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Palavra do Presidente
PALAVRA DO PRESIDENTE
Até aqui viemos e daqui outros haverão de partir
Chegamos ao final de mais uma jornada. Foi uma travessia dura, cheia de desafios e percalços, de erros e acertos, de incompreensões e intolerância, mas também de acolhimento, entendimento e sabedoria. Esse tempo foi igualmente de coincidências significativas – essa estranha combinação de eventos fortuitos que as Moiras entretecem e nos surpreendem a cada passo. Os que acompanharam com atenção o desenrolar de todo o trabalho desenvolvido na última década – seja no IRIB, seja no CNJ, ou ainda no âmbito acadêmico – compreenderão imediatamente o que se contém nesta afirmação.
A peça dura e informe de mármore que os colegas veem na ilustração é um símbolo e um desafio que representam o que nos aguarda logo à frente e evoca o trabalho que deverá ser empreendido para desbastá-lo pela arte e perícia da categoria. Eu chego ao termo derradeiro desta que é a minha quarta gestão à frente do IRIB convocando os registradores brasileiros a uma grande tarefa, que é artefatar o material sólido e bruto, porém nobre, e plasmar o novo Registro de Imóveis eletrônico brasileiro.
Lá se vão muitos anos, desde 1996, por ocasião do I Simpósio Nacional de Serviços Notariais e Registrais, realizado na cidade de São Paulo pela ANOREG-SP, venho me ocupando do tema da informatização dos cartórios brasileiros. Talvez eu tenha sido aquele que mais escreveu sobre o assunto ao longo dos últimos 25 anos – embora reconheça o valor do trabalho pioneiro de todos aqueles que me antecederam. Tenho consciência de que o passado
do Registro Imobiliário do Brasil, tão bem representado pelo IRIB, é um valioso legado que não deve ser desprezado. O acervo – hoje conservado no Irib Academia – é o material sobre o qual devemos construir o novo.
Penso ter contribuído para a formação desse caldo de cultura jurídica que agora entrego nas mãos dos que nos sucedem. Há muito a fazer, a hora é agora, o tempo é presente.
Disrupção é destruição
Vivemos uma época de crise, um período turbulento. A aceleração violenta dos processos sociais – impactados pela crescente influência das tecnologias da informação e comunicação – nos levará a encruzilhadas inesperadas, a caminhos inauditos. Seremos desafiados por demandas da sociedade e do mercado que já não podem ser atendidas de maneira improvisada, nem de modo anacrônico. Já não podemos nos fiar em conceitos enrijecidos, decalcados de uma pseudo tradição que não é tradição e que talvez não passe mesmo de mero reacionarismo – quando não de tecnofobia de luditas ilustrados.
Navegamos cada vez mais rapidamente, em ciclos progressivos, não lineares, aproximando-nos do fenômeno distópico da chamada singularidade, como anteviu RAY KURZWEIL. Segundo ele, achegamo-nos “do período no futuro em que o ritmo da mudança tecnológica será tão rápido, seu impacto tão profundo, que a vida humana sofrerá mudanças irreversíveis” (A singularidade está próxima – quando os humanos transcendem a biologia. São Paulo: Iluminuras, 2018). Os processos tecnológicos expressam claramente esse fenômeno disruptivo que nos traga num torvelinho de desenlace incerto e perigoso – e isso é simplesmente assustador.
O Registro de Imóveis vem igualmente sofrendo os efeitos dessa revolução científica que se irradia e alcança o âmbito do próprio Direito, o que nos leva à seguinte questão: nós, juristas da segurança jurídica, estaremos preparados para dar respostas jurídicas eficazes a esses desafios? O cenário que se desdobra diante dos nossos olhos será um futuro desolador ou um ciclo de novas oportunidades?
A resposta pode soar acaciana, mas não é tão simples assim. Ela depende de nossa atitude hoje, aqui, agora, mas há algo mais que nos escapa e que nos advém como um imperativo do espírito do tempo que rege a nossa era – spiritus mundi, como disse Yeats. Isso para o bem e para o mal.
À parte tudo isso, chamo a atenção de meus pares para o fato de que somos juristas, formados na têmpera de uma larga tradição da qual não devemos nos apartar nestes tempos de viragem. Para onde deveremos voltar nossos olhos, corações e mentes nestes dias? Por mais sedutoras que sejam as promessas de tecnocratas e positivistas, para quem a ciência é a deusa redentora de todas as imperfeições humanas e de suas instituições, devemos manter a atenção desperta. O perigo nos convoca à ação!
