SANTART MAGAZINE # 01

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SANTA

#01

art magazine

Affonso Beato Duda Carvalho Gabriela Machado Heleno Bernardi Marc van Lengen Moska Nelson Ricardo Martins Pedro Karp Vasquez Sergio Mauricio

TIBET POR

Marcos Prado




Editorial Santa, Foto | Duda Carvalho

Lisht Marinho, é diretor de criação da joalheria Lisht. Seu trabalho privilegia gemas brasileiras e diamantes. Em 2003 foi classificado entre os 40 melhores designers de jóias do mundo, representando o Brasil no Antwerp Diamond Awards. www.lisht.com.br



EXPEDIENTE # 1 agosto de 2008

06 12 30 34 42 84 86 88 90 92

SÉRIE CASCAS Telas de GABRIELA MACHADO DOIDA DISCIPLINA, Artigo de Ronaldo Brito

EDITOR

Sergio Mauricio sergiomauricio@utopos.com.br

DIREÇÃO DE ARTE E EDIÇÃO

Sergio Mauricio Duda Carvalho dudacarvalhofoto@gmail.com

ESCAPES Fotografias de DUDA CARVALHO

PUBLICIDADE

Cadu Lacerda cadu@publicidadeinterativa.com

CAPTAÇÃO DE RECURSOS

Rogério Randolph rogerio@360imagens.com.br

PROJETO GRÁFICO

ENTREVISTA AFFONSO BEATO conversa com Rod Carvalho

XADREZ TOY Esculturas de SERGIO MAURICIO O JOGO REDESCOBERTO, Artigo de Manoel Leite

TIBET Ensaio fotográfico de MARCOS PRADO

DESCOBERTAS DO TIBET Artigo de PEDRO KARP VASQUEZ

Utópos www.utopos.com.br COLABORADORES

Affonso Beato Alexadre Sá Gabriela Machado Heleno Bernardi Manoel Leite Marc van Lengen Marcos Prado Moska Nelson Ricardo Martins Pedro Karp Vasquez Rod Carvalho Ronaldo Brito CONSELHO CONSULTIVO

Claudia Oliveira Cesar Oiticica Christian Rôças Flávia Corpas Fred Hortêncio Nelson Ricardo Martins Pedro Karp Vasquez Roberto Meirelles Walter Carvalho Wilson Lázaro AGRADECIMENTOS

É LOGO ALI, PERTINHO DAQUI Ensaio fotográfico de MARC VAN LENGEN

PROJETO MAGMA Intervenção urbana de HELENO BERNARDI Artigo de Alexandre Sá

Alfons Hug Ana Costa Bady Cartier Bruno Dreux Danielle Corpas Edson Cunha Neto Fabrizzia Gouvea Frederico Coelho João Cruz José Otávio Carvalho Leopoldo Plentz Lumière Model Mgt. Marcos Bonisson Marcelo Correa Renata Fraga Ricardo Della Pasqua Way Model 1500 Mgt. APOIOS: INSTITUCIONAL

PAPAI NOEL FICOU COM RAIVA Colagem digital de NELSON RICARDO MARTINS

Funarte Publicidade Interativa ASSESSORIA DE IMPRENSA

Claudia Oliveira claudiaolive@terra.com.br LOGÍSTICA E DISTRIBUIÇÃO

MOSKALEIDOSCÓPIO Artigo e imagem de MOSKA

Editora 360º TRATAMENTO DE IMAGENS PRÉ-IMPRESSÃO

Trio Studio www.triostudio.com.br IMPRESSÃO

Gráfica Santa Marta


SANTA

#01

art magazine

Uma revista-galeria

S

ANTA chega a esse nosso mundo sobrecarre-

de contato com as obras, convidando à reflexão so-

gado de imagens com a intenção de propagar

bre esse nosso mundo sobrecarregado de imagens.

a pureza da imagem. Isso não significa com-

Nesta primeira aparição, a SANTA traz o primoroso

promisso nem com o canônico nem com as icono-

trabalho fotográfico que Marcos Prado realizou

clastias celebradas a cada momento. A SANTA é pura

entre tibetanos de 1986 a 1997, e experiências de

assim: no cuidado com a transposição da imagem

distorção que Paulinho Moska está fazendo agora

original para os exemplares que a multiplicam,

com sua câmera digital; telas da série Cascas de

na reprodução difusora do efeito estético. Como

Gabriela Machado, comentada por Ronaldo Brito,

seu conteúdo é eminentemente visual, o zelo pela

e o diretor de fotografia Affonso Beato falando

qualidade gráfica é um dos princípios da revista.

sobre seu olhar nos trabalhos que fez com cineastas

Fotografias, pinturas, esculturas, moda, intervenções,

como Glauber Rocha, Júlio Bressane e Pedro

o que quer que o olho capte, a SANTA quer ver.

Almodóvar; traz bocas abertas, máscaras inusitadas

A produção brasileira e mundial, o contemporâ-

em pessoas e em peças de xadrez, purpurina

neo e o que tem lastro no tempo, o consagrado e

sobre entulho, gentes, panos, águas e pedras.

o desconhecido, o que é de acesso público e o que

A cada três meses, uma coletânea de referências visuais

tem circulação restrita... A SANTA se propõe a ver

que sintetizem facetas da vida contemporânea, um

de tudo. E a tratar tudo o que acolher em suas pá-

canal para difundir e instigar a criação, um espaço

ginas de um modo que proporcione ao leitor mais

para o debate crítico. Essa é a vocação da SANTA.

que a absorção de informações – uma experiência

Uma revista-galeria.

Sergio Mauricio EDITOR

cerebelo Santa - Art Magazine é editada pela Cerebelo Artes, Assessoria de imprensa de Claudia Oliveira,o tratamento de imagens e a pré-impressão foram realizados pelo Trio Studio, a impressão pela gráfica Santa Marta e o papel utilizado foi o couché matte 150g da Suzano. A Santa aceita propostas de colaborações, que são avaliadas pelo seu conselho. Todas as opiniões expressas nos ensaios, matérias, entrevistas, depoimentos e artigos publicados são de inteira responsabilidade dos respectivos autores. É proibida a reprodução de imagens ou textos por qualquer meio. Endereço para correspondência: Praça Pio XI Nº 6 / 102. Jardim Botânico. CEP 22461-080. Rio de Janeiro – RJ – Brasil Cerebelo Artes Ltda. CNPJ: 09.448.968/0001-50. Rua Lauro Muller 116/704 parte. CEP 22290-160. Rio de Janeiro – RJ



Foto | Rômulo Fialdini

Foto | Cristina Paranaguá

Série Cascas

GABRIELA MACHADO

Série Cascas, óleo sobre tela, 210 x 190 cm, 2007, coleção particular


Ronaldo Brito A força de atração imediata dessas telas, muito pequenas ou muito grandes, vem da ação espontânea de uma tinta que parece surgir do nada para revigorar nosso pálido ou ácido cotidiano. Cada uma delas é a prova viva de que ainda vale a pena olharmos com curiosidade as coisas ao redor. A matéria volúvel da pintura renova e espairece a própria atmosfera que respiramos, estimula nosso envolvimento mimético com o mundo. Blocos transitórios de pintura, sustentam-se indefinidamente no estágio da tinta fresca e assim instigam a superfície do real a tornar-se mais porosa às nossas sensações.

E se, em especial, os pequenos quadros parecem quase pedir o adjetivo preciosos, é necessário logo acrescentar o seu contraponto — preciosos, sim, e caóticos.

Parte de sua surpresa estética deriva do fato inesperado de reagirem com tanta vontade, tanta intensidade, a seus motivos gastos e banais, em princípio fadados historicamente a desaparecer. Como pintar significativamente, hoje em dia, flores e frutas? Já disse, contudo, um poeta (e. e. cummings), sempre é a bela resposta que faz a mais bela pergunta. E a resposta, no caso, desarma pela simplicidade: transfigurando flores e frutas em matéria pictórica contemporânea.

Acompanhando nossa presença cada vez mais colada ao curso do mundo, tudo menos distanciada e contemplativa, essas telas procuram instintivamente uma fluidez topológica — muitas delas formulam o paradoxo de círculos dispersivos. Em todo caso, mostram sempre uma coisa só, uma só imagem, por meios múltiplos e contraditórios. Como fenômenos plásticos, seriam típicos curtos-circuitos bem-sucedidos.

Abrindo intuitivamente seu caminho entre as flores soberbas de Manet até, quem sabe, os sanduíches de Oldenburg, e de passagem absorvendo energia plástica da obra generosa de Jorge Guinle, essas telas, à sua maneira despretensiosa, reintegram a natureza ao metabolismo da pintura contemporânea. E é justo o caráter singular, biográfico, desse súbito reinteresse impressionista pela beleza instantânea da natureza que o autoriza como fato artístico público e atual. Com sua sensibilidade inquieta, de reflexos nervosos, empregando na verdade uma combinatória de elementos plásticos entre o analítico e o aleatório, a pintura de Gabriela Machado pertence inteira à cultura urbana moderna.

Como seria de esperar, essa produção voraz, algo incontrolável, aposta tudo no efeito de propagação. O que de saída a obriga a dissolver, virtualmente, os limites de seu suporte. Por isso, são telas lançadas, jamais compostas, a reafirmarem sua mobilidade essencial — se começam, por assim dizer, naturezasmortas, terminam manchas soltas de pintura, nem abstratas, nem bem figurativas, ainda sem nome.

