóvel é adicionada ao outro, descrevendo-se o remanescente dos dois. É bem mais rápido. Essa discussão fica um pouco para trás.
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vi. A IN-17B, em consonância com o Decreto nº 59.428/1966, contudo, exigia prévia aprovação também dos projetos de desmembramento rural para fins rurais, a fim de verificar sua viabilidade econômica, os índices de aproveitamento do solo, etc. Como mencionado, a IN-17B prevê a aprovação dos dois casos, tanto do desmembramento, quanto
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PAINEL do loteamento. Haveria necessidade de manifestação do Incra, mas eu acredito que a leitura sistêmica da legislação rural permite entender que a manifestação do Incra seria obrigatória nos desmembramentos. Como vimos, contudo, a jurisprudência e a doutrina entendem um pouco diferente. Faço uma observação. A Lei nº 13.001/2014 flexibilizou a FMP para os agricultores familiares. Em tais casos, caberia também a dispensa da participação do Incra nos desmembramentos mesmo que desrespeitada a FMP?
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QUALQUER PEDAÇO DE TERRA PODERIA SOFRER DESMEMBRAMENTO DESDE QUE SE TIVESSE A COMPROVAÇÃO DE SER O INTERESSADO AGRICULTOR FAMILIAR. COMO SERIA ESSE PROCEDIMENTO? HÁ CERTA INSEGURANÇA JURÍDICA NOS CONCEITOS ENVOLVIDOS.
Doutrina e jurisprudência entendem que não é preciso aprovação do Incra nos casos em que há respeito à fração mínima de parcelamento.
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• De outro lado, a IN exigia a aprovação do Incra nos desmembramentos rurais para fins rurais, caso em que doutrina e jurisprudência dispensavam qualquer participação. • Tacitamente alterada pela Informação PJA nº 259/2001, contudo, a IN-17B regulamentava a forma de participação do Incra em todos os três casos de parcelamento de imóveis rurais – agregando segurança jurídica ao registro imobiliário e estabilidade nas relações institucionais.
Nós vínhamos recebendo essas certidões com certa regularidade em todos os casos de parcelamento de imóvel rural. Tratando-se de imóvel cadastrado no SNCR, o parcelamento vinha acompanhado de certidão obtida no Incra com o non obstat do procedimento.
No caso da Lei nº 13.001, que dispõe que não existe mais fração mínima de parcelamento, basta desmembrar sem respeito à fração mínima de parcelamento? Nesse caso, a fração mínima de parcelamento é irrelevante. Se se trata de agricultor familiar, em princípio não seria preciso respeitar a fração mínima de parcelamento. Qualquer pedaço de terra poderia sofrer desmembramento desde que se tivesse a comprovação de ser o interessado agricultor familiar. Como seria esse procedimento? Há certa insegurança jurídica nos conceitos envolvidos. Como comprovar que se trata de um agricultor familiar ou não?
Da instrução normativa INCRA 82/2015
Conclusão sobre a IN-17B
A surpresa foi particularmente grande porque a IN-82 tratava de assunto completamente diferente. A IN-17B tratava de parcelamento rural. A IN-82 trata de cadastro e, no final, simplesmente revoga a IN-17B, que com todos os defeitos estava funcionando. Todos os atores sabiam como se manifestar e as certidões eram emitidas. Subitamente não há nada no lugar e as superintendências regionais passaram a não mais emitir qualquer tipo de documento.
Em síntese, a IN-17B regulamentava a participação do Incra nos parcelamentos rurais de maneira divergente do entendimento da doutrina e jurisprudência: • Embora dispensasse prévia participação do Instituto nos parcelamentos rurais de imóveis em zona urbana, doutrina, lei e jurisprudência vinham-na exigindo.
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• A IN-82/2015 não regulamenta os procedimentos do Incra para aprovação de parcelamentos rurais, tendo como objeto, em verdade, a atualização do Sistema Nacional de Cadastro Rural. • Apesar de ostentar objeto diverso da IN-17B, o art. 35 da nova instrução revogou aquela integralmente, pondo em seu lugar apenas regras para alteração do SNCR em momento posterior ao registro de eventual fracionamento do solo.
Imóveis rurais • À vista da IN-82/2015, diversas superintendências passaram a não mais emitir certidões para quaisquer parcelamentos rurais, independentemente de sua localização ou finalidade. • O caráter sintético da revogação, desacompanhada de qualquer justificativa teórica, ensejou inúmeras dúvidas sobre a atuação do Incra nos parcelamentos rurais, resultando na Nota Técnica INCRA/DF/ DFC nº 02/2016.
Da nota técnica INCRA/DF/DFC 02/2016 A Nota Técnica INCRA/DF/DFC nº 02/2016 alega, em síntese, que nenhum parcelamento rural deveria ser aprovado pelo Incra, vez que: i. A CF/1988 elevou a hierarquia dos Municípios, outorgando-lhes competência exclusiva para o ordenamento da totalidade de seu território (art. 30, VIII, CF/1988), inexistindo, pois, competência da União para intervir nos parcelamentos de imóveis rurais em áreas rurais ou urbanas. CONTRA-ARGUMENTOS • O citado art. 30 da CF/1988 não outorga competência privativa ao município para ordenar todo seu território; além de mencionar apenas os espaços urbanos, é precedido de outros artigos que outorgam competências urbanas executiva e legislativa também para União e Estados (art. 21, IX e XX, art. 23, VIII, IX e XI, art. 24, I, VI...). A questão urbana também é competência da União e dos Estados. Evidentemente, se a questão é eminentemente local, em princípio a primazia seria dos municípios. Mas primazia não é exclusividade.
colocar no lugar, não é bem o que diz a Constituição. A Constituição diz que a questão urbana, particularmente quando envolve questões regionais e questões nacionais precisa sim ter a coparticipação da União e dos Estados. • Como reconhece a própria Nota, não há hierarquia entre entes federados, mas a doutrina e a jurisprudência asseguram prevalência das questões de alcance nacional e regional (de competência federal e estadual) frente a questões municipais de âmbito local – ao contrário, portanto, do que se sugere na Nota. ii. As Leis nº 6.513/1977 (criação de áreas turísticas), nº 6.766/1979 (parcelamento do solo urbano) e nº 6.803/1980 (áreas industriais poluidoras) teriam revogado tacitamente as Leis nº 4.504/1964 e 4.947/1966, o Decreto nº 59.428/1966 e a IN-17B quanto à urbanização de áreas rurais, não se exigindo naquelas a oitiva do Incra – à exceção do art. 53 da Lei 6.766/1979, que seria controverso. CONTRA-ARGUMENTOS • A controvérsia de uma norma não lhe retira a cogência – sua inconstitucionalidade precisa ser declarada pelo órgão judicial para tanto competente não o podendo fazer, em regra, a Administração Pública. O contra-argumento bem simples é que a controvérsia de um dispositivo legal não implica a sua revogação. Temos milhares de artigos controversos no nosso ordenamento jurídico e nenhum deles está revogado somente porque são controversos.
• A CF/1988 seguiu a tradição constitucional brasileira, outorgando à União a primazia quanto ao ordenamento das zonas rurais e competência comum/concorrente para as questões urbanas, justificando, pois, participação federal.
• Nenhuma das três leis (6.513/1977, 6.766/1979 e 6.803/1980) dispôs sobre parcelamentos rurais, políticas fundiárias, colonização, etc., limitando-se a regular zonas industriais, zonas de interesse turístico e parcelamento do solo urbano. Nos termos do art. 2º, § 2º, da LINDB, a lei nova que estabelece disposições gerais ou especiais a par das existentes não revoga nem modifica a lei anterior. O Estatuto da Terra e seus regulamentos não foram, portanto, por ela revogados.
A União é que trata das questões de ordem rural com precedência em relação aos demais entes. Então, o argumento inicial e principal da nota técnica para justificar a revogação da IN-17B pela IN-82 e nada
• Por fim, as três referidas leis já estavam em vigor quando se editou a IN-17B, não se podendo alegar que teriam revogado tacitamente um regulamento a elas posterior. Por impossibilidade lógica, normas anterio-
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PAINEL res não revogam normas posteriores. iii. Os parcelamentos rurais para fins urbanos em zona rural (item 3 da IN-17B) estariam integralmente proibidos pelo ordenamento, razão pela qual não haveria participação lícita do Incra em tais procedimentos, justificando, em tese, a revogação desse tópico da IN-17B. CONTRA-ARGUMENTOS • O ordenamento jurídico não veda o parcelamento para fins urbanos em zona rural; o que a jurisprudência tem coibido é o parcelamento de imóveis rurais para fins de urbanização sem que haja expressa e prévia aprovação de todos os órgãos competentes – inclusive o Incra, em consonância com o disposto no artigo 53, da Lei nº 6.766/1979. O que o ordenamento diz é que esses desmembramentos precisam da anuência do Incra e de outros órgãos competentes, não que eles sejam proibidos. • A Nota Técnica se omite integralmente quanto ao Decreto 62.504/1968, que regulamenta os desmembramentos para fins urbanos em zona rural, voltados ao desenvolvimento do campo por meio da instalação de escolas, teatros, silos, postos de combustíveis, etc. Mesmo que em lotes menores que a FMP, tais parcelamentos para fins urbanos carecem da prévia aprovação do Incra e não foram proibidos pela Carta Magna nem pela legislação em vigor. iv. Os parcelamentos para fins rurais fora da zona urbana previstos no item 4 da IN-17B seriam apenas os planos particulares de colonização e somente estes dependeriam de prévia aprovação do Incra; os demais parcelamentos do gênero deveriam obedecer somente à FMP, cabendo às serventias extrajudiciais a verificação da fração e de indícios de parcelamento irregular do solo rural pra fins urbanos. CONTRA-ARGUMENTOS • A IN-17B não regulamentava apenas planos particulares de colonização. As Leis nºs 4.504/1964, 4.947/1966, 5.868/1972 e o Decreto 59.428/1966 – todas referidas como fundamento legal do item 4 da Instrução – disciplinam diversos institutos relaciona-
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dos ao campo, tais como reforma agrária, estrutura fundiária, fracionamento do solo, contratos agrários, bem como desmembramentos e loteamentos sem vínculos com projetos particulares de colonização. Esses loteamentos e desmembramentos previstos no item 4 da IN-17B regulamentavam inúmeras outras situações de fracionamento do solo urbano e não exclusivamente esse item citado na nota técnica de planos particulares de colonização. • O Capítulo II da Lei 4.947/1966 trata de forma ampla sobre A Terra e os Imóveis Rurais e não apenas de colonização; diz o artigo 10: “fica vedada a inscrição de loteamentos rurais no registro de imóveis, sem prova de prévia aprovação pela autoridade pública competente a que se refere o art. 61 da Lei nº 4.504...”. A referida autoridade é atualmente... o próprio Incra (sucessor do extinto IBRA mencionado na lei). • O Decreto 59.428/1966, por sua vez, regulamenta, além dos planos de colonização, inúmeras outras políticas de acesso à propriedade rural, tais como o loteamento, o desmembramento, a desapropriação, a legitimação da posse, etc. • Outrossim, a definição de colonização dada pelo art. 5º do Decreto 59.428/1966 é ampla: “toda atividade oficial ou particular destinada a dar acesso à propriedade da terra e a promover seu aproveitamento econômico, mediante o exercício de atividades agrícolas, pecuárias e agro-industriais, através da divisão em lotes ou parcelas, dimensionados de acôrdo com as regiões definidas na regulamentação do Estatuto da Terra, ou através das cooperativas de produção nela previstas”. Na verdade, o Decreto 59.428, como comentamos, trata do acesso à terra por meio de vários instrumentos e não apenas por meio de planos particulares de colonização. Uma interpretação sistêmica desses instrumentos implicava entender que o Incra precisa ser ouvido também nos procedimentos de parcelamento da categoria desmembramento e loteamento, e não apenas nos planos particulares de colonização. • Segundo o Decreto, a aprovação e a fiscalização de tais projetos, seus índices de aproveitamento, a di-
Imóveis rurais mensão das parcelas e lotes, a viabilidade das culturas, a manutenção da finalidade rural, etc., são atribuições outorgadas não às serventias extrajudiciais, mas, ao Incra.
“
(...) O ESTADO ESTÁ TRANSFERINDO A COMPETÊNCIA QUE ESTÁ ATRIBUÍDA A UM ÓRGÃO PÚBLICO DE NATUREZA FEDERAL PARA REGISTRADORES IMOBILIÁRIOS. NÓS, REGISTRADORES, É QUE VAMOS TER QUE FISCALIZAR SE HÁ INDÍCIO DE ALTERAÇÃO DA DESTINAÇÃO DO IMÓVEL.
v. Alega-se, ademais, que a IN-82/2015 foi elaborada pela Coordenação-Geral de Cadastro Rural, cuja competência não abarca a aprovação, fiscalização e regulamentação dos projetos de colonização e de parcelamento rural – tarefa de alegada competência da Divisão de Obtenção de Terras; assim, ainda que se reconhecesse lacuna normativa advinda da revogação da IN-17B, não poderia ela regrar matéria de outro órgão da Administração. CONTRA-ARGUMENTOS
• Com plena razão se advoga a impossibilidade de um órgão administrativo regrar assuntos de outro sobre o qual não tenha ascendência hierárquica. Questiona-se, contudo: se não há competência normativa positiva, haveria competência negativa? Ou seja, se a Coordenação-Geral de Cadastro Rural que editou a IN82/2015 não tem competência para regulamentar os temas outrora contidos na IN-17B, teria competência para revogá-la? vi. Por fim, a Nota Técnica conclui pela incompetência do Incra para aprovar projetos de parcelamentos de imóveis rurais, exceção feita aos planos de colonização particular, cuja regulamentação entende não ser competência da Coordenação de Cadastro; sugere, ademais, que a prévia audiência do Instituto prevista no art. 53, da Lei 6.766/1979, seja interpretada como atualização de cadastro posterior ao ato de registro. Então, a Nota Técnica entende que a prévia audiência do Incra não seria necessária e que o art. 53 da Lei 6.766/1979 precisa ser interpretado. A palavra
“prévia” deveria ser interpretada como “posterior”, e “audiência” deveria ter sido interpretada como mera alteração cadastral. Confesso certa dificuldade em entender “prévia” como “posterior” em um processo hermenêutico, então, outros comentários são dispensáveis.
