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O PODER DA UNIÃO
EU NÃO ANDO SÓ
Grupos femininos como espaços de empoderamento
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Texto e fotos: Marcie Gottschalk gottschalkmarciele@gmail.com Fotos: Nathália Gonçalves oi@nathaliagoncalves.com
Encontro mensal do grupo União Feminina de Charqueadas
Ser mulher e andar sozinha é difícil. E não só porque tem assédio em cada esquina, medo em cada rua escura. É difícil porque o mundo ainda não nos comporta. Parece que não nos suporta. Dentro disso tudo, há que se existir. Resistir. Essas palavras podem parecer vazias se você não faz ideia do que é ser mulher, mas são essas cicatrizes e particularidades que nos unem. E essa união que nos fortalece.
A criação de espaços de encontro exclusivos para mulheres não é nenhuma novidade. Em 1922 era fundada a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, organização cujo objetivo era defender e reivindicar os direitos das mulheres. Independentemente de qual seja o segmento — os clássicos clubes de mães ou de leitura, os espaços religiosos ou de militância —, uma coisa é comum: a troca de experiências. É através dela e da criação de uma identidade coletiva que mulheres constroem redes de cumplicidade, seja para lutar por direitos, se capacitar ou compartilhar suas histórias.
Oásis literário
A tarde de sábado era marcada por uma chuva intensa que escorria incessantemente pelas janelas desde o início da manhã. Chuva daquelas que nos fazem pensar duas vezes antes de sair de casa. Ainda assim, às 16h, cerca de 15 mulheres se reuniam na Biblioteca Pública Municipal Josué Guimarães, em Porto Alegre, com seus livros, ou leitores de livros digitais, todos com uma capa comum: ‘As boas mulheres da China’, da escritora chinesa Xinran. Dez minutos de conversa paralela, mais algumas participantes chegam, e inicia-se então o encontro mensal do Leia Mulheres Porto Alegre, grupo que existe desde agosto de 2015.
Antes de abrir o espaço para a discussão da obra, Clarissa Xavier, 40 anos, fundadora do grupo na capital, convida as participantes a analisarem as publicações da editora, descritas no final do livro: “Se tu for ver, tem nove livros de mulheres (de um total de 81 obras). Enquanto a lista estiver assim, precisamos ter o grupo! A gente ainda tem muito o que gritar”. A discrepância na publicação de obras femininas também foi objeto de interesse da pesquisadora Regina Dalcastagné, que constatou que 72% dos romances publicados no Brasil entre 1990 e 2004 eram escritos por homens. Dez anos depois, era lançado o guia ‘Por que ler os contemporâneos?’, reunindo 101 escritores que traduziam o nosso tempo. Apenas 14 eram mulheres.
Buscar um olhar feminino do mundo foi o que deu origem aos 75 grupos vinculados ao Leia
Grupo Leia Mulheres se reúne uma vez por mês para discutir obras escritas por autoras
Mulheres espalhados pelo Brasil. A cada encontro, novas obras, novos debates, trocas de experiências e uma alta dose de respeito, que pode ser percebida em cada pedido de desculpas recebido quando as participantes falam ao mesmo tempo, ou na tentativa constante de se colocar no lugar da outra, seja ela autora, personagem ou mulher, e entender sua vida, o que pauta sua percepção do mundo. Nesse sentido, é mais do que importante a pluralidade de relatos. E de mulheres. A meta do ano para o grupo é ler pelo menos 50% de obras escritas por autoras não brancas: “Se a gente não pensar o que tá lendo, só lê homem. Se a gente só pensar em mulher, só lê mulher branca americana”, enfatiza Helen Pinho,32 anos, administradora por profissão e moderadora do grupo.
