SANTART # 05

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Cerebelo





gUi Mohallem Espelho manchado, 2009

galeriadebabel.com

Alec Soth Alessandra Sanguinetti Andreas Heiniger Andrea Micheli Bernard Faucon Bob Wolfenson Breno Rotatori Bruno Barbey Claudine Douri Clemente Gauer Dimitri Lee Eduardo Muylaert Elliott Erwitt Felipe Russo Ferdinando Scianna gUi Mohallem Hilton Ribeiro Iatã Cannabrava Joel Meyerowitz Luis Gonzales Palma Marcelo Brodsky Martin Gurfein Martin Parr Monica Vendramini Pablo di Giulio Paolo Pellegrin Paolo Ventura Pedro Martinelli Ricardo van Steen Roberto Linsker Steve McCurry Thomas Hoepker Vania Toledo Zak Powers



World 9, 2005, cibacromo, dibond, plexiglass, 118,9x84,1cm. Cortesia Flatland Gallery Utrecht-Paris

EXPEDIENTE # 5 2010 DIREÇÃO EDITORIAL

CONSELHO CONSULTIVO

Sergio Mauricio

Ana Luisa Leite Fred Hortêncio Jully Fernandes Marcos Prado Moacir dos Anjos Nelson Ricardo Martins Pedro Karp Vasquez Waldik Jatobá Walter Carvalho Yael Steiner

sergiomauricio@santaartmagazine.com.br

DIREÇÃO EXECUTIVA

Sergio Mauricio Marcos José Magalhães Pinto DESIGN E ARTE

Sergio Mauricio Bady Cartier

badycartier@santaartmagazine.com.br

CONSULTORIA EDITORIAL

Danielle Corpas ASSISTENTE EDITORIAL

Julia Vaz | RJ

juliavaz@santaartmagazine.com.br

Alessandra Duarte | SP

alessandra@santaartmagazine.com.br

REVISÃO

Márcia Rinaldi COMERCIAL comercial@santaartmagazine.com.br

CONSULTORIA DE MÍDIA

Antonio Jorge A. Pinheiro midia1@midia1.com.br

PROJETO GRÁFICO

Cerebelo COLABORAÇÃO DE CONTEÚDO

Thais Medeiros

COLABORADORES

Ariano Suassuna Arthur Bispo do Rosário Arthur Omar Catalina Bartolomé Clara Reis Cristina Salgado Daniel Senise Dimitri Lee Duda Carvalho Eder Chiodetto Fiona van Schendel Flávia Corpas Frederico Coelho Gustavo Moura Heleno Bernardi Jordi Burch Juan Esteves Julio Landmann Lakshmi Sandhana Lua Morena Cruz Luigi Serafini Maria Lynch Mariana Manhães Mark Ryden Ondjaki Paolo Ventura Ricardo Van Steen Roberto Conduru Ruud van Empel Steve McCurry Theo Jansen

AGRADECIMENTOS

Ana Teresa Pacheco Andrea Sandtfoss Chris Apovian Clara Reis Claudia Saldanha Concetta Duncan Edson Cunha Neto Eduardo Ourivio Enzo Barone Fabrizzia Gouvea Fernanda Feitosa Fernando Prado Fiona Van Schendel Guilherme Magalhães Pinto Herbert Hasselmann Isabel Portella Izabela Pucu Jaqueline Vojta Joana Carvalho Joana Estellita João Cruz João Pedro Stein Joaquim Ferreira dos Santos Juliana Helcer Liege Flora Lisiane Brito Luciane Briotto Luciano Trigo Manoel Leite Marcelo Machado Marcia Manccini Marcos Prado Nanci e Osvaldo Corpas Paulo Futura Paulo Guanaes Pedro Teixeira Sérgio Cuevas Tatiana Ribeiro Thea Schünemann Miranda Vania Trasatti Vera Greenhalgh Werner Capeto APOIO

Funarte IMPRESSÃO

Gráfica Santa Marta

www.graficasantamarta.com.br

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ENCICLOPÉDIA DE UM MUNDO IMAGINÁRIO

LUIGI SERAFINI

PAOLO VENTURA, ARTE IMAGINADA

PAOLO VENTURA

DO REINO ENCANTADO

GUSTAVO MOURA

LIBERDADE E DESAPEGO

BISPO DO ROSÁRIO INOCÊNCIA SOMBRIA

MARK RYDEN

PERMANÊNCIA E TRANSITORIEDADE

DIMITRI LEE

MUNDO PARADISÍACO

RUUD VAN EMPEL O CHÃO ANDALUZ

DANIEL SENISE LARANJAS, PULSÕES E VERMELHOS RUBROS

STEVE MCCURRY

A ESCULTURA VIVA DE MARIANA MANHÃES

MARIANA MANHÃES JORDI BURCH

BLIND CITY / UMA VISÃO MUITO PESSOAL

RICARDO VAN STEEN EU SOU O OUTRO

CATALINA BARTOLOMÉ ENQUANTO FALO, AS HORAS PASSAM

HELENO BERNARDI ANIMAIS DA PRAIA

THEO JANSEN

SOBRE CORPOS COLORIDOS E MALDADES SUTIS

ENSAIO EXCLUSIVO SANTA


SANTA

#05

art magazine

FÁCIL ENTENDIMENTO, DIFÍCIL EXPLICAÇÃO “A arte não tem medo de ditaduras, severidades, repressões, ou mesmo conservadorismos e clichês. Quando necessário, a arte pode tornar-se estreitamente religiosa, estupidamente governamental, despida de individualidade, e, ainda assim, ser boa... A arte é bastante elástica para ajeitar-se em qualquer leito de Procusto* que a história apresente. Porém, apenas uma coisa não pode tolerar: ecletismo”. (Autor anônimo russo, do período da Cortina de Ferro, citado por Mário Pedrosa, em 1960, no artigo “O mal do protecionismo estético”) Num instante insólito, sob condições adversas, no interior de cavernas, o homem, para sobreviver e unir o grupo, criou, com as pinturas nas paredes de pedras, um jeito de comunicar-se. E, mais essencialmente, um processo de criação artística, por meio da catarse e do transe. Imagens enigmáticas, repletas de significações mágicas, que insistem em continuar vivas. Arte contemporânea, arte atemporal? As incríveis obras produzidas no período renascentista mobilizam multidões de apreciadores há centenas de anos. Paradoxalmente, os artistas daquela época lutavam contra toda a sorte de adversidades materiais e espirituais. No mínimo, não era nada fácil fazer algo livre, leve e solto com o crepitar das fogueiras da Inquisição católica à espreita. Mesmo assim, eles o fizeram. Sem dúvida, uma arte atemporal. Arte contemporânea? Hoje, vivemos uma era de liberdades sem precedentes, era eclética, onde qualquer experimentação parece válida. Tempo de concordância no qual, por vezes, o possível interlocutor crítico está desorientado: ou cooptado pelas tendências da moda, ou a viver como uma ave rara no interior das instituições, a ouvir seus próprios ecos e a dialogar apenas com seus pares. Ortega (também lembrado por Mário Pedrosa), num ensaio dos anos 1920 diz: “Quando um homem não gosta de uma obra de arte, mas a compreende, sente-se superior em relação à mesma, e não há razão para indignar-se. Mas quando

a repulsa é devida à sua incapacidade de compreendê-la, sente-se vagamente humilhado e este incômodo sentimento de inferioridade é contrabalançado por uma autoafirmação indignada”. E acrescento eu: ressentida. De fato, arte pode ser de fácil entendimento, mas de difícil explicação. Em seu movimento permanente de continuidade e ruptura, a arte, além de exigir sempre mais do espectador, cria uma nova ordem de experiência e de pensamento. As liberdades irrestritas e os incentivos à produção artística, somados, serão sempre bem-vindos, mas não garantem nada quando se trata de arte. A vocação de toda obra de arte é comunicar-se. Se valerá mil palavras, ou até milhões de palavras, depende do quanto esta imagem surja atemporal em sua contemporaneidade. Neste caso, não interessa apenas a sua cotação de mercado, mas também, se ela, por si só, desperta no corpo, na mente e no espírito uma centelha criativa. A revista SANTA ART MAGAZINE Nº 5 reafirma o propósito de ser um veículo de comunicação dedicado às imagens contemporâneas, aquelas que, independente do tempo em que foram realizadas, mantêm-se vivas. * A expressão “leito de Procusto” é aplicada a situações em que a utilização da força atropela as diferenças existentes entre os indivíduos ou desrespeita as circunstâncias especiais que caracterizam os sistemas de vida adotados pelas pessoas. No Direito, a figura mitológica costuma ser invocada como metáfora de certos aspectos da atividade jurídica, considerando semelhante a Procusto aqueles que tentam enquadrar, de modo inadequado, determinada realidade em um conceito que a ela não se ajusta, equívoco que sempre tem consequências negativas.

Sergio Mauricio EDITOR

cerebelo Esta Santa é dedicada a Vicente C. Martins e ao seu universo mágico. Santa - Art Magazine é editada pela Cerebelo Artes. Impressa pela gráfica Santa Marta, em papel Suzano couché matte 150 g (miolo) e DuoDesign 250g (capa e encarte).

A Santa aceita propostas de colaborações, que são avaliadas pelo seu conselho. Todas as opiniões expressas nos ensaios, matérias, entrevistas, depoimentos e artigos publicados são de inteira responsabilidade dos respectivos autores. É proibida a reprodução de imagens ou textos por qualquer meio. Endereço para correspondência: Rua Jardim Botânico, 719 / sala 23. Jardim Botânico. CEP 22470-050. Rio de Janeiro – RJ Cerebelo Artes Ltda. CNPJ: 09.448.968/0001-50. Rua Lauro Muller 116/704 parte. CEP 22290-160. Rio de Janeiro – RJ


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LU I G I

S E R A F I N I

Codex Seraphinianus

ENCICLOPÉDIA DE UM MUNDO IMAGINÁRIO Paródia elaborada do mundo real, o Codex Seraphinianus é um livro que foi escrito e ilustrado, entre 1976 e 1978, em um pequeno apartamento em Roma, pelo artista e arquiteto italiano Luigi Serafini. O livro tem aproximadamente 360 páginas. É uma fantástica e absurda enciclopédia de um mundo imaginário, um bestiário, que nos remete à estética medieval – podendo ser relacionado esteticamente a Hyeronimus Bosch – ou a um sistema taxidermista de catalogação. Dividido em onze capítulos e duas seções e escrito numa língua bizarra – sem nenhuma relação com as línguas escritas no planeta Terra –, nitidamente tem algum sentido. São páginas e páginas escritas de forma minuciosa e que claramente mantêm estreita relação com sistemas de catalogação já existentes, mas, ainda assim, o Codex permanece até hoje indecifrável. O livro inicia introduzindo uma abordagem, aparentemente, do mundo natural. Reúne a flora, a fauna e o reino da física, descrevendo tipos exóticos e estranhos de flores, árvores que migram e variações surrealistas e alienígenas de animais como cavalos, hipopótamos, rinocerontes e pássaros. Segue tratando das ciências humanas, em seus vários aspectos: vestuário, gastronomia, arquitetura, passando

então para um reino distinto de estranhos seres bípedes e seguindo para a parte que talvez seja a mais abstrata e enigmática, que aborda algo próximo à física e à química. As ilustrações de forma geral são nítidas paródias surrealistas das coisas do nosso mundo, como uma planta que cresce em forma de uma cadeira ou um casal fazendo amor que se metamorfoseia num crocodilo. Há exemplos facilmente reconhecíveis, como mapas ou rostos humanos, mas, por outro lado, em alguns capítulos, as imagens tornam-se praticamente abstratas. Passando ainda por máquinas e veículos estranhos, sexualidade, cultura, ferramentas enxertadas no próprio corpo humano, jogos e esportes, o Codex Seraphinianus é um livro extremamente raro, finamente colorido, rico em pormenores e envolto em muito mistério.