Desde a revogação da IN-17B não se tem nada no lugar. A Superintendência-geral de Santa Catarina se recusa a fornecer qualquer tipo de documento nesses parcelamentos rurais. Apesar disso, eu acho que esses argumentos pós Nota Técnica não explicam o vazio normativo e a discrepância da ausência de participação do Incra em todos esses procedimentos possíveis de acontecer, ou de fracionamento de solo rural, e a meu ver isso gera certa insegurança jurídica para os registradores.
”
No final das contas, fica a sugestão: desde que obedecida a fração mínima de parcelamento, e desde que não haja indícios de destinação urbana para o imóvel, devemos registrar sem a participação do Incra. Em outras palavras, mais uma vez o Estado está transferindo a competência que está atribuída a um órgão público de natureza federal para registradores imobiliários. Nós, registradores, é que vamos ter que fiscalizar se há indício de alteração da destinação do imóvel. Parece que essa não é competência nossa. Em princípio essa competência está atribuída, pela legislação nacional, ao Incra, e não aos registradores imobiliários. Da maneira como foi implementada, a nova instrução normativa colige com o restante do nosso ordenamento jurídico, com a jurisprudência e a doutrina que já estavam consolidadas sobre o tema. Isso gerou um vazio relativamente perigoso, outorgando de maneira informal, para os registradores imobiliários, uma competência que, em princípio, seria da União Federal.
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PAINEL
Servidões prediais: aspectos registrais Ivan Jacopetti do Lago – Oficial de Registro de Imóveis em Paraguaçu Paulista (SP) e Diretor de Relações Internacionais do IRIB
“
Será que é conveniente manter esse tipo de situação em que o sujeito compra o imóvel arriscando ter uma servidão que ele desconhece? Alguém pode argumentar que se trata apenas do caso de servidão aparente, por exemplo, na hipótese da usucapião. No entanto, a função do registro é trazer segurança exatamente para evitar ônus ocultos.
”
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Imóveis rurais
E
u vou tratar da questão das servidões prediais e de alguns aspectos registrais que as envolvem. Esse é um tema clássico desde o Direito Romano. Às vezes, revisitar esses sistemas clássicos é como remexer num baú antigo e encontrar uma joia com um brilho diferente. É isso que eu vou tentar fazer com as servidões prediais, embora um tema clássico, vou tentar trazer alguns elementos que talvez não estejamos habituados a ver por esse ângulo. Eu vou tratar das servidões prediais propriamente ditas, aquelas do Código Civil. Claro que há servidões administrativas, por exemplo, há servidões minerárias e ambientais. No entanto, como o tempo é limitado, eu recortei especificamente o tema das servidões prediais. Não vou tratar nem das chamadas servidões legais, aquilo que conhecemos como direitos de vizinhança, e nem de outras restrições, que não envolvam a situação clássica em que tenho um imóvel que serve outro imóvel diretamente.
Noção econômica da servidão predial Para começar, vamos ver o que é a noção econômica da servidão predial. Para que serve economicamente a servidão predial? 1. Primeira função econômica da servidão predial: correção voluntária de externalidades Externalidade é um benefício ou uma incomodidade que a propriedade de alguém gera para outras propriedades. Podemos ter externalidades positivas, quando a propriedade de alguém valoriza a região, por exemplo, e o vizinho que não deu causa a essa valorização vai se beneficiar disso. Mas temos também externalidades negativas. Às vezes, o uso da propriedade pelo proprietário gera desvalorização para os imóveis vizinhos. É o que acontece, por exemplo, no caso de uma atividade que gera emissões, como fumaça, ou mau cheiro, enfim, os vizinhos suportando alguma coisa a que eles não deram causa. A servidão pode ser empregada como um meio
de correção voluntária dessas externalidades. Por que voluntária? Porque servidão predial, especificamente a servidão clássica, decorre de um consenso entre os proprietários. Ou seja, considerando as possibilidades e uma utilização mais eficiente desse tipo de propriedade, pode parecer conveniente aos proprietários limitar de alguma maneira o uso de uma das propriedades em favor do outro. Se houver previsão legal proibindo aquela atividade que gera uma externalidade negativa para os vizinhos, não é o caso de servidão predial, basta simplesmente que o prejudicado invoque a lei que o defende. Alguém que gera uma externalidade negativa, em princípio lícita, pode desenvolver a atividade naquele lugar, mas também pode ter ali algum incômodo para os vizinhos. A licitude dessa atividade também pode ser duvidosa, ou seja, pode haver limites para o seu desenvolvimento. A partir de que momento, os vizinhos podem reclamar? A servidão pode ser usada para estabelecer um consenso de maneira que aquele vizinho que concordou em limitar suas faculdades de proprietário em relação ao seu vizinho não possa mais reclamar ou questionar as externalidades que recebe no seu imóvel. A servidão pode ser usada, em primeiro lugar, para essa finalidade. Ou então, o inverso. Alguém que, licitamente, pode gerar uma atividade negativa pode atribuir aos vizinhos o direito de exigir que não a realize. Quer dizer, o contrário também pode acontecer. Alguém poderia desempenhar determinada atividade no seu imóvel, mas isso incomoda o vizinho, que prefere, então, pagar alguma coisa para que essa atividade não seja realizada. Por exemplo, vamos imaginar que eu tenho o direito de tocar bateria na minha casa durante o dia. Isso é lícito? É. Posso fazer? Sim. Mas isso incomoda demais o meu vizinho. Ele pode fazer um acordo comigo para estabelecer que me paga um valor para eu nunca mais tocar bateria de dia ou de noite. A servidão pode se prestar a isso, corrigir uma externalidade lícita, mas que incomoda o vizinho.
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PAINEL 2. Outra finalidade econômica da servidão: mais eficiência no aproveitamento do imóvel, envolvendo imóvel vizinho, mediante consenso É o que ocorre quando há alguma coisa no imóvel do vizinho que não há no meu. Por exemplo: água, madeira, melhor acesso à via pública. E pode ser que seja conveniente para mim ter acesso a esses bens, ainda que eu pague alguma coisa. Também pode ser interessante para o vizinho limitar um pouco a sua propriedade e conceder o acesso a esses bens para mim. Se ambos julgarmos conveniente esse acordo, estaremos aproveitando a nossa propriedade de maneira mais eficiente. Aquele que concedeu a servidão vai receber alguma retribuição, e quem obtém a servidão vai ter uma forma de aproveitamento que maximiza a utilidade do seu próprio imóvel. Para ser servidão tem que haver consenso, tem que haver um acordo. E não pode haver essa autorização por força de lei. Se, pelo exercício do direito de vizinhança, a lei autoriza o acesso àquele bem, não se fala de servidão. Por exemplo, por força de lei, o proprietário de um imóvel encravado tem direito a passagem forçada e não precisa fazer um acordo para o vizinho autorizar essa passagem. Outra situação é quando se tem acesso à via, mas a passagem pelo vizinho melhora muito esse acesso. Mediante consenso, esse proprietário pode aumentar a eficiência ou a utilidade de seu imóvel por meio de um acordo com o vizinho. Por que esses vizinhos não resolvem essas questões por meio de um contrato, mecanismo clássico de cooperação em que um autoriza o outro a fazer o que precisar no seu imóvel? A questão é que a servidão atribui ao titular do imóvel dominante o exercício das faculdades que são geradas por ela, mas um exercício protegido por aquilo que se chama “regra de propriedade”. O direito real, diferentemente do direito pessoal, dá proteção mais forte para o seu titular porque protege com uma regra de propriedade, um conceito econômico e não jurídico. A ideia da regra de propriedade é que ninguém tira esse direito de alguém sem esse alguém
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consentir; nem pagando. Por que? Porque a regra de responsabilidade, a liability rule, permite de certa maneira que uma pessoa retire o direito do outro desde que ela o compense por isso, desde que ela indenize. Então, se eu tenho um direito protegido por um direito real – no caso da servidão predial – o seu titular pode exercer o seu direito e pode impô-lo contra quem for, contra o proprietário do imóvel serviente, contra terceiros, contra quem adquirir esse imóvel, sem que se possa recusar o exercício desse seu direito, porque a servidão atribui ao seu titular uma defesa por meio de uma regra de propriedade. A servidão predial tende a surgir apenas em situações em que o ganho de eficiência supere os custos. Se é algo voluntário, então tem que haver uma análise tanto pelo proprietário do imóvel dominante quanto do proprietário serviente. E eles podem entender que é benéfico para ambos estabelecer essa servidão. Por exemplo, pode ser valioso para o proprietário do imóvel dominante ter passagem pelo imóvel serviente apesar das despesas envolvidas e mais o preço estipulado pelo proprietário deste último. É um instituto que tende a aumentar a eficiência do aproveitamento dos imóveis.
Noção jurídica da servidão predial Qual é a ideia jurídica da servidão predial? A estrutura básica dela é a de retirar do proprietário do imóvel serviente a faculdade de exigir do proprietário do imóvel uma certa conduta em situação na qual, em princípio, poderia fazê-lo. A estrutura básica da servidão predial é retirar do proprietário do imóvel serviente alguma faculdade que em princípio ele teria. Algo que ele poderia fazer ou deixar de fazer. Mediante um acordo e a constituição do direito real, essa faculdade dele é tolhida em benefício de outro imóvel. Por outro lado, ao mesmo tempo, a servidão atribui ao proprietário do imóvel dominante a faculdade de exigir do proprietário do imóvel serviente certa abstenção em situação na qual, em princípio, não poderia fazê-lo. Quer dizer, ele poderia fazer alguma coisa no seu imóvel, mas, por conta da servidão, restringe uma das suas faculdades de proprietário.
Imóveis rurais Em um conceito de H. Westermann, a servidão predial envolve a utilização de imóvel alheio com segurança absoluta – porque é um direito real – de modo a complementar a exploração econômica do próprio imóvel. Isso seria a essência da servidão. Quanto à natureza é um quase consenso a ideia de que a servidão predial é um direito real sobre coisa alheia. Ela é um direito real que se tem sobre um bem que pertence a outra pessoa. Portanto, ela seria um direito real autônomo sobre coisa alheia. No entanto, na Idade Média surge outra concepção a respeito disso e que de tempos em tempos acaba ressurgindo na legislação ou na jurisprudência. Trata-se de uma concepção resgatada no começo do século XX por um romanista italiano chamado Pampaloni. Ele tem um trabalho de 1910 em que resgata essa concepção de que as servidões prediais (assim como o usufruto – servidão pessoal), seriam parte da propriedade (pars dominii). Portanto, a servidão e o usufruto não seriam um direito real autônomo sobre coisa alheia, mas sim uma parte da propriedade. Em relação ao usufruto, especificamente, os juristas medievais acabaram criando uma distinção entre usufruto causal, aquele que pertence ao proprietário da coisa, e usufruto formal, aquele que pertence a terceiro. Quer dizer, o sujeito que seria só usufrutuário teria usufruto formal, mas o sujeito que é o proprietário pleno do bem tem usufruto também, mas usufruto causal. Por quê? Porque a propriedade dele é composta por propriedade mais usufruto, e usufruto é tão somente uma parte da propriedade. A meu ver essa concepção não é adequada, porque partindo do pressuposto de que o usufruto é um direito real autônomo, então, não se pode considerá-lo, assim como a servidão, parte da propriedade. E essa concepção ressurge na praxe em algumas situações: Em primeiro lugar, na ideia de reserva de usufruto ou servidão. Mas isso, de certa maneira, desnatura o instituto. Essa reserva se poderia fazer também, em princípio, com a própria servidão. Quer dizer, eu vou alienar um imóvel em pedaços, vou manter a proprie-
dade de uma parte. Essa parte que eu vou manter não tem um acesso direto, ou um acesso ideal à via pública. Então, eu alieno, mas já reservando naquele imóvel que estou alienando uma servidão de passagem sobre ele em favor do imóvel que estou mantendo. A ideia de reserva vem da própria ideia de concepção da servidão como parte da propriedade, como parte do domínio. A mesma ideia aparece também no pagamento de um quinhão hereditário, ou meação em inventário por meio de um usufruto. Quer dizer, estou pagando em usufruto. Estou considerando, então, que a propriedade é composta pela soma de nua propriedade + usufruto. Não estou considerando isso no direito autônomo. Ou então, e aqui me parece ainda mais complicado, na tributação incidente sobre a instituição gratuita ou onerosa de servidão predial ou pessoal. É comum se ver nos tributos municipais ou nas leis de ITCMD a hipótese de tributação incidente sobre a constituição de servidão. Mas, se estou constituindo servidão, e se ela é um direito real autônomo, não estou transmitindo nada. Não há transmissão propriamente. Novamente, considerar transmissão é retomar a ideia de a servidão ser uma parte do domínio que está sendo transmitido para o titular do imóvel dominante. Esse é um tema excelente para ser mais bem explorado, aliás, mas no Brasil ainda não vi nenhum trabalho a respeito. O que acontece na servidão não é uma cisão da propriedade entre os direitos do titular da servidão e o proprietário, mas sim um compartilhamento do uso do imóvel serviente, e um compartilhamento restrito. Por quê? Porque a lei procura evitar que a servidão esvazie a propriedade. Como veremos, a servidão é um direito plástico, é o direito real mais plástico que há. Temos uma tipicidade que vigora nos direitos reais em geral, mas a servidão escapa um pouco desse padrão porque o conteúdo dela pode ser definido pelas partes com eficácia de direito real. Mas há limites, uma vez que a servidão não pode ser usada para esvaziar a propriedade para o proprietário do imóvel serviente. E ela é também, por sua natureza, um direito real autônomo, porém acessório, sendo considerada parte integrante dos imóveis. Então os imóveis não são transmitidos sem a servidão nem ela
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PAINEL pode ser transmitida sem o imóvel que está onerando. Por isso o texto de minutas tradicionais de escritura expressa que se “vende o imóvel e servidões ativas”, ou seja, elas vão junto com o imóvel necessariamente. Sendo a servidão um direito real plástico, as partes podem moldá-la e moldar seu objeto de acordo com sua necessidade. Para o registrador, isso traz uma responsabilidade, a qualificação desse objeto, se ele é compatível com o estatuto jurídico da servidão predial ou não. E um primeiro ponto que se deve envolver nessa análise é a distinção entre servidão predial e usufruto. Trata-se de direitos distintos com regimes jurídicos distintos e efeitos jurídicos distintos. Cabe ao registrador, ao lançar o direito na matrícula, interpretar o negócio jurídico que lhe é encaminhado e verificar se aquilo realmente é uma servidão predial ou se é outra coisa, por exemplo, um usufruto. Como se distingue a servidão predial do usufruto? Tradicionalmente, o usufruto é conhecido como uma servidão pessoal. Servidão pessoal é também uma servidão que grava o imóvel, mas, ao invés de gravar em benefício de outro imóvel vizinho, grava em benefício de uma pessoa específica – caso do usufruto, do uso e da habitação. A nomenclatura “servidão pessoal” foi cunhada pelos juristas bizantinos no final do Império Romano para distinguir usufruto, uso e habitação das servidões prediais. No advento do Código Napoleônico acabou sendo abandonada porque os jusnaturalistas e os iluministas que conceberam o Código entendiam que a expressão “servidão pessoal” remetia ao passado, à Idade Média. A expressão foi abandonada, mas volta e meia ela ressurge e o interesse é justamente distinguir usufruto de servidão à medida que a servidão, necessariamente, beneficia imóvel certo, e não pessoa certa. Há uma decisão mais ou menos antiga do Conselho Superior da Magistratura de São Paulo em que se questionava uma situação que em princípio era de servidão predial, porque assim vinha nomeada no título. No entanto, ela tinha sido estabelecida em benefício de duas pessoas específicas. É servidão ou não? A princípio, não. Essa análise cabe ao registrador.