Os postulados e matrizes das empresas high tech, associadas com o mundo das finanças e meta-capitalistas, vão se infiltrando pouco a pouco nas atividades registrais – seja por imposição de standards tecnológicos e econômicos,
seja ainda por um indefinível tropismo tecnológico que nos arrasta, enfeitiçados, a modelos que não são congruentes com a nossa tradição jurídica. Estamos diante de uma disrupção meramente destrutiva. Pergunto-lhes: abandonaremos o modelo arquetípico de delegação pessoal, padrão que define a organização infraestrutural da grei registral desde o século XIX, criando núcleos centralizados de dados, informações e funções? Subverteremos o que é próprio de nosso mister, aquilo que nos singulariza, em razão de imperativos exógenos que fundamentam e articulam uma nova lógica registral?
Bizantinistas X acacianos
Não poderia deixar de dar voz ao velho advogado paulistano que me acompanhou durante todo o percurso no IRIB – e mesmo antes desta última fase, que se iniciou em 2017. Ele esteve sempre disponível, às vezes de mal humor, outras tantas excitado, assentado como um totem naquele apartamento art decó da Avenida São Luís, na Capital de São Paulo.
O leitor haverá de perceber pelo texto a prolixidade de ideias e expressões furtadas do repertório de “bizantinices” do Dr. Ermitânio Prado, o Velho Leão do Jocquey. Convoco-o aqui propositadamente, para me acompanhar nesta prestação de contas. Sentado na velha poltrona Sheriff, ao lado de sua escrivaninha estilo bonheur-du-jour, o Velho me observa atento. Provoco-o dizendo que o chamam de velho excêntrico, dado a “bizantinices” e bizarrices. O Velho dá de ombros e resmunga: “mal sabem os onzeneiros da fé pública que somos cidadãos de Bizâncio e trazemos no coração a insígnia da Eterna Constantinopla!”.
Sorrio e logo mergulho em reminiscências dolorosas e pensamentos imperfeitos. Perco-me na retrospectiva, mas é preciso seguir com esta carta. Sim, foram anos de perplexidade, de ansiedades, noites mal dormidas, mas também de bons amigos, boa literatura, boas risadas e muita música. Nem tudo terá sido uma sucessão dramática de sangue, suor e lágrimas, mas também, é preciso dizer, nada terá sido em vão.
Galáxia registral
Deixe-me falar um pouco da mais recente compulsão que tomou conta de muitos de nós: compulsão de centros, de cercados digitais, de circunscrição una e plenária, ponto único de controle e vigilância que se potencializa e paulatinamente atrai toda massa que o gravita. Nunca vimos tantos projetos de leis, apresentados pela própria classe, em que se buscava criar registros centralizados, entidades registradoras a cargo de registradores imobiliários (bela tautologia!), central do serviço extrajudicial de serviços eletrônicos compartilhados etc. Nestes anos atípicos de pandemia, tudo valia, tudo se intentava.
A culminância desse processo vimos há bem pouco, na série de emendas apresentadas a reboque de projetos de leis que previam a criação de uma meta-central notarial e registral – “Central Nacional de Serviços Eletrônicos
Compartilhados”. A emenda se me afigurava uma espécie de sumidouro das especialidades. One size fits all! A Emenda 6, oferecida ao PL 5.575, de 2020, afinal rejeitada pela relatora, é a reiteração de várias outras iniciativas desse mesmíssimo jaez. Por sorte, foram todas alvejadas e devidamente rejeitadas e arquivadas.
Devo lhes dizer que suspeito muito desse estranho fascínio que alguns nutrem por aventuras temerárias que nos conduzem a abismos abscônditos. Que interesses segregam, que forças as mobilizam? A que norte apontam? Sempre me pergunto o porquê de não enxergarem a verdadeira centralidade dessa magnífica constelação que conforma o sistema registral e notarial brasileiro incrustrada como joia preciosa no âmago do Judiciário. Por que se busca base e apoio no Executivo, traindo nossa naturalidade, nossa mais essencial singularidade? A centralidade distribuída é essa teia complexa, rica, multiforme, moderna desde os seus primórdios. “Galáxia registral” – diz o Velho. Bingo! No caso dos notários, essa história se perde na noite dos tempos, no caso dos registradores embruma-se nos alvores do século XIX. É preciso revisitar os veios de nossa multissecular tradição.