Mas só conseguem sê-los porque vibram, literalmente, com a descoberta da cor. Todos esses quadros constituem um certo experimento nesse sentido. E porque aparecem assim aos próprios olhos da artista, acabamos contagiados pela emoção dessa recém-descoberta vocação de colorista. E já que se trata aqui muito mais de improvisar uma fala inspirada do que de dominar uma língua erudita, a reflexão sobre a cor é concomitante à sua aplicação urgente. O que, por sua vez, implica o aparente contra-senso de uma disciplina da espontaneidade, um fazer incansável que não pode, entretanto, acumular-se. Ao contrário, ele soma esforços para aprender a se esquecer. E assim, a cada nova tela, reinaugurar-se. Daí o seu irresistível frescor.

Ronaldo Brito, é professor do curso de especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil e do programa de pós-graduação em História Social da Cultura da PUC-RJ. Foi o primeiro crítico a escrever, em 1975, um ensaio aprofundado sobre o movimento Neoconcreto – Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro (MEC/ Funarte, 1985; Cosac & Naify, 1999). Publicou Experiência Crítica (Cosac & Naify, 2005), seleção de textos produzidos entre 1972 e 2002, Sérgio Camargo (Cosac & Naify, 2001), os volumes de poesia O mar e a pele (1977), Asmas (1982) e Quarta do singular (1989), e comentou as obras de Amilcar de Castro, Iberê Camargo e Eduardo Sued, entre outros. Gabriela Machado, é artista plástica. Desde meados dos anos 80 tem participado de exposições em Lisboa, Noruega, Nova York, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo, com destaque para a individual realizada no Centro Cultural Banco do Brasil em 2002 e para a ARCO’08 (Feira de Arte Contemporânea de Madrid). Suas telas estão presentes em coleções como as de Gilberto Chateaubriand, Fundação Castro Maya, Instituto Brasileiro de Arte e Cultura e Fundação Catarinense de Cultura (MASC).

Série Cascas, óleo sobre tela, 233 x 198 cm, 2007, coleção particular

Foto | Cristina Paranaguá

DOIDA DISCIPLINA





Escapes

DUDA CARVALHO

Uma fotografia é um segredo sobre um segredo. Quanto mais ela te mostra, menos você sabe. Diane Arbus

Marrocos, 2007



Eclipse, 2007


Chuva, 2005



Costa Amalfitana, 2003



Roma, 2003



Positano, 2003



Amalfi, 2003


Floresta da Tijuca, 2007



Duda Carvalho, fotógrafo, recebeu em 2003 o prêmio Hasselblad Master, oferecido pela fabricante sueca de câmeras fotográficas Hasselblad. www.dudacarvalho.com

Búzios, 2006



Foto: arquivo pessoal Affonso Beato. Em pé: Afonso Beato e Glauber Rocha, sentados: Ricardo Stein e Antonio Calmon.


ENTREVISTA COM

Affonso Beato Rod Carvalho

A

costumado a viajar pelos quatro cantos do planeta filmando nos mais variados sets, Beato escolheu o pacato bairro da Gávea, no Rio de Janeiro, para fixar residência e descansar em suas vindas esporádicas para o Brasil. Morando atualmente em Los Angeles, ele me recebeu em sua cobertura para um bate-papo descontraído sobre cinema. Devido à paixão contagiante de ambos pela sétima arte, nossa conversa fluiu com tanta naturalidade que fez com que meu pequeno roteiro de perguntas fosse deixado um pouco de lado conforme as histórias de Affonso quase ganhavam vida. Simpatia pura em pessoa, Beato contou curiosidades de seu começo no cinema com diretores consagrados como Glauber Rocha, Arnaldo Jabor, Zelito Viana, entre outros; sua ida para os EUA; a experiência de trabalhar com Almodóvar e muito mais.

ROD - Você começou no cinema fotografando longas de diretores consagrados

filme muito diferente do que havia na época, ganhou o prêmio do Júri em Cannes e

como Júlio Bressane, Arnaldo Jabor, Zelito Viana e Glauber Rocha.

aí foi distribuído no circuito internacional. Em 69 a barra política estava muito pesada

Como foi essa experiência?

aqui no Brasil, e todos os colegas –– o Glauber, o Eduardo Escorel, Chico Buarque,

AFFONSO - Eu só fiz assistência de fotografia durante um ano, em 1963 ou

Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros –– haviam sido presos. Na época eu era casa-

1964, não lembro ao certo, em Os fuzis, do Ruy Guerra. O diretor de fotografia era o

do com minha ex-mulher, que era do Itamaraty, e ela podia escolher um posto fora

Ricardo Aronovich, que é basicamente o meu professor. Eu já tinha muito preparo.

do país. Então escolhemos Nova York, que era uma cidade fantástica. Lá estávamos

Muito preparo técnico. Era fotógrafo de STILL [fotos tiradas durante o filme, para di-

no centro da arte, onde tudo acontecia. Fui para lá para ficar 2 anos, mas nem ela

vulgação]. Foi uma produção muito extensa; acho que durou uns 3 ou 4 meses. Tive

nem eu voltamos. Em 1974 comecei a fotografar longas-metragens americanos. Mas

um grande privilégio, uma grande possibilidade de aprender muito com o Ricardo. Em

eu também voltei para o Brasil para fotografar filmes nacionais como Pindorama, do

64 mesmo eu fotografei O circo, do Arnaldo Jabor. Foi meu primeiro trabalho como

Arnaldo Jabor, Capitão Bandeira contra o Dr. Moura Brasil, do Antonio Calmon, Ter-

fotógrafo e também o primeiro dele como diretor. Esse filme ganhou todos os prêmios

ra dos índios, do Zelito Viana, e outros mais. Em 78 fiz meu primeiro filme em Los

na época, como por exemplo o da CAIC [Carteira de Auxílio a Indústria Cinematográfica

Angeles,The Boss’ Son, do Bobby Roth. Em 83 eu vim novamente para o Brasil para

do Estado da Guanabara]. Jabor comprou um apartamento. Eu comprei um carro. Foi

fazer um filme do Miguel Farias, Para viver um grande amor. Me separei, me casei

bom à beça. Depois eu fotografei outros curtas-metragens como Memória do cangaço,

com a Suzana Moraes e fiquei por aqui. Em 1985 fui convidado novamente para fil-

do Paulo Gil, Heitor dos Prazeres, do Antonio Carlos Fontoura e outros. Eu relutei um

mar nos EUA. O diretor Jim McBride me chamou para fazer o The Big Easy [Acerto

tempo e acho que fotografei meu primeiro longa em 1965, ou 66. Relutei porque eu

de contas]. Pô, eu estou contando tudo assim, direto... [risos]. Está bom para você?

queria me sentir bem seguro, pois a responsabilidade seria grande. Eu tinha feito um curta com o Júlio Bressane e nos entendemos muito bem. Então fizemos o longa Cara

ROD - Ótimo, vou aproveitar a deixa... Você chegou a filmar até agora 13 filmes

a cara. Esse filme foi muito bom para o Júlio e para mim. Ganhei o prêmio de melhor

com o Jim McBride (Hot Times, Big Easy, Great Balls of Fire, Blood Ties, The

fotografia no primeiro Festival de Brasília. Daí eu engrenei. Fiz O bravo guerreiro, com

Wrong Man, Uncovered, Pronto, The Informant, Dead by night, entre outros).

o Gustavo Dahl e Copacabana me engana, com o Fontoura. Ganhei a primeira Coruja

Como é essa parceira? Algum motivo especial para vocês se darem tão bem?

de Ouro, que era um prêmio federal maravilhoso na época. Depois, fiz O dragão da

AFFONSO - O Jimmy tem uma formação muito européia e, de certa forma, os

maldade contra o santo guerreiro, com o Glauber Rocha. O Dragão me deu projeção

autores europeus da época tinham um relacionamento muito bom com os diretores de

internacional. Na época, esse filme foi para mim como Amores perros [Amores brutos,

fotografia. Eram muito próximos, havia muita colaboração entre os dois. No nosso caso,

de Alejandro González Iñárritu, 2000] foi para o Rodrigo Prieto, o fotógrafo. Era um

o Jim me admirava e eu admirava o Jim. Somos grandes amigos. Ele é meu irmão. Te-


mos uma grande identificação autoral e sem dúvida isso ajudou nas muitas coisas boas

é um sacana, e por aí vai. É um filme incrível. Um ano depois do término desse

que fizemos juntos: The Big Easy [Acerto de contas], Great Balls of Fire [A fera do rock]...

filme ele me mandou um outro roteiro, que eu adorei. Tudo sobre minha mãe é um daqueles filmes que a gente fez tranquilamente, sem nenhuma pretensão. Havia

ROD - Nesse caso, foram dois filmes seguidos com o ator Dennis Quaid, que

uma pretensão em Carne trêmula. É um filme gráfico, superconstruído. Mas havia

estava em alta na época (final dos anos 80).

também uma politicagem imensa na academia espanhola naquela época, que até en-

AFFONSO - Pois é, o Dennis gostou muito da experiência com o The Big Easy, pois

tão nem havia nomeado o Pedro para nada. Porém, a academia mudou, Tudo sobre

com o filme ele subiu na carreira. Foi um filme que teve um grande sucesso. De-

minha mãe representou oficialmente a Espanha no Oscar e ganhou na catego-

pois, no Great Balls of Fire ele desceu muito. Ele estava tão mal! Muito caricato.

ria de melhor filme estrangeiro. Foi realmente um filme que agradou todo mundo

Além de estar metido com drogas... Essas histórias que os atores às vezes passam.

desde o começo. Nós não tínhamos certeza de que seria esse sucesso todo.