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Ainda com relação à distinção entre servidão e usufruto, um jurista alemão chamado Schöner diz que a servidão implica uma forma concreta, e não genérica, de aproveitamento do imóvel serviente. Ou seja, se o usufruto por um lado quase entrega para o usufrutuário todas as faculdades de proprietário, exceto a possibilidade de dispor do bem, a servidão, por outro lado, vai ter um conteúdo bastante concreto e delimitado, um uso dirigido a certa coisa, não um uso e um gozo genérico do bem. Outra distinção proposta por três juristas alemães – Baur, Stürmer e Soerger – é que na servidão permanecem com o proprietário do imóvel serviente as faculdades essenciais da propriedade. De maneira geral, as faculdades de dispor, mas também de usar e fruir do bem permanecem com o seu proprietário. As faculdades que são transferidas ou que são limitadas não são tão essenciais assim, são aspectos menores da propriedade.
Aspectos que envolvem diretamente o registro: constituição e extinção das servidões Quanto à constituição, quanto ao título que constitui a servidão, de onde surge a servidão que vai entrar no registro? As servidões prediais propriamente ditas, definidas pelo Código Civil como servidões prediais, sempre se originam do consenso, que pode se dar de várias maneiras. Não há servidão predial absolutamente coativa, eu não posso forçar meu vizinho a aceitar minha servidão predial. Mesmo nas hipóteses em que ela decorre de um título judicial, ainda assim em alguma medida ela se origina de um consenso. Esse consenso pode ser expresso, quando há um negócio jurídico real de constituição de servidão, que é o ato inter vivos de constituição de servidão, ou testamento, que é a situação na qual o proprietário em testamento, por exemplo, faz a partilha dos seus bens estabelecendo legados. E como ele sabe que um pedaço vai ficar sem acesso, ele mesmo determina no
Imóveis rurais testamento que se constitua uma servidão em cima do bem que vai ficar de frente para a via pública. Isso vem da vontade do proprietário. A servidão predial também pode se originar de um consenso tácito, aquela situação, que o Código Civil prevê, na qual há uma servidão aparente, necessariamente. A servidão aparente é aquela que envolve a realização de obras, que são visíveis, que são aparentes, que deixam vestígio no imóvel serviente. O consenso tácito se dá quando há tolerância do proprietário do prédio serviente pelo período de dez anos (ou vinte, se não houver título). O CC diz que nesses casos se tem a constituição da servidão por meio de uma espécie de usucapião. No entanto, ela só foi possível porque houve a tolerância do proprietário do imóvel serviente. Ele tolerou, pelo período necessário, que se mantivesse a servidão à sua vista – porque são servidões aparentes, necessariamente. Ele tolerou e não se opôs à manutenção dessa servidão, portanto vai acabar tendo o direito de estipular essa servidão. Há também o consenso presumido, que não é comum, mas é possível segundo a nossa jurisprudência, na hipótese da servidão por destinação do paterfamilias. E isso é objeto de controvérsia no Direito Romano: se havia, se não havia, se foi uma criação posterior. A ideia da servidão por destinação do paterfamílias é a seguinte: o sujeito tinha dois imóveis e sempre usou um imóvel em benefício do outro. Ele sempre usou, por exemplo, o imóvel da frente, que era dele, para chegar na via pública. E ele era o proprietário do imóvel de trás, então ele aliena esses imóveis para pessoas diferentes. A questão é: quem comprar o imóvel que está atrás poderá continuar utilizando o acesso para a via pública? Essa é a ideia da servidão por destinação do paterfamilias, o sujeito usava dessa maneira, portanto, presume-se que era a vontade dele que houvesse uma servidão ali sobre aquele imóvel que ele utilizava em benefício do outro. Apesar de não ser absolutamente comum, há decisões até do STJ reconhecendo a possibilidade dessa servidão por destinação do paterfamílias. É interessante que o registro da servidão vai ser constitutivo apenas na hipótese de constituição por
negócio jurídico real de constituição, que é a situação da servidão constituída por ato inter vivos. Em todas as outras hipóteses, a aquisição da servidão vai se dar fora do registro. Na constituída por testamento, ela vai ser transmitida pela saisine, por exemplo. Com a morte do de cujus, que havia previsto em testamento a servidão, considera-se adquirido o direito em favor do seu beneficiário. Por outro lado, na servidão aparente adquirida por decurso de prazo, uma vez preenchidos os requisitos, tem-se como adquirido o direito de servidão independentemente de registro. E na servidão por destinação do pai de família também, ela pode ser adquirida independentemente de registro. A questão que surge é bem interessante. O registro só é constitutivo na hipótese da servidão por ato inter vivos. E nos outros casos, a servidão não registrada é oponível a terceiros? Sim. Apesar de não ser a melhor solução, a solução que temos na lei é essa. A Lei 13.097/2015, art. 54, parágrafo único, diz que as situações jurídicas não são oponíveis ao adquirente do imóvel desde que não tenham sido constituídas fora do registro. E se foram adquiridas fora do registro, seja na hipótese da morte, seja na hipótese de usucapião, então elas são sim oponíveis ao adquirente, ainda que não constem da matrícula. Será que é conveniente manter esse tipo de situação em que o sujeito compra o imóvel arriscando ter uma servidão que ele desconhece? Alguém pode argumentar que se trata apenas do caso de servidão aparente, por exemplo, na hipótese da usucapião, então ele deve ter visto que tinha lá um aqueduto, uma estrada. E se viu e comprou mesmo assim, ele aceitou. No entanto, a função do registro é trazer segurança exatamente para evitar ônus ocultos. O registro não está espelhando a situação jurídica real do imóvel. Pior ainda na situação da servidão constituída por testamento. Se o sujeito não verificar os autos do inventário e o testamento do de cujus não vai saber que tem servidão, mas vai ser vinculado por ela. É problemático, essas situações todas deveriam estar no registro para poder vincular terceiros, porque isso vai gerar grande insegurança.
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PAINEL Forma do título para o registro da servidão Se se tratar do negócio jurídico real de constituição, o ato inter vivos, não tem nenhuma surpresa, aplica-se a constituição de servidão predial (art. 108, CC) – escritura pública para imóveis de valor superior a 30 salários mínimos. Em todas as outras hipóteses o título constitutivo da servidão vai ser, necessariamente, uma carta de sentença judicial ou, mais recentemente, o resultado de um procedimento de usucapião extrajudicial. Vale lembrar que a usucapião extrajudicial é admissível também para aquisição de direitos reais limitados. Não é somente para propriedade. Poderíamos ter a constituição de uma servidão predial por usucapião extrajudicial? Sim, mas de maneira geral. Fora dessa hipótese de usucapião extrajudicial e da constituição por ato inter vivos o título vai ser uma carta de sentença que reconhece, por exemplo, o direito de quem exerceu pelo prazo a servidão aparente. Ou então, mesmo na situação em que há servidão por destinação do paterfamilias – se o adquirente teve que recorrer a esse instituto é porque houve algum tipo de litígio, não houve um acordo na constituição da servidão –, vai ser preciso demonstrar em juízo que se configurava a situação da distinção do paterfamilias e que, portanto, ele faz jus à servidão. Quanto ao objeto da servidão Esse me parece o ponto mais interessante. Como os direitos reais são típicos, então, não é possível criar direitos reais que não contem com previsão expressa em lei. Mas, e as servidões? Elas são típicas? Esse é um ponto interessante. No Direito Romano pré-clássico as servidões eram típicas. Por quê? Porque no Direito Romano mais remoto havia apenas algumas ações específicas que protegiam o titular da servidão: passagem, aqueduto, vista, não edificar acima de certa altura. Já no Direito Romano clássico, essa tipicidade foi desaparecendo e hoje, de maneira geral, nos vários sistemas jurídicos, não há mais tipicidade das servidões. Os códigos, de maneira geral, não preveem a existência de servidão disso e daquilo. O que os códi-
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gos fazem é estabelecer critérios mais ou menos flexíveis para que a servidão possa ser constituída dentro daqueles critérios. Um exemplo: no Direito Alemão, a servidão deve, necessariamente: - implicar uma utilidade para o prédio dominante, consistente no gozo limitado do imóvel serviente; - ou consistir na exclusão de uma faculdade do proprietário do imóvel serviente, pelo que ele passa a ter que tolerar algo; - ou consistir na proibição, para o proprietário do imóvel serviente, de certos comportamentos que de outro modo lhe seriam permitidos. - ou ainda, consistir na exclusão, para o proprietário do imóvel serviente, de um direito que poderia ser oposto ao proprietário do imóvel dominante. Ele abre mão da possibilidade de exigir alguma coisa do proprietário do imóvel dominante. O Direito Francês é mais sintético e o nosso Direito vai na mesma linha. No Direito Francês, para que haja uma servidão, basta que ela gere utilidade a um imóvel, e não a uma pessoa, e seja imposta sobre um imóvel, e não sobre uma pessoa, e não seja contrária à ordem pública. No Brasil, antes do advento do Código Civil de 1916, aplicava-se o Direito Romano como lei subsidiária porque não havia, nas ordenações, previsão de um regime geral das servidões prediais nem leis que tratassem disso. O que havia em vigor para essa matéria era o Direito Romano, exceto quanto àquilo que eles chamavam de servidão legal – direitos de vizinhança que em algumas hipóteses contavam com lei expressa. Desde o Código Civil de 2002, a lei exige apenas que a servidão gere uma utilidade para o imóvel dominante. E o alcance dessa servidão, em cada caso, pode ser estabelecido pelas partes. Quais conteúdos a servidão não pode ter? Segundo a doutrina, a servidão não pode ter como conteúdo:
Imóveis rurais - a proibição de alienar (Haegele, Schöner, Stöber, Soergel, Stürmer). Não se pode estabelecer que o proprietário do imóvel vizinho não possa vender o bem, porque isso retiraria um dos elementos essenciais da propriedade. - e também, muito importante, a servidão não pode ter por objeto uma obrigação de fazer imposta ao proprietário do imóvel serviente. De maneira geral, o conteúdo das servidões envolve uma tolerância ou uma abstenção, e jamais uma obrigação de fazer. Na Alemanha existe um direito real específico para essas situações, que é o direito de “carga real” (Reallast), que seria mais ou menos uma servidão com conteúdo de fazer. O que nós tínhamos no CC/1916 mais semelhante a isso era a ideia da renda constituída sobre imóveis, em que se impunha a alguém o dever de fazer alguma coisa por conta do direito real. Hoje não admitimos que se imponha uma obrigação de fazer. No entanto, é admissível que se estabeleçam alguns deveres acessórios à servidão. Esses deveres não são o conteúdo central da servidão, mas sim um acessório para vincular o proprietário do imóvel serviente, como por exemplo, o dever imposto consensualmente ao proprietário do imóvel serviente de conservar os equipamentos da servidão. Em princípio não lhe cabe isso, mas eles podem estipular. No caso de haver o estabelecimento de algum dever acessório – uma obrigação positiva que não tem origem na lei, mas está intrinsecamente ligada ao objeto mesmo da servidão – isso deve constar do registro da servidão, porque vai vincular os adquirentes do bem. Agora, se a obrigação que há para o proprietário do imóvel serviente de originar lei, ou se ela é implícita, aí então não deve constar do registro, porque, novamente, isso é uma decorrência da própria lei. Tal não ocorre se a obrigação que há para o proprietário do imóvel serviente tem origem na lei, ou se é implícita (por exemplo, a obrigação do proprietário do imóvel serviente de conservar a construção, nas servidões de meter trave).