Luigi Serafini, personagem misterioso. Provavelmente nasceu em Roma em 1949, começou sua carreira como arquiteto, antes de criar o Codex Seraphinianus. Também é autor da Piccola Pulcinellopedia. Já realizou várias exposições, que incluem pinturas, esculturas e objetos curiosos.

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PA O LO

V E N T U R A

Vicenza. Lovers in the Bar Nazionale, 2009, Digital C-Print (Giovanni Degrada, o garçom, morreu na primavera de 1944, no bombardeio de um trem da linha Veneza-Milão)

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F.L., 2009, Digital C-Print

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The birdman, 2009, Digital C-Print

PA O LO V E N T U R A , A R T E I M A G I NA DA Ju a n E s te ves A imagem fotográfica já nasceu argumentando pela sua construção. Aquilo que hoje chamamos de staged, aquela realidade fabricada por seu autor, surge do amálgama entre realidade vivenciada e sua memória eletiva: estas são componentes do relato que o italiano Paolo Ventura sugere discutir. Tal proposição, que se acerca do mínimo real, evidencia, sobretudo, a intimidade do fotógrafo com sua história e seus argumentos venturosos. Mas também sugerem seus traumas não declarados que, em sua cadência, aproximamse dos diálogos com a Arte Efêmera – estes arraigados em suas entrelinhas no contraponto àqueles, auspiciosos. O artista recria, com singular verve, o confronto permanente do italiano nascido no pós-guerra. Não é por acidente que um de seus livros chama-se War souvenir (Contrasto, 2006) e o outro Winter stories (Aperture, 2009), este evocando o país antes da guerra. Assim como dividimos as estações climáticas – à maneira oriental dos Haicais e Tankas –, o fotógrafo encena seus personagens antes e depois do conflito.

Entretanto, em parte deste ensaio, Ventura busca outras fontes que fujam um pouco de suas questões ontológicas e fiquem mais próximas de referências na pintura, no cinema e na fotografia. Ressonâncias de Edward Hopper, Max Ernst, Alfred Stieglitz, Brassai e Federico Fellini. Coincidências à parte, são artistas que vivenciaram em sua arte a grande guerra e a transformaram em repositório de suas angústias. A arte deve – para se tornar efetiva – ser imaginada, já dizia o escritor Julian Barnes. Só assim ela é capaz de tocar as pessoas. Para tanto, a realidade em si mesma não é capaz de provocar o suficiente: a sintaxe do trabalho deve ser redimensionada para causar efeito. Até mesmo o tal “neorrealismo” de Rossellini tinha algo de elaborado, à parte sua retórica. Paolo Ventura resume sua Commedia dell’arte reinventando pagliaccio, arlequino e soldato que, transmutados em humanos, dialogam com uma questão maior evocada pelas tristes figuras dos boulevards sem esperança, dos sonhos destruídos, das atmosferas quase lúgubres, mas impregnadas de romantismo.

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The balloon seller, 2009, Digital C-Print

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Sunday afternoon, 2009, Digital C-Print

A articulação de Ventura, antes de chegar a sua ontologia explícita, advém de outra arte. A criação material de sua galeria de modelos surge de mão virtuosa: seus pequenos bonecos são obras de arte em si mesmos, não apenas parte de sua ficção. Começam com o planejamento de sua estrutura em desenho. Depois, o artista busca em brechós e bricabraques as peças para sua construção. Faz dezenas de polaroides até se satisfazer. Só a partir desta longa via experimentada surge a imagem final. Essas imagens, porém, de maneira arguta, não nos deixam localizar um peculiar trajeto, onde ele começa ou onde ele termina. Não há por que revelar um processo lógico, nem este condiciona sua obra. O que percebemos de imediato é a quantidade de relatos ali expostos e sobrepostos. Natural, pois Ventura estudou na Accademia di Belle Arti di Brera, em Milão. O prédio da escola, ou melhor, o palazzo, cuja construção remonta a 1572, começou a funcionar como academia de arte em 1776, sobrevivendo ao romantismo e à vanguarda europeia, bem como às duas grandes guerras, no ensino de arquitetura, pintura e escultura. A arte não dispensa as boas referências; no entanto, estas não são suficientes para seu conforto. É necessário ir além disso na expansão de seu vocabulário, na superação de seus arquétipos, para que elas se tornem uma retaguarda segura de elaboração conceitual, assim como fizeram Joel

Peter-Witkin ou Vik Muniz sobre pinturas famosas, ou Cindy Sherman e Duane Michaels em suas releituras existenciais. Parte deste espectro, que abarca uma imagem híbidra em seu ludismo e historicismo, dá-se em sua imediatada assimilação. Imbuída de conceitos mais profundos, manipulados por Ventura de modo a que a superfície seja mais vibrante. Aquilo que Avedon declarava, quando queria dizer que suas imagens não penetravam sob a pele de seus retratados... No entanto, para bom entendedor, suas imagens, como as de Paolo Ventura, dizem tudo assim mesmo.

Juan Esteves é fotógrafo, crítico e articulista de várias publicações, com trabalhos publicados na França, Espanha, Inglaterra, Itália, Alemanha, Holanda, Dinamarca, Japão e China, entre outros países. É autor dos livros 55 portraits (D’Lippi Editorial, 2000), São Paulo en mouvement (Édition Autrement, 2005) e Presença (Ed. Terceito Nome, 2006) e participa de mais de cem livros no Brasil e no exterior. Possui obras nos acervos do MASP, MAM, Pinacoteca do Estado e Musée d’Eliseux, entre outros. Paolo Ventura nasceu em Milão, em 1968, e formou-se na Accademia di Belle Arti di Breta. Participou de inúmeras exposições individuais e coletivas dentro e fora da Itália, entre elas, na Hasted Hunt Kraeuter Gallery, Nova Iorque; na Galerie Camera Obscura, Paris; no Central Exhibition Hall, Moscou; na M+B Gallery, Londres; na Interalla Gallery, Seul; no Itaú Cultural, São Paulo. Atualmente vive e trabalha em Nova Iorque e é representado, em São Paulo, pela Galeria de Babel.

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G U S TAVO

M O U R A

Do Reino Encantado, 1987


D O R E I N O E N C A N TA D O Ari a n o S u a s s u n a Nos meus momentos mais ensolarados de devaneio, o próprio Mundo me aparece como uma larga estrada sertaneja, um Tabuleiro seco e empoeirado, onde, por entre pedras, cactos e espinhos, desfila o cortejo luminoso e obscuro dos humanos-Reis, valetes, Rainhas, cavalos, torres, Coringas, Damas, peninchas, Bispos, ases e Peões. Todo este meu Castelo e os acontecimentos que nele sucedem para sempre me aparecem com o elemento festivo e sangrento dos sonhos, como a encenação de um espetáculo dos que dávamos em nosso Circo, com a dança do chão, a do sol e a do subterrâneo, ao som dos cantos dementes e obscenos entoados por minha Musa macha-e-fêmea, a Gaviã do Carcará, que invoquei e invoco a cada instante, Musa da vida e da morte, com a face saturnal, sombria e desértica, com a face lunar do sonho e do sangue, e com a face ensolarada e gargalheira do real. Por outro lado, eu sabia que tudo aquilo sucede é dentro do meu sangue e da minha cabeça, da minha “memória”, onde havia um estrado e uma cortina que, no momento em que se fechasse definitivamente, acabaria o espetáculo, aquele sonho glorioso e grotesco, cheio de rosnados e clarins, de farrapos e mantos de ouro, sujo e embandeirado. Ou, como dizia um cantador, num “folheto”:

Sabe o Rei que vive um Sonho pois, aqui, de nada é Dono, que nós surgimos do Nada, e a Vida acaba num Sono, pois a Morte é nosso Emblema e a Sepultura é seu Trono!

Reflexões de D. Pedro Dinis Quaderna Romance da Pedra do Reino Folheto 36, “O gênio da raça e o Cantador da Borborema” Ariano Suassuna

Gustavo Moura. Nascido na capital paraibana, em março de 1960. Fotografa desde o início dos anos 1980, transitando entre o documental e o autoral. Em sua trajetória, ganhou evidência a atenção ao universo ambiental e cultural do Nordeste brasileiro. Daí surgiram várias publicações, como o livro Imaginário (Editora Tempo d’Imagem, 2000) e o 1º Caderno da fotografia brasileira (sobre a Guerra de Canudos), publicado pelo Instituto Moreira Salles. Seu envolvimento com esse universo temático foi ampliado quando da realização do projeto “Do Reino Encantado”, resultando em exposição e livro nos quais aborda o universo da vida e obra do escritor Ariano Suassuna. Gustavo Moura tem fotografias na coleção Pirelli/MASP, Museu da Imagem e do Som – SP, Instituto Moreira Salles e Coleção FNAC/Brasil. Ariano Suassuna, 1927, Paraíba, é escritor renomado, membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia Paraibana de Letras. Entre as obras mais conhecidas de sua autoria, estão O Auto da Compadecida (medalha de ouro pela Associação Brasileira de Críticos Teatrais, com tradução em cinco idiomas), O casamento Suspeitoso, O santo e a porca, Romance d ’A Pedra do Reino e Farsa da Boa Preguiça. Foi professor de Teoria do Teatro, Estética e Literatura Brasileira no atual Centro de Artes e Comunicação da UFPE, diretor do Departamento de Extensão Cultural da Universidade Federal de Pernambuco e professor de Filosofia da Cultura no CFCH, além de ocupar os cargos de diretor do Setor de Cultura do Serviço Social da Indústria – Departamento Regional de Pernambuco (1956 a 1960) e de secretário de Educação e Cultura do Recife (1975 a 1978). Atualmente, dedica-se a um novo romance, com o qual pretende concluir a trilogia iniciada com A Pedra do Reino e interrompida com O Rei Degolado.

