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O PODER DO PELO

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o poder da paixão

o poder da paixão

Fabiana Sasi e Vitória Pinzon

APENAS DEIXE SER

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Em um mundo delimitado pelo gênero e regido por padrões estéticos, há quem crie suas próprias regras, enxergando os pelos como

emancipação Fabiana Sasi e Vitória Pinzon Texto: Camila Souza camilasssouzaa@gmail.com Fotos: Fabiana Sasi,

Vitória Pinzon e Lily Barbosa

fabiana_sasi@yahoo.com.br vitoria_pinzon@me.com lily.nazar.barbosa@gmail.com

“Você tá parecendo um homem.” “Nossa, você não se sente suja?” Frases como essas são constantemente pronunciadas para mulheres que escolhem não se depilar. Para as negras, é comum escutar que é preciso alisar os cachos. Afinal, de onde surgiu a noção de que o homem pode ter pelos e a mulher deve ter o corpo depilado e o cabelo alisado? Os modelos ideais de beleza estão aí, impostos pela cultura. Entretanto, há quem rompa com os estereótipos e torne as diferenças tênues.

Na Idade Antiga, era comum ambos os sexos se depilarem, prática que iniciou no Egito. Tiras de tecido ou de pele de animais banhados em cera quente de abelha eram as técnicas para retirar os pelos dos homens e das mulheres. Foi na Grécia Antiga que a lógica mudou e a divisão de gênero se estabeleceu, o que pode ser comprovado analisando-se as estátuas gregas, como a imagem de Vênus – uma representação pudica e recatada do ideal de beleza feminino – que cobre a genitália com a mão, sem pelos em seu corpo. Com a Idade Média e a hegemonia da Igreja Católica, a depilação não era simples estética: era um sinal de castidade. Já para o homem, os pelos caracterizavam a masculinidade e a virilidade.

Desde então, a depilação se popularizou entre as mulheres. Associada à beleza, à limpeza e ao que é aceitável, os pelos, naturalmente produzidos nos corpos dos indivíduos, se tornaram até mesmo uma obsessão. A inserção da mulher no mercado de trabalho, com uma

“Essa fronteira distintiva está se apagando”

Fernando Seffner Professor da UFRGs

rotina nas fábricas em que, muitas vezes, era necessário levantar os braços e expor as axilas, exigia a pele lisa. Recomendava-se inclusive a depilação para as mulheres “de família” que não desejavam ser erotizadas. Desde 1915, revistas brasileiras anunciam serviços de depilação com a promessa de deixar a mulher ainda mais bela. A indústria de cosméticos se aproveitou disso e, em 1930, já vendia cremes e aparelhos depilatórios com auxílio da publicidade, que reforçava o ideal estético. A moda também participou desse cenário, propagando as pernas depiladas, e o consumo de pornografia difundiu a imagem de uma vagina totalmente sem pelos.

Para o docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS Fernando Seffner, que segue sua linha de pesquisa em Educação, Sexualidade e Relações de Gênero com ênfase na construção da masculinidade, as definições de cada gênero surgem junto com a história da humanidade: “Nem todas as sociedades procederam igual. Também variam os conceitos de beleza ao longo do tempo. Há uma ideia na cultura ocidental de que existem traços mais desejáveis ao corpo feminino e outros ao masculino. Na América Latina, é ainda mais visível a imposição pela pele completamente lisa”. Exemplificando isso, cita a depilação à brasileira, conhecida internacionalmente como “Brazilian Wax” e que consiste na remoção total dos pelos na área da genital e do ânus.

O pesquisador considera a descendência indígena relevante para se compreender esses parâmetros, pois havia o hábito do banho, da depilação e do desejo de mostrar o corpo nessas culturas. Na carta de Pero Vaz de Caminha, por exemplo, é mostrado o espanto do europeu com o homem indígena por se depilar. “A prática da remoção de pelos vem sendo sedimentada há anos. Já foi mais restrita às mulheres. Esse padrão vem experimentando modificações, que não rompem com a ordem do sistema, porém são evidentes: há homens voltando a se depilar e mulheres que estão, a partir da ascensão de movimentos feministas, contestando isso”, pondera Seffner.

Com o objetivo de verificar sua teoria, resolveu produzir uma pesquisa em 2015: visitou três locais de depilação exclusivos para homens, a fim de analisar a organização e os discursos produzidos nos estabelecimentos. “Primeiro, notei a ambientação dos lugares: são discretos, e os atendentes – em todos quem me recebeu foram homens – asseguravam que eu estaria sozinho, sem ficar numa sala de espera com outras pessoas. Era bem diferente do salão de beleza, e a argumentação dos funcionários era construída em volta da ideia de que a depilação era para a saúde, não por vaidade. Em um dos locais, me falaram que pelo era sujeira”. Para ele, há um crescimento de homens que se depilam por uma questão estética e várias meninas não têm mais a preocupação exagerada com a depilação, o que nota nas aulas em que ministra. “Essa fronteira distintiva está se apagando”.