“Servidão com escopo industrial” Algo que não se discute muito no Brasil, mas é bastante comum na lei estrangeira é a servidão com escopo industrial – aquela que tem por objeto a extração de materiais do imóvel serviente empregados em atividade industrial desempenhada no imóvel dominante, por exemplo, água, minerais e madeira. Em princípio isso é possível, segundo a doutrina estrangeira, desde que os materiais sejam empregados exclusivamente na indústria situada no imóvel dominante e em nenhuma outra. Pode uma servidão afastar uma regra de direito de vizinhança? Segundo Serpa Lopes, sim, desde que a regra de direito de vizinhança em questão seja exclusivamente de direito privado. Nesse caso admite-se que se afastem entre aqueles proprietários os direitos de vizinhança em questão. E segundo o STJ (RESP 425), a servidão também pode ser submetida a termo ou condição e ser registrada normalmente. Em qualquer caso, na instituição da servidão o título deve indicar com clareza qual é o objeto e quais são os limites da servidão, e isso deve ser objeto de qualificação pelo registrador. Ao receber o título constitutivo da servidão, o registrador deve analisar: a vontade das partes de efetivamente constituir servidão; se aquilo é uma servidão realmente; qual o seu conteúdo; e sobre quais imóveis incide essa servidão. Isso tem que ser definido com clareza no título. Quanto aos imóveis que são objeto de servidão O imóvel dominante e o imóvel serviente sempre têm que ser precisamente individualizados. Admite-se que a servidão incida sobre parte do imóvel (desde que parte fisicamente determinada – não se admite onerando fração ideal), mas também sobre o imóvel inteiro. Na servidão de passagem é preciso descrever o caminho da passagem?
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PAINEL Não, é necessário descrever e exigir a especialização disso, se as partes quiseram, pela sua vontade, limitar o exercício dessa servidão a um trecho do imóvel. Nada impede, se o proprietário do imóvel serviente nisso consentir, que o proprietário do imóvel dominante possa passar em qualquer lugar. Nesse caso, o que se tem é um direito de servidão de passagem que onera o imóvel como um todo. Mas, se eles optam por localizar no solo onde vai se dar o exercício de direito dessa servidão, ele tem que ser delimitado com precisão e enviado para o Registro de Imóveis juntamente com uma planta, mural descritivo, ART, etc. Nesse caso exige-se – de acordo com reiterada jurisprudência do Conselho Superior da Magistratura de São Paulo – que a especialidade seja atendida tanto em relação à servidão em si quanto em relação ao imóvel que vai ser onerado. Pela descrição que está na matrícula e pela que consta na servidão é possível que o registrador possa encaixar a servidão dentro do imóvel, caso contrário, não é possível o registro da servidão. Então, não vai ser possível retificar o imóvel uma vez que ele é propriedade do sujeito que está sendo atingido pela servidão. Por isso que a retificação de área exige como legitimado ativo um interessado, e não necessariamente o proprietário. É claro que ele vai ter uma despesa que pode não ser do seu interesse arcar, mas, em princípio o titular do direito de servidão que não pode ser registrado porque a descrição não é compatível poderia dar início à retificação do imóvel serviente e a seguir possibilitar o registro da sua servidão, porque ele é interessado nessa retificação. Segundo a doutrina estrangeira predominante, uma mesma servidão pode beneficiar mais de um imóvel dominante. É a situação, por exemplo, de uma passagem que envolve vários imóveis em fila, sendo que o último chega na via pública. É possível ter uma única servidão onerando esse último imóvel e beneficiando todos os demais. É possível a constituição de servidão sobre imóvel próprio? Outra questão tradicional é sobre a possibilidade
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ou não de constituição de servidão sobre imóvel próprio. Conforme princípio que vem do Direito Romano, nulla res sua servit, ou seja, não pode haver servidão sobre coisa que já é sua. A doutrina alemã tradicional também entende que não é possível essa servidão sobre imóvel próprio, porque falta consenso ou acordo jurídico real entre proprietários, o que seria requisito da constituição da servidão. Não se pode fazer acordo consigo mesmo. Mas a jurisprudência alemã há algum tempo vem admitindo ao proprietário de um imóvel constituir um direito real de garantia sobre ele em seu próprio benefício. No Código Civil Francês exige-se também o pertencimento a outro proprietário, e o nosso Código Civil também diz que necessariamente a servidão “grava o prédio serviente, que pertence a diverso dono” (art. 1378). E há uma decisão do STJ (RESP 117.308) também no sentido de que não se admite a servidão sobre bem próprio, quer dizer, a servidão sobre bem próprio não se constitui. No entanto, Pontes de Miranda sempre defendeu que era possível a constituição de servidão sobre bem próprio. Para ele não seria lógico entender que quem vá parcelar seu imóvel para vender a terceiros não possa instituir servidão sobre as unidades resultantes, se disso precisar para manter o acesso às demais. O que ocorre no caso de divisão dos imóveis? Se acontecer a divisão de imóveis, ela não pode prejudicar o imóvel dominante. Não se pode restringir qualquer direito do proprietário do imóvel dominante porque houve a divisão do imóvel serviente. Se a divisão se dá quanto ao imóvel serviente, todas as parcelas seguem gravadas, salvo se a servidão incidia sobre parte certa. Por outro lado, se a divisão se dá quanto ao imóvel dominante, esta deve ser transportada para todas as novas matrículas, e haverá uma “servidão solidária” (Staudinger); mas é direito do proprietário do imóvel serviente que seu ônus não aumente. Em qualquer caso em que houver divisão a lei não exige anuência dos proprietários. Se houver a divisão e
Imóveis rurais algum deles se sentir prejudicado, deverá ir ao Judiciário para fazer valer o seu direito contra o outro. Pode o titular de direito real limitado constituir servidão? Pode o usufrutuário, o enfiteuta ou superficiário constituir servidão sobre seu bem em favor de outro sob seu direito? A doutrina estrangeira, de maneira geral, entende que sim, respeitando-se as peculiaridades de cada direito real. Por exemplo, se o usufrutuário constitui servidão, esta ficará condicionada ao tempo de duração do usufruto. Mas o nosso Código Civil exige expressamente a declaração dos proprietários, portanto, ele parece não admitir que os titulares de outro direito real possam constituir sobre seu direito a servidão predial. A extinção da servidão predial A extinção da servidão pode se dar: - pela vontade do proprietário do imóvel dominante (caso da renúncia à servidão), ou por acordo entre ambos (caso do resgate da servidão); - pela reunião da propriedade dos dois prédios na mesma pessoa. Podemos verificar essas duas hipóteses diretamente no cartório. Pela análise do título podemos entender que, de fato, a servidão está extinta e pode ser cancelada. Mas há outras hipóteses, que dependem de ordem judicial para o cancelamento: - pelo implemento de condição resolutiva; - pela cessação de utilidade ou comodidade para o prédio dominante; - pela supressão das obras por efeito de contrato ou de título expresso; - pelo não uso por dez anos contínuos. Se não houver lide quanto a essas hipóteses, e se houver um acordo entre as partes reconhecendo, por exemplo, que de fato há o não uso por dez anos, portanto as partes estão de acordo quanto à extinção, o registrador também pode cancelar diretamente.
Se não houver acordo, então deverá haver intervenção judicial. A servidão segue valendo até que o registro seja cancelado. Se o imóvel dominante estiver hipotecado, a extinção da servidão dependerá de anuência do credor, porque ele vai ser prejudicado por isso. Para concluir, há uma decisão da 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo (Processo 100.09.1298858) no sentido de que não é possível o cancelamento de servidão por meio de notificação seguida do silêncio do proprietário do imóvel dominante. Usucapio libertatis – extingue a servidão? O que é Usucapio libertatis? A usucapião tem o condão de extinguir uma servidão que tenha sido registrada anteriormente no imóvel serviente? Quer dizer, quem adquire o bem por usucapião adquire ele livre e desembaraçado? Ou será que tem que continuar respeitando aquela servidão, ou hipoteca, ou qualquer outro direito real limitado que antes onerava o imóvel? Eu não encontrei decisão judicial a respeito. Na doutrina, Luciano de Camargo Penteado e Leonardo Brandelli entendem que a usucapião pode sim extinguir a servidão desde que o exercício da posse pelo usucapiente se dê ostensivamente, de maneira incompatível com o respeito à servidão. Ele exerceu a posse sem respeitar a servidão, como se não existisse servidão. Nesse caso, segundo os autores, seria possível a extinção da servidão. E como fica o registro? Se houver o registro da usucapião e, anteriormente, houver um registro de servidão, é temerário o cancelamento sem uma ordem judicial específica, ou ao menos sem apreciação específica desse ponto na sentença de usucapião. Não é possível presumir que a usucapião se deu de uma maneira ou de outra, por isso eu não cancelaria. E se eu fosse, por exemplo, abrir uma nova matrícula a partir daquela anterior, eu transportaria a servidão para a nova matrícula. E há o cancelamento, que vem com ordem judicial específica reconhecendo que essa usucapião, especificamente, foi realizada com os efeitos da Usucapio libertatis.
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Cadastros de imóveis rurais Bruno Berti Filho – Oficial de Registro de Imóveis em Votuporanga (SP) e membro da Comissão do Pensamento Registral Imobiliário (CPRI)
O papel do Registro de Imóveis na tutela da propriedade imobiliária rural: uma visão à luz do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.
A
mim coube a parte dos cadastros de imóveis rurais. Eu quero levar o enfoque para a questão do agricultor. É fácil conseguir terra no Brasil? Imaginem a propriedade e a posse. É fácil conseguir financiamento? No Brasil, temos o agronegócio, que toca a locomotiva brasileira, e o pequeno produtor. Aquele que tem empresa, que produz e exporta, tem um tratamento. E o pequeno produtor, que convive com o problema de conseguir terra e financiamento. E não é verdade que, no Brasil, “em se plantando, tudo dá”. Não é verdade. Temos vários tipos de solo, um solo é mais adequado para uma cultura, outro para outra, pode-se equilibrar com instrumentos, mas tudo
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tem o seu custo. E a semente que se usa? A Embrapa fez um grande trabalho, melhorando a produção no cerrado, estudando, produzindo sementes mais adequadas. Ótimo. O próximo passo é plantar. Nossos colegas do Nordeste, principalmente, têm que ficar rezando para chover, senão a semente não vai brotar. E tem que rezar para vir água na medida certa. Choveu demais, morre a planta. Conseguiu uma produção, tem que rezar para o mercado ter procura e ele conseguir pagar todas as dívidas que foi contraindo durante o ciclo da produção. Acabou tudo aí? Não, tem sempre os problemas no curso, as pragas, as pestes.
Imóveis rurais Conceito de cadastro Cadastro é um registro, censo, catálogo ou inventário da riqueza territorial de um país, em que se determinam as propriedades rurais e urbanas mediante sua descrição ou expressão gráfica, e sua estimativa econômica, com o objetivo principal de fins fiscais ou tributários, e fins auxiliares de ordem econômica, administrativa, social e civil (Roca Sastre)..
Imóvel urbano: - características; - confrontações; - localização; - área; - logradouro; - número; - designação cadastral, se houver.
Funções do Cadastro:
Esses são os requisitos que interessam na parte cadastral.
a) inscrição dos direitos legais sobre o imóvel (registro da propriedade);
Os quatro últimos requisitos do imóvel rural são os quatro primeiros do imóvel urbano.
b) inscrição das suas características físicas (cadastro físico);
Logradouro e número não têm no imóvel rural, por isso a “denominação”.
c) a inscrição de seu valor para fins tributários (cadastro fiscal).
O código do imóvel rural bate com o cadastro urbano, e aí temos os dados do CCIR relativos somente ao imóvel rural.
No título, eu falei em “cadastros” e cada um tem uma função. E para nós, o primeiro é o cadastro da propriedade. É o que se faz todo dia no Livro 2. A vendeu para B, atendidos os requisitos. Faz-se o registro. Muda-se a propriedade. Os cadastros do Incra vão cair na segunda hipótese, que é o cadastro físico. A descrição da matrícula é um cadastro físico também. E ainda há o cadastro para fins tributários. Agora temos o NIRF – Número do Imóvel na Receita Federal.
Diferenças entre imóvel urbano e rural na matrícula (art. 176, § 1º, II, 3, LRP) Os requisitos do imóvel que devem constar da matrícula, de acordo com a Lei de Registros Públicos, são os seguintes. Imóvel rural: - código do imóvel; - dados constantes do CCIR; - denominação; - características; - confrontações; - localização; - área.
Como fazer? Vamos descrever o imóvel desse jeito: “Imóvel sob o código número tal no Incra, com os seguintes dados”? Não creio que a lei seja taxativa, prefiro uma ordem diferente. Eu identifico o imóvel, uma área rural, uma gleba rural, como quiserem. Qual a área? A localização? Então, começa a descrição do imóvel, e nessa descrição há os confrontantes. Na 13ª linha podemos ler: “confrontando com terras de fulano (matrícula nº ...)”. O confrontante – pessoa física ou jurídica – pode ser alterado com muita facilidade, a matrícula nem tanto. Essa é minha sugestão e, no final, coloco os dados do CCIR, número dos módulos, inscrição.
Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR) O Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR) é documento emitido pelo Incra que constitui prova do cadastro do imóvel rural e é indispensável para desmembrar, arrendar, hipotecar, vender ou prometer em venda o imóvel rural e para homologação de partilha
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PAINEL amigável ou judicial (sucessão causa mortis) de acordo com os parágrafos 1º e 2º, do artigo 22, da Lei nº 4.947, de 6 de abril de 1966, modificado pelo artigo 1º da Lei nº 10.267, de 28 de agosto de 2001.
Módulo fiscal: estabelecido para cada município, procura refletir a área mediana dos módulos rurais dos imóveis do município e considera a área aproveitável total do imóvel frente a MF do município.
Para não complicar, esses conceitos são sempre do portal da Receita Federal ou do Incra.
Portanto, o módulo fiscal é mais voltado para fins tributários, e o módulo rural, para exploração.
O CCIR é a prova da existência do imóvel junto ao Incra (primeiro número à esquerda). A seguir estão os outros dados necessários.
Módulo de exploração indefinida e fração mínima de parcelamento
Módulo rural e módulo fiscal Módulo rural: unidade de medida, expressa em hectares, que busca exprimir a interdependência entre a dimensão, a situação geográfica dos imóveis rurais e a forma e condições do seu aproveitamento econômico.
Módulo de exploração indefinida é a unidade de medida, em hectare, a partir do conceito de módulo rural, sem levar em conta a exploração econômica, especificado para uma determinada região definida. Fração mínima de parcelamento é o módulo mínimo, medida mínima admitida para desmembramento ou divisão do imóvel rural, para manter possibilidade de produção. O módulo de exploração indefinida, é importante saber, não tem no CCIR. Ele tem somente a finalidade de servir para aquisição de imóvel rural por estrangeiro. Já a fração mínima de parcelamento é obrigatória, tem que ser seguida, existem as exceções. No caso de desapropriação, pode ser de área inferior? Pode. Usucapião? Pode. Eu quero abrir um posto de gasolina, não vou usar tudo isso, posso? Posso. Ainda vamos voltar a esse assunto.
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Imóveis rurais
Número do Imóvel na Receita Federal – NIRF e Cadastro de Imóveis Rurais – CAFIR Mais um cadastro, o NIRF e o CAFIR. Número do Imóvel na Receita Federal – NIRF é o número de identificação junto à Receita Federal do Brasil atribuído ao imóvel rural no ato da inscrição no CAFIR. Cadastro de Imóveis Rurais – CAFIR é o cadastro administrado pela Receita Federal do Brasil, com infor-
mações referentes aos imóveis rurais do país, seus titulares e, se for o caso, os condôminos e compossuidores. O NIRF é o número que a Receita Federal atribui. Assim como o CCIR, o NIRF também se tira pela internet. No portal da Receita Federal também se faz o registro no CAFIR para se receber um número. Para que mais um número se já tem lá o CCIR, que gera o DIAT – Documento de Informação e Apuração do ITR, que já vai ter tributação? Pobre produtor!
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PAINEL Cadastro ambiental rural – CAR e Sistema de Gestão Fundiária – SIGEF
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O DIAT É UM COMPLEMENTO DO PRÓPRIO CCIR COM ALGUNS DADOS DE PRODUÇÃO E O QUE MAIS IMPORTA, O VALOR ATRIBUÍDO PELO GOVERNO PARA FINS FISCAIS. ISSO É IMPORTANTE MAIS PARA O EFEITO DE CÁLCULO DE EMOLUMENTOS.
Cadastro ambiental rural – CAR é o registro público eletrônico de âmbito nacional, obrigatório para todos os imóveis rurais, com a finalidade de integrar as informações ambientais das propriedades e posses rurais, compondo base de dados para controle, monitoramento, planejamento ambiental e econômico e combate ao desmatamento.
Sistema de Gestão Fundiária – SIGEF é a ferramenta eletrônica desenvolvida pelo Incra e pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário para recepcionar e validar as informações georreferenciadas de limites de imóveis rurais, públicos ou privados, encaminhadas pelos profissionais credenciados para certificação. No sistema, o público pode pesquisar as parcelas certificadas, os requerimentos de certificação pendentes e os profissionais habilitados credenciados. O pagamento do CAR pode ser feito pela internet, é preciso se inscrever no SICAR, no sistema, e obter o número do CAR. O trabalho tem que ser feito por engenheiro agrimensor. Tudo isso acaba constando na matrícula. No modelo apresentado não aparece NIRF nem CAR, porque eles estão numa averbação separada. É até uma determinação da Corregedoria. E ainda tem o SIGEF, que nada mais é do que o georreferenciamento. Obtém-se um número de certificação que deve constar na averbação do georreferenciamento. Apesar do trabalho, o SIGEF é muito interessante uma vez que evita a superposição de terras.
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O imóvel rural é diferente do imóvel urbano com muros e confrontação facilmente identificáveis. O imóvel rural tem uma cerca, mas será que essa cerca é interna ou externa? O imóvel rural começa lá no córrego tal, que vai até o eucalipto ou a jaqueira. O SIGEF vai resolver isso. Essa é a parte cadastral, mas outros documentos também são necessários: a) Imposto sobre a propriedade territorial rural (ITR) dos últimos cinco anos;
b) Documento de Informação e Apuração do ITR (DIAT); c) certidão negativa de débitos e de regularidade de situação do contribuinte individual (CND/DRS/CI); d) Certidão negativa de multas ambientais (art. 37 Lei 4.771/1965, revogada pela Lei 12.651/2012). O Registro de Imóveis tem o papel de fiscalizador, de agente de rendas do governo. O STF declarou inconstitucional somente um inciso referente às pessoas jurídicas. Os outros ainda não. O DIAT é um complemento do próprio CCIR com alguns dados de produção e o que mais importa, o valor atribuído pelo governo para fins fiscais. Isso é importante mais para o efeito de cálculo de emolumentos. Se o produtor tiver funcionários, ele ainda é obrigado a apresentar essa certidão negativa de regularidade para comprovar que não tem débitos perante a Receita Federal. E ainda tem a certidão negativa de multas ambientais. Embora essa exigência tenha sido revogada, existem normativas específicas em cada Estado a respeito. Qual normativa é que vale, a estadual ou a lei? Eu entendo que é a lei. Então, essa certidão poderia ser dispensada, ficando ao prudente critério de cada registrador.
Imóveis rurais Imóvel rural
a) documento de identidade das partes contratantes e atos de constituição se pessoa jurídica;
Já se falou aqui sobre a distinção entre imóvel rural e urbano e o critério da destinação. O que mais interessa? O problema da transformação dessa natureza. É possível que um imóvel urbano passe a ser rural. É difícil ver isso, mas acontece.
b) memorial descritivo do imóvel, com área, características, limites e confrontações; e,
O mais comum é o imóvel deixar de ser rural e passar a ser urbano. É aquela história do posto de gasolina. O Incra dificilmente daria autorização para instalação de um posto. Por quê? Não atende a questão do módulo rural, fração mínima de parcelamento. Menor que isso é impossível dar subsistência a uma família. Um posto fica muito longe do módulo rural. Mil metros, em tese, já dariam para instalar. Em mil metros não se produz nada.
Basicamente, esse livro é uma duplicação da matrícula. A única diferença é a inclusão do item c). A autorização, se houver, e o resto é tudo igual.
O procedimento é simples. Em primeiro lugar, se tiver uma lei estabelecendo o zoneamento urbano, isso é suficiente para pedir o cadastramento na prefeitura e pedir baixa no Incra. No Rio Grande do Sul, para fazer a baixa, o Incra pede que antes seja feita averbação na matrícula. Em São Paulo e em outros Estados isso não ocorre. Chega-se com a documentação da prefeitura e o Incra autoriza. O retorno ao imóvel rural é um pouco mais complicado, embora a dinâmica seja a mesma. Chega-se na prefeitura, reconhece-se a utilização rural – em geral, de pequenas hortas. A seguir se vai ao Incra. Qual a importância disso? Tributo. ITR e IPTU. Até três anos atrás, no cartório, havia um imóvel urbano dentro da cidade, a 600 metros do marco zero da cidade, que era rural. Dois meses atrás a pessoa que transformou o imóvel rural em urbano pensando em lotear desistiu. A expectativa do mercado não é boa e, para pagar menos imposto, quer o regresso ao imóvel rural. Então, é possível essa transformação sim.
c) transcrição do órgão competente, quando for o caso.
Tudo? Nem tanto. No Livro 2 eu faço remissão de que aquele registro, por envolver estrangeiro, foi objeto de registro no Livro de Estrangeiros. E vice-versa. No Livro de Estrangeiros eu anoto que aquele imóvel já tem registro no Livro 2, sob a matrícula tal. Vendido o imóvel, averba-se no Livro de Estrangeiros que foi vendido por um brasileiro. E se for vendido para outro estrangeiro? A lei não fala nada. Eu já tive esse caso e entendi que era simples averbação. O imóvel é o mesmo, passou de um português para outro português. Então, não tem problema nenhum.
Conclusão O papel do Registro de Imóveis na tutela da propriedade imobiliária rural: uma visão à luz do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. Então, a proposta que eu tenho é essa. Uma visão diferente do Registro de Imóveis. Aquele escopo da Comissão do Pensamento Registral. Podemos ser melhores? Podemos. E essa é minha mensagem final.
Cadastro de pessoas estrangeiras O embasamento legal é o art. 10 da Lei nº 5.709/1971. A lei dispõe que tem que haver um livro auxiliar de registro de estrangeiros do qual constará:
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PAINEL
Apostilamento de documentos públicos
Márcio Evangelista Ferreira da Silva – Juiz Auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça
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Faço um apelo para que busquem junto às associações, junto às corregedorias locais, a padronização do serviço nacional, para que todo documento apostilado no Brasil seja exatamente igual.
”
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Apostilamento de Haia
V
amos falar sobre apostilamento nos termos da Convenção da Apostila da Haia, em vigor no Brasil desde agosto de 2016, com o objetivo de agilizar e simplificar a legalização de documentos entre os 112 países signatários, permitindo o reconhecimento mútuo de documentos brasileiros no exterior e de documentos estrangeiros no Brasil. Ou seja, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), responsável por coordenar e regulamentar a aplicação da Convenção da Apostila da Haia no Brasil1, a Apostila é um certificado emitido nos termos da Convenção da Apostila que autentica a origem de um documento público2. Tradicionalmente, a legalização era feita de forma
muito burocrática. O documento passava por vários órgãos até chegar ao Ministério das Relações Exteriores onde se fazia a legalização para uso no exterior. O custo era elevado, a demora muito longa, e era necessário o deslocamento até um posto de atendimento do Ministério das Relações Exteriores. Havia até a contratação de despachantes, o que elevava ainda mais o custo dessa documentação, que hoje é feita por um processo simplificado pela Convenção da Apostila. A legalização desses documentos no Brasil era muito demorada e burocrática. Com a adoção da Convenção da Apostila da Haia, em 14 de agosto de 2016, os cartórios brasileiros fizeram 837,657 mil apostila-
1
https://www.hcch.net/pt/instruments/conventions/full-text/?cid=41. Acesso em 21.6.2019.
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http://www.cnj.jus.br/poder-judiciario/relacoes-internacionais/convencao-da-apostila-da-haia. Acesso em 21.6.2019.
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mentos nos primeiros oito meses do acordo, segundo dados do CNJ. Um procedimento simples, fácil, rápido, graças à Convenção da Haia. A Convenção da Haia, de 1961, entrou no Brasil pelos decretos, foi internalizada, e a resolução do CNJ delegou essa tarefa às serventias extrajudiciais. Qual a razão de delegar esse serviço ao Extrajudicial? A capilarização e o acesso da população. São 17 mil serventias no Brasil, então serão 17 mil potenciais postos para fazer o apostilamento. Inicialmente, a resolução delegou à Corregedoria Nacional de Justiça a autorização para que os cartórios fizessem o apostilamento. Começamos com as capitais para saber como o serviço seria desempenhado, e para testar a aceitabilidade. O serviço prestado no Brasil é resolvido aqui mesmo. As corregedorias locais e a Corregedoria Nacional traçam procedimentos, fiscalizam, dizem como pode 3
ser feito e como não pode ser feito. Essa prestação de serviço tem um problema adicional. Não podemos errar, porque nossa credibilidade internacional está em jogo. A Apostila feita de forma errada será devolvida. Ou seja, o país de origem que emite uma Apostila para ser utilizada em outro país signatário da Convenção pode ter a Apostila recusada se for feita de forma errada. Então, o trabalho de apostilamento tem que ser feito com disciplina, organização e respeito às regras. Se perdermos a credibilidade em relação à Apostila, isso já aconteceu em alguns países, voltamos à legalização de documentos da forma tradicional e burocrática de antes. Então, é essencial fazer o apostilamento nos termos da Convenção da Haia. No portal da Convenção da Haia3 há vários documentos em língua portuguesa dizendo como deve ser feito o apostilamento. É óbvio que podemos errar, estamos começando
https://www.hcch.net/pt/instruments/conventions/full-text/?cid=41. Acesso em 21.6.2019.