Do Reino Encantado, 1986

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Do Reino Encantado, 1995


Navios de guerra, madeira, tecido, metal, linha e plástico, 139x126cm. Foto: Rodrigo Lopes

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B I S P O D O R O S Á R I O

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Abajour, madeira, plástico, tecido, metal, vidro, espelho, alumínio, borracha e papel, 194x74x30cm. Foto: Rodrigo Lopes

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Luvas de operário – Vagão de espera, madeira, cal, metal, tecido, plástico, papel e linha, 77x52x94cm. Foto: Rodrigo Lopes

LIBERDADE E DESAPEGO F l ávi a C o rp a s Dezoito de maio de 1980. Era um domingo. Subitamente, o olhar do crítico de arte Frederico Morais é capturado por uma imagem da TV: um homem bordando em meio ao caos de um hospital psiquiátrico, no Rio de Janeiro. “Fiquei muito impressionado porque [é raro], no meio daquelas cenas todas (...) uma pessoa fazendo um trabalho que tem tradição de delicadeza, que é o bordado”. Dois anos mais tarde, vendo o filme O prisioneiro da passagem, do psicanalista e fotógrafo Hugo Denizart, o crítico se depara, novamente, com aquele homem que bordava: Arthur Bispo do Rosário, personagem principal do documentário de Denizart. Desse encontro deriva a primeira participação do artista em uma exposição, uma coletiva no MAM do Rio de Janeiro, onde seus estandartes são exibidos. Apenas sete anos depois, Bispo do Rosário falece, aos 80 anos, vítima de infarto. No mesmo ano, 1989, Frederico

Morais faz a curadoria e organiza a primeira exposição individual do artista, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro. A exposição é vista por muitos e causa verdadeiro deslumbramento, impacto e inquietação no universo da arte.

Boltanski. Para ampliar a discussão, teóricos também foram invocados, como Gilles Deleuze, Michel Foucault, Jean Baudrillard, Roland Barthes, entre outros. Além disso, estabeleceram-se paralelos com a pop arte, a arte cinética e arte povera.

Diferente da exposição de 1982, na qual Bispo dividia a cena com outros sujeitos socialmente excluídos, orientando a discussão para a necessidade de problematizar os motivos que levam tais produções a permanecerem à parte do circuito oficial da arte, a exposição de 1989 provoca outros desdobramentos: a partir dela serão produzidas as mais distintas visões e análises estéticas sobre a obra do artista.

Sabemos que Bispo do Rosário não possuía tais referências. Sua produção desdobrou-se à margem das questões, teorizações e transformações do campo formal da arte. Nada disso impediu, porém, o diálogo entre sua obra e a arte contemporânea.

Muito já se escreveu sobre Bispo do Rosário desde então. Sob diferentes aspectos, e visando circunscrever a discussão ao campo estético, propuseram-se diálogos entre Bispo do Rosário e outros artistas, tais como Hélio Oiticica, Marcel Duchamp, Claes Oldenburg, Louise Bourgeois e Christian

Contudo, tal diálogo não flui por águas calmas: há pontos de tensão. Alguns defendem a produção de Bispo do Rosário como arte, enquanto outros a negam. Essa segunda vertente baseia-se em argumentos que, por mais que pareçam distintos, referem-se sempre aos mesmos fatos: Bispo era louco e, além disso, não tinha a intenção de fazer arte.

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Cata-vento, madeira, metal, plástico, acetato, linha e borracha, 110x60x27cm. Foto: Rodrigo Lopes.

A definição do que é ou não é arte deve ser pensada

Bispo do Rosário desfiava uniformes para tecer seus

exclusivamente a partir da condição existencial do artista? Está

trabalhos. Desconstruía e reconstruía. Bela metáfora para

necessariamente excluída do campo da arte toda produção

pensar no que ele, mesmo sem querer, preparou para o

que não corresponda ao corpus conceitual da arte? E mais:

debate sobre a natureza da obra de arte.

diante das obras vistas aqui, podem ainda restar dúvidas quanto ao valor artístico do trabalho de Bispo do Rosário?

A obra deste artista exige liberdade e desapego para ser pensada. É preciso abrir mão das metodologias e

Preferimos concordar com Paulo Herkenhoff, em Arthur

dos argumentos de costume para, justamente a partir

Bispo do Rosário – Século XX, que afirma ser desnecessário

daquilo que surge como diferença, especificidade e

buscar na história da arte ocidental o argumento que

recusa, poder pensá-la como obra de arte. Não se trata,

defina a obra de Bispo do Rosário como arte. Longe, porém,

portanto, de negar a loucura de Bispo do Rosário como

de negar paralelos com outros artistas ou com teorias

parte de sua vida, tampouco de utilizar a loucura para

estéticas, o que Herkenhoff propõe é uma outra forma de

justificar a obra, mas sim de marcar a potência e o

aproximação, estabelecida a partir da própria lógica da

valor artístico de Bispo, considerando que sua loucura

obra, já que, para ele, “o artista demonstra consistência

não conseguiu eclipsar sua arte e que esta se sustenta a

formal e construiu um universo pessoal”.

partir de si mesma.

Flavia Corpas é curadora independente, psicanalista e doutoranda em Psicologia Clínica (Psicanálise: Clínica e Cultura), pela PUC/ RJ, onde pesquisa a obra de Bispo do Rosário. Atualmente, dirige o longa documentário Descobrindo Bispo do Rosário, em fase de finalização. Trabalhou, entre 2005 e 2008, no Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, onde coordenou a Escola Livre de Artes Visuais, produziu e montou exposições, além de ter exercido a função de courrier da obra de Bispo do Rosário em exposições nacionais e internacionais.

As imagens foram gentilmente cedidas pelo Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira.

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Manto da Apresentação, tecido, linha, papel e metal, 118,5x141,2cm. Foto: Rodrigo Lopes

Arthur Bispo do Rosário nasceu em Japaratuba, interior de Sergipe, sendo incerto o ano de seu nascimento: 1909 ou 1911. Morreu em 1989, na antiga Colônia Juliano Moreira, hospício onde esteve internado, desde 1939, sob o diagnóstico de esquizofrenia-paranóide. Entre os anos de 1940 e 1960, viveu fora da Colônia, desempenhando diversas atividades profissionais. Em 1982, suas obras exibidas no MAM/RJ. Em 1989, teve a primeira exposição individual, póstuma, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro. Desde então, a obra de Bispo do Rosário tem participado de exposições nacionais e internacionais, como a 46ª Bienal de Veneza (1995) e a Bienal de Arte de Valência (2007). No Brasil, suas obras já foram expostas no Museu de Arte da Pampulha/MG (1991), no MAC/USP (1991), no MAM/RJ (1993), no Museu Afro-Brasil (2004) e no Museu de Belas Artes/RJ (2005). Quanto às exposições internacionais: Kulturhuset/Suécia (1991), Centro Cultural Arte Contemporâneo/México (1997), Solomon R. Guggenheim Museum/Estados Unidos (2001), Galerie Nationale du Jeu de Paume/França (2003), Whitechapel Gallery/Inglaterra (2006), Museu de Arte Moderna de Dublim/Irlanda (2006), Oriel Mostyn Gallery/País de Gales (2006/2007), Compton Verney/Inglaterra (2008) e Haus der Kulturen der Welt/Alemanha (2008/2009). O conjunto da obra de Bispo do Rosário encontra-se sob a guarda do Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira (Rio de Janeiro), no Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea.

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M A R K

R Y D E N

Incarnation, 2009, óleo sobre painel, 182,9x121,9cm

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The grinder, 2010, óleo sobre tela, 95,3x64,8cm

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Virgin and child, 2010, óleo sobre tela, 61x45,7cm

INOCÊNCIA SOMBRIA À primeira vista o trabalho de Ryden parece espelhar a fascinação surrealista pelo subconsciente e pela memória coletiva. No entanto, Ryden transcende as estratégias surrealistas iniciais ao, conscientemente, escolher temas carregados de conotações culturais. Seus bichinhos de pelúcia fofinhos, megeras orvalhadas, símbolos alquímicos, emblemas religiosos, paisagens primordiais e cortes de carne desafiam sua audiência não necessariamente por causa da sua estranheza, mas pela introdução de sua reconfortante familiaridade cultural em circunstâncias desestabilizadoras. Os espectadores são inicialmente atraídos pela reconfortante beleza das referências que Ryden faz à cultura pop, logo desafiados por suas circunstâncias, e, finalmente, transportados para a intenção final do artista – um mundo onde as criaturas falam de um espaço de honestidade infantil sobre o estado da humanidade e nossas relações com nós mesmos, com cada um de nós e com nosso passado. Evidentemente pleno de referências clássicas, o trabalho de Ryden não é inspirado apenas na história recente, mas também em trabalhos de antigos mestres. Entre suas influências estão Bosch, Bruegel e Ingres, com generosas doses de Bouguereau e a pintura religiosa italiana e espanhola.

Durante a última década, este casamento entre acessibilidade, habilidade manual e técnica com relevância social, ressonância emocional e referência cultural alçou Ryden além de suas raízes para a atenção de museus, críticos e colecionadores sérios. O trabalho de Ryden tem sido exibido em museus e galerias ao redor do mundo, incluindo a recente retrospectiva Wondertoonel no Frye Museum of Art, em Seattle, e no Pasadena Museum of California Art. Mark Ryden atualmente vive e trabalha em Los Angeles, onde pinta lenta e alegremente entre suas inúmeras coleções de tranqueiras, estátuas, esqueletos, livros, pinturas e brinquedos velhos.

Mark Ryden nasceu em Medford, Oregon, e se formou em Belas Artes no Art Center College of Design, em Pasadena, em 1987. Suas recentes exposições incluem a retrospectiva de metade de carreira Wondertoonel, no Frye Art Museum, em Seattle, e no Pasadena Museum of California Art (2004-2005); The snow yak na galeria Tomio Koyama, no Japão (2009); Tree show na galeria Michael Kohn, em Los Angeles (2007); Bunnies and bees na Grand Central Art Center, em Santa Ana, CA (2002); Amalgamation na galeria Outre, em Melbourne, Austrália (2001); e The meat show na galeria Mendenhall, em Pasadena (1998). Atualmente vive e trabalha em Los Angeles.

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The piano player, 2010, óleo sobre tela, 50,8x76,2cm

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D I M I T R I

L E E

PERMANÊNCIA E TRANSITORIEDADE L u a Mo ren a C ru z As imagens aqui apresentadas, do fotógrafo Dimitri Lee, convidam a um olhar atento e investigador. No seu trabalho Salitreiras, os espaços vazios, sem pessoas, sem movimento, e a decadência das construções mostram uma grande catástrofe: a catástrofe do abandono. Essas fotografias grandiosas, cheias de significado e memórias, retratam a ausência, evocam a presença e criam um extracampo de imaginação para além do quadro. Existe um antes e um depois daquele momento em que essa imagem, quase um fragmento não familiar do tempo e do espaço, se expande e com ela a nossa imaginação. Conseguimos imaginar a vida ali, um dia de sol, pessoas na piscina. Fotografias que retratam a paisagem alterada pelo homem e, sobretudo, pelo tempo; nelas, vemos a permanência selvagem das construções, enquanto observamos, também, tudo isso ruir de maneira lenta e se perder de maneira incontrolável.

Dessa forma, somos convidados a olhar mais e mais e, nesse prolongamento da visualização, vemos a história da passagem do tempo, que, contraditoriamente, parece estar totalmente paralisado. Cada uma dessas imagens é uma paisagem silenciosa, um mapa que nos guia pela história da construção daquele lugar e de seu lento processo de destruição. Diante das fotografias de Dimitri Lee, temos a sensação de proximidade com algo tão distante, algo que aproxima sem deixar de ser misterioso. Seu uso preciso da luz e do enquadramento, sua riqueza formal de detalhes, típica da tradição do grande formato, somam-se à sua sensibilidade e à sua persistência em explorar durante tanto tempo o mesmo ambiente, para a construção estilística e conceitual de sua obra. Dimitri Lee nos presenteia com imagens belíssimas, delicadas e convidativas, que nos fazem parar e refletir sobre a permanência e a transitoriedade.