Mas no final das contas foi muito bom para mim. Para a minha amizade e trabalho com o Jimmy foi muito importante. Nós tínhamos um círculo de amigos que foi se

ROD - Quais as diferenças entre fotografar um longa no Brasil e no exterior?

estreitando. O Jimmy era amigo do Bernardo Bertolucci. E de certa forma eu tinha

AFFONSO - Bom, a diferença é a seguinte: dinheiro [risos]. É o seguinte: você tem tal-

conhecido o Bernardo. Eu tenho um amigo espanhol, o Chema Prado, que é presidente

ento brasileiro em todos os níveis –– técnico, artístico. É fabuloso. Nós temos um cin-

da filmoteca espanhola até hoje. Ele é uma pessoa muito importante no campo da

ema muito importante internacionalmente. Se nós não vingamos comercialmente,

restauração de filmes. E era muito amigo do Bernardo. Além disso, o Jimmy veio para

um dos “problemas” é a barreira da língua, claro. A língua oficial internacional é o

o Brasil e eu apresentei o Caetano a ele. Depois ele me apresentou ao Almodóvar.

inglês. Não estou defendendo que se faça filme em inglês no Brasil, não. Mas um filme

Depois apresentamos Caetano ao Almodóvar [risos]. Assim, todos se tornaram amigos.

estrangeiro hoje em dia para fazer sucesso internacional custa muito. Já houve quem

Viramos tipo uma família. Ah, o Stephen Frears também tem uma ligação com a gente.

conseguisse, tivemos Central do Brasil, do Walter Salles, Cidade de Deus, do Fernando

Nos conhecemos quando eu estava filmando Great Balls of Fire, em Londres. Enfim, é

Meirelles. São filmes que têm carreira lá fora. Então, a diferença é essa, de fatura.

isso, a carreira é um pouco isso. Não só, claro, há o esforço também. Trabalhar naquilo

Você pode fazer uma produção mais “bem apresentada”, mais “generosa” financei-

para que você tem talento. Mas há as coincidências, as oportunidades. Hoje em dia,

ramente. Não estou falando nem de cenografia, nem de geografia. Mas da possibili-

são poucos diretores de fotografia –– por exemplo, o [Vittorio] Storaro [Apocalipse Now,

dade de fazer coisas mais bem feitas. Não sei o conceito de bem feito aqui porque

O último imperador] –– que tenham trabalhado com a diversidade de diretores com

os filmes de que eu gosto hoje são os mais imperfeitos [risos]. Mas é isso, com os

quem eu trabalhei, que conheçam esse leque de bons diretores brasileiros, americanos,

ótimos profissionais que temos aqui no Brasil, a diferença é mesmo o dinheiro.

ingleses, espanhóis, enfim... Eu tenho uma carreira muito privilegiada nesse sentido. ROD - Nós estamos, cada vez mais, sendo reconhecidos lá fora. Como ROD - Pedro Almodóvar é um nome estrangeiro com quem você teve a opor-

você disse, temos muitos profissionais talentosos aqui. Agora os investidores

tunidade trabalhar em três filmes de sucesso (A flor do meu segredo, Carne

internacionais estão se voltando para o Brasil, para os brasileiros. Um exem-

trêmula, Tudo sobre minha mãe). Como foi o processo de trabalho de vocês

plo disso é o Tropa de Elite, que teve um orçamento de quase 10 milhões de

nos três filmes? E essa característica dos filmes dele que são as cores fortes?

reais e contou com o “apoio” de ninguém menos do que o produtor Harvey

AFFONSO - Bom, foi basicamente uma identificação que nos aproximou. O que aconte-

Weinstein (fundador da Miramax). Há alguns anos nós nunca imaginaríamos isso.

ceu foi o seguinte: o Almodóvar estava em um beco sem saída. Ele tinha tido um revés

AFFONSO - Pois é. Nunca imaginaríamos. Você não vê agora a HBO produzindo

de carreira. Vinha fazendo um filme atrás do outro, mantendo aquela temática dele.

séries aqui? Fora as várias co-produções do Brasil com outros países. Mas, nesse exato

Mas, quando ele fez Kika, não sei se você se lembra, foi um filme muito exagerado.

momento, o dólar está tão fraco que não esta sendo o paraíso para produções inter-

Foi muito além do realismo fantástico, do hiper-realismo. As coisas não tinham senso.

nacionais vir fotografar aqui. Estão fazendo tudo na Argentina. Lá o câmbio é melhor.

Ninguém gostou daquele filme. E o Pedro... Bom, ele é assim meio como Shakespeare. Ele se preocupa com o público. Não é um autor que só quer fazer filme por fazer. Ele

ROD - Você é considerado um dos melhores fotógrafos nacionais junto

quer que as pessoas gostem do filme, faz uma coisa para o público. Não necessaria-

com o Walter Carvalho e o César Charlone. O que acha dos fotógrafos brasileiros?

mente só para agradar, porque eu acho ele um humanista. Adoro o que ele diz, as coisas

Tem alguém novo que te chame especialmente a atenção?

que ele escreve. Mas com Kika ele meio que teve um baque. Então, quando acontece isso

AFFONSO - Bom, até tem, mas sempre é meio injusto citar nomes. Existe um grupo

com um artista, a idéia é tentar se reformular. Ver de onde veio aquele exagero. Então ele

de bons fotógrafos, como os que você mencionou. O César é um que deu certo com

falou para o nosso amigo Chema Prado que uma coisa que o estava preocupando era

o Fernando [Meirelles]. O Walter é um que também provou isso com os vários dire-

que os fotógrafos espanhóis, naquela época, estavam muito preocupados em fazer a

tores com quem ele já teve a oportunidade de trabalhar, como o Waltinho [Salles], o

fotografia do Norte da Europa. Uma fotografia fria. E ele não encontrava ninguém que

Júlio Bressane... Alguém me disse que o filme dele com o Ruy Guerra é maravilhoso

conseguisse reproduzir as cores ibéricas, “Goyas”, enfim. Aí o Jim falou pra ele: “Porque

[Veneno da madrugada]. O Lauro Escorel, que é um amigo muito próximo, é outro. Ele foi

você não considera o Affonso, que não tem isso, naturalmente, só porque vem dos trópi-

meu assistente. Depois foi para os EUA. Também é um fotógrafo muito bom. Agora, tem os

cos. É um bom fotógrafo, tem experiência com o cinema americano”. Então o Almodóvar

novos, como esse menino, o Ricardo de la Rosa [Casa de areia, O passado], de que eu gosto

me ligou e pediu que eu fosse à Espanha conhecê-lo. Passei uma semana muito agradável

muito. O Mauro Pinheiro, um talento de destaque, fez um filme agora com o Waltinho

com ele, só falando de cinema. E, claro, ele me mostrou o que era o novo projeto, A flor

[Linha de passe]. É um diretor brilhante. Só pode sair boa fotografia. Mas, tem

do meu segredo. Bom, apesar de ser um filme muito bom, já de renovação dele, mais

ainda o seguinte: uma questão também, não digo de sorte, mas... Se você tem talento e

realista, na verdade esse nosso primeiro contato ainda foi meio tímido. O Pedro é um

surgem coincidências e oportunidades, você acaba acertando na hora certa. O Charlone,

cara difícil. Você tem que ter um mecanismo de convencimento com ele. Não é que ele

por exemplo. O Cidade de Deus é um negócio tão perfeito por causa dele também.

seja teimoso, mas quer ter o controle de tudo. O que está certo, só que às vezes, ele

A cada momento, se você souber acompanhar essas coisas que acontecem na

fica vendo tudo de uma única forma. Mas eu aprendi coisas ali. Assim que termina-

sua vida, na sua carreira, vai ser considerado bom. O filho do Walter Carvalho

mos o filme ele me falou que tinha um outro projeto, que adoraria que eu fizesse:

já não fez o Tropa de Elite? Eu não vi ainda o filme, mas as imagens que eu

“Adorei trabalhar com você”. Fomos então fazer Carne trêmula. Esse eu acho um dos

vi são muito boas. Ele tem genética, foi um grande assistente, sabe tudo.

meus melhores trabalhos e também um dos melhores dele. Porque esse filme saía da iconografia tradicional dele. A história de um menino que nasce num ônibus e como

ROD - Você fotografou um show da Marisa Monte em 1991 e um

ele se desenvolve. A estrutura da dramaturgia é muito bacana. O conto nos leva a achar

documentário da Adriana Calcanhoto em 2001. Qual a diferença entre fotogra-

que o menino é o culpado, mas aí vemos o policial (interpretado pelo Javier Barden),

far um longa e fotografar música?


AFFONSO- A diferença é a visão dos diretores. Eu fiz vários desses que chamamos de especiais.

mínimo americano condiz com gravação em digital. Como eu disse, elas são caríssimas.

Fiz primeiro Marisa Monte com a Conspiração Filmes. Tem até uma frase engraçada que

Sem falar que tem uma equipe especializada, mas toda hora dá problema para alinhar

eu dizia, e todo mundo me goza por causa disso. Porque os meninos da Conspiração eram

a câmera. Não é tão fácil como as pessoas imaginam fazer o que a câmera com filme

cinco, então, eram cinco diretores nesse show, cinco câmeras, e eu tinha a minha, claro.

faz. Estou falando de um filme de longa-metragem. Não estou dizendo que as dig-

Era o diretor de fotografia, afinal [risos]. Acontece que os cinco queriam olhar na câmera

itais são ruins. São ótimas para muitas coisas, como grandes documentários. E até

para ver o plano que a gente fazia. Então, a célebre frase era: “Enfileira, putada!” [risos].

longas-metragens, quando são adequadas ao tipo de filme. Mas, a vantagem não é sempre certa. Eu uso digital em tudo quanto é área. O que tem que chegar, que todo

ROD - Não tinha confusão, com cinco pessoas dando opiniões diferentes?

mundo está cansado, são as “prints”, as cópias. O cinema digital já está aí, pratica-

AFFONSO - [risos] Que nada! Eles se entendem... Até hoje! Não sei como... [risos].

mente. Existe um congresso que já está preparando um standard que é maravilhoso.