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Apostilamento de Haia a desempenhar um serviço que é novo no Brasil, mas temos que tentar ao máximo obter uma padronização para todo o país, porque no exterior devemos ter um documento único. Qualquer Apostila emitida no Brasil deve ser enxergada, internacionalmente, como um documento único. Em qualquer lugar do Brasil – nessas 17 mil serventias potenciais – o serviço deve ser prestado da mesma forma, porque nossa credibilidade internacional está em jogo. Lá fora não querem saber se a Apostila foi feita em São Paulo ou no Paraná. Foi feita pelo Brasil de uma única forma, do contrário, o documento será recusado. Esse era o problema da legalização feita pelo Ministério das Relações Exteriores, o que gerava a falsificação de documentos. Por isso temos documentos nossos recusados em alguns países, embora legalizados pelo Ministério das Relações Exteriores. É preciso que a Apostila supere esse problema de recusa de documentos. A Convenção da Apostila da Haia vem trazer essa segurança para a legalização de
documentos públicos, exclusivamente.
Convenção da Haia legaliza documentos públicos exclusivamente Nós temos problemas com alguns cartórios que estão apostilando documentos particulares; estão dando roupagem de documento público a documento particular com um simples reconhecimento de firma, por exemplo. Isso não pode acontecer. A regra matriz é a Convenção. A Convenção da Haia fala em “documentos públicos”, então somente documentos públicos podem ser apostilados. Os cartórios têm que recusar a legalização de documento particular para ser utilizado fora do país. Nós tivemos alguns casos de certificados de cursos de manicure, certificados de curso de salão de beleza para utilizar na Espanha. Infelizmente, isso não pode ser apostilado porque não é documento público.
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PAINEL Atenção, é preciso verificar como o documento pode ser legalizado junto ao país em que vai ser apresentado. Pode não ser pelo apostilamento, mas por outras formas. Nós temos uma obrigação internacional que foi delegada aos registradores e notários. Temos uma obrigação internacional sobre quais documentos vamos apostilar. O apostilamento também não poderá ser utilizado quando o país de origem, ainda que faça parte da Convenção, tenha uma lei ou um costume interno ainda menos burocrático do que a própria Apostila. Se no país de origem onde a pessoa vai utilizar o documento não há necessidade da Apostila, então não devemos fazer essa Apostila. Como saber isso? O interessado vai buscar saber junto ao país de origem onde será apresentado o documento, se precisa ou não da Apostila. Alguns documentos não terão Apostila, a pessoa interessada vai trazer essa informação. O problema é que muitas vezes a pessoa não tem essa informação. Nesse caso, a responsabilidade passa sim aos delegatários, que devem verificar se é ou não possível fazer a Apostila. Na dúvida, é preciso fazer o procedimento específico recomendado pelo Provimento CNJ 58/2016: “Art. 12. Em caso de dúvidas sobre a aposição de apostila em documentos públicos produzidos no território nacional, as autoridades competentes para a aposição da apostila deverão orientar o solicitante do serviço a esclarecê-las à embaixada do país no qual o documento será utilizado. § 1º Se a dúvida persistir, deve-se realizar procedimento específico prévio para a segurança do ato de aposição da apostila, conforme previsto no art. 3º, § 2º, da Resolução CNJ n. 228/2016.
O apostilamento pode ser recusado, e se a recusa não for aceita pela parte, um procedimento específico está regrado no provimento. Apostila da Haia é somente para documentos públicos. Se a lei do país destinatário do documento não exigir a Apostila, não é preciso fazer. E se ainda houver alguma dúvida, melhor usar o procedimento específico.
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Convenção da Haia: casos de não aplicação A Apostila da Haia não se aplica aos países não signatários; aos países que denunciaram a convenção; aos documentos emitidos por agentes diplomáticos ou consulares; e aos documentos administrativos diretamente relacionados a operações comerciais ou aduaneiras. O Ministério das Relações Exteriores legalizava documentos aduaneiros e começaram a chegar alguns desses documentos para apostilar. Não pode, de acordo com a Convenção da Haia isso não é papel da Apostila. A Convenção determina que não pode ser feito. Então, como legalizar um documento aduaneiro? Da forma como era antes. Não pode ser feito por Apostila.
Regramento Interno sobre apostilamento - Obrigatoriedade da prestação do serviço A Resolução CNJ nº 228, de 22.6.2016, que regulamenta a aplicação da Convenção sobre a Eliminação da Exigência de Legalização de Documentos Públicos Estrangeiros (Convenção da Apostila), determina que todos os cartórios das capitais devem fazer o apostilamento. É uma obrigatoriedade. A ideia é que o serviço esteja disponível para toda a população, ter capilaridade pelo menos na capital. No interior, um segundo momento da autorização do apostilamento, foi facultativo. Algumas cidades pequenas demais não têm procura, então não há necessidade de ser autoridade apostilante. Infelizmente, alguns delegatários de capitais estão recusando fazer esse serviço. Isso vai ser levado ao plenário do CNJ, mas hoje é obrigatório. - Cadastramento das autoridades apostilantes Qual a competência da autoridade apostilante de acordo com as atribuições? A Convenção diz que as autoridades serão aquelas que o país determinar. O Decreto e a Resolução determinam que as autoridades apostilantes são os delegatários de acordo com suas atribuições. Que atribuições são essas? As que estão na Lei
Apostilamento de Haia 8.935/1994, aquelas atribuições relativas aos documentos de competência do registrador ou do notário, somente aqueles documentos que ele pode fazer. O notário não pode fazer um ato que é de competência do registrador de imóveis, e vice-versa. O registrador de imóveis só pode fazer atos de sua competência previstos na Lei 8.935.
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QUEM É MAIS ESPECIALIZADO PARA FAZER UM APOSTILAMENTO DE REGISTRO DE IMÓVEIS? QUEM TEM MAIS EXPERTISE PARA FAZER UM APOSTILAMENTO SOBRE NOTAS? A LEI DIVIDIU QUAL É A COMPETÊNCIA DE CADA DELEGATÁRIO, A APOSTILA SEGUE ESSA MESMA LINHA.
A ideia dessa exigência da Resolução foi manter a expertise. Quem é mais especializado para fazer um ato de registro, um apostilamento de Registro de Imóveis? Quem tem mais expertise para fazer um apostilamento sobre Notas? A lei dividiu qual é a competência de cada delegatário, a Apostila segue essa mesma linha. E isso já deu problema em alguns Estados. Após a fase de advertência e orientação, a delegação sobre a Apostila pode ficar em risco. Temos que prezar pela segurança desse ato, pela manutenção dessa competência. Volto a dizer, se não tivermos credibilidade internacional, podemos perder essa delegação.
Segurança da Apostila Hoje temos algum problema com o fornecimento de papel-moeda. A Casa da Moeda fez um cálculo insuficiente, porque não imaginávamos que a demanda seria tão grande. O papel-moeda da Casa da Moeda tem a mesma segurança que o dinheiro, e sua produção leva mais de uma semana. O cálculo inicial foi baixo, mas hoje a Casa da Moeda assegura que não falta papel. O procedimento de compra e de cadastramento ainda é um pouco difícil. Nós temos todas as decisões públicas de quais cartórios são autoridades apostilantes. O contato da Casa da Moeda com os cartórios deve ocorrer somente depois que essa decisão for publicada. Sai uma decisão da Corregedoria, mas o cartório ainda não está cadastrado no SEI – Serviço Eletrônico de Informação, por isso não pode comprar papel-moeda.
Por que esse procedimento burocrático? O sistema de cadastramento era feito por e-mail e gerava insegurança, porque não havia criptografia e, às vezes, nem assinatura. Hoje o cadastramento é feito por meio da Corregedoria local. Se o corregedor considerar o cartório apto a fazer o apostilamento, ele vai comunicar a Corregedoria Nacional, que vai autorizar o cartório a ser autoridade apostilante. Esse processo leva de quinze a vinte dias. Se o cartório não conseguir fazer o cadastro no SEI, ele não consegue comprar papel-moeda. É uma questão de segurança.
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Por que usar o papel da Casa da Moeda? Por questão de segurança. Nenhuma gráfica conseguiu apresentar um papel com a mesma segurança, com número, sequência e ordem cronológica. Nenhuma gráfica apresentou um papel com número sequencial. Hoje temos controle de todas as apostilas pelo número sequencial do papel-moeda confeccionado pela Casa da Moeda. A ideia é a padronização, para que não haja dúvida. Todo documento que sai do Brasil apostilado, para qualquer lugar do mundo, deve ser igual. Preenchimento igual, papel igual, sem nenhuma distinção. Todos feitos da mesma forma, seja no Paraná, em Roraima ou em São Paulo. Isso traz segurança internacional. Esse procedimento-padrão merece um treinamento. Precisamos de treinamentos locais. Com o apoio das associações temos agendado palestras e encontros, para divulgar o serviço e padronizar o treinamento. Exijam os cursos dos presidentes das associações. Precisamos padronizar esse serviço para ter segurança jurídica. Na dúvida – se o documento pode ser apostilado, se o documento é público ou particular – é melhor não fazer a Apostila. É melhor negar o serviço do que gerar falta de credibilidade internacional. Se a parte não concordar com a negativa, abre-se um procedimento específico
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PAINEL e o juiz corregedor local vai decidir se é ou não para fazer o apostilamento. Isso traz segurança jurídica para os delegatários e para a parte. Uma decisão do corregedor dá mais tranquilidade a todos.
Observações importantes sobre o Provimento CNJ 58/2016
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EU SEI QUE ESTAMOS VIVENDO TEMPOS DE CRISE, MAS O INVESTIMENTO EM SERVIÇO DE TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO E SEGURANÇA REDUZ O CUSTO DO SERVIÇO A MÉDIO PRAZO. QUANTO MAIS INFORMATIZADO O SERVIÇO, MENOS VOCÊ GASTA COM BALCÃO.
Nós vamos fazer algumas alterações nesse provimento. Vamos reduzir a complexidade, tratar de forma mais objetiva, tentar sanar algumas dúvidas que temos a respeito de interpretações dos artigos do provimento.
Hoje temos três procedimentos abertos sobre o Provimento 58. Sobre tradução juramentada, por exemplo, se pode ser tradutor comum ou não. Já temos uma decisão dizendo que não pode, todos os documentos devem ter tradução juramentada. Quanto à pseudopublicização de um documento pelo simples reconhecimento de firma (art. 10, § 3º), vamos acabar com isso também. Temos um projeto em andamento. Teremos um banco de dados de autoridades para efeito de apostilamento. Hoje há dificuldade para comprovar se a pessoa que assinou aquele documento exercia a função à época da assinatura. Estão simplesmente reconhecendo a assinatura. Não é a ideia da Convenção da Haia, que determina que devem ser reconhecidos a assinatura, o cargo e a função que a pessoa ocupava quando assinou o documento a ser legalizado. Um dos problemas que tivemos foi sobre dúvida quanto a legitimidade da Apostila. O reconhecimento internacional da Apostila se dá mediante um carimbo, em francês, que é padrão no mundo inteiro. A Apostila tem que ter esse carimbo nesse nosso documento em papel-moeda, e ele deve ser puro, simples, na cor
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preta, e não pode ser rubricado. Um país pegou uma Apostila que estava com o carimbo rubricado e outro com o carimbo sem rubricar. Qual seria válido? Parece banal, mas a padronização é essencial para garantir a segurança na realização da Apostila, é de suma importância para nossa credibilidade internacional.
No portal da Anoreg há um vídeo mostrando como deve ser feito o apostilamento, o carimbo é seco. Carimbou aquilo na cor seca, não é para rubricar em cima do carimbo. Ao lado, existe um campo específico para a rubrica. Uma questão banal como essa está gerando falta de padronização, o que pode levar à falta de credibilidade. Faço um apelo para que busquem junto às associações, junto às corregedorias locais, a padronização do serviço nacional, para que todo documento apostilado no Brasil seja exatamente igual.
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Eu sei que estamos vivendo tempos de crise, mas o investimento em serviço de tecnologia da informação e segurança reduz o custo do serviço a médio prazo. Quanto mais informatizado o serviço, menos você gasta com balcão. Se o cartório emitir uma certidão com assinatura digital, a pessoa imprime em casa, evitando gasto com papel, tinta, pessoas no balcão, etc. Eu faço inspeções no Brasil inteiro e tenho visto falta de apreço à tecnologia de informação, segurança de informação e parque tecnológico. É preciso investir em backup. Recentemente houve invasões de hackers, nós tivemos quatro cartórios que sumiram do mapa no Brasil, acabou, não existem mais. Eles foram pirateados. Não contavam com tecnologia da informação, não tinham segurança, não tinham backup, não tinham nada. Então, eu levo uma equipe de tecnologia para fazer testes de invasão nos sistemas das serventias que visito em todo o Brasil. Por que isso? Para que os
Apostilamento de Haia demais não sofram o que esses quatro sofreram ao perder o cartório de um dia para o outro. Precisamos sim fazer investimento em tecnologia, mas temos serventias deficitárias no Brasil. Não adianta criarmos uma central estadual eletrônica de Registro de Imóveis, não adianta criarmos uma ONR, se não tivermos segurança em todo o Brasil. Nós teríamos que ter o Registro de Imóveis no interior com a mesma tecnologia, mesma segurança, mesmo parque tecnológico avançado daquele que está na capital. Do contrário, não vai haver segurança no sistema de ponta a ponta. Então, vou pedir de forma altruísta que aqueles que não são deficitários trabalhem em conjunto com aqueles que são deficitários. E também peço às associações, ao IRIB, à Anoreg, que pensem em investir para propiciar segurança ao associado. Outra questão, os serviços de softwares diferentes que não se conversam nem em cartórios da mesma natureza, trabalhando lado a lado no mesmo ambiente. O investimento de associados e associações tem que ser no sentido de criar a padronização dos sistemas, para que todos tenham a mesma segurança. Também vão ter os mesmos problemas e, nesse caso, será muito mais fácil exigirem melhorias desses softwares. Às vezes é preciso fazer uma alteração, essa alteração falha, e a empresa pede três meses para a correção. Já vi isso acontecer. A empresa de software da qual nós somos reféns, porque ficamos reféns dessas empresas, só vai dar resposta depois de três ou quatro meses para um serviço que está sendo realizado no dia a dia. O Registro Civil sofreu agora uma alteração na certidão de nascimento. É preciso criar um campo a mais para se inserir a naturalidade. A pessoa pode ter nascido em Curitiba e ser natural de Cianorte, isso vai constar na certidão. Foram pedidos quatro meses para alterar o sistema. A lei está vigente, como colocar isso na certidão? Vocês não podem ser reféns disso. Como deixar de ser reféns desse tipo de serviço? Unindo-se às associações e trabalhando em conjunto com um sistema único. Um único sistema vai trazer mais segurança para o trabalho, mais agilidade e poder. Hoje temos um serviço delegado de excelên-
cia em vários lugares no Brasil porque a velocidade é maior que a do serviço público. O serviço delegado tem essa facilidade. Vocês podem investir e exigir. No serviço público tudo é mais lento, tudo tem que ser feito com licitação. Vocês podem exigir prazo ágil, porque juntos vocês têm esse poder.