Torre, 2006

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Lua Morena Cruz nasceu em 1985, em Recife. É formada em Comunicação Social e estudante de pós-graduação em fotografia (SENAC-SP). Colabora com o fotógrafo Felipe Russo em seus projetos e no blog sobre fotografia intitulado “modobulb”. Atualmente, participa do “Projeto Incubadora”, de compartilhamento de processos de criação e crítica de fotografia. Dimitri Lee. Autodidata, começa a carreira trabalhando como assistente nos estúdios da Editora Abril, em 1978, onde fica até 1980. Em 1981, abre estúdio próprio e começa a trabalhar com publicidade, atendendo às principais agências do Brasil. Em 2000, começa a utilizar o formato panorâmico em projetos pessoais. Criou, em parceria com a Apple Computers, em 1995, o primeiro provedor de internet exclusivamente baseado em Macintosh no Brasil. Embora tenha muita experiência em informática, faz reservas a seu uso em fotografia, preferindo usar filme de grande formato.

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Parede descascada, 2006

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R U U D

VA N

E M P E L

World 4, 2005, cibacromo, dibond, plexiglass, 84x60cm. Cortesia Flatland Gallery Utrecht-Paris

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Queen Sandwich, 2009, baryta fine art paper, 100x100 e 135x135cm 33


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World 5, 2005, cibacromo, dibond, plexiglass, 105x150cm. Cortesia Flatland Gallery Utrecht-Paris

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World 30, 2008, cibacromo, dibond, plexiglass, 118,9x84,1cm. Cortesia Flatland Gallery Utrecht-Paris

M U N D O PA R A D I S Í A C O F i o n a va n S c h en del O artista visual holandês Ruud van Empel (1958) é um dos pioneiros da foto-arte, mesclando o uso da mídia da fotografia com tecnologia de computação de uma forma quase sem precedentes. Ao referirem-se a conceitos imemoriais de virtude e inocência, seus trabalhos invocam um vívido diálogo entre história, história da arte, preconceito e autorreconhecimento. Ao mesmo tempo, sua incrível habilidade com técnicas de computação posa um constante desafio à nossa sociedade atual. Desta forma, Ruud van Empel abre possibilidades desconhecidas e novos caminhos para a arte. De milhares de fragmentos fotográficos, Ruud van Empel compõe novas imagens que parecem absolutamente naturais e fiéis à natureza, mas que formam um mundo paradisíaco que nunca existiu desse modo. Esse mundo paradisíaco, em grande parte uma área de floresta banhada pelo sol e na qual cada folha parece ser iluminada individualmente, onde detalhes reluzentes como pingos d’água, lagartas, borboletas e flores proveem uma atmosfera encantadora e atraente, é densamente habitado por pequenas crianças e adolescentes sonhadores. Eles posam para a câmera de boa vontade, aparentemente sem emoção, e, em geral, vestidos com decência: os meninos com jaquetas xadrezes, as meninas com vestidos de gola alta e laços na cintura. Frequentemente, crianças de olhos arregalados contemplam o espectador em uma pose um tanto defensiva; às vezes olham através dele, perdidos em pensamentos. As crianças são tão “reais” quanto seu ambiente paradisíaco. Elas também foram montadas por inúmeros detalhes, e elaboradas digitalmente para gerar uma imagem ideal. “O fato de muitas das crianças em suas composições terem a pele escura é uma faceta que não pode ser ignorada”, escreveu o crítico de arte Jan Baptist Bedaux em 2007: “Embora seja evidente que a cor de pele da criança não é relevante, a iconografia da criança inocente está tradicionalmente ligada à imagem de uma criança ‘branca’. Os primeiros exemplos disso datam do

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início do século XVII, em retratos nos quais crianças são representadas em cenários pastoris idealizados. Fugindo da iconografia canônica ao atribuir à criança uma pele escura, Van Empel não intencionalmente assume uma postura política. Afinal de contas, esta criança ainda é alvo de preconceito e sua inocência não é sempre reconhecida por todos como algo evidente”. Para Van Empel, todas as crianças por ele retratadas simbolizam a inocência num mesmo grau, e este é um dos mais importantes temas do seu trabalho. Mas a inocência é sempre vulnerável, e o anseio pelo paraíso é uma ilusão humana comum que mais cedo ou mais tarde será estilhaçada. Apesar de sua grande beleza, estes trabalhos estão longe de serem inequívocos; há algo de perturbador neles. O que aqui ainda é real e o que não é? “As crianças de olhos arregalados nas fotografias de Ruud van Empel estão num reino da natureza prístino, mas sinistro. Há algo escondido atrás de cada árvore e sob cada folha. Este novo Éden não é tão distante do mundo real como talvez gostaríamos que fosse”, escreve Deborah Klochko. Entre as principais séries criadas por Van Empel nos últimos anos incluem-se Mundo, com uma maioria de crianças negras posando entre a folhagem ou olhando diretamente para o espectador; Lua, como sua versão noturna; Vênus, com nus femininos em poses graciosas, e Aurora, onde meninas deitam-se entre flores e outras plantas, com o olhar perdido. Estas séries, que têm sido exibidas internacionalmente com grande sucesso nos últimos anos, foram precedidas por uma série surrealista intitulada O escritório, na qual desde 1995, Van Empel começou a desenvolver sua técnica digital. Com sua série Souvenir, Van Empel adicionou um novo capítulo à sua obra. Nesta série, ele permite um olhar em sua própria juventude e investiga temas, tais como memória e inocência, por meio de imagens que revelam detalhes mais pessoais.

Fiona van Schendel. Atual responsável pelo agenciamento editorial da Flatland Gallery, Fiona van Schendel trabalhou no Instituto Internacional de História Social como doutoranda em Economia e História Social e como historiadora. Publicou um estudo de caso sobre o cafezal de Djolotigo entre 1875 e 1898 na atual Indonésia. Em parceria com professor doutor J. Peet, ela contribuiu como pesquisadora para a publicação da história do maior banco da Holanda voltado para a sustentabilidade, o Banco ASN. Desde então, trabalha como jornalista/escritora independente sobre arte, design gráfico e assuntos relativos a este mercado. Fiona van Schendel possui Mestrado em História e se formou na Universidade de Amsterdã. Ruud van Empel (1958, Breda) vive e trabalha em Amsterdã, Holanda. Depois de se formar em 1981 pela Academia de Belas Artes de Sin Joost, em Breda, Van Empel foi nacionalmente reconhecido como designer gráfico. Durante sua carreira, ele simultaneamente começou a explorar e aprofundar seu próprio estilo artístico pelo qual recebeu os importantes prêmios Charlotte Köhlerprize, em 1993, e H. N. Werkmanprize, em 2001. Desde a década de 1990, Van Empel tem participado de várias exposições coletivas e individuais, como, por exemplo, no Museu Groninger, no Museu Noord Brabants em Hertogenbosch, e no Museu Valkhof, Nijmegen. Em 2011, o Groninger Museum fará uma retrospectiva do seu trabalho, e tal exposição irá para os Estados Unidos. Entre as exposições coletivas estão aquelas no George Eastman House (EUA), no Chelsea Art Museum (Nova Iorque, EUA), no Pinchuk Art Center (Kiev, Ucrânia), no MoPA-Museum of Photographic Arts (San Diego) e em 2008 no Museum Kunst Palest (Dusseldorf, Alemanha), intitulada Diana and Actaeon, the forbidden glimpse of the naked body, no qual o trabalho de Van Empel foi exposto ao lado de obras-primas de Rembrandt, Mapplethorpe e Picasso. Atualmente seu trabalho pode ser visto na maioria dos países europeus, assim como na Coreia, na Rússia, no Japão e nos Estados Unidos. Van Empel participou das seguintes bienais: Quatrième Biennale Internationale de la Photographie et des Arts Visuels, Liège, Bélgica, em 2009 e Photography Biennale, House of Photography, em Moscou, em 2006. Dentre as muitas coleções com seus trabalhos, incluem-se: Sir Elton John Collection, Atlanta, EUA e Londres; FNAC Collection, Paris, França; Arad Collection, Londres; MoPA Museum of Photographic Arts, San Diego, Califórnia, EUA; Groninger Museum, Holanda; David Roberts Collection, Londres e Des Moines Art Center, Iowa, EUA.


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Boy & Girl, 2008, cibacromo, dibond, plexiglass, 242x170cm. Cortesia Flatland Gallery Utrecht-Paris

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World 2, 2005, cibacromo, dibond, plexiglass, 118,9x84,1cm. Cortesia Flatland Gallery Utrecht-Paris

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Galeria, 2005, acrílica sobre colagem em madeira, 280x440cm


DA N I E L

S E N I S E


34-01 38 Av LIC – Out, 2001, acrílica sobre colagem em madeira, 240x190cm

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O CHÃO ANDALUZ Ar th u r O m a r Esta série de pinturas de Daniel Senise parte do chão. Vamos esfregar o olho nesse chão. Agachar a atenção sobre ele. E andar. Um chão para a passagem do olhar. O chão é o maior lugar do mundo. Tudo que existe no mundo cabe no chão. Mesmo as montanhas têm o seu chão, ainda que invisível. O chão se confunde com a superfície da terra. Quando imaginamos a superfície da terra como um chão sem fim, é porque sentimos que o homem está em casa em qualquer lugar. O chão é quando a ideia da casa se projeta sobre tudo. Super-Fície. A película da terra. A produção desta obra se dá numa sequência de fases. Desde o reconhecimento do chão horizontal, o plano do piso, onde o quadro começa sua história, até quando ele é erguido, assumindo a sua verticalidade definitiva. A noção de Imagem encontra aqui uma redefinição sem precedentes. Vejamos como funciona o dispositivo. A tela em branco, puro tecido, é revestida por uma espécie de cola com pigmentos e aplicada diretamente sobre o chão, como uma lente de contato, ou um sudário arquitetônico. Exerce-se pressão sobre essa tela, para que ela adquira intimidade absoluta com o chão que será o seu destino. Quando retirada, a tela traz consigo a poeira invisível do chão. Marcas, sulcos, restos, imperfeições, desgastes, derrapagens, frutos do uso, do percurso, do tráfego humano, e todos os seus acasos, que largaram ali microíndices materiais de um tempo que já é pura memória. Essa tela então é montada sobre um chassis de madeira, que a torna plana e impecável. Forma-se um grande quadro de imprevisibilidades. Pintura abstrata, sem intervenção de mão humana. Pintura “aplicada”, no sentido literal do termo. O processo continua. Outros fragmentos de tela, com flagrantes do mesmo chão, são recortados, a partir de linhas desenhadas, que correspondem a linhas de fuga, sugeridas pelas das paredes do próprio ambiente original onde se localiza aquele chão, que pode ser a sala de um museu, talvez a sala mesma onde a tela vai ser exibida ou, às vezes, o próprio quarto do artista. Esses fragmentos de tela são colados sobre a tela de fundo, de tal maneira que se fundem com ela. Temos uma cena. O conjunto forma uma imagem ou um desenho, quase uma fotografia decalcada, desse ambiente. O que antes era abstração informal e indeterminada, composta de manchas casuais, caóticas e insignificantes, agora se torna a base para uma inesperada recuperação da figura. Basta apurar a vista. Vemos, agora, a representação completa do espaço do qual aquele chão era parte. As paredes, o teto e todos os detalhes são feitos a partir dos acidentes do próprio chão. Não é evidentemente uma fotografia típica. Mas talvez uma fotografia monotípica, porque é pura pintura. O chão, aqui, se transforma numa Ideia, como o Amor é uma ideia num soneto de Michelângelo. Senise neoplatonista. Eu vi pela primeira vez esses quadros no ateliê de Daniel Senise ainda postos sobre cavaletes, horizontais, como se o chão já tivesse subido a um metro de altura, já pairando acima do nível do piso, mas ainda se preparando para executar a rotação que o colocaria em posição ereta. Solenidade.