Mas eles são maravilhosos. É só você ver como eles estão muito bem hoje em dia.

Você vê um filme sem trepidação, sem riscos, sem nada. E hoje em dia também tem

Depois disso eu fiz um filme genial com o Waltinho, João e Antônio. João Gilberto e

o seguinte, nós captamos em filme e depois passamos para digital. O que se chama

Antônio Carlos Jobim. Foi lindo. O João Gilberto era um cara muito difícil e nós fize-

digital -intermedia [intermediação digital], que é maravilhosa. Ela te dá uma série de

mos o primeiro comercial com ele, da Brahma, foi também minha estréia em co-

possibilidades que o processo fotoquímico não dá. Então, respondendo à sua per-

merciais. Fiz também um especial do Caetano com o Waltinho. Depois filmei vários

gunta. Se eu dissesse que não confio, ou não me sinto bem com esse tipo de ferra-

shows dele, até um dos últimos, o Noites do Norte. Fiz um especial da Adriana Cal-

menta para fazer o que eu faço... Não é que eu seja contra o digital, ao contrário.

canhoto e também muito clipe de música. Em música, a palavra final é sempre

Ele está vindo e cada vez ficando melhor, sem dúvida. Mas, em termos de captação

do diretor. Nós fazemos mil coisas, mil propostas. Mas, no final, é ele que decide.

ainda não está pronto. Esta pronto para copião, cinema digital. Isso é maravilhoso.

ROD - Minha curiosidade maior é saber como é para você filmar numa locação

ROD - Depois de O amor nos tempos do cólera, do Mike Newell, você fotogra-

só, já que nos filmes existem várias locações diferentes.

fou Nights in Rodanthe, do George C. Wolfe. Quais são seus novos projetos? Tem

AFFONSO - Pois é, nos shows, basicamente, o que você quer? Geralmente é a continui-

algum longa nacional em vista?

dade da música. O show em geral tem umas duas horas. É quase um longa-metragem. Então, basicamente o que você faz é filmar o show com o público, que vira o seu “mas-

AFFONSO - Bom, eu não posso te falar de projeto, primeiro porque dá azar... [risos].

ter”. Você põe cinco ou seis câmeras, põe câmera volante. Normalmente, algumas com

Sou muito supersticioso, não falo mesmo. Depois, não gosto de dizer coisas que podem

rádio. E controla tudo como se fosse câmera de televisão. Coloca os monitores todos um

não acontecer. E isso é muito comum na nossa carreira. O diretor de fotografia hoje

do lado do outro e vai controlando. Eu gosto muito que as câmeras fiquem do centro

em dia é convidado num momento em que o diretor está muito excitado, porque está

para um lado, para que não haja pulo de campo. Depois que acaba o show, existe uma

desenvolvendo o projeto – mas não significa necessariamente que tenha o casting ou

técnica que é a seguinte: você continua com o grupo no palco, com a mesma ilumina-

o dinheiro, o que se chama nos EUA de green light. Eu leio um roteiro por semana.

ção. Então, roda aquilo que foi gravado em playback e o músico se dubla. Eles não gos-

Às vezes faço uma entrevista por mês com um diretor. Isso para fazer um filme por

tam de fazer isso, claro, mas há uma técnica para sincronizar com o placar de timecode.

ano. Ou dois. Leio 52 roteiros e provavelmente tenho 12 entrevistas por ano. Há vez-

Aí você roda o timecode do original. Então, a partir disso, você faz os planos mais próxi-

es em que os diretores não me querem depois da entrevista. Mas há aproximações.

mos. São planos que você não poderia fazer por causa do público. Não dá para botar

Há diretores que falam que querem que eu faça o meu filme, mas depois isso não

uma câmera na frente do cara que ele vai tacar uma lata em você –– e jogam mesmo!

acontece. Eu não me sinto muito à vontade de dizer o que eu quero fazer... Agora eu

[risos] Já tomei uma lata de cerveja nas costas fazendo um show do Antônio Carlos Jo-

tenho 3 projetos. Um outro acabou de “cair”, não vai acontecer. Era no Brasil. Não

bim no Ibirapuera. Foi uma barra pesada. Enfim, então você faz esses “inserts”. Daí, se

posso falar mais sobre ele porque vai acontecer, mas no momento perdeu-se o casting.

a produção permitir, você meio que ilustra também, pode sair para ilustrar uma músi-

Tenho dois projetos na Inglaterra e um na Itália. Esse é até um filme americano,

ca ou outra. Se não, é detalhe, detalhe, detalhe...entende? Pézinho da bateria etc. Isso

muito interessante. Mas, no momento estou aqui, “desempregado” [risos], esperando,

é feito para o público ter essa minipresença, ficar mais perto do que acontece.

como sempre. Não posso fazer nada. Então eu estudo e escrevo um pouco.

ROD -

ROD - E nesses momentos “parado”, você fotografa sem ser para cinema?

Quais são suas impressões e

expectativas em relação à câmera

digital? Quais são as diferenças de trabalhar com esse equipamento?

AFFONSO - Não, não fotografo. Eu fazia muito comercial, vivia direto entre os EUA e o Bra-

AFFONSO - Olha, eu acredito no digital. O digital está chegando, mas ainda não é

sil fotografando. Agora ficou muito caro para alguém que for fazer comercial brasileiro

este que está aí. Eu, se puder me aposentar com filme, me aposento. Filme é uma

me chamar. Às vezes chamam, mas para umas coisas internacionais. Eu saí um pouco

maravilha. O negativo é o software que vem se desenvolvendo há cem anos e a câmera

do campo comercial. Gosto muito é de longa. Gosto de armar, pensar, estruturar, or-

mecânica é o hardware que vem se desenvolvendo há cento e cinqüenta anos. Então,

ganizar e fotografar. Não batalho mais para fazer comercial, para me dedicar a isso.

o processo fotoquímico de captação é maravilhoso. É muito portátil, muito eficiente.

Então, quando entra um filme, eu fico obcecado. Vou buscar informações, ver outros

E seis vezes mais preciso que uma câmera digital. Uma câmera hoje como a Genesis

filmes, referências na história da pintura, da moda, enfim, o que precisa ser feito.

da Panavison tem 2 mil pixels por linha horizontal. Um filme tem 16 mil... Olha a resolução. Não é só questão de foco, é resolução em cor, latitude. Agora mesmo nós

ROD - Há algum diretor com que você tenha vontade de trabalhar ?

estamos recebendo a informação de que a Kodak está lançando um outro filme revo-

AFFONSO - Tem! Bernardo Bertolucci! [risos]. Estou doido para fazer um filme com ele.

lucionário, o Vision 3. O Vision 2 já é uma maravilha. Ele vê quase como o olho vê,

Já disse isso a ele. E já estou sendo considerado [risos]. Bernardo é um cara que

tem uma precisão danada. As câmeras digitais hoje ainda têm muitas limitações em

tem muitos amigos. Tem até um filme que estou tentando produzir para ele dirigir,

áreas de latitude, de resolução e de portabilidade. Elas são muito mais complicadas

para poder trabalhar com ele, de repente assim ele me chama [risos]. Eu gosto

do que você imagina. E muito mais caras. Existe uma grande promoção industrial em

muito do cinema dele. É um homem que respeito muito como artista. Também

torno disso, uma tentativa de vender no mercado, mas nem tudo se aplica. A indústria

quero trabalhar com outros, meus amigos brasileiros e estrangeiros, mas o

americana não usa câmera digital, usa menos. Agora, claro, eu estava conversando

Bernardo é um com quem eu adoraria trabalhar. Admiro muito ele. Não sou

com uma colega, na França, e o digital lá está indo bem porque eles não têm muito

amigo, mas conheço ele. Adoro sua inteligência, adoro seu cinema.

dinheiro. Então, os longas são feitos com digital. Imagina na Índia, que produz uns 300 filmes por ano, a câmera digital vai entrar com certeza. Mas o custo de captação ainda não é tão grande em relação ao orçamento de um filme. Nem um orçamento

Rod Carvalho é jornalista e crítico cinema, produz o site CINETOTAL – www.cinetotal.com.br.



Utópos

Foto | Luiz Cláudio Lacerda

www.360imagens.com.br


Toy Xadrez


SERGIO MAURICIO


O JOGO REDESCOBERTO Muito da experiência vivenciada diante do objeto estético passa por um diálogo nosso com o referente do qual a obra de arte é sempre tributária. No Xadrez Toy de Sergio Mauricio, a operação plástica faz o lúdico do brinquedo nos remeter a um lugar além do objeto contemplado. Somos convocados a dialogar com algo íntimo de nós, por vezes esquecido. Essas peças estranhamente belas, movem a um tempo perdido, numa viagem que é espécie de epifania, que transforma o sentido do jogo. Na primeira vez em que um menino encontra um tabuleiro de xadrez ele tem sua atenção tomada pela forma daquelas peças, elas lhe dizem algo, elas capturam seu olhar pelo mistério que encetam e a beleza que emanam. Formas que ele

logo aprende a separar e a agrupar: dois lados, de cores diferentes, e em cada lado uma idêntica distribuição de diferentes peças, como grupos de um exército ou castas de uma cosmogonia. Há uma arte naquelas peças, mesmo nas mais comuns. E uma subjetividade revelada por suas formas, uma personalidade que um artista saberá esculpir, moldar, colorir, fascinando a imaginação do menino, que com elas brincará mesmo antes de saber seus significados – qual o quê!, ele mesmo os criará e os conservará em seu íntimo ainda que esquecidos, soterrados pelos nomes e poderes que deverá aprender, se desejar ascender à classe daqueles que, com essas peças, fazem e exercem o jogo. Metáfora de um amadurecimento. O rapaz vai em busca dos seus segredos, o que cada peça significa, seus poderes e

Manoel Leite fraquezas, seus lugares naquele tabuleiro dividido em cores que não se misturam, porém se entrelaçam num tecido quadricular, marcando lugares e regrando movimentos, diferentes para cada peça, revelando-lhe um dos seus segredos: que tudo nesta sociedade é função do poder intrínseco de cada peça e da posição que cada uma ocupa em relação a todas as outras. Um Rei, causa final do jogo, impotente, incapaz de atacar, mobiliza seus súditos para que ataquem o Rei oponente. Uma Dama, a mais poderosa das peças, à sombra de seu Rei. Bispos que atacam só os oponentes de uma fé, jamais os da fé de cor oposta. Cavalos que saltam em ataques curtos, Torres que vêem e atacam longe.