Seguir a padronização e a Convenção da Haia é essencial para não ter problemas Espero que vocês utilizem realmente o serviço de apostilamento, porque a população aceitou muito bem esse serviço. Internacionalmente, já estamos sendo elogiados. Na última Convenção da Haia, o Ministério das Relações Exteriores notificou o CNJ para participar das convenções. Eles querem saber do nosso serviço eletrônico, porque Paris tem oito autoridades apostilantes e o apostilamento é feito em papel A4 com carimbo de selo de cera. Eles querem copiar nosso sistema. O sistema eletrônico de apostilamento está sendo difundido no mundo inteiro como serviço de excelência. Temos que mostrar que no Brasil o serviço é realizado de forma segura, em cumprimento às regras da Convenção, dando credibilidade ao documento aqui e lá fora. Mais uma vez, peço que mantenham contato com as associações, exijam apoio, e junto às corregedorias locais também. As corregedorias locais sabem qual é a situação dos delegatários e são a porta de entrada para o CNJ. Em Brasília, muitas vezes, eu não sei o que acontece no interior de algumas cidades. A corregedoria local é que deve nos levar a informação. Mas a ideia é que todos os problemas sejam resolvidos junto às associações – como a padronização de serviço – ou junto às corregedorias locais. Cada corregedoria local deve nos informar como anda o apostilamento, quais são os problemas e as dúvidas. Já demos um bom passo, de 800 reclamações passamos para 50 a 60. Mas o objetivo é não ter reclamações, porque é um serviço fácil. Se a padronização e a Convenção da Haia forem seguidas, o serviço vai ficar sempre na mão do serviço delegatário.
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HOMENAGEM
IRIB presta homenagem a Jürgen Wilhelm Philips, um dos maiores estudiosos do cadastro territorial
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Jürgen Philips foi um grande pensador e acadêmico que contribuiu para a formação de muitos estudiosos. Foi também importante colaborador do IRIB. Sempre nos acolheu e deu impulso às questões relacionadas ao cadastro e o Registro de Imóveis. Rendo minhas homenagens a essa figura magnífica que foi professor de todos nós.
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diz o presidente do IRIB e da Academia Brasileira de Direito Registral Imobiliário, Sérgio Jacomino.
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Jürgen Wilhelm Philips
O
dia 18 de julho de 2017 foi marcado por uma triste notícia: faleceu, em Florianópolis/SC, o professor doutor Jürgen Wilhelm Philips, uma das maiores autoridades no estudo do cadastro territorial. Alemão radicado no Brasil, Jürgen Philips era professor do Departamento de Engenharia Civil do Centro Tecnológico da Universidade Federal de Santa Catarina e também do Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Transportes e Gestão Territorial. Já com a saúde debilitada, o professor Jürgen Philips participou das atividades do XLIV Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, realizado de 30 de maio a 3 de junho, em Curitiba/PR. Ele gentilmente aceitou o convite formulado pelo presidente do IRIB, Sérgio Jacomino, para conduzir um debate sobre o cadastro e o Registro de Imóveis, com um grupo de registradores imobiliários interessados no tema.
Sólida formação acadêmica Jürgen Wilhelm Philips era mestre em Geodésia pela Universidade de Bonn na Alemanha e doutor em Geodésia e Fotogrametria pela Rheinisch Westfälische Technische Hochschule Aachen, também na Alemanha. Foi professor assistente na RWTH Aachen e professor visitante nas universidades del Yulia em Maracaibo/ Venezuela, na UPTC de Tunja/Colômbia e na Universidade Federal de Pernambuco. Desde 1997, atuava como professor da Universidade Federal de Santa Catarina. Executou projetos de fotogrametria em Ras al Khaima e Julfa, nos Emirados Árabes Unidos, e em Mohenjo Daro,
no Paquistão. Acumulava experiência nas Ciências Geodésicas em geral e nas aplicações em Cadastro Técnico Multifinalitário, atuando principalmente nos seguintes temas: modelagem de cadastros, cadastro técnico multifinalitário, cadastro de imóveis rurais e urbanos, legislação territorial, ordenamento e reordenamento territorial, aerolevantamento e georreferenciamento planialtimétrico, cadastro – 3D, teoria de erros e ajustamento de observações, agrimensura e cartografia legal.
Acadêmicos, registradores imobiliários e amigos destacam o legado de Jürgen Philips Andrea Flávia Tenório Carneiro, professora associada do Departamento de Engenharia Cartográfica da UFPE. Engenheira Cartógrafa pela UFPE, mestre em Ciências Geodésicas pela UFPR e doutora em Engenharia de Produção pela UFSC. “Conheci Jürgen Philips em Recife, quando ele ingressou como professor visitante no Departamento de Engenharia Cartográfica da Universidade Federal de Pernambuco. Naquela época, eu buscava um tema para iniciar meu doutorado e nossas conversas sobre a importância do cadastro territorial na Europa despertaram minha atenção para essa área pouco explorada no Brasil até então. Foi assim que eu me encantei pelo assunto, e juntos iniciamos uma parceria profissional e uma grande amizade de mais de vinte
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HOMENAGEM anos. Iniciei o meu doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina, no mesmo ano em que ele ingressava nessa instituição como docente permanente. Embora não tenha sido meu orientador, ele me influenciou na escolha de um tema desafiador, a interconexão entre cadastro e o Registro de Imóveis, que também nos aproximou da classe registral e do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, o IRIB, por meio do Dr. Sérgio Jacomino.
“
SUA SÓLIDA FORMAÇÃO EM CIÊNCIAS GEODÉSICAS E SUA INCANSÁVEL DEFESA DO CADASTRO TERRITORIAL COMO UM INSTRUMENTO FUNDAMENTAL PARA A GESTÃO PÚBLICA TROUXE INESTIMÁVEL CONTRIBUIÇÃO PARA OS AVANÇOS QUE OCORRERAM NESSA ÁREA NOS ÚLTIMOS VINTE ANOS.
Sua sólida formação em Ciências Geodésicas e sua incansável defesa do cadastro territorial como um instrumento fundamental para a gestão pública trouxe inestimável contribuição para os avanços que ocorreram nessa área nos últimos vinte anos. Desde a publicação da Lei nº 10.267/2001 e seus regulamentos até a Portaria 511, do Ministério das Cidades, estivemos juntos nessa construção dos conceitos que levarão nosso país um dia a ter um cadastro territorial eficiente. Com uma cultura geral invejável e uma generosidade ímpar, qualquer interlocutor se tornava um aluno atento e encantado pela sua gentileza e paciência que a todos conquistava. Partiu cedo demais, meu amigo tão querido, mas semeou suas ideias nas mentes de profissionais por todo o nosso país. Esse é o seu legado”. Sérgio Jacomino, presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil – IRIB, 5º Oficial do Registro de Imóveis de São Paulo/SP e presidente da Academia Brasileira de Direito Registral Imobiliário – ABDRI. “Jürgen Philips foi um grande professor e entusiasta do tema do Direito Registral e do cadastro imobiliário. Ao longo de sua vida, patrocinou e promoveu diversos estudos nessa área, tornando-se referência no Brasil e no exterior. O professor nos conduziu a uma memorável viagem a Colônia, na Alemanha, onde pudemos conhecer o registro e o cadastro daquele país.
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Ele foi extraordinariamente solícito, atuou como tradutor, abriu portas e, por seu intermédio, celebramos convênio com uma importante universidade alemã. Também intermediou o relacionamento profícuo que estabelecemos com o Ministério das Cidades, que editou um livro sobre o cadastro técnico multifinalitário, sob inspiração do professor Jürgen Philips.
O professor Jürgen tinha grande formação teórica que o favorecia no sentido de distinguir claramente as atribuições do Registro de Imóveis das atribuições próprias do cadastro. Essa distinção levava em consideração a experiência que ele tinha do sistema alemão. No ambiente acadêmico brasileiro, há uma tendência de se confundir essas duas instituições, e o professor sempre foi uma palavra de clarividência no trato com esses temas.
”
Durante muitos anos, o professor Jürgen promoveu, em Florianópolis, o Congresso de Cadastro Técnico Multifinalitário e Gestão Territorial – Cobrac. Esses importantes encontros reuniam juristas, técnicos em Geodésia e outros profissionais ligados à área de cadastro. Jürgen Philips foi uma figura importantíssima na regulamentação da Lei nº 10.267/2001, que criou o georreferenciamento. Foi ele quem nos trouxe as primeiras lições sobre parcelas e conceitos próprios do cadastro. Até os últimos dias de sua vida, ele conduzia pesquisas na área de cadastro e estava muito interessado na regulamentação da Lei de Terras, tema pouco estudado por nós e que mereceria – em homenagem e honra ao professor e doutor Jürgen Philips – que fizéssemos um livro reunindo os textos que ele nos legou. Particularmente, sou grato ao professor por ter tido a gentileza de me introduzir nos temas do cadastro. Fui procurado por ele em 1994 para orientar uma jovem professora da Universidade Federal de Pernambuco,
Jürgen Wilhelm Philips Andrea Tenório Carneiro, que concluiu o seu doutorado e, posteriormente, tive a honra de ser o editor do livro de sua autoria, que até hoje se constitui como uma obra introdutória aos temas do cadastro. Enfim, Jürgen Philips foi um grande pensador e acadêmico que contribuiu para a formação de muitos estudiosos. Foi também importante colaborador do IRIB, sempre nos acolheu e deu impulso às questões relacionadas ao cadastro e ao Registro Imobiliário. Rendo minhas homenagens a essa figura magnífica, que foi professor de todos nós”. Artur Caldas Brandão, engenheiro Agrimensor (EEEMBA) e docente do Departamento de Engenharia de Transportes e Geodésia da Escola Politécnica da UFBA. Mestre em Ciências Geodésicas pela UFPE, com doutorado em Engenharia de Produção pela UFSC. “Conheci o professor Philips na década de 1990, quando ele atuava como docente da UFPE, e eu, já como professor da UFBA, realizava algumas atividades de pesquisa e de extensão com colegas pernambucanos. Naquela época, eu não realizava atividades diretamente com o professor Philips, mas já me identificava muito com aquele alemão, que se interessava pelas coisas que eu estava fazendo e perguntava muito sobre a Bahia. Foram muitos os momentos em que, tomando um café ou almoçando com ele na cantina do Centro de Tecnologia da UFPE, eu ficava maravilhado com suas conversas, que não eram somente sobre assuntos técnicos da geodésia, topografia, cartografia etc. Mas, foi no final da década de 1990, e com a intermediação da professora Andrea Carneiro, da UFPE, que comecei a ter mais intensa aproximação com o professor Philips, sendo ele, afinal, meu orientador no doutorado na UFSC. Para tanto, de 1999 a 2002, passei a morar em Florianópolis com a família, minha esposa Madalena e nossas filhas Mariana e Alice. Foi um período muito intenso que marcou minha vida profissional e sedimentou a amizade com o professor Philips. Poucos foram os finais de semana em que não nos encontrávamos, tantos foram os churrascos no Campeche onde morávamos, na casa dele, em casa de amigos comuns ou em restaurantes de Florianópolis. As conversas fluíam para muito além da geodésia, do cadastro, das pes-
quisas minhas e de colegas de doutorado e mestrado na UFSC daquela época. Participávamos de uma informal “associação de orientandos do professor Philips”. Cidadão do mundo, apreciador de uma boa cerveja e pessoa da mais elevada cultura, o professor Philips dialogava com propriedade e conteúdo sobre qualquer assunto. Conhecia como poucos a História do mundo, História do Brasil e até mesmo detalhes da História da Bahia. Em termos profissionais, o professor Philips marcou sua passagem, sendo decisivo para a transformação do que temos hoje no Brasil sobre o entendimento, a importância e necessidade do cadastro para a gestão do território. Não vou falar sobre isso aqui, mas somente registrar que especificamente pra mim, a ‘ficha caiu’ quando já nas primeiras aulas sobre cadastro, no meu doutorado na UFSC, o professor Philips, de forma simples e direta, mas também precisa e completa, me fez entender sobre o rigor da medição de um imóvel/parcela, aprender a aplicar o método dos mínimos quadrados e a fazer ajustamento de observações de medições a trena, e que isso não é somente uma atividade da geodésia, mas que deve estar inserido num sistema cadastral. Nossa! Eu realmente não tinha essa compreensão. É essa concepção de um sistema cadastral que estamos começando a ter aqui no Brasil, e devemos muito ao professor Philips por isso. O professor Jürgen Wilhelm Philips estará sempre em nossas lembranças, pela pessoa, pelo profissional e por tudo que ele construiu”. Jéverson Luís Bottega, registrador de imóveis em São Lourenço do Sul/RS e coordenador da Comissão do Pensamento Registral Imobiliário – CPRI/IRIB. “Foi com grande pesar que recebi a notícia do falecimento do professor Dr. Jürgen Wilhelm Philips. Tive o privilégio de conhecê-lo em Curitiba, no último Encontro Nacional do IRIB. As poucas horas em que desfrutei de sua companhia foram suficientes para despertar em mim profunda admiração. Somos todos conhecedores do trabalho desenvolvido pelo professor Jürgen. Os seus ensinamentos, eternizados em textos de grande qualidade, são fundamentais para os que pretendem compreender as
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HOMENAGEM funções do cadastro imobiliário. Sem dúvida, ele fará muita falta à comunidade acadêmica. Sou grato por ter aprendido um pouco do conhecimento do catedrático, mas lamento não ter tido mais tempo para estreitar o relacionamento com o gentil senhor, que, apesar das dificuldades, mostrou-se extremamente solícito com o grupo que teve a oportunidade de ouvi-lo em Curitiba”.