O centro é marginal – viva a centralidade das periferias!
Todos sabem que penso ser factível, como resposta aos desafios postos, conceber uma infraestrutura em que se possa entrar e sair de todos os nós que compõem o grafo registral pela reafirmação coordenada e arquetípica dessa maravilhosa “máquina de descentralidades” representada pelo Registro Imobiliário brasileiro.
Não é necessário esvaziar a importância ou suprimir cada nó dessa imensa rede, eis que a rede somos nós! Isto nos dá identidade, fortaleza e nos singulariza. Para este velho registrador, a busca do Graal registral consiste, basicamente, em reencontrar e reconhecer os caminhos que nos conectam com nossa essencialidade, formada do conjunto de seus vários vértices (nós) que compõem o grande círculo registral – os denominados “serviços de registros públicos de que trata a Lei no 6.015, de 31 de dezembro de 1973”, na dicção do art. 37 da Lei 11.977/2009.
“O centro é marginal” – diz o Velho ao meu lado, tamborilando os dedos nervosamente. Rapidamente desfere um grunhido: “viva a centralidade das periferias!” e logo ri à ilharga. O Velho está de bom humor.
Devo admitir, concessa venia, que a discussão do tema das centrais não deve ser interditada. O diagnóstico de ameaças iminentes a que se expõem os registros públicos, em face das novas exigências, é acertado. Todos percebemos que se criam, à margem do sistema registral, novos modelos, vicejam, às suas muradas, entidades para-registrais, inauguram-se registros centralizados (entidades registradoras) regulados e fiscalizados pelo Banco Central. As tradicionais cédulas de crédito “bateram asas” e hoje encontram guarida em “ninhos” que são os repositórios eletrônicos, mais acolhedores, eficientes, rápidos, baratos. São simulacros de registros públicos, já denunciava isso lá atrás, nos idos de 2007. Quem me acompanha saberá identificar as passagens
inscritas nas crônicas do Observatório do Registro.
Notem que tudo isso nos é vendido como uma solução limpa, ordenada, higiênica, em conformidade com os novos padrões da “sociedade da transparência” – como se a trama registral representasse uma aspereza sistêmica, cuja sujidade devesse ser expelida pela detergência suavizadora de bits e bytes. Isso é preocupante e deve merecer uma cuidadosa reflexão de todos nós.
O fato é que, premidos por reconhecidas necessidades sociais e econômicas, infelizmente nos exaurimos em diatribes e conflitos intestinos, parindo soluções parciais, precárias, improvisadas, açodadas. Criamos um Golem pavoroso e não curamos do problema fulcral do Registro Predial nestes tempos de interoperabilidade, que é tratar cada um dos nós autônomos e independentes, entes atomizados que compõem a malha registral, “molecularizando-os” e interconectando-os organicamente. Em vez disso, magnificamos os ramais acessórios do sistema – como se o aformoseamento da ruína pudesse resolver a falência dos seus alicerces.
Disse há tempos que as assimetrias notadas pelo mercado, que revelam um anacronismo do sistema registral, não serão superadas pelo incremento do acessório em detrimento do principal. Não se toma o todo pela parte. As centrais não são o Registro de Imóveis Eletrônico. Um órgão não pode se desenvolver mais do que o próprio organismo. Essa “neoplasia registral” é uma deformação que converte os órgãos em elementos mais importantes que o próprio organismo, comprometendo-o progressivamente. “Ao final, aniquila-o”, disse certa feita em tom adrede gravoso.
A nossa trajetória foi acidentada, inçada de equívocos, de estratégias erráticas e contraproducentes. Destaco um só episódio, aliás muito impressivo. Era julho de 2020 e a Caixa Econômica Federal proclamava que “o registro de imóveis passaria a ser eletrônico, o que reduziria o tempo de espera de 45 para cinco dias”, reverberando o que lhe afiançaram os membros da nossa própria especialidade. Entretanto, e paradoxalmente, ao mesmo tempo o mesmo veículo alardearia que, em virtude de decisões do CNJ, “o registro eletrônico de imóveis não será possível” (Portal UOL – Brasília. Nota assinada por Antonio Temóteo em 3/7/2020). Simplesmente patético...
