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o PODER DO TRÁFICO
O PODER do tráfico ANTECEDENTES
O tentador mundo do narcotráfico
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Texto: Victória Netto victoriagoulartnetto@gmail.com Fotos: Andrielle Prates e Raíssa de Avila andrielle.prates26@gmail.com / raissa20avila@gmail.com
Eram cinco horas da madrugada quando os policiais chegaram. Enquanto os moradores dormiam no interior das casas – havia duas construções no mesmo terreno –, os incontáveis “Anjos da Lei” se aproximavam, tanto por terra quanto em helicópteros. Entraram “pedalando” a porta da primeira residência, reviraram os pertences, detiveram os proprietários. A filha, que morava nos fundos, caiu em desespero quando foi levada à casa dos pais e se deparou com eles ajoelhados, as mãos atrás da cabeça, algemas nos pulsos. “Eu achei que, bem ou mal, só eu iria presa, mas os dois também estavam algemados”, relembra Antônia*, 23 anos, condenada a nove anos de prisão junto com o pai e a mãe, os três por tráfico de drogas.
Os policiais estavam com mandados de prisão preventiva e levariam 37 presos naquela ação de 2016, que fazia parte da operação Anjos da Lei. Deflagrada simultaneamente em 2011 em 32 cidades do Rio Grande do Sul, a operação é uma ação permanente da Polícia Civil e investiga crimes envolvendo o tráfico de drogas nos arredores de escolas. De 2011 até 2017, 804 pessoas foram presas em todo o Estado pela operação.
Condenada a nove anos de prisão por tráfico de drogas, Antônia trabalha para reduzir a pena. A cada três dias laborais, um é subtraído de sua condenação
O cárcere no Brasil
Segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de 2016, no Brasil, os crimes relacionados ao tráfico de drogas são os que mais levam pessoas às prisões, representando 28% da população carcerária total. Somados, roubos e furtos chegam a 37%, enquanto os homicídios correspondem a 11%. Em junho de 2016, o país assumiu a terceira posição mundial em número de detentos, com 622 mil 202 presos, atrás apenas dos Estados Unidos e da China. Na prática, isso significa dois encarcerados para cada vaga no sistema prisional – são 368 mil 49 vagas, conforme o mesmo levantamento.
O jornalista e doutor em sociologia Marcos Rolim, especialista em segurança pública, aponta para a criação de um ambiente propício ao desenvolvimento do crime organizado dentro dos presídios. De forma geral, os sistemas prisionais superlotados, insalubres e violentos são classificados como “depósitos humanos”, ineficientes na premissa fundamental de recuperação do detento, que sai do sistema penal mais violento do que
Marcos Rolim especialista em segurança pública
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entrou. “O Estado brasileiro hoje é um dos principais organizadores do crime por não dar atenção à execução penal. Enquanto pessoas ficam preocupadas com o que está acontecendo, elas deveriam se preocupar com como estamos tratando os presos, com como é feita a execução penal. Eu mando esta pessoa para a prisão para quê? Para que ela se torne um novo membro de facções, ou eu quero que esta pessoa aprenda a ler e a escrever, que tenha um emprego?”, questiona. “Em geral, a opinião pública diz ‘deixa que apodreçam lá, são bandidos’, e o resultado é que nós estamos contratando violência futura”, finaliza.
Nem mocinha, nem vilã
Os vários anéis e o eventual uso de maquiagem demonstram a preocupação com o visual. Tímida e vaidosa, distrai-se escutando música – gosta de pagode – quando não está ocupada com alguma demanda da minigráfica. Antônia trabalha há cinco meses entre papéis e uma grande impressora em uma instituição pública do Estado para reduzir sua pena. Até o momento da entrevista, havia cumprido um ano e três meses em regime fechado e mais seis meses em regime semiaberto. Todas as manhãs, ela sai da Penitenciária Estadual Madre Pelletier para ir ao novo trabalho, sempre de ônibus, e retorna ao cárcere no final do dia. No presídio, divide um alojamento com outras 10 mulheres, também trabalhadoras.
Para Antônia, que nunca havia sido empregada formalmente, os compromissos que vieram junto com as atribuições do trabalho são motivadores. “Eu gosto de ter uma ocupação, ter que sair todos os dias e seguir uma rotina de horários”, comenta, timidamente.
Conta que cresceu num bairro de periferia em Canoas, na região metropolitana de
Porto Alegre. Parou de estudar na sétima série e lembra que, naquela época, gostava de história e de matemática. Foi um pouco depois de deixar a escola, entre 17 e 18 anos, que se envolveu com o tráfico pela primeira vez. Dois dos irmãos mais velhos – são oito filhos no total – já traficavam e tinham passagens pela polícia. A mãe, 48 anos, dona de casa, também se envolveu com o tráfico, e o pai, 50 anos, assassinado em janeiro de 2018 após ter sido preso e conquistado a tornozeleira para cuidar dos filhos mais novos, embora não concordasse, sabia de todos os esquemas.
“Eu era bem conhecida do patrão, a gente se criou juntos, aí conversei com ele para conseguir uma mão para mim”, relata. A jovem interrompeu as atividades ilícitas após o nascimento do filho. O menino, de quatro anos, é fruto de um casamento que Antônia iniciou aos 16 anos e que teve fim no período em que descobriu sobre a gravidez. Casar e ter filhos cedo também se revela um padrão entre as meninas de comunidades. Segundo o levantamento “Ela vai no meu barco”, realizado pelo Instituto Promundo com apoio da ONG Plan International Brasil, o país tem cerca de 877 mil mulheres entre 20 e 24 anos que se casaram com 15 anos ou menos.