Não sei por que me fixo nesse instante em que o que era horizontal começa a girar e mudar de orientação. Como um ato inaugural, um gesto épico. Os quadros de Daniel são grandes, precisam de pelo menos duas pessoas para serem erguidos, pequena multidão. Giro teatral, que deveria ser conservado para sempre na memória perceptiva dessas obras, pois com ele se dá a transmutação verdadeira em busca da fase final. Monumentalidade feita com poeira. Emanação. Devemos agora percorrer, com os olhos, esse plano vertical chamado quadro, que nos oferece Daniel Senise. Percorrer o plano vertical, confundido com a parede, consciente da sua horizontalidade originária de chão. Arte pedestre, à maneira de uma Arte rupestre. Nesse percurso, não é necessário movimentar muito o olho. Ao contrário, o gozo vem de fixá-lo suavemente num ponto central. A poeira, captada pela cola, vibra. O olhar começa a penetrar numa profundidade improvável. Um e outro, o chão e o seu quadro alevantado do chão, formam a cruz ortogonal. E estabelecem, num lugar inédito da mente, os eixos puros da perspectiva. E aquela textura. Essa cor, essas linhas, essa cena… Estaríamos diante de um mural sem restauro do pré-renascimento?

Mas para qualquer prova de contato é necessária a luz. Só que, aqui, não se trata de uma luz de ver, mas de uma luz de andar. Daí, o nome que proponho, O chão andaluz. No filme O cão andaluz, de Luis Buñuel, uma navalha corta transversalmente o globo ocular, produzindo um gesto radical. Ela penetra no olho, e o rasga, expondo as entranhas. No Chão andaluz de Daniel Senise, temos também uma navalha. Invisível. Só que agora, a navalha vai cortando num outro sentido, paralelo à superfície, tocando de leve o objeto. Ela retira a película das coisas, descolando do chão apenas a superfície. A isso se dá o nome de Pintura. A película como um negativo do chão. Aquilo que pairava sobre ele, na infinitesimalidade de uma distância próxima de zero. A metáfora se amplia, até a desmesura, e o circuito de operações se fecha. Não se trata apenas da ideia de percurso, de andar, de caminho. Mas de tudo aquilo que a força de gravidade causou à humanidade em um milhão de anos. Nunca uma pintura foi tão imediata, tão colada ao real, ao instante e, ao mesmo tempo, trabalhou com temporalidades tão longas. Memória e Imemória.

[Texto publicado no catálogo da exposição de Daniel Senise na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, em 2001.]

A história da pintura acelera a imaginação. Diante daquele chão vertical, nada nos resta senão continuar a perceber.

O chão andaluz, de Arthur Omar, datado de 2001, foi escrito para o catálogo publicado em ocasião da exposição de Daniel Senise nas cavalariças do Parque Lage.

A pintura perspectiva sempre foi, basicamente, o chão. A perspectiva nasceu de uma reflexão sobre o chão prérenascentista, a ladrilhagem das igrejas e os pátios internos. Era o chão que pronunciava melhor a palavra lugar. Diante do chão, mesmo as paredes não passavam de cenografia. O chão definia a forma informal do espaço. O chão como tabuleiro, como quadriculado abstrato, como display das coordenadas. O chão como o limite e o lugar mesmo onde iria ser montada a cena. O chão era o próprio lugar. Um chão teórico, limpo, asséptico, imaterial, gerado em placenta geométrica.

As obras aqui mostradas compreendem seu período produtivo de 2001 até 2010 e, de algum modo, lidam com os fundamentos do texto, demonstrando, quase dez anos depois, a atualidade e profundidade do tema abordado por Arthur Omar na obra de Daniel Senise.

Mas em Senise temos outro chão, onde se inscreve uma outra radicalidade da experiência corpórea. Percepção visual, literalmente pós-retiniana, não sem a necessária dose de ironia. Manchas de poeira, normalmente, são objetos não significativos. Em termos materiais, são como o Significante do Não Significante. A arte contemporânea, sabemos, persegue o automatismo dessa não significância à exaustão. Mas Daniel Senise, aqui, dá outra volta no parafuso, ou, melhor, um passo acima. Os rastros e manchas no próprio chão, e todas as suas “figuras”, surgem por contato. Como em fotografia, temos uma cópia de contato. O chão oferece uma autêntica contact print com a coisa. O contato de pés, objetos arrastados, deposições variadas, que se deram ao longo do tempo. Há uma história para cada chão, e ali a própria ideia de passagem, de transitoriedade e, ao mesmo tempo, sendo chão, de permanência. E se o chão é uma folha de contato “fotográfico”, as telas de Daniel Senise recobrem o chão como uma contact print dessa contact print, abrindo abismos sucessivos e imprevistos da ideia de printagem. Ou a pintura como “Pintagem”.

Arthur Omar é um artista brasileiro múltiplo, com presença de ponta em várias áreas da produção artística contemporânea. Formado em antropologia e etnografia, Arthur Omar desenvolveu novos métodos de antropologia visual, tanto em seus filmes documentários epistemológicos dos anos 1970 como em seus livros recentes sobre Carnaval e Amazônia, nos quais a busca científica se realiza por intermédio de uma intensificação estética do material. Trabalha com cinema, vídeo, fotografia, instalações, música, poesia, desenho, além de ensaios e reflexões teóricas sobre o processo de criação e a natureza da imagem. Atualmente, prepara um livro com mais de quatrocentas imagens sobre sua experiência na Ásia Central, a ser lançado no início de 2008. Daniel Senise nasceu em 1955, no Rio de Janeiro. Em 1980, formou-se em engenharia civil pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, tendo ingressado na Escola de Artes Visuais do Parque Lage no ano seguinte, onde participou de cursos livres até 1983. Foi professor na mesma Escola de 1985 a 1996. Desde os anos 1980, o artista vem participando de mostras coletivas, como a Bienal de São Paulo; a Bienal de La Habana, em Cuba; a Bienal de Veneza; a Bienal de Liverpool; a Trienal de Nova Delhi; de exposições no MASP e no MAM de São Paulo; no Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris; no MOMA, em Nova Iorque; no Centre Georges Pompidou, em Paris; no Museu Ludwig, em Colônia, Alemanha. Tem exposto individualmente em museus e galerias no Brasil e no exterior, entre eles, MAM do Rio de Janeiro; MAC de Niterói; Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba; Museum of Contemporary Art, em Chicago; Museo de Arte Contemporáneo, Monterrey, México; Galeria Thomas Cohn Arte Contemporânea, no Rio de Janeiro; Ramis Barquet Gallery e Charles Cowley Gallery, em Nova Iorque; Michel Vidal, em Paris; Galleri Engström, em Estocolmo; Galeria Camargo Vilaça, em São Paulo; Pulitzer Art Gallery, em Amsterdã; Diana Lowenstein Fine Arts, em Miami; Galeria Silvia Cintra, no Rio de Janeiro; Galeria Vermelho, em São Paulo e Galeria Graça Brandão, em Lisboa. Atualmente, Daniel Senise vive e trabalha no Rio de Janeiro.

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Rangoon, 1994, Burma


S T E V E

M C C U R R Y


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A mother and child beg for alms through a taxi window during the monsoon, 1993, Bombaim, Índia

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Duckweed carpets the water in a girl’s front yard at Bojonegoro, 1983, Java, Indonésia

LARANJAS, PULSÕES E VERMELHOS RUBROS E der C h i o detto (Afeganistão, 2003) Cinza. A roupa puída, o olhar absorto e o carro calcinado: cinza. A poeira que cobre o chão, o sapato, o rosto, as mãos em flagrante timidez: cinza. O pilar semidestruído e as placas metálicas de algo que foi e não é mais se reorganizam num arremedo de armário, igualmente cinzas. Os tantos buracos, feridas expostas, reverberam lutas, descolam a cor da superfície, revelam o que já sabemos: debaixo da cor da superfície o mundo todo é cinza. O cinza é a cor da transição da matéria. É o osso exposto, o corpo em decomposição. Cinza cadavérico. Mas há um homem. E no homem a possibilidade da revitalização, do restauro do fluxo sanguíneo no aparentemente morto. Porque nada morre, ainda que tudo sofra. E para não morrer o homem investiga cores. Um punhado de laranjas desafia o todo cinza da intolerância da guerra, da incapacidade de entendimento mínimo entre os eus, os nós e os outros. Um punhado de laranjas causa uma quebra de ritmo, uma subversão na cena. Quadrante solar. Compacto, vigoroso, capaz de desorganizar, de interromper a linearidade entediante de uma funesta história fadada a tristes fins.

(Steve, 2010) Em Steve McCurry a cor é pulsão de vida, como algo atávico que se impõe naturalmente à revelia dos processos civilizatórios, das crenças, da cultura. A cor saturada, contrastada, iluminada, arrebatada é o que

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nos une, que nos diferencia, ilude e humaniza. Como raríssimos fotógrafos da história, McCurry sabe manejar essa paleta de cores para dotar o mundo de significados mais complexos, mais humanistas. O artista reitera em seu modus operandi a filiação eterna entre fotografia e pintura. Não dentro da liturgia revisionista de um artista pictorialista, mas com a firme proposição de interrogar, no cerne da linguagem fotográfica, quais os limites da representação possíveis de se obter por intermédio de uma câmera programada para o registro desviante da realidade. Curioso que essa trama toda ocorra dentro do fotodocumentarismo, campo geralmente avesso, e por vezes cego, à ficção que sempre espreita a ilusão especular da fotografia. Ao diluir limites entre o documental, a arte e o experimentalismo, a obra de McCurry se torna fundamental no contexto contemporâneo. Oxigênio para a linguagem. Suas atmosferas ficcionais conduzem nossa percepção para uma leitura mais complexa e abrangente da saga do homem e suas vicissitudes.