Rebeldia

A economista e produtora Débora Nunes não sente necessidade em se depilar. Menstruou com apenas 9 anos, começou a ter pelos com 11 e logo sentiu a cobrança: “Tinha muita vergonha, porque tive pelos antes de todas as outras. Precisava ir em salão de beleza, que é um espaço onde não fico à vontade”. Foi após entrar na faculdade e ter contato com o feminismo que se desapegou de várias imposições estéticas: “Não depilo a perna há mais de um ano e é bem raro depilar a axila. A sobrancelha é que tiro um pouco com a pinça, acho que fica mais bonito no meu

“Nunca passei pela transição capilar. Minha mãe sempre fez muita trança em mim e enfatizava que era algo bonito. Tudo isso formou a minha identidade e, hoje, deixo o cabelo trançado”

JANAÍNA RAMOS

rosto.” Débora ressalta que construiu uma relação tranquila e leve com seus pelos e que deseja deixar seu corpo o mais natural possível, não pintando também o cabelo.

Débora não é a única que pensa assim. Bianca Barreto, atriz e estudante de Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), também prefere que seus pelos cresçam espontânea e naturalmente. “Lembro que quando eu estava no colégio, lá pelos meus 12 anos, as primeiras colegas apareceram de short com as pernas raspadas e se orgulhavam disso. Era algo que parecia contribuir com a autoestima. Uma das minhas amigas mais próximas já não fazia isso e foi chamada de macaca por um dos meninos. Havia uma diferença entre as que se depilavam e as que não”, comenta. Bianca sentiu obrigação de usar gilete ou cera no ensino médio. “Hoje, já associo isso a uma agressão ao meu corpo.”

A pressão existe. “Minha família vê como se isso me deixasse mais feia. Não me depilar, no pensamento deles, faz com que menos caras queiram se interessar por

“Muita gente já me questionou e disse que pareço mais velha. Só que gosto dele assim, me sinto mais livre”

Mariana wertheimer artista visual

Mariana sente-se empoderada com os cabelos curtos e brancos

mim. A minha vó me pergunta por que não me depilo e preciso reforçar as razões de carregar esses cabelos embaixo do braço. Uma vez segurei na barra de ferro do trem e senti o preconceito, porque tinham olhares de nojo de pessoas olhando para mim”, relata Bianca. Sua relação com o pelo vai além: ficou, em 2015, careca para um personagem. A ação reconstruiu Bianca: “Foi uma grande aprendizagem. Pensei sobre o que leva alguém a raspar o cabelo e, no início, me achei feia, como se faltasse algo em mim. No fim, minha visão do que é belo se aproximou mais do que é natural”.

Não só o pelo corporal requer aceitação. Janaína Beatriz Ramos, especialista em gestão estratégica de negócios, tem o cabelo crespo desde criança e já sofreu pressão para alisar: “Nunca passei pela transição capilar. Minha mãe sempre fez muita trança em mim e enfatizava que era algo bonito. Tudo isso formou a minha identidade e, hoje, deixo o cabelo trançado”. A imagem das gaúchas, segundo Janaína, é a da mulher branca, de cabelo liso, loiro e com olhos azuis e, infelizmente, predomina o preconceito. “Já me perguntaram como eu lavo o cabelo quando eu estou com ele trançado, e eu já respondi ironicamente: corto e coloco na máquina de lavar. É algo

“Minha família vê como se isso me deixasse mais feia. Uma vez segurei na barra de ferro do trem e senti o preconceito, porque tinham olhares de nojo de pessoas olhando para mim”

bianca Barreto

estudante que irrita, porque eu lavo do mesmo jeito que você”, contesta. A mídia exerceu influência em sua noção de beleza como mulher negra: “Quando era adolescente, minha banda favorita era a Destiny’s Child e a Beyoncé, nessa época, tinha cabelo loiro e alisado e eu queria isso também”. Os cabelos brancos também são mais aceitos atualmente. Mariana Wertheimer, de 51 anos, é artista visual e deixa os fios brancos à mostra: “Desde os 18 tenho cabelo branco. Muita gente já me questionou e disse que pareço mais velha. Só que gosto dele assim, me sinto mais livre”.

Antes, o corpo sem pelos e o cabelo integravam o poder de se sentir belo e aceito socialmente. A realidade vem se diversificando. Empode-

ramento, para muitas mulheres, não tem mais relação com a beleza ou a valorização por um homem. Janaína, quando está com o cabelo black, sente que resiste e existe. Vê representatividade, reafirmando a sua presença como um ser político. Já o trabalho com economia feminista empodera Débora, que percebe a importância disso para outras mulheres. Ser produtora cultural e ser reconhecida em seu trabalho são uma forma de poder, que vem sendo conquistado em ambientes tradicionalmente masculinizados.

Bianca, por sua vez, gosta de ocupar espaços em que se sente escutada. “Também me divirto planejando looks na frente do espelho, adoro fazer isso entre amigas. Me empodero com outras pessoas, sabe?”. Hesita no primeiro momento em responder o que a faz se sentir poderosa. Ela não sabe se há, de fato, alguma situação. Talvez o segredo para que um dia isso aconteça seja simplesmente deixar ser. Ser careca, ser depilado, manter os pelos, ser plural. Parafraseando os Beatles, apenas um gigantesco let it be.

Bianca vê a depilação como uma agressão ao seu corpo

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