Fotos | Duda Carvalho

Xadrez, conjunto de peças em massa Fimo, de 3,5 x 2 cm a 7 x 3,5 cm, 1993

E numerosos Infantes, barreiras a defender seu Rei, temerários atacantes a sonhar com o último movimento, glorioso coroamento. Agora ele se sente um homem, pronto para jogar. Descobre que, mesmo que estude todas as formas de começar seu percurso (abertura do jogo), ainda que analise as situações mais comuns que poderia encontrar ao final de um jogo – onde muitas peças ficaram pelo caminho – este caminho entre o começo e o fim lhe é totalmente imprevisível, dependente em extremo do outro, seu oponente, do que ele secretamente planeja, de como ele lhe antecipa e responde ao seu movimento, seu viver.

Jogará então inúmeras vezes, e a cada vez terá uma experiência diferente. Será agressivo, ou cauteloso. Arriscará tudo no sacrifício de uma peça, arquitetará um ataque em massa, perderá tudo num movimento descuidado, submeterá e será submetido. Então, já idoso, cansado talvez do jogo, esquece o tabuleiro, toma as peças em suas mãos e, em um tempo redescoberto, retorna ao menino, a brincar com reis rosa e azul, bispos carrancudos e malvados, cavalos monstruosos, de um reino antigo habitado por seres fantásticos... Manoel Leite é pisicanalista lacaniano e na infância foi campeão de xadrez.


Torre

Cavalo

Bispo

Rei

Peão

Peão

Peão

Peão

Peão

Peão

Peão

Peão

Torre

Cavalo

Bispo

Rainha


Rainha

Bispo

Cavalo

Torre

Peão

Peão

Peão

Peão

Peão

Peão

Peão

Peão

Rei

Bispo

Cavalo

Torre


Sergio Mauricio, artista visual, atua também como designer, diretor de criação e agora virou editor desta revista. www.utopos.com.




TIBET MARCOS PRADO

Mosteiro de Sera, auto retrato, Tibet, 1993



Quando os cavalos com rodas e os pássaros de ferro sobrevoarem o Tibet, o budismo tibetano se alastrará como formigas pela face da terra. Profecia do Guru Padmasambava

A

s vinte e nove imagens reunidas nestas páginas constituem uma pequena parcela do ensaio, que em breve sairá em livro, realizado por Marcos Prado em três viagens ao

Tibet – 1986, 1993, 1994 –, e depois em outras duas, pelo norte da Índia – 1996 e 1997. Apresentam ao observador uma cultura que parece fadada a sumir. Retratos comoventes de mães, crianças, loucos, refugiados e monges, todos tibetanos órfãos de seu líder espiritual, atualmente exilado na Índia, o Dalai Lama. É o resultado de um processo de ocupação, que começou com a invasão do território tibetano pela China, na década de 50, e que perdura de forma controversa e truculenta até hoje. O ensaio é acompanhado por trechos do diário de viagem do fotógrafo e reproduz parte de uma carta dirigida às Nações Unidas, que Marcos recebeu de um monge em sua primeira estada no Tibet.

Mosteiro de Ganden, Tibet, 1986


Nasci em 1930, no Tibet, na cidade de Tsethonk. Ela é conhecida pelas estátuas do Senhor Buda. Estudei com três mestres durante 14 anos. Em 1959, nosso país pacífico foi invadido pelos chineses. Não tive chance de empregar o que aprendi, porque os chineses não apreciam nossa arte. Vim para a Índia com outros tibetanos que seguiram Sua Santidade. Aqui há liberdade. Meu desejo é poder transmitir meu aprendizado para os jovens tibetanos que vivem no exílio. Pema Dorjee

Mosteiro de Nerbulingka, Oficina do mestre escultor Pema Dorjee, Dharamsala, Índia,1996



Agora me encontro aqui testemunhando a destruição do maior patrimônio espiritual do planeta e nada posso fazer para ajudar. Ontem visitei o Mosteiro de Ganden – na verdade, apenas o que restou do maior mosteiro do Tibet, bombardeado por aviões chineses em 1959. Dos 4.000 monges que viviam lá, restaram apenas 300 para contar sua trágica história. Diário de viagem

Mosteiro de Ganden, Tibet, 1986



Mosteiro de Mindrolin, Tibet, 1993


Ruas de Lhasa, Barkor, Tibet, 1993


Lhasa, julho de 1986. Mosteiro de Jo Kang. Principal mosteiro do Tibet. São 7:30 da noite. Após burlar os seguranças chineses, me encontro cercado de dezenas de monges tibetanos. Minha comunicação com eles se resume a monossílabos e desenhos em meu diário de bordo. A permanência de estrangeiros nos mosteiros é proibida após as 17:00. O Dalai Lama e os principais Lamas do Tibet se refugiaram no Norte da Índia, após o massacre de 1959. O clima em Lhasa é tenso – soldados nas ruas, há tristeza em cada rosto. As fronteiras do Tibet foram reabertas há menos de dois meses. Foram 27 anos de isolamento e silêncio. Diário de viagem

Mosteiro de Joh Kang, Lhasa, Tibet, 1994




O genocídio sistemático e cultural implementado pelo governo chinês nos últimos 30 anos ficou bem guardado aos olhos do mundo. Agora não mais. Os dados estatísticos da tragédia são aterradores: um quinto da população morreu devido à ocupação, noventa e quatro por cento de todos os mosteiros e templos foram destruídos. Muitas outras ocorrências escreveram a história recente do Tibet com sangue e lágrimas: torturas, julgamentos sem direito de defesa, execuções em praça pública, estupros, casamentos forçados para miscigenar as raças... Diário de viagem

Praça em frente ao Mosteiro de Joh Kang, Tibet, 1993


Mosteiro de Drigun Til, Ritual fúnebre de entrega dos corpos aos abutres sagrados , Tibet, 1993


Mosteiro de Chocorgye, Tibet, 1994


Foram dois dias na caçamba de um caminhão até a vila de Shangri e mais dois dias a pé, montanha acima, até chegar aqui. Por pouco não morri congelado no caminho. Tive que dormir ao relento, sem barraca, acompanhado por alguns peregrinos e seu rebanho de yaks. Nas ruínas de Chocorgye habitam por volta de trinta monges em condições miseráveis. O Mosteiro triangular foi construído no centro de três vales, cercado por três montanhas sagradas, envolto por três rios. A oito horas de caminhada fica o mais sagrado lago do Tibet: Lamo Latso, o lago das visões. Diário de viagem

Ruínas do Mosteiro de Chocorgye, 5.000 metros de altitude, Tibet, 1994




Há pouco me encontrei com alguns Lamas vindos clandestinamente de Dharamsala, Índia, sede do governo de exílio do Tibet. Eles seguirão pela manhã bem cedo, em direção a Lamo Latso, buscar os sinais de onde procurar um menino de seis anos, a reencarnação do Panchen Lama, assassinado no Tibet em 1988. Ele e mais quatro pessoas de sua comitiva morreram misteriosamente por ocasião de uma visita de “reaproximação” com o governo da China. Nenhuma biopsia pôde ser feita. Os tibetanos alegam que eles foram envenenados. Panchen Lama é considerado pelos tibetanos a emanação do Buda da Luz Infinita. Lamo Latso é a moradia de Palden Lamo, entidade protetora do lifespirit do Tibet. Diário de viagem

Lago sagrado de Lhamo Latso, Tibet, 1994


Mosteiro de JohKang, Lhasa, Tibet, 1993


Praça do Mosteiro de JohKang, Lhasa, Tibet, 1993


Mosteiro de Joh Kang, Lhasa, Tibet, 1994


Rua de Lhasa, Tibet, 1993


Mosteiro de Drigun Til, Sítio onde é realizado o ritual fúnebre, Tibet, 1994




Mosteiro de Joh Kang, Lhasa, Tibet, 1994


Rua de Lhasa, Barkor, Tibet, 1993


Mosteiro de Joh Kang, Lhasa, Tibet, 1994


Mosteiro de Ganden, Tibet, 1986



Mosteiro de JohKang, Lhasa, Tibet, 1993


Praça do Mosteiro de JohKang, Tibet, 1993


Mosteiro de Sera, Tibet, 1986


Mosteiro de JohKang, Lhasa, Tibete, 1986


Há dois dias recebi de um Lama do mosteiro de JohKang uma carta em tibetano, me pedindo para entregá-la às Nações Unidas. Ele me disse para que tomasse cuidado com os chineses. É fácil deduzir o conteúdo dessas dezesseis páginas. Diário de viagem

Rua de Lhasa, Barkor, Tibet, 1993



Carta do Mosteiro de JohKang [trechos] Dos monges tibetanos das Três Províncias, Lhasa, 1986.