(Rajasthan, Índia, 1983) Vento intenso. Areia. Aridez. Tempestade. O único abrigo possível é a união das sete mulheres. Faz-se um círculo, logo todas ficam com suas faces parcialmente protegidas. As bocas das moringas sedentas no chão também desenham dois círculos. Os tecidos voam, as árvores parecem balançar na falsa placidez estática da imagem. A composição toda se embala em movimentos elípticos: mulheres, moringas, vestidos, árvores, areia. Tudo dança. A areia, ao comando

dos intempestivos ventos, tinge mulheres, horizontes, árvores e o céu com sua tonalidade ocre. O ocre é matiz de cor que segreda a mutação de inúmeros minerais que atravessam o tempo do universo. Mas se o ocre domina a cena, quem se rebela e salta aos olhos é o vermelho rubro das vestes com as quais as mulheres se adornam, se envolvem e graciosamente se ocultam. De novo o ser e suas cores que desestabilizam e reorientam o roteiro cíclico da natureza. O homem detém a magia da criação do instante, enquanto ao criador supremo, esse ser que orquestra ventos, areia, árvores e céus monocromáticos, cabe o pano de fundo que engloba a tudo e a todos. McCurry é um construtor de atmosferas cromáticas, de instantes pelos quais a vida flui impunemente.

Eder Chiodetto é jornalista, crítico, curador e mestre em Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Autor do livro O lugar do escritor (Cosac Naify), um dos vencedores do prêmio Jabuti em 2004. Em 2009 realizou as curadorias das mostras Olhar e fingir: fotografias da Coleção M+M Auer, no MAM-SP; Henri Cartier-Bresson: fotógrafo, no SESC Pinheiros e A invenção de um mundo, no Itaú Cultural. Steve McCurry. Dois retratos de uma mesma refugiada afegã, tirados com intervalo de dezessete anos entre ambos, traduziram de forma emblemática o sofrimento de uma guerra e alçaram McCurry à condição de um dos fotodocumentaristas mais importantes da atualidade. Nascido na Filadélfia, em 1950, McCurry se formou em História e Cinema no College of Arts and Archicteture, na Pensilvânia. Fez do continente asiático o foco principal de seu trabalho.


Boy selling oranges on the street, 2003, Kabul, Afeganistão

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Boy in mid-flight, 2007, Jodhpur, Índia

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MARIANA

MANHÃES

Pisca-Piscar, 2008, 2 monitores LCD 7”, DVD players, músculos eletrônicos, circuitos eletrônicos, alto-falantes, motores e materiais diversos, 1,70x1,90x3m. Fotos: Mariana Manhães

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Liquescer (Jarro de Cristal), 2007, monitor LCD 5”, DVD player, circuitos eletrônicos, músculo eletrônico, alto-falantes, motores e materiais diversos, 70x95x65cm, coleção particular, São Paulo. Foto: Wilton Montenegro

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Dialética, 2008, 2 MP4 players, circuitos eletrônicos, motores diversos, alto-falantes, materiais diversos, 120x15x80cm. Foto: Mariana Manhães

A E S C U LT U R A V I V A D E M A R I A N A M A N H Ã E S C ri s ti n a S a l g a do Mariana Manhães é uma jovem artista que recentemente atravessou a Baía de Guanabara e trocou Niterói pelo Rio de Janeiro. Chegou a concluir o curso de Psicologia, mas foi como aluna da escultora Iole de Freitas, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (berço de algumas gerações de grandes artistas cariocas), que Manhães teve plena consciência de sua vocação artística. Na EAV, iniciaram-se, em 2004, as primeiras experiências em vídeo, nas quais minúsculos monitores mostravam objetos de porcelana – personagens desde sempre conhecidos seus, da casa de sua mãe e de sua avó – que falavam, pela voz alterada da própria artista, um idioma inventado; estremeciam e giravam sobre o próprio eixo: impossível não sorrir observando os nervosos e tremelicantes objetos, com sua fala aguda, misturada a suspiros – o incompreensível para o entendimento racional impregnado de significações para bons entendedores do indizível.

Nos primeiros trabalhos, os minimonitores eram instalados em vitrines antigas, mas a artista começou a desejar mais movimento. Com a ajuda do pai, engenheiro de telecomunicações, Mariana Manhães vem produzindo engenhocas cada vez mais complexas, nas quais os pequenos monitores se acoplam a estruturas eletrônicas. A “fala” dos bules ou açucareiros antropomorfizados, emitida pelo áudio do vídeo, é “percebida” pelo circuito eletrônico, que aciona os motores envolvidos no organismo. São obras que demandam às vezes muitos meses de pesquisas e experiências. Mariana utiliza-se de motores variados, extraídos de forno micro-ondas, ou para-brisas de automóveis, mas também podem participar dessas esculturas vivas sofisticados elementos robóticos, como o eletronic musclewire, encomendado diretamente do fabricante, nos Estados Unidos.

Cristina Salgado nasceu, vive e trabalha no Rio de Janeiro. É artista plástica, autora do livro Cristina Salgado: grande nua na poltrona vermelha (2010), Doutora em Artes Visuais pela EBA-UFRJ, professora no Instituto de Artes-UERJ e no Departamento de Artes e Design da PUC/RJ. Mariana Manhães, Niterói, 1977, vive e trabalha no Rio de Janeiro. Cursou faculdade de Psicologia na Universidade Federal Fluminense. Após a formatura, em 2001, engavetou o diploma e passou a aprofundar sua pesquisa artística na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, onde participou de cursos entre 1997 e 2006. Atualmente, é mestranda em Comunicação e Cultura na Universidade Federal do Rio de Janeiro. A partir de 2004, expõe em diversas instituições no Brasil e no exterior, como Centro Cultural Banco do Brasil (Rio de Janeiro), Itaú Cultural (São Paulo), Instituto Tomie Ohtake (São Paulo), MAM (Rio de Janeiro), MAM (Bahia), Museu Vale do Rio Doce (Vila Velha, ES), Martin-GropiusBau Museum (Berlim, Alemanha), Galerie GP+N Vallois e Natalie Seroussi (Paris), entre outras. Em 2007, realizou a individual Liquescer no Museu de Arte Contemporânea de Niterói (Niterói, Rio de Janeiro). Recebeu prêmios em diversos salões e tem sua obra representada em acervos e coleções no Brasil, França e Estados Unidos.

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Fotografia 1

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JORDI BURCH

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I pisando a ausência do limo os pés inventam caminho sob o sol que abençoa o lacrau os três homens chegariam ao destino levando as suas vestes as suas facas escondidas. havia fumo adiante no caminho e outros pés os esperavam à chegada. três sorrisos fechados uma tarde espessa desceu sobre os homens e o morro maluco. um fogo feito cinza queimou-me a mão perante o silêncio do rumo calado dos homens.

Fotografia 2

II era a estrada que vertia o homem pelo caminho era o mundo que o celebrava nas suas cores de carnaval azul ... o céu brando, lírico, livre vozeava cantigas de esperança e tons de antigamente... III sinais do sol na correnteza da viagem como presságios férteis que pelo caminho as pedras nos ofertavam - dizeres mais antigos -

Fotografia 3

outro mapas dentro da linguagem e dos afectos. bocados soltos de ocaso... On dj a ki 70

Ondjaki nasceu em Luanda, em 1977. Prosador e poeta. É membro da União dos Escritores Angolanos. Alguns livros seus foram traduzidos para francês, espanhol, italiano, alemão, inglês, sérvio e sueco. No Brasil, publicou Bom dia camaradas, Os da minha rua e AvóDezanove e o segredo do soviético. www.kazukuta.com/ondjaki


Fotografias 1, 2, 3 e 4: Nem de perto nem de longe, 2009, película de negativo em cor, impressão em jato de tinta, em papel fine art, 80x80cm. Cortesia galeria Luiz Porchat/escritório de fotografias

Jordi Burch nasceu em 1979, na cidade de Barcelona, Espanha. Formado em História da arte e fotografia pela Ar.Co, em Lisboa. Em 2006, faz a sua primeira exposição individual, Estamos juntos, na galeria Casa Fernando Pessoa em Lisboa. A partir desse ano, expõe individualmente e coletivamente em galerias como: Nara Roesler, Amor cachorro (Individual), em São Paulo; Miami Arts – Freedom Tower Art Show (coletiva) EUA; Casa Espanhola no México (coletiva); Galeria Bernardo em Lisboa (Individual); Edifício Berlaymount, a convite do Parlamento Europeu (coletiva); Festival de fotografia New Life Berlin (coletiva); Galeria P4 em Lisboa (Individual).

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Blind City, 2006, pigmento sobre papel de algodão, 60x250cm (tiragem de 5)

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R I C A R D O

VA N

S T E E N

BLIND CITY

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UMA VISÃO MUITO PESSOAL Ju l i o L a n dm a n n Ao ver estas fotos pela primeira vez, tive a impressão de estar olhando para monólitos agrupados formando uma cidade sem vida. Vejo os edifícios como pseudomorfos. São habitações revestidas pela frieza das pessoas que ali vivem. As pessoas desta cidade vivem aglomeradas, mas não se enxergam, vivem encapsuladas. É como se estivessem perto um dos outros, mas ao mesmo tempo muito distantes. Não têm olhos para os outros, são rostos sem olhos. É, enfim, uma Cidade Cega. Creio que o Ricardo, com o jogo de luzes e sombras e, sobretudo, com sua “higienização”, reduziu a cidade a monólitos esculturais, transformando-a em uma maquete surda, cega, silenciosa, enfim, estéril. Pseudomorfismo: é um processo em que um mineral ou estrutura apresenta a forma de outro (uma vez que está sendo recoberto pelo outro), mas tem composição química distinta.

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Blind City, 2006, pigmento sobre papel de algodão, 60x250cm (tiragem de 5)

Julio Landmann nasceu em 1951, vive e trabalha em São Paulo. Formou-se como bacharel em Química na Universidade de São Paulo e possui Mestrado em Administração de Empresas em Comércio Internacional/ Marketing e Finanças na Columbia University – Nova Iorque. Foi presidente da Fundação Bienal de São Paulo no biênio 1997-1998 (24ª Bienal de São Paulo e 3ª Bienal Internacional de Arquitetura). É membro integrante do conselho da Fundação Bienal de SP desde 1992, da Sociedade Amigos da Cinemateca, da diretoria da Associação Cultura Inglesa, da administração da Associação dos Amigos da Pinacoteca do Estado, do Conselho Honorífico do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, do Conselho Deliberativo do Centro Universitário Maria Antonia (CEUMA/USP), entre outros. Ricardo van Steen. Nascido em São Paulo em 1958. Cineasta e artista plástico, seu trabalho discute as vias de construção e desconstrução da memória. Integra o coletivo SX70, que só trabalha com a mídia extinta Polaroid. Dirigiu o longa-metragem Noel – Poeta da Vila, sobre a vida do compositor Noel Rosa. Principais exposições: Ricardo van Steen, Galeria Paulo Figueiredo (individual), São Paulo, 1983; Memos, Galeria Millan (individual), São Paulo, 1996; SX70, Galeria Vermelho, São Paulo, 2003; Situ/ação- Vídeo de Viagem, Paço das Artes, São Paulo, 2007.