“Quando eu tinha largado o tráfico e meu pai estava trabalhando, ele me ajudava, comprava as coisas para o meu filho, mas depois ele perdeu o serviço como pedreiro”, lembra. O “patrão” de Antônia, mais tarde assassinado por membros da facção Bala na Cara, no atual controle do tráfico de drogas em Canoas,
Antônia dorme à noite na penitenciária feminina Madre Pelletier, em Porto Alegre
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era amigo da família e recorrentemente fazia novas propostas a ela. “Eu fiquei dois anos sem me envolver, só que acabei entrando de novo, mas não era direto, via umas mãozinhas, só para pegar um dinheiro mesmo.” A noção sobre a complexidade do crime se atenua enquanto fala. Antônia sabe que o que fez “não é certo”, mas o narcotráfico é tão presente em seu entorno, que “umas mãozinhas” lhe parecem quase insignificantes.
O tentador mundo do tráfico
“Sai dessa vida que não vai te levar a nada, ganhando dinheiro para os outros, vai entrar numa ruim por causa disso”, alertava a amiga de infância e comadre Camila*, 24 anos. Antônia estava à procura de trabalho, mas os gastos com o bebê começaram a preocupar. Em casa, toda a família estava desempregada, e as facilidades do mundo do crime surgiram novamente como uma condição de garantir o sustento. “Meu pai sempre ensinou que isso era errado e eu sempre vi que era errado. Eu já tinha visto muita gente sendo presa, também já vi matarem muita gente lá [onde cresceu] e eu não queria isso. Se eu tivesse um serviço, nunca que eu ia me envolver”, garante Antônia, relembrando-se do pai num misto de dor, culpa e orgulho.
A jovem vendia maconha e recebia diariamente cerca de 30 malotes de crack e cocaína, os quais repassava para outra pessoa vender. Com isso, “tirava” cerca de 1.500 reais por dia. O tráfico de drogas revela-se um universo tentador para quem não tem muitas oportunidades nem perspectivas. “Não era só ela que vendia droga, era a família toda, e como o dinheiro muitas vezes fala mais alto, acho que contribuiu para ela ter passado por essa vida”, pondera Camila.
Conforme o Infopen, 62% da população carcerária feminina no Brasil foi condenada por envolvimento com o crime organizado. Para a Defensora Pública Isabel Rodrigues Wexel, o narcotráfico está onde o Estado não chega. “O tráfico se instala onde não há poder público, e o grande traficante muitas vezes ilude. Onde a pessoa fica alienada, ela não consegue ver outra forma de futuro além do que
admira no grande traficante, que, para aquela sociedade, muitas vezes se torna o herói.”
Somando o desespero, o rápido e alto retorno financeiro da atividade, aliados à sensação de empoderamento diante da ausência de melhores oportunidades, Antônia escolheu o caminho mais óbvio para a realidade dela, mas o menos promissor.
Qualificação profissional
Assim como Antônia, 75% da população prisional brasileira não concluiu o ensino fundamental e menos de 1% dos presos tem ensino superior. “Eu atuei muito em presídio, e quando o preso começa a ser incentivado ao estudo e ao trabalho, ele sai do mundo do crime e começa a fazer escolhas melhores”, aponta a Defensora Pública Isabel Rodrigues Wexel. O trabalho laboral possibilita a remição da pena e permite que os presos aprendam um ofício e consigam disputar uma vaga no mercado de trabalho ao saírem do sistema penal.
Na Noruega, onde há 73 presos para cada 100 mil habitantes – no Brasil, são 352,6 detentos para cada 100 mil habitantes – e o índice de reincidência criminal, 20%, é mais baixo do mundo, o sistema de execução penal exclui a cultura meramente punitiva de privação da liberdade. O foco é a reabilitação do preso por meio de qualificação profissional e educação para uma efetiva reinserção social.
Para quem cumpre pena, é difícil sonhar com um futuro muito diferente do passado conhecido, sobretudo sem uma profissão e com o estigma de ex-presidiário. “Vai ser bem difícil conseguir trabalho, porque eles pedem atestado de antecedentes cri
Em regime semiaberto, ela é autorizada a sair da penitenciária para trabalhar
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minais, daí a gente não consegue. Vai ser difícil”, reflete Antônia.
Ela tampouco consegue imaginar sua vida daqui a 10 anos, não visualiza um futuro em que possa se tornar a médica ou professora que um dia sonhara ser, mas quando pensa sobre as perspectivas da infância, de um aspecto ela não tem dúvidas: a menina Antônia jamais pensou que hoje estaria presa. “Eu não queria isso. Sei lá, muita coisa mudou na minha vida, muita coisa mesmo. Para mim, esse negócio do tráfico não trouxe nada de bom, eu só perdi. Perdi a melhor coisa, que era o meu pai”, desabafa. A jovem se ilumina ao pensar no filho e, um pouco envergonhada para admitir de imediato, até consegue projetar dias felizes trabalhando, cuidando do menino e dos dois irmãos mais novos.