Entre capítulos e leituras de trechos específicos, peque
Arquivo pessoal
Helen Pinho mODERADORA DO GRUPO leia mulheres
nos desabafos vão se soltando, seja do ambiente de trabalho majoritariamente masculino e machista de uma, dos desafios de outra, de tudo que envolve ser — e tornar-se — mulher. Para uma das participantes e moderadoras do grupo, a engenheira florestal Maurem Kayna, 45 anos, a experiência envolvida em toda essa troca é fantástica. “Qual foi a visão que a outra pessoa teve daquilo que tu leu? O que despertou para o outro e para ti não? Amplifica. Multiplica o potencial transformador da leitura.”
Para Helen, o grupo é uma espécie de oásis. “Tem pessoas que às vezes nem leram o livro, mas ficam ali, só pra ouvir. Vira um local que essas pessoas se sentem acolhidas”, finaliza.
O dia é delas
Se você tivesse um dia para si, longe das obrigações de trabalho, estudo ou família, o que faria? Iria se divertir com os amigos? Aprender algo novo? Pois é isso que fazem as participantes da União Feminina de Charqueadas, grupo que se reúne uma sexta-feira por mês, das 9h às 16h. Fundado em maio de 2015, o grupo, ligado à Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater), reúne agricultoras, pescadoras, professoras e artesãs da cidade de Charqueadas, que fica a 58 km de Porto Alegre. A data do encontro é sempre aguardada: “A gente tem uma agenda, então vai chegando perto do dia, eu já fico me preparando, sempre tem uma novidade, eu adoro estar aqui!”, conta uma das fundadoras do grupo, a aposentada Vânia Maria Silva de Lima, 55 anos.
Reaproveitamento de alimentos; artesanato com matérias-primas como escamas de peixe, sementes e ervas; receitas; produção de sabão e sabonetes naturais e a participação em um coral, que se apresenta em datas comemorativas, são só algumas das atividades desenvolvidas. No meio de tantas opções, é outro o aspecto preferido das participantes: a união. “É praticamente uma segunda família. Se vamos fazer um artesanato, a que sabe ajuda aquela que não sabe. Se uma termina o seu primeiro, ajuda a que não terminou. São todas como irmãs, nenhuma deixa a outra mal”, comenta a pescadora Eva Janice Silveira de Castro, 50 anos. “Se tu tem um problema, todas elas te ajudam”, resume a professora aposentada Vilma Marinho,62 anos.
Entre uma atividade e outra, com o chimarrão sem
Nos encontros do União Feminina de Charqueadas, as participantes confeccionam sachês
(acima) e sabonetes com
ervas naturais, entre outras atividades
pre passando, as mulheres conversam sobre a família, a casa, os acontecimentos da cidade, histórias engraçadas, lembranças de suas vidas e inúmeros acontecimentos do grupo – as viagens que fizeram, as gincanas, o primeiro aniversário da neta de uma, as noites do pijama, as cervejinhas compartilhadas… Assunto é o que não falta para essas amigas que parecem se conhecer desde sempre, assim como o carinho, que se faz presente em cada abraço e, até mesmo, nas atividades mais primordiais, como lavar o prato da outra ou ajudá-la a fazer um laço. A pergunta mais ouvida, em cada canto, é “e como tu tá?”.
O carinho do grupo e os conselhos das mulheres mais maduras foi o que fez com que Suélen de Souza Nunes,20 anos, se tranquilizasse sobre sua gravidez. “Eu não queria ter engravidado tão cedo, aí elas começaram a me aconselhar, a contar como era bom ser mãe.” Meses depois, era ela quem passava os ensinamentos adiante: “Como foi uma gravidez atrás da outra aqui no grupo, eu dei conselhos, disse que era uma experiência muito complicada, mas muito boa”. Suélen é a filha mais nova da pescadora Iracema Maciel de Souza,55 anos, outra das fundadoras do grupo, que fala cheia de orgulho sobre a netinha Ana Jullya, de quase dois anos, participar das reu
Arquivo pessoal
Iracema, sua filha Suélen, a nora Franciele e as netas Lívia e Ana Jullya são participantes do grupo
A presença de mães lactantes com seus bebês foi um dos destaques do Django Girls 2018, oficina de programação gratuita para mulheres
niões desde que tinha apenas dezoito dias.