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CATALINA BARTOLOMÉ

Cansada de cocinar, 2008, fotografia digital toma directa, 20x30cm ou 50x70cm



Higienizada, 2008, fotografia digital toma directa, 20x30cm ou 50x70cm


EU SOU O OUTRO Clar a R e is Primeiro: silêncio. Nó, nós, elas, bolas, pulso, cortina, toalha, luva, mergulho, braços, mãos entrelaçadas, corpo jogado, mais uma vez nó. Bicho homem. Mulher. Depois, a imagética surrealista catalã de Catalina X nos transporta à arte de um paradoxo visual travesso e emocionante. Como num universo sonhado, o que se vê são corpos e rostos (cobertos!) capazes de causar feitiço, espanto, reflexão. Caprichos humanos irracionais e abstratos cercados de uma aura inofensiva e onírica inspiram poéticos pensamentos. O automatismo psíquico traz à tona questões como angústia, impulso, identidade, humanidade, incosciente, singularidade. Eu sou o outro. Imbuídos de forte sensibilidade expressiva, formas, cores e texturas se encontram e se comunicam no silêncio das imagens metafóricas. Ludicismo, invisibilidade, mistério. Introspecção. Nó.

Catalina Bartolomé é uma fotógrafa argentina que cria imagens retratando pessoas em poses ou circunstâncias bizarras e incomuns. Suas obras estão incluídas na atual exposição “20 anos – 1000 muestras”. Clara Reis nasceu em 1985, no Rio de Janeiro. Estudante de Jornalismo da PUC/RJ, foi redatora do site Radar55 e do canal de televisão a cabo GNT. Atualmente é repórter do portal feminino Bolsa de Mulher.


Enquanto falo, as horas passam, 2009, Intervenção urbana no Rio de Janeiro. Foto: Rafael Mosca

H E L E N O

B E R NA R D I

E N Q UA N TO FA LO, A S H O R A S PA S S A M R o ber to C o n du ru A série de intervenções recentes de Heleno Bernardi reafirma o processo firme, calmo e discreto com o qual ele vem constituindo uma poética artística. Independentemente das diferenças quanto aos elementos e meios por ele usados, Enquanto falo, as horas passam se conecta às suas obras expostas previamente. Assim, dá continuidade e amplia caminhos trilhados em trabalhos anteriores, ao confirmar certas opções e abrir outras frentes. Heleno continua a jogar preferencialmente com imagens do corpo humano. Ao se apropriar de imagens pretéritas, algumas de cunho ancestral, maneja arquétipos com largo alcance de sentido, superpondo tempos diversos. Referências antigas, remotas e atemporais, eruditas ou universais, que são embaralhadas a outras, recentes e triviais. Contraposições que fazem o comum se tornar estranho, insólito, nesta obra que vem se delineando como jogo entre denso e rarefeito, drama e humor, baixa e alta cultura. Acúmulo de usos e remissões ao corpo que permite pensar como o artista põe seu corpo em suas obras, levando a refletir sobre como ele também as concebe, desde o início, como autorrepresentações mais ou menos veladas. Além de intricado, reiterativo e algo autorreferente, o jogo de contraposições aos poucos armado por Heleno Bernardi também tem ampliado seus meios e espaços de ação. Se antes produziu obras de estúdio, recentemente os projetos exigiram ganhar as ruas, bem como sugeriram a oportuna ventura de nelas se perder. São, assim, intervenções urbanas com mídias diversas. A soma de fato transitório, registro e desdobramentos multimídia é expandida por Enquanto falo, as horas passam. Primeiro, em função da abertura à interatividade dos transeuntes com as peças dispostas em espaços de uso coletivo das

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cidades. Depois, devido à participação de Heleno, de outras pessoas e/ou de suas peças em performances correlatas, bem como outras intervenções com variadas mídias, que aumentam o alcance da interatividade em situações presenciais e virtuais. Ao abrir seu trabalho a jogos intersubjetivos em diferentes situações urbanas, Heleno põe em jogo como pessoas em diferentes contextos culturais reagem a questões contemporâneas e atemporais. Entretanto, dissolver os elementos e modos dessas intervenções no mundo não parece ser um de seus objetivos, muito menos resolver a problemática social. Seja com as peças tridimensionais, seja nas mídias eletrônicas e impressas, a interatividade é circunscrita: tem limites e é intermediada por linguagem, tradição, história. Manipulações que são, contudo, capazes de gerar uma espécie de calor humano que parece se agregar às peças, as quais, agora, pela primeira vez, sobrevivem e, assim, partilham (disputam?) com as imagens a condição de obras. Ao serem dispostos em lugares diversos da cidade, como praças, o interior de um edifício de passagem e um parque público, seus corpos-colchão instauram uma situação paradoxal: a possibilidade de aconchego e afeto com seres inanimados e em lugares contemporaneamente vistos, sentidos, como lugares de exterioridade, impessoalidade, fluxos anódinos, desamparo, desabrigo. Trazem à mente tanto um imaginário humano arcaico quanto o caráter sempre lúdico, atual, fundamental ao viver, da interação dos corpos. Esse jogo corporal, seja pela brincadeira dos passantes com as figuras,das pessoas entre si por meio dessas renovadas esculturas,do artista à distância com todos eles, quer instaurar instantes afetivos e libidinais aparentemente perdidos, impossíveis, na cidade contemporânea.

Libido que conduz à problemática da potência. E faz ver o tempo como uma questão central nessa poética, que não emerge apenas do confronto entre elementos e temas distantes, do choque entre tópicos antigos, contemporâneos e atemporais. É mesmo o transcurso do tempo que emerge de imagens insólitas. Duração que também significa perda de potência, pois o tempo enfraquece, traz o fim: manipula e destrói o corpo. Entretanto, o tempo também traz o início, insufla, cria, constrói, faz crescer, acontecer, reiniciar. Tempo como um signo de potência, que também é um desafio para o jogo de contrários a que se dedica Heleno. Tempo-falo como signo de (im)potência que é crucial para este trabalho, que procura enfrentar tanto a fugacidade inexorável de tudo que é e acontece enquanto o mundo se processa e dele se fala, como a densidade cultural e artística acumulada historicamente, para alcançar um instante de diferenciação poética. Obra que se faz de maneira afirmativa, dizendo ser possível, ainda que de modo breve, potentemente ser. E parafraseando Ovídio: enquanto as horas passam, falo.

Roberto Conduru é historiador da arte, professor no Instituto de Artes da UERJ. Heleno Bernardi (Ouro Fino, MG, 1967) é artista visual. Realizou as séries de trabalhos: Masseter suite, Apologia de Sócrates, Magma, Não vamos discutir com Caravaggio, Memento mori e Enquanto falo, as horas passam. Faz intervenções urbanas e expôs na Galeria Theodor Lindner (Rio de Janeiro), na Iguapop Gallery (Barcelona), na Galerie Alain Couturier (Nice), na Doors Galerie (Amsterdã), na Basilea Foundation (Basel) e na Ex Teresa Arte Actual (Cidade do México).


Enquanto falo, as horas passam, 2009, Intervenção urbana no Rio de Janeiro. Foto: Rafael Mosca

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Animaris Percipiere Thunder, 2005, Ijmuiden (Holanda). Foto: Loek ven der Klis

THEO JANSEN strandbeest.com

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Animaris Tabulae, 1999, computação gráfica

ANIMAIS DA PRAIA L a k s h m i S a n dh a n a Theo Jansen quer criar “vida” e sente que a melhor maneira de fazer isso é começando do início. Um deus com estilo próprio, Jansen está desenvolvendo toda uma nova linha de animais: imensas criaturas ambulantes de múltiplas pernas concebidas para vagar pelo litoral holandês, alimentando-se de golpes de ar. Durante os últimos anos, sucessivas gerações de suas criaturas evoluíram em animais cada vez mais complexos que caminham ao bater as asas contra o vento, detectando obstáculos em seu caminho por meio de antenas e até mesmo se enterrando na areia ao sentir a aproximação de uma tempestade. Um cientista que se tornou artista, os bizarros animais de praia de Jansen têm sua origem num programa de computação que ele desenhou há 17 anos, no qual criaturas virtuais de quatro patas competiam correndo para identificar os sobreviventes suficientemente preparados para a reprodução. Determinado a traduzir o processo evolucionário fora da tela, Jansen foi até a loja mais próxima e encontrou sua própria alternativa para a célula biológica – o humilde tubo plástico. “Animais também são máquinas”, disse Jansen. “Estava fazendo animais apenas com tubos porque eles são baratos, mas mais tarde eles se revelaram muito úteis na criação de vida artificial porque são também muito flexíveis e multifuncionais. Eu os vejo agora como um tipo de proteína – na natureza, quase tudo é feito de proteína e há vários usos para ela; você pode fazer unhas, cabelos, pele e ossos. Há uma grande variedade de coisas que você pode fazer com um único material, e é isso que eu tento fazer também”. Com tubos plásticos, que custam aproximadamente R$ 0,10 o metro, prendedores, fios de náilon e fita adesiva fazendo o resto, essas bestas leves, que lembram insetos, são produzidas de forma bastante barata. Concebidas para viver na praia e correr na areia úmida, sua evolução não tem sido fácil. Embora Jansen tenha inicialmente usado um programa de computador para identificar o design mais eficiente para sua locomoção, todas as suas criações subsequentes têm sido inteiramente livres de forma, construídas exclusivamente por tentativa e erro. “Tenho visto muitas esculturas mecânicas, e os animais de Jansen são os melhores que vi até agora na categoria dos mecanismos ‘maquínicos de baixa tecnologia’”, afirmou o designer de robótica Carl Pisaturo. “Por maquínico eu quero dizer mecanismos com ações de controle intrínsecas, e não universais, e por baixa tecnologia eu quero dizer partes mais ‘artesanais’ do que manufaturadas, e a ausência de sistemas elétricos ou eletrônicos. Essas são criações incríveis e a simplicidade da tecnologia e o fato de elas serem acionadas pela força do vento apenas tornam suas moções poéticas ainda mais impressionantes”.

Cada animal é feito de 375 tubos descartáveis cujos respectivos comprimentos representam o singular “código genético” da besta, influenciando sua qualidade e seu modo de caminhar. Muitas das primeiras espécies não conseguiam manter-se em pé ou morreram com o tempo, e modelos posteriores encontraram outros problemas. O Animaris Arena desdobrava uma tromba com um martelo que prendia um alfinete no chão para evitar que ele fosse carregado pelo vento durante uma tempestade, e o Animaris Sebulosa, na mesma situação, tentava empurrar seu nariz para baixo. Atualmente, Jansen está trabalhando no sentido de dar à sétima geração dessas criaturas, que compreende um rebanho de sete animais, a habilidade de mover-se mesmo na ausência de vento. Suas últimas criações contêm garrafas de limonada em sua estrutura corpórea nas quais o vento é lentamente introduzido, permitindo que a criatura caminhe por alguns minutos. Eventualmente, ele planeja aprimorar a eficiência para que elas possam prosseguir por dias ou mesmo anos. “Elas têm no vento uma fonte alimentar e podem guardar energia e usa-lá mais tarde”, disse Jansen. “O lado ruim é que elas talvez precisem esperar durante dias para que o dispositivo eólico funcione e assim elas consigam moverse por, aproximadamente, cinco minutos. São exatamente como cobras. As cobras também ficam ao sol durante dias digerindo sua comida. Na praia os animais precisam agarrar a brisa e esperar um longo tempo até terem vento suficiente em seus estômagos para dar uma volta”. Há uns dois anos, Jansen criou o Animaris Rhinoceros Transport, um monstro ambulante de duas toneladas também propulsionado pela energia do vento, que poderia ser movido com apenas uma pessoa o puxando. Possuindo uma cabine e espaço suficiente para várias pessoas se sentarem dentro dele, o rinoceronte representava o esforço de Jansen de criar uma versão máquina do animal de praia usado apenas para transporte, da mesma forma como carros são versões máquinas de cavalos. Ele diz que uma versão futura – um Behemoth de 12 toneladas, grande o suficiente para ter várias salas dentro – poderia ser chamado de Animaris Mammoth. “Acho que eles são absolutamente lindos”, disse Bruce Shapiro, um artista da robótica. “Ele descobriu uma forma de usar materiais baratos para construir máquinas ambulantes movidas pelo vento. O que os torna tão atraentes é a onda de dispositivos, como o movimento das patas de uma centopeia. Desconfio que, como humanos, identificamos essa ação como algo específico às criaturas vivas, daí nosso fascínio pelos ‘organismos’ de Jansen”. Ao usar o sistema pneumático como fundação, Jansen espera eventualmente prover suas bestas com nervos, músculos, avançadas capacidades sensitivas e até mesmo rudimentares formas de decisão que imitam as funções do