Na nação democrática do Tibet, nós tibetanos − monges e leigos, jovens e velhos de todas as províncias −, lembramos com muita esperança que desde o começo da raça tibetana, há vários milhares de anos, tínhamos direitos e liberdade, como os outros povos do mundo. [...] No ano de 1959, forças da China imperialista, com armas modernas de vários tipos, invadiram nosso país como uma grande larva devorando outras menores, destruindo nossas riquezas materiais e culturais, executando milhares de pessoas. Sem outra alternativa, nosso líder nacional, o Dalai Lama, assim como uma parte de nosso povo, se viram obrigados a procurar asilo em outros países. A maioria dos tibetanos permaneceu no Tibet. Foram mortos, presos, sofreram humilhações em público. Os chineses invadiram nossas casas e tomaram posse de nossos meios de vida. Os sofrimentos foram incalculáveis, incomensuráveis. [...] A China decidiu submeter o povo e anexar a nação tibetana alegando falsamente ser o Tibet uma parte da China. Para isso, alteraram nossa história. Usaram métodos de tortura contra nosso sábios e nossos mestres, mataram muitos deles. Nosso jovens sofreram lavagem cerebral e foram obrigados a se casar com chineses. Nossas famosas e preciosas relíquias foram tomadas, vendidas, muitas foram destruídas. Fomos forçados a renegar o Dalai Lama e os demais lamas e divindades. Semearam a discórdia entre nosso povo. Todos estes métodos estão em uso há mais de trinta anos. Todas estas atividades desumanas são do conhecimento dos líderes mundias. [...] Desde que os chineses ocuparam o Tibet, cerca de 1,2 milhão de tibetanos morreram devido à fome, aos espancamentos, às execuções e aos suícidios. Mais de um milhão de tibetanos sofreram mutilações. As torturas, espancamentos e execuções que ocorreram durante a Revolução Cultural são em número muito grande para serem detalhados aqui. A mensagem de paz do Dalai Lama e os ensinamentos budistas se espalham pelo mundo como pedras preciosas no céu, levando a mente iluminada aos corações dos indivíduos. [...] Os chineses fazem tudo para impedir o cultivo da cultura tibetana, de nossas aspirações políticas e do bem-estar econômico. Há um alto risco de aniquilação total. Senhores governantes, por favor, ajudem-nos com sua compaixão e bondade para que possamos alcançar nossa auto-determinação e libertar nossos prisioneiros políticos. Ajudem-nos a trazer de volta nosso líder, o Dalai Lama, a Lhasa, capital do Tibet. [...]

Esta carta foi entregue na íntegra às Nações Unidas e ao Tibet Office, em Nova York, em 1986. Em 1993, ao voltar ao Tibet, Marcos Prado soube que o lama havia sido preso.

Exilado tibetano, Dharamsala, Índia, 1996



Acampamento de nômades próximo ao Monte Everest, Tibet, 1993


Estrada para Lhasa, Tibet, 1993


DESCOBERTAS DO TIBET Pedro Karp Vasquez O Tibet sempre foi envolto em mistério. O mistério de suas montanhas inacessíveis, dos horizontes infindos, das neves eternas, dos eremitérios e dos monastérios em que se cultivava um tipo especial de budismo. Hoje o Tibet é um país envolto em confusão. A confusão provocada pela ocupação chinesa e a confusão que envolve nossa percepção a respeito desse problema. Ambas, provavelmente nunca terão fim, porque os chineses dificilmente renunciarão à ganância que os leva a oprimir os tibetanos desde inícios do século XVIII, e também porque é possível que essa ocupação obedeça a insondáveis desígnios superiores. Nossa tradição ocidental cristã assegura que “Deus escreve certo por linhas tortas”. Assim sendo, é bem possível que a ocupação chinesa do Tibet seja uma dessas divinas escrituras tortas. Há lógica nesse raciocínio. Basta pensar que, se não fosse pela ocupação e conseqüente fuga do Dalai Lama, hoje somente um minúsculo círculo de iniciados saberia onde fica o Tibet, quem é o Dalai Lama e quais são os fundamentos do budismo tibetano. Mas, com a diáspora dos lamas tibetanos, milhões de pessoas vieram a saber quem é o Dalai Lama, que ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1989 e se tornou uma das pessoas mais conhecidas do planeta. Da mesma forma, hoje, espontaneamente, milhares e milhares de pessoas passaram a seguir os ensinamentos deste tipo de budismo, que é contra o proselitismo e, portanto, só se abre para aqueles naturalmente predispostos a estudá-lo. Em resumo: por ironia do destino, o ateu e materialista Mao Tsé-Tung acabou sendo o maior responsável pela difusão mundial do budismo tibetano. O Tibet foi durante séculos o país invisível e raras foram as oportunidades oferecidas aos ocidentais para fotografálo, de modo que o esplêndido trabalho de Marcos Prado aqui reproduzido tem valor inestimável. Não só por suas virtudes humanísticas intrínsecas, como também por seus méritos especificamente fotográficos. As fotografias de Prado constituem preciosa fonte de referência para o estudo da sociedade tibetana e espelham um raro talento para o documental, que transbordou da fotografia para abarcar também o cinema. Motivado por suas imagens, procurei evocar alguns dos primeiros viajantes que se aventuraram pelo Tibet antes dele, delineando um percurso literário e visual que ele percorreria mais tarde com brilho invulgar. O jesuíta português Antonio de Andrade foi o primeiro ocidental a penetrar no Tibet, em 1625, constatando então grande semelhança entre a fé local e a católica. Andrade ficou muito impressionado com a religiosidade dos tibetanos, assinalando o costume generalizado entre o povo do uso de pequenos relicários pendurados no pescoço, contendo passagens de textos sagrados.

Ressaltou a beleza e a boa manutenção dos templos e comentou: “A nação, como um todo, é boa e honesta, e é muito raro escutar uma palavra de má-fé, mesmo da parte dos não-religiosos”.1 O padre italiano Ippolito Desideri foi quem — em texto escrito na cidade sagrada de Lhasa em 10 de abril de 1716 —, descreveu os monges locais em detalhes pela primeira vez: “Os tibetanos têm padres denominados lamas, que usam vestimentas especiais, diferentes daquelas empregadas pelos laicos. Eles não penteiam o cabelo em tranças nem usam brincos como fazem os outros; raspam a cabeça de forma semelhante à de nossos religiosos e fazem voto de celibato. É dever deles o estudo dos livros da Lei, escritos numa língua e em caracteres diferentes daqueles empregados nos textos profanos. Eles recitam algumas de suas orações em coro e são encarregados de apresentar as oferendas nos Templos, assim como de manter as lâmpadas acesas. [...] Os lamas vivem em comunidades nas quais permanecem em estado de grande veneração. São governados por suas próprias autoridades religiosas, que incluem Superiores regionais e um Superior geral, tratado com imenso respeito até mesmo pelo Rei”.2 Thomas Manning foi o primeiro inglês a visitar o Tibet, em 1811, e já nessa ocasião condenou o que julgou ser uma constante da “questão tibetana”: as brutalidades e injustiças cometidas pelos residentes chineses; assim como a arrogância e a incompetência da burocracia imperial; explicando que a presença chinesa no Tibet era motivada pela superpopulação. Segundo ele: “O mandarim de Giansu considerava a imigração um fenômeno natural e inevitável em decorrência da superpopulação na China, pois a mão-de-obra era abundante e as pessoas deviam ir para onde fosse possível encontrar um ganha-pão”.3 Vale lembrar que, neste momento, a presença chinesa no Tibet já era secular e, em 1720, os chineses já haviam realizado uma “pacificação” do Tibet, seguida de ocupação e comemorada com a ereção de um obelisco desafiador a menos de 500 metros de distância do Potala. Régis-Évariste Huc, padre lazarista, chegou ao Tibet, com seu colega, Joseph Gabet, em 1846, e observou que lá as mulheres desempenhavam papel especial: “Coisa que nos faz pensar que, no Tibet, existe menos corrupção que em outras sociedades pagãs, é o fato de que as mulheres se beneficiam de grande liberdade. Elas não ficam vegetando, aprisionadas em suas casas, levando uma vida laboriosa e cheia de atividades. Além de serem encarregadas das tarefas domésticas, concentram em suas mãos o comércio varejista. São elas que levam as mercadorias de um lado a outro e as vendem nas ruas ou em pequenas lojas. No campo, elas participam ativamente dos trabalhos agrícolas”. O arguto religioso percebeu de imediato um dos