Foi uma estratégia completamente equivocada e o fato me deprimiu por vários motivos. Falseava-se claramente a realidade e, ao mesmo tempo, nos vinculava a um compromisso simplesmente inexequível. Vivemos numa bolha, presos em cadeias de obnubilação corporativa num estado mental que não hesitaria em qualificar de autoengano. Metemos a pata na poça, como dizem os nossos amigos portugueses. O tal registro eletrônico, apregoado pela CEF em coro com a nouvelle vague registral, é como as obras de Santa Engrácia, que se hão de arrastar pelo tempo à margem de soluções verdadeiramente apropriadas e eficazes.
De fato, tal é a precariedade do proclamado “registro de imóveis eletrônico” que se arreganhou à sociedade muito mais como propaganda enganosa do que fato substancial.
Amigos, ainda que possa soar redundante o que lhes digo, é preciso deixar remarcado, nesta página, que a grande objeção que sempre levantamos contra
as iniciativas reformistas jamais foi dirigida aos impulsos de renovação do sistema, mas aos seus pressupostos e métodos. Sempre julguei açodadas as iniciativas de reforma do sistema tal e como gestadas no petit comité que se arrogou intérprete autorizado e representante único do Registro de Imóveis brasileiro.
As propostas acabaram sendo encaminhadas ao Governo Federal, embalando ideias defectivas e sem qualquer discussão prévia e debates internos, como a importância da matéria estava a exigir. Um panorama desse episódio pode ser visto aqui: http://cartorios.org/dinamizacao-do-credito-indice
Jamais propostas de reformas legislativas dessa magnitude – tão profundas, audazes e temerárias –, foram tão insuficientemente debatidas no interior da própria classe. Como o povaréu no ato do Campo de Santana – “que a tudo assistiu bestializado”, no dizer de Aristides Lobo –, assim estavam os registradores brasileiros: alienados, desinformados, confundidos e desarmados para se opor às investidas de tantos interesses que se entrechocavam no tabuleiro político institucional.
Afinal de contas, há razões para se advogar reformas da LRP? É evidente que as há! Há riscos iminentes que exigem uma tomada urgente de posição? Respondo que sim, sem pestanejar. Todavia, não se põe a carroça à frente dos bois.
A verdade é que o tema da centralização de funções e atribuições nos leva, no limite, à seguinte questão fundamental: nos atreveremos a ultrapassar os limites desse caudaloso rio que é a verdadeira tradição do sistema registral brasileiro? Vamos arrostar o modelo que a tantos percalços e desafios resistiu e o substituir por um novidadismo embalado por algoritmos e modelos importados das matrizes alienígenas? Abdicaremos, como juristas brasileiros, da missão de buscar soluções adequadas, juridicamente eficazes, e, assim, responder aos desafios dessa pós-modernidade feita de simulacros e falsificações?
Ainda ouço o vozerio daqueles que topam com a terceira margem do rio e arribam o fanal: “um outro mar haveremos de inventar, eia!”. Mas, esperem, afinal, de que curso estávamos mesmo tratando?
Pois bem. Retomemos o discurso. Voltemos ao bloco maciço de mármore que nos espera inerte.
Próxima estação
Posso lhes dizer que muito foi feito – e o digo como quem humildemente presta contas aos pares no final desta jornada. Tempo, energia, recursos, inteligência e talento foram consumidos para a construção de uma obra da qual me orgulho e que se acha aberta aos que nos sucederão. É possível reatar os fios dessa meada, dar curso à empresa – ou não, pois sempre se poderá arrojar a um desvio qualquer, buscar uma nova aventura ou folgar em uma baldeação. Ao final e ao cabo, seremos julgados por nossas obras e as nossas estão bem expostas em centenas de páginas escritas e nos projetos dedicados à venerável instituição registral e ao IRIB. Tenho consciência do trabalho
feito e do muito que tudo isso nos custou, mas também o quanto a aventura nos enche de orgulho e nos preenche de um sentimento de dever cumprido.
Queridos colegas, tenham às mãos os instrumentos necessários e dobrem-se à obra. A “escultura doa a alma ao mármore”, como alguém terá dito. Tomem o cinzel, o martelo, armem-se da fé e da vontade criadora e realizem o que os nossos maiores puderam realizar no passado. Honremos as tradições da Casa do Registrador Imobiliário brasileiro doando uma nova vida ao bom e velho Registro de Imóveis pátrio.
Casa Amarela, 31 de dezembro de 2020.
Sérgio Jacomino