Entre organizar a agenda do dia, orientar cada passo das atividades e combinar o que será feito no próximo encontro, que marca o aniversário do grupo, a tecnóloga em Desenvolvimento Rural da Emater Letícia de Lima, 38, conta animada sobre os próximos planos e as surpresas que prepara para a gincana que se aproxima, chamada ‘Encontro das vizinhas’. “Isso aqui, esse momento só nosso, é uma terapia pra mim também.”
Muito se fala sobre conceitos como feminismo, empoderamento, sororidade, empatia. Ainda que alheias à maioria deles, as participantes da União Feminina fazem jus a seu nome e criam espaços de apoio, seja para aprender algo novo, aconselhar sobre uma situação que já viveram ou trocar experiências. Param tudo, uma vez por mês, para cuidarem de si. E das outras. Quando questionadas sobre a possibilidade de homens participarem do grupo, a resposta foi unânime: este dia é da mulher e só dela.
Um caminho sem volta
Bastante promissora em termos de carreira e salários, a área da tecnologia da informação ainda é para poucas. Segundo o relatório ‘Por um planeta 50-50 em 2030: mulheres e meninas na Ciência e na Tecnologia’, lançado pela Unesco em fevereiro de 2018, as mulheres detêm apenas 18% dos títulos de graduação em Ciências da Computação e são 25% da força de trabalho da indústria digital no mundo. Aumentar esses números é um dos objetivos do Django Girls, oficina de programação gratuita para mulheres.
Criado em 2015, o evento acontece em dois dias e busca que, através da linguagem de programação Python, as mulheres criem um site, dando o primeiro passo rumo a autonomia tecnológica. Para participar é preciso preencher um cadastro no site, com informações pessoais, como vulnerabilidade, renda, identidade de gênero, cidade e a motivação de cada uma. Este ano, foram mais de 400 inscritas. O desejo principal? Iniciar ou mudar de carreira.
A seleção é realizada através das respostas e busca atingir o maior número de inclusão possível. “Se eu quero incluir mulheres, eu tenho que incluir todas as mulheres”, enfatiza Andreza Rocha, 35 anos, recrutadora sênior de Tecnologia de Informação e organizadora do evento. Para ela, um dos destaques da edição 2018 foi a presença de duas mães amamen
tando. “Essas mães levaram seus bebês de colo. Sabe o que é uma mãe se libertar de toda aquela obrigação materna por um dia? Elas estavam encantadas e o mais bonito é que elas ficaram o dia inteiro, das 8h às 17h, porque elas se sentiram seguras.”
Além dos ensinamentos dos dois dias de tutoriais, a ideia é manter as participantes por perto, para que assim se fortaleçam juntas, seja ajudando na organização das próximas oficinas ou participando dos grupos de debate. “É um ambiente de fortalecimento. A mulher, quando fala de algo tecnicamente, é sempre testada. Nos ambientes que a gente se reúne é superdiferente: você pode falar o que quiser, perguntar qualquer coisa”, conta Andreza.
Graças à independência conquistada, algumas participantes já estão estagiando na área ou assumindo cargos em sua nova carreira. E ainda que esses sejam os casos-exemplo, o maior trunfo do grupo é apoiar suas integrantes. “Não é só empoderar, é apoiar. Porque às vezes a gente não tá empoderada ainda. E nem todas vão se empoderar também, cada uma tem um ritmo, um tempo, um interesse. E a gente precisa respeitar. É um espaço de não opressão”, finaliza Andreza.
Livros escritos por autoras *
Meio Sol Amarelo, de Chimamanda Ngozi Adichie
A Filha perdida, de Elena Ferrante
Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo
A Política Sexual da Carne, de Carol Adams
Persépolis, de Marjane Satrapi
A República dos Sonhos, de Nélida Piñon
Malena é um nome de tango, de Almudena Grandes
* Indicações grupo Leia Mulheres