Cadastro Rural – SNCR, construído sob nossa coordenação em parceria com o Serviço Federal de Processamento de Dados – Serpro, Receita Federal, IRIB e tantos outros parceiros, base para o Cadastro Nacional de Imóveis Rurais – CNIR.
Evandro Miranda Cardoso, ex-coordenador-geral de Cadastro Rural do Incra. Engenheiro agrônomo, especialista em Planejamento e Desenvolvimento Sustentável.
Meu aprendizado e o legado que ajudei a edificar no Incra, em minha vivência com o Cadastro Rural e o CTM – Cadastro Técnico Multifinalitário, devo a muita gente, mas, em especial, ao grande mestre professor Dr. Jürgen Wilhelm Philips. O estudo de sua obra e as conversas e debates sobre o tema foram fundamentais para mim e minha equipe.
“No período de 2011 a 2015, estive na direção nacional do Incra, em Brasília, na condição de coordenador nacional de Cadastro Rural. Foi um tempo de muitos desafios, aprendizado e realizações, em que destaco a construção e implantação do novo Sistema Nacional de
Minhas homenagens e eterna gratidão aos ensinamentos, à disponibilidade, generosidade e pronta colaboração em transmitir conhecimento e a delicadeza no tratamento. O professor Philips deixa um legado e uma obra inestimáveis. Descanse em paz, grande mestre!”.
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Jürgen Wilhelm Philips Elizabeth Prescott, aposentada do Incra, Cadastro Rural. “No dia 18 de julho de 2017, tive uma triste notícia – a morte do professor Jürgen Philips. Pessoa maravilhosa e incansável na luta pela seriedade do cadastro rural. Imagino que na sua trajetória no IRIB, o contato com o professor Jürgen tenha se mantido. Gostaria apenas de externar meus sentimentos de pesar e meu orgulho por ter tido a oportunidade de aprender e trabalhar com ele.”. Mensagens de alunos e professores do curso de Engenharia de Agrimensura e Cartográfica da UFBA Aos familiares, amigos e colegas do professor Jürgen Philips, docente da Universidade Federal de Santa Catarina e um grande colaborador para a construção do curso de Engenharia de Agrimensura e Cartográfica da UFBA, Consternados com o seu falecimento, encontramos nas inúmeras manifestações carinhosas recebidas aqui na UFBA, de alunos, orientandos, professores, profissionais, colegas e admiradores, a forma mais significativa para demonstrar todo o nosso afeto por conhecer e conviver com pessoa tão admirável: Professor Jürgen Philips… “Uma das mentes mais humildes, brilhantes e inspiradoras que tivemos o privilégio de conhecer”; “O cientista que mudou a cara do cadastro territorial no Brasil”; “Gênio do cadastro, com simplicidade, demonstrou a capacidade de expor um mundo geodesicamente monitorado”;
“Um dos principais mentores para a construção do atual formato dos cursos de Engenharia de Agrimensura e Cartográfica no Brasil”; “Grande incentivador de nossas vidas profissionais”; “Um dos poucos que conseguiu equilíbrio entre a ética profissional, capacidade técnica e generosidade incondicional”; “Deixou um grande legado e certamente essa conquista é o mais importante a ser lembrado”; “Vai fazer falta, tanto pela sua capacidade intelectual como pela sua humanidade”; “Somos todos gratos pelo privilégio de termos assistido as suas aulas e palestras”; “Somos todos gratos pelos seus ensinamentos”; “Uma grande perda para a Engenharia de Agrimensura e Cartográfica”. … Saudades e gratidão! Salvador/BA, 18 de julho de 2017. Curso de Engenharia de Agrimensura e Cartográfica da UFBA Departamento de Engenharia de Transportes e Geodésia (DETG) da Escola Politécnica da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Homenagem ao Prof. Philips no Conea 2015 – XII Congresso Nacional de Engenharia de Agrimensura, Salvador-BA, 15 de abril, com entrega de uma placa de reconhecimento e agradecimentos. “Nesta oportunidade, gostaríamos de homenagear o professor doutor Jürgen Wilhelm Philips, da Universidade Federal de Santa Catarina, com a entrega desta placa, simbolizando de forma singela, mas eivada de grande significado, o reconhecimento pela sua importante e sólida contribuição cientifica em prol da construção do sistema de cadastro territorial brasileiro. Acima de tudo, o professor Philips deixou sua marca para o aperfeiçoamento do sistema de cadastro territorial brasileiro, notadamente quanto ao seu aspecto mais fundamental, a construção do conceito de cadastro territorial para o Brasil. Parabéns e o nosso muito obrigado, professor Philips!”
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HOMENAGEM
Nicolau Balbino Filho: uma vida devotada à causa registral
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esde a passagem de Nicolau, ocorrida no dia 12 de fevereiro de 2018, pergunto-me: o que tem sido feito dos grandes homens devotados à causa registral? Onde se acham os novos valores dessa honrada e nobre categoria? Por que não despontam nesta imensa seara carente, em que os trabalhadores são tão poucos? Vivemos um tempo difícil. Tempo de egoísmo, de isolamento, um tempo de derruimento de valores, de desprezo às tradições, um período de relativismo. Privar-se de homens do valor e do quilate do jurista Nico-
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lau Balbino Filho é uma imensa perda – não só para a classe, mas para a sociedade jurídica. Nicolau foi um homem devotado ao ensino, dedicado a revelar os detalhes e a beleza de uma profissão que abraçou como missão, uma verdadeira vocação, um chamamento, impulso que revela algo de divino e misterioso. “Não se esmorecia com pergunta alguma. Queria mesmo era ensinar, mostrar os meandros da profissão, para que a classe registradora alçasse voo e chegasse ao que é hoje”, disse-me dona Basília.
Nicolau Balbino Filho Alçar voo Alçar voo… Ele sabia que haveríamos de atingir uma estatura profissional e corporativa que já não necessitaríamos da tutela de profissionais de outras áreas. Estamos bem perto disso, Dr. Nicolau, apesar dos duros ataques que ainda sofremos e que nos assujeitam e se opõem ao nosso crescimento. Perdemos Balbino. Perdemos o homem incansável na generosa difusão do conhecimento e perito na arte registral. Perdemos o bom semeador, o mestre que se impôs pelo conhecimento desta atividade que deita raízes na noite dos tempos. Lembro-me do nosso primeiro encontro. Isso deve ter ocorrido lá no final dos anos 1970, quando fora aprovado num concurso para escrevente. Sim, havia concursos para galgar ao cargo de escrevente numa serventia extrajudicial. Destacado para cuidar do anexo de Títulos e Documentos do cartório de Rubens do Amaral Gurgel, em São Bernardo do Campo, logo sugeri que pudesse adquirir obras de referência de RTDRCPJ. Tinha curiosidade intelectual, além da premência e urgências do dia a dia. Acho que me veio à mesa Contratos e notificações no RTD ou Contratos de sociedades civis, não sei qual delas chegou primeiro.
Obras de referência Logo iria perceber que não havia nada no mercado editorial e aquelas obras preciosas haveriam de iluminar o meu caminho e serviriam de guia seguro para enfrentar os desafios da jornada que se iniciara havia alguns anos antes e haveria de me conduzir até a serventia que hoje dirijo. Foi uma longa e cansada travessia. As obras de Nicolau foram minhas companheiras de viagem. Delas me servi ao longo de mais de 40 anos de labor profissional. Era como se contasse sempre com o apoio de Nicolau, posto ao meu lado por seus escritos, convertido em companheiro infalível numa espécie de diálogo com os autores respeitados que os bibliófilos, como eu, amam e cultivam. Hoje estou à frente do IRIB. Na condição de pre-
sidente, sempre me volto ao passado, e diviso o longo caminho percorrido, tendo à frente, desse respeitável cortejo, homens e mulheres notáveis como Elvino Silva Filho, Jether Sottano, Tabosa de Almeida, Gilberto Valente da Silva, Glaci Maria Costi, llza Vilhena Moreira, Adroaldo José de Menezes, Sylvio Paulo Duarte Marques, Maria Eloíza Rebouças, Nelson Lobo, Eulálio Firmo da Silva, Meirimar Barbosa, Maria Helena Leonel Gandolfo, tantos outros cujos nomes me escapam. Nicolau Balbino forma parte dessa egrégora respeitável, daquele seleto grupo de homens e mulheres que deram a feição do registro imobiliário brasileiro.
“Casa do Registrador Imobiliário” Nicolau sempre esteve à frente do Instituto. Foi vice-presidente do seu querido Estado de Minas Gerais, participou de vários encontros internacionais, dirigiu várias comissões científicas. Era figura marcante no período em que se deu a consolidação do IRIB como referência nacional na área do registro de imóveis. Fundou os alicerces da “Casa do registrador imobiliário”, foi seu arquiteto. Em 2005, à frente do IRIB, eu criaria uma editora do próprio Instituto e teria a honra de convidar o nosso Nicolau para integrar uma coletânea de artigos dedicados aos títulos judiciais. O livro acha-se no mundo, circulando de biblioteca em biblioteca, formando esse caudal admirável de conhecimento e arte devotado aos Registros Públicos. Assim foi Nicolau Balbino Filho. Um grande homem, pai exemplar, um Oficial de Registro de Imóveis dedicado, um autor consagrado, um amigo da classe. Rendo minhas sinceras homenagens ao colega que ainda estará ao nosso lado pela verba eterna de seus livros e ensinamentos. Estará no coração de todos os seus amigos, familiares e tantos que, como eu, o tem a seu lado, velando pela boa doutrina e pela saudável prática registral. Nicolau, você cumpriu sua missão com honradez e galhardia. Descanse em paz, querido colega. (SJ)
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HOMENAGEM Nicolau Balbino Filho: uma vida intensa na calma Guaxupé Apaixonado pelo ofício que escolheu para dedicar sua vida, Nicolau Balbino Filho não poderia imaginar que uma de suas primeiras obras ligaria para sempre o seu nome aos registros públicos que tanto amava. Em 1975, durante o II Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, realizado pelo então recém-fundado Instituto de Registro Imobiliário do Brasil – IRIB, em Salvador (BA), lançou o livro Registro de Imóveis: Doutrina, Prática e Jurisprudência, uma análise pioneira da Lei de Registros Públicos (6.015/1973), publicado um ano antes que a lei entrasse em vigor. Nos três anos seguintes, mais de 30 mil exemplares vendidos tornaram Balbino Filho presença obrigatória em fóruns e congressos de todo o país. Inicialmente publicada pela editora Atlas, em 2012 a obra chegou à 16ª edição pela Saraiva, trazendo, além da doutrina, a tendência jurisprudencial e modelos de atos registrais. O registrador passou a ser referência nacional e publicou muitos outros livros de sucesso que também tiveram várias edições e milhares de exemplares vendidos em todo o Brasil. Dentre eles, Direito Imobiliário Registral; Contratos e Notificações no Registro de Títulos e Documentos; Averbações e Cancelamentos no Registro de Imóveis. Nicolau Balbino Filho foi um dos fundadores do Instituto de Registro de Títulos e Documentos e de Pessoas Jurídicas do Brasil e membro do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil.
A história do filho do tabelião de Arceburgo “Conheça nesta reportagem especial a história do filho do tabelião de Arceburgo que se tornou uma das maiores autoridades em Direito Imobiliário do País e autor dos livros mais vendidos deste segmento no Brasil”. Assim a revista Mídia – edição especial de maio de 2014, em comemoração aos 102 anos da cidade de Guaxupé – apresentou Nicolau Balbino Filho. Nascido em 1935, na pequena cidade de Arceburgo, no sul de Minas Gerais, aos nove anos de idade mudou-se para Guaxupé com a família graças à transferência do pai tabelião. “Sempre estive próximo dos afazeres do meu pai e acabei descobrindo minha vocação”, declarou à reportagem. Mais tarde passou a aproveitar as férias na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, em Belo Horizonte, para voltar a Guaxupé e trabalhar com o pai no fórum local. Depois de ter sido notário e escrivão, Nicolau Balbino Filho passou em concurso público e, em 1965, foi nomeado titular do Cartório de Registro de Imóveis de Guaxupé. Em 1969, também mediante concurso público, acumulou as funções do Registro de Títulos e Documentos e de Pessoas Jurídicas.
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