Pedro Karp Vasquez é escritor e fotógrafo, formado em Cinema pela Université de la Sorbonne e mestre em Ciência da Arte pela Universidade Federal Fluminense. Autor de 20 livros, trabalha como editor, pesquisador e curador independente. Na década de 1980, atuou como administrador cultural, tendo sido responsável pela criação do Instituto Nacional da Fotografia da FUNARTE; bem como do Departamento de Fotografia, Vídeo & Novas Tecnologias do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

principais motivos do interesse chinês pelo Tibet – a riqueza de seu subsolo: “O Tibet, tão pobre em produtos agrícolas e manufaturados é muito mais rico em metais preciosos do que se pode imaginar. O ouro e a prata ali são recolhidos com grande facilidade e até mesmo os humildes pastores conhecem a arte de purificar esses metais nobres”. 4 Na segunda metade do século XIX o acesso ao Tibet foi fechado aos ocidentais e Lhasa se tornou “a cidade proibida”. Os aventureiros e missionários que se arriscavam por lá eram presa fácil para os bandoleiros que assolavam as ermas estradas montanhosas. Entre aqueles que ficaram pelo caminho, figuram o capitão de marinha francês Dutreuil de Rheims que morreu durante a expedição de Joseph-Fernand Grenard ao Tibet entre 1893 e 1894, assim como o missionário Petrus Rijnhart e seu filho Charles, que morreram em 1898, sobrando de seu grupo apenas sua esposa, Susie Carson Rijnhart, que consegui chegar até Lhasa. Percival Landon, correspondente do jornal Times, de Londres, acompanhou a expedição comandada por Sir Younghusband, entre 1903 e 1904, disposta a chegar até Lhasa “na base da baioneta”. Perfeito representante do mais obtuso etnocentrismo, Landon considerava o lamaísmo um “instrumento de opressão” e “uma barreira contra todo progresso humano, o símbolo vivo daquilo que nós, ocidentais, sempre combatemos e, com freqüência, vencemos em termos de esquisitice, de crueldade e de servidão. Todavia, sob o sol ardente de um dia verão, sob o véu branco de um céu sem nuvens, o Potala desafia toda e qualquer crítica, impondo a fé, por mais cruel e tacanha que ela seja”.5 Felizmente as sociedades evoluem, de modo que o Dalai Lama visitou a Inglaterra em maio deste ano de 2008, foi recebido pelo primeiro-ministro Gordon Brown, discursou no Parlamento e, ainda por cima, foi convidado pelo príncipe Charles para visitar sua residência oficial londrina. Ali, o príncipe, líder ecologista e admirador confesso do Dalai Lama, pediu para que este plantasse uma árvore (uma magnólia) no jardim de Clarence House, visando perenizar a lembrança de sua visita. A escritora e mística francesa Alexandra David-Néel (1868-1969) arriscou a vida para ter a visão deslumbrante do Potala descrita por Landon, conhecer a cidade proibida de Lhasa e registrá-la com suas câmaras, naquela que foi a primeira verdadeira descoberta fotográfica do Tibet, consignada no livro póstumo Le Tibet d’Alexandra David-Néel.6 Ela realizou suas fotografias entre os anos de 1914 e 1924, bem como numa temporada suplementar de seis meses ocorrida em 1938. Foi a primeira européia a penetrar no Tibet no século XX e a primeira mulher a fotografá-lo, tendo sido, em muitos casos, a primeira pessoa a tirar fotografias de determinadas regiões ou eventos do país.

Retratou o XIII Dalai Lama, Thouben Gyatzo, o VI Panchen Lama, Geleck Namgyal, assim como diversos altos funcionários e importantes dignitários. Mas considerava sua fotografia mais preciosa o retrato da abadessa do monastério de Samding, décima primeira reencarnação da deusa Dorje Phagmo e venerada como “Buda vivo”. Por sinal, aproveitando-se da condição feminina que lhe facultava o acesso às arredias tibetanas, Alexandra David-Néel dedicou especial atenção às mulheres do país, retratando amplamente as representantes do povo e registrando os diferentes tipos de pakor — elaborados penteados típicos sustentados por armações que variavam de 20 a 40 cm de altura e que identificavam a região de procedência de suas portadoras. Entre julho de 1918 e fevereiro de 1921, Alexandra residiu no monastério de Kum-Bum, na localidade de mesmo nome — com seus 3.800 lamas —, registrando pela primeira vez o interior de um centro religioso tibetano, seus costumes e seus rituais, como a grande festa anual ornamentada por estátuas feitas de manteiga. Fotografou também o monastério de Lhabrang, em Amdo, que contava então com uma população de 3.000 lamas. Profunda conhecedora da vida e das tradições locais, Alexandra David-Néel registrou em detalhes o ritual de esquartejamento de cadáveres, obedecendo ao desejo do falecido de oferecer a própria carne para os abutres, os lobos e as raposas. Assim como os raros espetáculos de teatro cômico, num país dominado pelas encenações de cunho religioso. Retratou músicos ambulantes, mendigos, garimpeiros, vendedores, peregrinos rezando em altares situados à beira das estradas, carregadores de chá com enormes pacotes amarrados às suas costas, e as rústicas tribos de pastores da região de Koukou-Nor. Efetuou, em suma, abrangente e detalhada documentação do Tibet, que seria interessante combinar um dia com aquela efetuada por Marcos Prado em uma enorme exposição capaz de sintetizar a essência da vida tibetana no decorrer do século XX. Vida concentrada nas coisas do espírito, e que deveria servir de modelo para todos nós, para que seja possível viabilizar a construção de um mundo melhor e mais justo. Voyages au Thibet faits en 1625 et 1626 par le père de Andrade, et en 1774, 1784 e 1785 par Bogle, Turner et Pouninguir, traduit par J.-P. Parrant et J.-B. Billecoq. Paris: Imprimerie de Haubout l’aîne, 1776. 1

Lettre du Père Ippolito Desideri, Missionaire de la Compagnie de Jésus, au Père Ildebrand Grassi, Missionaire de la même Compagnie dans le Royaume de Maissen, traduite de l’Italien. Reproduzida en Le Voyage em Asie Centrale et au Tibet. Anthologie des voyageurs ocidentaux du Moyen Age à la moitié du XXe siècle, organizada por Michel Jan. Paris: Robert Laffont, 1992.

2

Narratives of the Mission of George Bogle to Tibet and of the Journey of Thomas Manning to Lhasa, Clements Markham. Londres: Trübner and Co., 1879.

3

Souvenirs d’un Voyage en Tartarie et le Thibet (1844-1846), annoté par J.-M. Planchet, Régis-Évariste Huc. Paris: Le Livre de Poche, 1962. 4

A Lhassa, la ville interdite. Descirption du Tibet central et des coutumes de sés habitants. Relation de la marche de la mission envoyée par le gouvernement anglais (1903-1904), Percival Landon. Paris: Hachette, 1906. 5

6

Le Tibet d’Alexandra David-Néel. Paris: Librarie Plon, 1979.


É LOGO ALI, PERTINHO DAQUI

MARC VAN LENGEN

Marc van Lengen nasceu em São Francisco, Califórnia, estudou arquitetura e fotografia em Amsterdam e trabalhou 10 anos em Londres como fotógrafo para revistas de moda e música. www.1500brasil.com.



PROJETO MAGMA

HELENO BERNARDI

Há casos em que a poesia cria a si mesma. Jorge Luis Borges

O site é um lugar onde deveria estar um trabalho, mas não está. O trabalho que deveria estar ali agora está em outro lugar qualquer, normalmente em uma sala. Aliás, tudo o que tem alguma importância acontece fora da sala. Mas a sala nos lembra as limitações da nossa condição. Robert Smithson

Alexandre Sá

A situação é inusitada: máscaras, pistola, proteção, óculos, chapéu,

sua superfície produzida, tornam-se capazes de frutificar a precisão de sua

compressor e alguns outros elementos que talvez não sejamos capazes de

existência espacial, objetiva e paradoxalmente, coletiva. Murmuram de

capturar. O artista está lá, vestido de branco e com a arma em punho. Parece

maneira reverberada suas histórias industriais e gradativamente (num jogo

sempre preparado para uma guerra específica em algum lugar inóspito.

de atração e repulsão) retomam a fala,2 redesenham seus próprios

O espaço é um terreno abandonado de cor obtusa. O alvo do ataque (nesta

volumes no espaço e tornam-se responsáveis pelo nascimento de uma

primeira empreitada) são alguns destroços, elementos deixados ao longo

poética que atravessa o seu (ou seria o nosso?) inelutável

de algum processo particular de construção e desconstrução, dejetos de

Criticamente3 podemos considerar que o trabalho nasce do entrecruzamento

alguma história que não somos capazes de compreender. Estamos então

de duas estéticas: a idéia do ready-made (e a sua debochada beleza

num local curioso, num recuo dentro de uma rua movimentada em um

da indiferença) e dos já conhecidos processos de site-specific. Sobre a

bairro do Rio de Janeiro. O sol, como era de se esperar, está voraz e termina

aplicabilidade (absolutamente expandida) do conceito de ready-made,

auxiliando na impressão de que se trata de um deserto, de algum não-

podemos (e devemos) ainda tentar revirá-lo um pouco mais, perseguindo

lugar (curiosamente particular) onde talvez nenhum oásis seja provável.

um giro dentro do próprio conceito. Ao invés de pensarmos como sendo um

Contudo, Heleno Bernardi já está em ação com seus elementos, travando uma

objeto industrial passível de reflexão estética, resolvermos analisá-lo como

micro-guerra-íntima com o entorno. A luta aqui não é violenta, não é repleta

sendo uma situação industrial possível de produção poética, de análise

de riscos e nem se parece em nada com aquilo que se espera em dias de caos.

conceitual e paradoxalmente, de ligeira contemplação visual, que através

Trata-se de um duelo preciso entre o artista, o material, a especificidade do lo-

da ação artística é transformada de maneira plástica, mantendo ainda suas

cal e a poesia que se deseja produzir diante dos olhos e paradoxalmente, longe

raízes e sua origem objetiva na realidade que as erige: o processo urbano

dos olhos esquecidos dos passantes diários que talvez nem sequer possam ter

(e por que não natural das coisas?!). Se o ready-made originalmente detecta

a liberdade de desviar a visão para perceber a transformação ocorrida naquela

uma possibilidade de experiência estética no produto finalizado, Heleno

paisagem cinza, comum à rotina de uma grande cidade. O que esteticamente

retoma esta possibilidade a partir dos dejetos deste objeto industrial (já

acontece ali é a lenta e gradativa transformação pictórica de um espaço qualquer

sem nenhuma finalidade), para então recomeçar outro ciclo plástico.

e surpreendentemente, específico. Além de sua conseqüente transposição/

O agente-artista opta por mergulhar numa esfera de trabalho que é originada

deslocamento para um eixo particular de funcionamento semântico: a arte.

pelas reverberações filosóficas do ready-made, mas que o ultrapassa e termina

Heleno provoca aqueles elementos abandonados em si, em suas irregularidades

por produzir num certo “poem-objet-trouvé” de inquestionável qualidade.

natas, imprimindo-lhes uma forte camada de purpurina rosa. O método de

O artista (es)colhe o espaço possível para a sua empreitada poética, analisa-o,

trabalho é exaustivo, pois envolve uma densa dose de cola e posteriormente

verifica a viabilidade da ação, para enfim realizá-la. E o “objeto-produto” em

outra camada com a materialidade difusa/onipresente1 da purpurina e da

exposição existe como memória, como presença de uma ausência e como

vivificação de sua cor própria. Aos poucos, aqueles elementos redescobrem

imagem. Sendo assim, também podemos considerar o site-specific como um

a possibilidade de suas existências objetivas (em conjunto) e, na pulsão de

elemento estético que borda o universo referencial do trabalho. Trata-se então

abandono.