cérebro, antes de permanentemente soltar bandos delas na praia. Neste momento, ele permite que os animais compitam uns com os outros e manualmente troca o código genético (o comprimento dos tubos) dos perdedores com o do ganhador. Em última instância, ele sonha com seus animais possuindo um tipo de “vida”, evoluindo sozinhos sem sua intervenção. “Eu imagino que dois animais irão se encontrar e de algum modo comparar suas qualidades; demonstrar em algum lugar como correm e o quão rápido correm, e também de alguma forma comparar como sobrevivem ao vento. E aquele com melhores qualidades mata o outro e dá a ele seu próprio código genético. Poderá haver trinta animais na praia, correndo por ali o tempo todo, copiando códigos genéticos. E então isso acontecerá sem mim”. “Eu tento refazer a natureza com a ideia de que, ao fazêlo, poderei descobrir os segredos da vida e encontrar os mesmos problemas do criador real”, acrescenta. No entanto, criar rebanhos autônomos e ambulantes não será tão fácil. “Dar o próximo passo em direção à ‘coisa viva’ envolve moção, evitar obstáculos, questões de poder e de computação, assim como a necessidade de durabilidade – um buraco negro de trabalho técnico”, disse Pisaturo. “Mas à medida que a arte versa sobre a verdade, tais dificuldades, como, por exemplo, uma máquina caída, em curto-circuito, meio enterrada na areia da praia, dizem algo eloquente sobre a dificuldade de ser Deus”.

Lakshmi Sandhana é jornalista especializada em ciência e tecnologia. Atualmente, escreve para a BBC News e para o Wired News. Theo Jansen estudou Ciências Técnicas em Delft, Holanda, mas se tornou um pintor. Depois de dedicar-se à pintura durante alguns anos seu interesse técnico retornou. Construiu um disco voador de quatro metros de diâmetro que realmente era capaz de voar. Enviando sinais sonoros e luminosos para a terra, o dispositivo sobrevoou a cidade de Delft em 1980, criando comoção e chamando a atenção da polícia. Depois disso, ele parou de pintar e produziu uma máquina de pintar, capaz de pintar na parede imagens fotográficas de objetos e pessoas situadas na sua frente. Desde 1990 ele se ocupa criando novas formas de vida. Os materiais básicos dessa nova natureza não são sementes ou pólen, mas tubos de plástico amarelos. Ele cria esqueletos capazes de caminhar ao vento, e que, portanto, não precisam se alimentar. Ao passar dos anos, eles se tornaram cada vez melhores na arte de sobreviver a circunstâncias adversas, como tempestades e inundações. Eventualmente ele quer soltar rebanhos desses animais nas praias, para que vivam suas próprias vidas. Theo Jansen é colunista do Volkskrant (jornal holandês de âmbito nacional) há 19 anos. Há artigos sobre seu trabalho no New Scientist, Wired e Popular Science. Fez uma exposição no Kunsthal, em Roterdã (2002). Escreveu três livros sobre arte e evolução. Sua exposição na Hibiya TOKYO, Japão, em 2009, atraiu mais de 30 mil visitantes.

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Corespaçoforma – Incorporáveis, 2010, performance

E N S A I O E XC LU S I VO S A N TA

SOBRE CORPOS COLORIDOS E MALDADES SUTIS

T E X TO

FRE DE RI CO

COE LHO

F OTO GR A F I A

DUDA

CAR VALHO

I N D U M E N TÁ R I A S

M ARI A 84

LY N CH


Corespaçoforma – Incorporáveis, 2010, performance


Corespaçoforma – Incorporáveis, 2010, performance

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[...] se os corpos não corpos são mais do que pessoas vestindo algo, eles podem ser mais do que roupas ou esculturas. Eles podem ser pinturas.

F rederi c o C o el h o Cara Maria: O mundo faliu. E é justamente a sua falência que nos permite breves felicidades em meio ao caos. Fomos libertados e abandonados para reinventar-mo-nos. Estamos à deriva diante de experiências do aqui e agora. Tateando poéticas e parindo profetas. Vivemos entre séculos, absorvendo destruições e adquirindo máquinas pessoais de utopias. Olhares explodem, as horas silenciam em meio ao ruído constante das ruas quentes e das músicas que podemos tocar solitários em nossos ouvidos. Pessoas pegam fogo e prédios desabam em cima de nós. Respiramos imagens e narrativas mundiais, mastigamos passados e lamentamos futuros. Expandimos nossa capacidade de adaptação e estendemos, espalhados pelo espaço dos dias, nossos dedos, nossos nervos, nossas dores e nossos corpos. Essa liberdade diante do desastre faz com que seja possível enxergar, dentre a bruma de sons e sentidos, outros espaços de vida. Cada qual com seu paraíso artificial. E quantos conseguem dar corpo ao que se vê solitariamente? Você, certamente. Eis aí seu mundo silencioso, de formas caladas e cores berrantes. Pelúcias, rendas, espumas, protuberâncias, acefalias de pano, distorções musculares de miçangas, você enxerga essas formas no banal do dia a dia. Abraça-se a um olhar de camadas, de destruição e recriação do corpo colorido e costurado. Estruturas que enforcam expressões e apagam rostos. Sufoco cromático. Maldades sutis. Aliás, nestes tempos de corações reluzentes, de cinismos financeiros e de poéticas do risco, nós ainda precisamos de rostos? Ainda precisamos exibir um rosto definitivo e conformado por aí? Eu diria que não. Mesmo que os dias nos exijam permanentemente o rosto da mulher, o rosto do macho branco, o rosto do negro, o rosto do jovem, o rosto do gay, o rosto da celebridade, o rosto do marginal. Quando vi as fotos com seu trabalho, no lugar dos rostos, vi apenas a opacidade de um filó. Tela e trama que borram o espaço da lembrança: sob as camadas de novas peles, restam os traços nulos de alguma pessoa. No lugar de sujeitos, vi pedaços de cores costuradas, restos de pano imbricados, formas orgânicas na harmonia contrastante

dos tecidos. Corpos abertos e costurados para além de seus próprios tecidos.

falência do que existiu, se a cada dia novas cores surgem no horizonte?

Portanto, se os corpos não corpos são mais do que pessoas vestindo algo, eles podem ser mais do que roupas ou esculturas. Eles podem ser pinturas. Eles apresentam o belo formato fora da forma esperada, eles borram a certeza do gosto entre pernas e volumes, entre braços e esferas. A questão aqui não se resume a uma questão de gosto. Ela é mais ampla. Na transposição das cores tensas de suas telas para o espaço orgânico e articulado do corpo costurado, o percurso de dar carne a essas cores é mais importante do que sua chegada a um resultado decorativo. Talvez a sua necessidade de cor seja tão grande quanto a sua necessidade de espaço em movimento.

Ontem, eu estava num ônibus da cidade e vi uma menina bem jovem tocando o sinal para saltar. Vi a menina saltando do ônibus (tudo isso através do cinema da janela) e, nova e tranquila, outra menina a esperava na calçada do ponto. As duas, ao se encontrarem, a despeito da civilização, se beijaram. Candidamente. E toda sua juventude dissipou-se no compromisso-carinho daquele beijo em plena luz do dia em uma ruma movimentada da cidade. São meninas todas coloridas. São novos amores. São novos corpos. Explosão dos valores. Afetos afirmativos. Vidas em expansão.

Pois até onde vão os limites da pintura? Quem define o que pintamos no mundo, qual superfície é a mais apropriada, se as cores estão soltas por aí? Quando as cores perdem seus limites, quem aponta onde cada uma começa ou acaba? Seus quadros de pinceladas brutas e camadas espessas, de abstrações em rotação, são o primeiro passo para você enxergar as cores abraçando tudo, distorcendo as formas? Como isso ocorre em seu mundo de indefinição entre peles e panos, de simulacros de pessoas feitas de linhas e mais linhas cerzidas? Pois há algo sinistro, ou melhor, há algo perverso nessas vestimentas e em suas protuberâncias. Você nos oferece corpos femininos cujas curvas não contornam o sensual. Elas afloram o grotesco circense, o absurdo de um sonho, o desvio de um desejo. E os desejos, assim como as cores, estão no mundo. Cada um que faça seu proveito. Maria, o mundo faliu? Pergunto a você porque essa tanta cor insiste em dizer o contrário. Porque esse deformado corpo inventado provoca e aponta o inverso. Por eles, o mundo nem começou. Os novos formatos de gente-obra soltos no espaço, vagando pelas ruas, perguntam por que tanto pessimismo ante o que não se conhece? Por que discursos tão apocalípticos em tempos de expansão das telas, das ideias, do sol dos cinco sentidos? Por que a

Cheguei em casa, pensei em suas fotos e cá estou, escrevendo para você. Beijo, Fred

Frederico Coelho é pesquisador e ensaísta, doutor em Literatura pela PUC/RJ e mestre em História pelo IFCS/UFRJ. Trabalha com a interseção da obra de Hélio Oiticica com a Literatura e assina o blog objeto sim objeto não. www.objetosimobjetonao.blogspot.com Duda Carvalho é fotógrafo, nascido em 1968. Recebeu o Prêmio Hasselblad Master em 2003 e entre publicações feitas no exterior inclui ensaio em Polaroid no livro Graphis Nudes III (EUA). Já expôs em coletivas, como na Funarte (1997) e no Tokyo Metropolitan Museum of Photography (2002). Atualmente está sendo representado pela Global Assignment by Getty Images. www.dudacarvalho.com Maria Lynch nasceu no Rio de Janeiro, em 1981. Recentemente concluiu pós-graduação e Mestrado em Artes Plásticas em Londres, na Chelsea College of Art and Design. Depois que chegou de Londres, em 2009, fez exposição individual na Mercedes Viegas (Rio de Janeiro), foi artista convidada para o Salão Paranaense (Curitiba) e apresentou a performance Corespaçoforma com os incorporáveis no OI Futuro e no SESC Arte 24horas (Rio de Janeiro). Em 2010, foi convidada a participar da exposição ] entre [ no IBEU e ganhou o prêmio Marcantonio Vilaça.

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Corespaçoforma – Incorporáveis, 2010, performance

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Fenda#1.1, 2003, fotografia p&b, 60x60cm, coleção Hilal Sami Hilal 85


restaurante e eventos

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