Foto | Roberta Barros

Magma, 100 kg de purpurina sobre demolição abandonada, 120 m2 , 2007

de uma intervenção realizada num local determinado, com suas características

diálogo com as particularidades do espaço, dentro de um jogo intenso de

específicas e que abriga parte da ação artística. Esta, por sua vez, será

pulsos relacionais; evidenciando de forma precisa sua existência lírica, sua

consolidada de outras formas em outros espaços. Aqui também podemos

materialidade efêmera, sua maturidade estética e sua entropia inevitável.

perceber um ligeiro deslocamento de tais métodos de funcionamento, pois se ao longo da História da Arte pudemos perceber que a intervenção feita pelos artistas em tais sites era mais da ordem física, quase escultural, Heleno Bernardi realiza uma intervenção físico-poética na esfera do visual dentro

1 Aqui nos cabe uma nota explicativa (quase óbvia; apenas como lebrança) sobre esta materialidade difusa, onipresente e quase atmosférica da purpurina, pois faz-se necessário que consideremos (poeticamente) tal materialidade como sendo um conjunto infinito de grãos ínfimos. Átomos poéticos de cor que funcionam como superfície pictórica impressa em um espaço determinado. 2

Fala esta que também é de muitas vozes.

do espaço urbano através da instauração de um rápido golpe pictórico.

3

O que diferencia tal proposta de um trabalho de intervenção urbana é que

essa ação não traz embutida uma cobiça de alteração do fluxo da cidade

através de uma inserção econômica ou geopolítica. O fio de corte do trabalho

Alexandre Sá, é doutorando e mestre em Linguagens Visuais pela Escola de Belas Artes da UFRJ. Licenciado em História da Arte pela UERJ, é professor, artista plástico, poeta e crítico de arte.

é poético e se produz pela materialidade da cor que, através de sua presença inusitada, constrói as possíveis camadas de experiência através de um intenso

Outra nota óbvia: o caminho escolhido é apenas um dentre vários. Não temos nenhum desejo de aplainar o terreno da multiplicidade de abordagens possíveis que o trabalho provoca.

Heleno Bernardi, Ouro Fino / MG / Masseter Suíte / Apology of Socrates / Enquanto Falo As Horas Passam / Não Vamos Discutir Com Caravaggio / Magma.


PAPAI NOEL FICOU COM RAIVA

NELSON RICARDO MARTINS

Alexandre Dacosta, artista multimídia, escolheu a boca de uma empregada doméstica.


Bocas anônimas, boca do povo, bocas. Papai Noel ficou com raiva surgiu na mesa do centenário

quando fui convidado para participar da UNIVERSIDARTE.

Bar

Estava

Surgiu aí o primeiro papai Noel: eu mesmo fotografado por Marcelo

com minha amiga dentista Lívia Corpas já no décimo

Magalhães. Fui escolhido entre os dez melhores pelo júri, integrado por

chope, quando ela retirou da bolsa vários fotogramas de

Fernando Cocchiarale e Luiz Camillo Osório. Como prêmio, ganhei uma

bocarras abertas. Olhei pasmo para aqueles “buracos” sem

individual. Chamei, então, dez amigos artistas para uma sessão de

dentes, necrosados, meio monstrengos e pensei cá comigo:

fotos. Havia algumas regras: cada um iria como quisesse e escolheria,

a boca é o bem e o mal. Estávamos em plena guerra do Iraque

no computador, a bocarra com que mais se identificasse, sem saber

e George Bush usava a boca para ordenar o assassinato

quem eram os seus donos. Bocas anônimas, boca do povo, bocas.

Luiz,

templo

supremo

da

boêmia

carioca.

de milhares de pessoas sob o esfarrapado pretexto de que livraria o ocidente do “demo”. Ele era o próprio papai noel com o saco cheio de mísseis. A idéia do trabalho cresceu e eu entendi que aquelas bocarras, na verdade, eram feridas narcísicas;

borrões

nojentos

que

se

inseriam,

quadrados,

no asséptico seio de nossa miserável civilização midiática. Minha mente estava sob o fogo cruzado destas elucubrações,

Nelson Ricardo Martins desenvolve, desde a década de 80, projetos multimídias em diversos suportes, conjuminados com temáticas sociais e urbanas. Como gestor cultural, idealizou e coordenou, para a Funadação Nacional de Artes (FUNUARTE), alguns projetos de âmbito nacional, com destaque para a Rede Nacional Funarte Artes Visuais/MinC, que coordenou de 2004 a 2008, promovendo intercâmbios com a participação de mais de 400 profissionais, entre artistas, curadores, críticos, produtores, documentaristas e fotógrafos, que levaram a cerca de 100 municípios brasileiros oficinas de artes, palestras, seminários e ações de artes visuais contemporâneas.

Fotos | Marcelo Magalhães

Jorge Espírito Santo, diretor de TV, escolheu a boca de um pedreiro.


MOSKALEIDOSCÓPIO

Não existem “distorções de realidade”. O real é o que está acontecendo. O acontecimento é real. Uma distorção se torna realidade quando ela acontece. Tão simplesmente como qualquer outra manisfestação da natureza, do tempo e dos espaços, a distorção se faz de “novo caminho” quando é evocada. E passa a ser uma nova realidade. Realidades são estados de percepção que se renovam. E o que é distorcido é apenas nossa imagem pré-estabelecida do real. Nós “distorcemos” para que a vida tenha mais liberdade, e assim nos sentirmos artistas da vida, criando nossa própria obra de arte, tendo como matéria-prima nossa própria existência e atitudes/práticas. Distorções são, paradoxalmente, o que explica a realidade. No mínimo, ficamos diante da certeza de que nada é do jeito que parece ser, e essa é a condição primeira para que possamos refletir sobre nós mesmos, sobre o mundo e sobre a vida como um todo. Comecei a fotografar depois dos atentados terroristas às torres gêmeas. Mais precisamente, comprei minha primeira câmera no dia 8 de Setembro de 2001, em Nova York, três dias antes da explosão dos aviões nos edifícios. E para testar o botão de MACRO (que serve para clicar objetos bem pequenos), tirei algumas fotos do meu próprio rosto refletido em objetos de metal do banheiro do hotel em que me hospedava. Já no Brasil, em minha casa no Rio de Janeiro, fui checar as poucas fotos que havia feito naquela cidade que parecia estar “desaparecendo” do mapa e me deparei com um rosto em extrema agonia dentro de uma torneira de metal. A metáfora do homem aprisionado pelo metal (o metal das armas, do dinheiro, das bombas, das espadas, dos automóveis e dos aviões) me veio como um raio acompanhado de trovão cor de prata. Estava aberta a temporada de obsessões e passei a me fotografar em todos os banheiros que entrava. Isso me rendeu um disco de canções

MOSKA

inspiradas (ou serão ins-piradas?) nos títulos das fotos que eu mais gostava. Pude fazer exposições fotográficas e até uma série de TV (Zoombido, Canal Brasil – 66 da NET) em que converso, canto e fotografo o compositor convidado através de um “tijolo de vidro”. Acabei pegando intimidade com a câmera e me pus a experimentar novas superficies reflexivas, como o vidro, a água, a bolha de sabão, a tela da TV desligada, óculos com graus diferentes, lentes de aumento e caleidoscópios. Sempre distorcendo mundos. Se minha primeira série foi uma espécie de grito-metal, meu trabalho novo agora aponta para um grito-transparência, onde a realidade é um derretimento pro vazio em câmera-lenta, como se nosso campo físico estivesse à um passo de se desprender do que chamamos de plano material. As fotos no tijolo de vidro são minha busca de tentar expressar o instante exato em que essa transição se dá (material / imaterial) Não sou religioso, sou um ateu ativo, e quando falo de se desprender do plano material é porque quero abrir espaço para o pensamento, para a transcendência, para o delírio criativo, e para a poesia. Nunca para a religião ou para qualquer outra forma de fanatismo ou ignorância. Estou falando de arte, de vida, de expressão e de afetos. Realidade então, passa a ser quase um sinônimo de intensidade das sensações. Afetos intensos são os que mais se “realizam”. Quando um afeto intenso se manifesta, toma todo o ambiente e as sensações para si. O afeto intenso é como os buracos negros do universo… Ele nos suga com uma força assustadoramente potente e nos revela nossa grandiosidade e pequenez ao mesmo tempo. Vida e morte impressam nos instantes que nos compõem. É na distorção que eu encontro minha estabilidade, minha paz e minha alegria, por me sentir livre nesse mundo tão aprisionador.

Moska é compositor, letrista, cantor e realiza experimentos com imagens fotográficas. www.paulinhomoska.com.br



Utópos, Foto| Duda Carvalho


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